RECURSO PENAL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário

Texto Integral



Acordam em Conferência na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça,

I

Por Acórdão proferido nestes Autos, a 03.02.2020 pelo Juízo Central Criminal …, o Arguido AA foi absolvido da prática de um crime de violação do artigo 164º n.º 1 al. b) do Código Penal.

Inconformados com esta decisão a Assistente e o Ministério Público interpuseram recurso para o Tribunal da Relação …, o qual por Acórdão firmado em 10.02.2021, os julgou providos e, consequentemente, condenou o Arguido como autor material de um crime de violação, do artigo 164º nº1 alínea b) do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de 4 anos.

II

Inconformado com esta última decisão, o Arguido AA veio interpor recurso. Da respetiva Motivação retirou as seguintes Conclusões:

I. Por acórdão proferido em 03 de fevereiro de 2020 pelo Juízo Central Criminal …. o Arguido Recorrente foi absolvido da prática de um crime de violação p. e p. pelo art. 164.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, de que vinha acusado;

II. O Ministério Público e Assistente recorreram dessa decisão, nos termos do artigo 412.º do CPP, discordando da decisão sobre a matéria de facto e indicando os meios de prova que na sua tese justificariam decisão diferente, centrando-se na diferente valoração dos depoimentos da assistente BB;

III.  O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação …, que ora se coloca em crise, julgou procedentes os recursos apresentados e decidiu pela alteração da decisão sobre matéria de facto, fazendo transitar os factos não provados e identificado sob as alíneas a) a m) do ponto B da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância para o elenco dos factos provados, e em consequência decidiu revogar a absolvição do arguido, julgar procedente a acusação e condenar o arguido pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de violação p. e p. pelo art. 164.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na pena de 2(dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por 4 (quatro) anos;

IV. O recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, limitando-se antes e só a garantir que o tribunal de recurso conheça de eventuais erros, ou incorreções em que a decisão recorrida possa ter incorrido;

V. Sucede que o tribunal a quo, partindo da fundamentação exposta no acórdão recorrido, alicerçado nas mesmas provas que serviram de suporte a essa fundamentação, mas aplicando-lhe agora a sua valoração, decide em sentido diametralmente oposto, julgando provados todos os factos até então julgados como não provados.;

VI. O tribunal a quo limitado às transcrições/audições dos testemunhos gravados decide interpretar as declarações da Assistente em sentido contrário ao levado a cabo pela primeira instância e decide em sentido diametralmente oposto, fazendo “tábua rasa” da proximidade física, pessoal do julgador de 1.ª instância, Dito de outra forma, fazendo “tábua rasa” do principio da imediação;

VII. O tribunal de 1.ª instancia, que teve a oportunidade da oralidade e da imediação, que ouviu presencialmente a Assistente, em duas sessões de julgamento diferentes, que teve oportunidade de a ver prestar as suas declarações, de ler as suas reações às perguntas colocadas e a forma como respondia, verteu na sua decisão que :“ E quanto às contradições é de sublinhar ainda que a própria assistente as assumiu na terceira sessão de julgamento, dizendo que o declarado nessa sessão e que correspondia à verdade e que na anterior sessão se encontrava nervosa, o que manifestamente, não foi apreensível, desde logo pela forma objetiva e sem emoção visível como foi prestando declarações e respondendo as questões. Também este comportamento da assistente fragiliza as suas declarações, na medida em que dele se depreende que a assistente conscientemente altera o discurso e as versões dos factos”

VIII. Já o tribunal a quo limitado à audição de gravação das declarações prestadas, verteu na decisão ora em crise que: “ A mera audição das declarações permite percepcionar o desconforto sentido pela declarante e a sua ânsia em tentar responder as expectativas de quem a interrogava com base na revelação das suas recordações do sucedido e mediante a reconstituição da sua memória dos acontecimentos, de acordo, também , com os dados que lhe eram fornecidos pela pessoa que a interrogava, procurando clarificar o que sucedeu e esteve na base do processo”

IX. O crime aqui em crise, por regra e as mais das vezes ocorre entre quatro paredes e duas pessoas, pelo que o tribunal perante uma única versão dos factos que é carreada aos autos pela assistente, tem obrigação de envidar todos os esforços para aferir se essa versão é uma versão credível, segura e que não crie uma dúvida razoável no espírito do julgador, quanto à ocorrência desses factos.

X. O tribunal de 1.ª instância, quando na terceira sessão de julgamento recorre aos relatórios de perícia de natureza sexual e avaliação psicológica de fls 25 e ss e 155 e ss, fá-lo, não no sentido de reprodução de declarações da assistente, porque não o são, mas sim no exercício de tentar dissipar todas as dúvidas que resultavam da prova produzida até então;

XI.  O relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls 25-28 bem como o relatório de perícia psicológica de fls 155-159 juntos aos autos, obviamente foram elaborados por terceiros, mas não tem porque se crer que os seus autores tenham inventado os factos aí vertidos, e não se trata de pequenos pormenores que pudessem ter resultado de uma qualquer impressão ou interpretação do receptor, mas sim de descrições dos factos fornecidas pela única pessoa que os transmitiu, a assistente, mas que se revelam dispares entre si;

XII. Não se percebe, nem se pode conceder que o Tribunal a quo afirme que terão de ser desconsideradas quaisquer discrepâncias resultantes do confronto com versões anteriores dos factos constantes desses relatórios, e ao mesmo tempo lance mão das conclusões desses mesmos relatórios para fundamentar a verificação de um evento traumático tal como aquele que o tribunal colectivo não considerou provado;

XIII. O relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls 25-28, relatório de perícia psicológica de fls 155-159 e auto de inquirição perante órgão de polícia criminal de fls 46, não contêm qualquer declaração da Assistente prestada perante juiz, pelo que não se coloca sequer discutir a aplicação do artigo 356.º do CPP, mas se assim considerados fossem, como sabemos, é da competência do juiz presidente ordenar oficiosamente, deferir ou indeferir a leitura, audição ou visualização de provas contidas em actos processuais anteriores á audiência de julgamento, esta decisão deve ser fundamentada e deve ser ditada para acta com a respectiva «justificação legal», sob pena de nulidade (artigos 323.º, c), 97.º, n.º 5 e 356.º, n.º 9 do CPP);

XIV. Se o Juiz não o fez, então o tribunal a quo incorreu na nulidade prevista no n.º 9 do artigo 356.º CPP, nulidade, que não integrando o elenco das nulidades insanáveis previsto no artigo 119.º CPP, está depende de arguição, nos termos do artigo 120.º do mesmo diploma;

XV. Em momento algum das várias sessões de audiência de discussão e julgamento, foi arguida qualquer nulidade, nem mesmo em sede recursiva, pelo que se alguma vez existiu, sanada está, pelo que não há que desconsiderar nenhuma das discrepâncias apontadas pelo tribunal 1.ª instância na sua decisão;

XVI. No mais não se concede que as discrepâncias encontradas se centram em aspetos externos ou pormenores, não essenciais, pois são esses aspectos externos e esses pormenores os que permitem ao tribunal formar uma convicção sobre se os factos efetivamente se verificaram e como. Caso contrário abria-se aqui a porta a uma interpretação de que bastaria uma ofendida /assistente, afirmar o facto essencial – que e arguido a penetrou - e a condenação era certa;

XVII. Todas as circunstâncias de tempo, de lugar, de cronologia dos acontecimentos e seus intervenientes, é de suma importância para aferir da credibilidade da versão apresentada, para mais quando essa versão em causa é a única, e é com a sua valoração que o tribunal terá de decidir pela condenação ou não do arguido;

XVIII. O tribunal de 1.ª instância fundamentou a sua decisão dando nota de todas as discrepâncias encontradas nas declarações prestadas pela assistente, justificando todo o processo de formação da sua convicção e da dúvida criada;

XIX. Sucede que o tribunal a quo que começou por estabelecer como limite à sua intervenção na matéria de facto recorrida, determinar se a convicção do tribunal de 1.ª instância se havia formado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum na análise dos meios concretos de prova produzidos em julgamento, depois esquece esse exercício a que se propôs;

XX. Face à estranheza manifestada pelo tribunal de 1.ª instância quanto ao facto em que a violação se teria perpetrado na mesma cama onde se encontrava outra pessoa a dormir, o tribunal a quo conclui que a presença de uma terceira pessoa, do sexo oposto, a dormir a pouca distancia pode ter servido, inclusivamente como estímulo para o arguido ter a conduta descrita na acusação.

XXI. O tribunal a quo coloca em causa a convicçao do tribunal de 1.ª instância , mas fá-lo sem contextualizar a conclusão a que chega com todas as outras circunstâncias relevantes, esquecendo que a terceira pessoa do sexo oposto era a sobrinha do arguido, que os três se encontravam na sala de casa da irmã do arguido, com a irmã e o cunhado a dormir no quarto ao lado, e que todos forma ouvidos em sede de julgamento e em momento algum o tribunal a quo retirou dessa prova qualquer base de sustentação de tal especulação;

XXII. Perante a estranheza manifestada pelo tribunal 1.ª instância quanto ao facto de a assistente dizer que quando acordou o arguido estava ao seu lado a dar-lhe beijos na cara e na boca tendo-lhe dito sou eu, o AA, pois corria o risco de acorda a sobrinha que dormia muito próximo, o tribunal a quo entende não ter qualquer fundamento pois o arguido não estaria propriamente preocupado em acordar a sobrinha;

XXIII. Mas então não levou este tribunal a quo aos factos provados o facto não provado f) no qual podemos ler: “ …a ofendida tentou libertar-se da força que ao arguido fazia e pediu-lhe para parar, o que o arguido não fez, tendo apenas cessado os eu comportamento quando a ofendida começou a chamar pela amiga CC”, afinal o arguido estava ou não preocupado em não acordar a sobrinha????

XXIV. Quanto às discrepâncias que o tribunal 1.º instância dá nota no que respeita à posição em que assistente e arguido se encontravam na cama improvisada no chão, e as diferentes versões apresentadas pela assistente, o tribunal a quo diz que uma versão não exclui a outra e que mesmo que a assistente tenha acordado virada de frente para o arguido este sempre poderia agarrá-la e reposicioná-la;

XXV. Mais uma vez o tribunal a quo recorre a possibilidades, a acções hipotéticas. Poder pode tudo, mas a verdade é que incumbia à assistente descrever ao tribunal como ocorreram os factos, e se não se lembrasse, bastaria dizer que não se lembrava, não o pode é a assistente contar versões diferentes em momentos diferentes e o tribunal não valorar essas discrepâncias;

XXVI. Quanto à discrepância no que tange ao número de dedos que o arguido alegadamente introduziu na vagina da assistente, esta também apresentou versões diferentes, primeiro um, depois dois, aqui o tribunal a quo não recorre ao campo das hipóteses, antes socorre-se do relatório de avaliação psicológica efetuado a assistente e limita-se a carrear para a decisão trechos da descrição de personalidade da assistente destacando a sua propensão para instabilidade e descompensação emocional;

XXVII. Aquilo que o tribunal a quo vê como justificação para as diferentes versões apresentadas pela Assistente dos factos de que é única “testemunha”, o arguido/recorrente vê mais um argumento para confirmar a preocupação desenvolvida pelo tribunal de 1.ª instância em tentar aferir da credibilidade das suas declarações;

XXVIII. E, a final, concluiu o tribunal a quo, em termos genéricos, que todas as incongruências, incluindo as mais relevantes encontram-se explicadas. “ A reduzida importância que uma pessoa dá a certos pormenores que presencia encontram-se explicadas, não podendo retirar credibilidade às declarações da assistente quanto ao essencial.”

XXIX. Curioso é que o Tribunal a quo tenha optado por apenas fazer breve referência às discrepâncias apontadas pelo tribunal de 1.ª instância quanto ao telemóvel e quanto a conhecer ou não o arguido.

XXX. E que quanto ao telemóvel não se trata de dar ou não relevância a certos pormenores, mas sim a realidades distintas trazidas pela assistente e que não são justificáveis, recorde-se que tal como consta da decisão proferida pela 1.ª instância a assistente em sede de primeira audiência de discussão e julgamento declarou que o seu telemóvel se encontrava dentro da sua carteira em cima do sofá, e na terceira audiência de julgamento quando volta a prestar declarações, afirma que a sua carteira estava no quarto da irmã da CC.

XXXI. O tribunal a quo preferiu não comentar estas discrepâncias, mas a verdade é que só se pode estranhar o porquê de a assistente afirmar que foi a primeira vez que o viu o arguido, quando afinal depois admitiu que já o conhecia e porquê dizer que o telemóvel estava dentro da carteira em cima do sofá da sala e depois vir dizer que a carteira estava no quarto da irmã da CC, e o telemóvel estava a carregar no sofá?

XXXII. Como bem concluiu o tribunal de 1.ª instância, não se percebe, não é normal, e daí não se pode deixar de retirar consequências;

XXXIII.  Quanto à questão levantada pelo tribunal 1.ª instância, e que é inultrapassável, por referência ao facto de a assistente dizer que chamou em voz alta pela CC que dormia ao lado e sem esta acordar, e que depois o arguido só a libertou porque escutou ruido no quarto ao lado e que a seguiu ao sofá dizendo-lhe que apenas pretendia sexo, tudo isto é discrepante, e desprovido de sentido.

XXXIV.  Mas o tribunal a quo decidiu esta discrepância, mais uma vez aventurando-se pelo campo das hipóteses, agora a hipótese foi a amiga da assistente poder estar a fingir que dormia.

XXXV. Não se percebe, nem se concede, o tipo de leitura e hipóteses lançadas pelo tribunal a quo, pois se a amiga poderia fingir não dormir, também a assistente poderia não ter gritado. Porque não foi esta a hipótese lançada pelo Tribunal a quo??

XXXVI. O Tribunal a quo defende que as declarações da assistente não merecem o descrédito plasmado na fundamentação da convicção do tribunal de 1.ª instância, e que se mostra claramente sustentada em outros meios concretos de prova, indicando o relatório de perícia clínica médico-legal psicológica e as sms de folhas 121 a 131;

XXXVII. Sucede que as sms de fls 121 a 131, trazem ainda mais algumas incongruências;

XXXVIII. A Assistente na sessão de audiência de julgamento do dia 08/01/2020, gravada em CD, nas suas declarações, entre o minuto 29:34 e o minuto 32:10, afirmou que pretendendo ir-se embora mas a precisar da morada concreta onde se encontrava e que desconhecia teve de acordar a amiga CC, com a qual falou, e a quem até disse que ia embora porque a avó tinha ido para o hospital.

XXXIX. Consta da matéria de facto provada e não colocada e crise por nenhum dos recorrentes, facto provado n.º 4, que “pelas 08h30m do dia 13/02/2019 a ofendida chamou um táxi a regressou a sua casa sem ter dito à sua amiga CC que algo de mal se tinha passado.”

XL. Sucede que da leitura das referidas sms juntas aos autos, a Assistente transmite à mãe não saber a morada do local onde se encontra e diz “eu vou ligar a CC pra ver onde posso apanhar um taxi aqui” (sms enviadas as 07h49m)

XLI. Então se a Assistente chamou um táxi às 8h30m e às 07h49 ainda se encontrava na casa da CC, com aquela deitada ao seu aldo a dormir, que na tese da Assistente nunca acordou embora por ela tivesse chamado por diversas vezes, porque transmitiu à mãe por sms que ia ligar à CC??? (negrito e sublinhado nosso)

XLII. Só mais uma incongruência, a juntar a tantas outras que o tribunal de 1.ª instância bem identificou e que num exemplar exercício de julgamento não pode deixar de daí retirar as devidas consequências.

XLIII. Quanto ao relatório de perícia clínica médico-legal psicológica, conclui o tribunal a quo que a caracterização psicológica da assistente ai traçada revela claramente a ocorrência de um evento traumático tal como aquele que o tribunal considerou não provado.

XLIV. Note-se que quanto ao relato dos factos a autora do relatório afirma que “não se identificam, no caso em apreço, a presença de distorções significativas da memória.”, porém depois a versão trazida a tribunal em janeiro de 2020 é em muitos pontos díspar.

XLV. As discrepâncias identificadas nas declarações prestadas pela assistente foram várias e por isso criaram no tribunal de 1.ª instância a dúvida mais que razoável quando a veracidade dos factos carreados aos autos por aquela, que face à persistência de uma dúvida razoável, por aplicação do princípio in dubio pro reo decidiu a favor do arguido, dando os factos por não provados,

XLVI. Ao tribunal a quo em sede de recurso incumbia apenas aferir da legalidade desse processo de formação de dúvida razoável e não um novo julgamento da matéria de facto, mais ainda um julgamento orientado por cenários hipotéticos desprovidos de qualquer identificação com a prova carreada aos autos;

XLVII. O tribunal a quo violou o princípio da imediação, e a livre apreciação da prova e formação da convicção (artigo 127.º do CPP) e foi alem dos poderes que a lei lhe confere enquanto tribunal de recurso.

XLVIII. Não olvidamos que fora da verificação dos vícios contantes do número 2 do artigo 410.º do CPP, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.

XLIX. Não obstante, aferir da violação legal levada a cabo pelo tribunal a quo no processo que serviu para fixar a nova matéria de facto, cabe ao STJ, porque se está perante matéria de direito.

L. Por tudo quanto ficou exposto deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado e confirmado o acórdão proferido pelo tribunal de 1.ª instância nos exatos termos em que o foi.

Termos em que deve o recurso interposto ser julgado procedente e, em consequência, ser a decisão recorrida revogada e substituída pela decisão proferida em 1ª instância em conformidade com tudo o que ficou predito.

III

Na sua resposta, o Digno Magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal da Relação …, pronunciou-.se pela improcedência do recurso.

Por sua vez, a Assistente articulou as seguintes Conclusões:

A. O Digníssimo Tribunal a quo fez uma correta, contextualizada e muito completa análise da prova produzida em sede de audiência de julgamento, decidindo pela alteração da decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, pela condenação do Arguido pela prática do crime de violação pelo qual vinha acusado em sede de douta Acusação Pública.

B. Na verdade, no douto Acórdão recorrido, este Digníssimo Tribunal explicita, de forma bastante e absolutamente clara, o porquê de não poder subsistir a presunção de inocência do Recorrente, e o porquê de ser de concluir que os meios concretos de prova produzidos em julgamento demonstram, de forma sólida, a ocorrência dos factos constantes das alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l) e m).

Ora,

C. Entende a Recorrida que razão alguma assiste ao Recorrente quando afirma que «o tribunal de recurso foi para lá dos poderes que lhe são conferidos», tendo violado «o princípio da imediação e a livre apreciação da prova e formação da convicção (art. 127.º do CPP)», porquanto, este Digníssimo Tribunal não só podia, como devia (e assim o fez), analisar todos os elementos de prova produzidos em sede de audiência de julgamento, que fundamentaram a decisão recorrida, e valorar os mesmos em sentido diverso, como proferir decisão contrária à do julgador de 1.ª instância, precisamente por não se encontrar vinculado à decisão proferida por esse Tribunal inferior. (Vide, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-03-2007 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30-03-2011, proferido no âmbito do Proc.10/10.0PECTB.C1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt)

Acresce que,

D. Concordando inteiramente com o entendimento deste Digníssimo Tribunal, entende a Recorrida que as suas declarações foram prestadas de forma irrepreensivelmente séria e espontânea, apresentando uma versão dos factos inteiramente coerente e credível, correspondente à descrita na Acusação Pública.

E. Pelo que, não poderá colher a argumentação do Recorrente, no sentido de descredibilizar as declarações prestadas pela Assistente, uma vez que, independentemente da ocorrência de imprecisões e/ou discrepâncias ao longo do seu relato, dúvidas não existem relativamente à essencialidade dos factos e das circunstâncias em que os mesmos ocorreram, motivo pelo qual, este Digníssimo Tribunal, de forma absolutamente assertiva, atribuiu a tais declarações o merecido

grau de verdade, seriedade e credibilidade, suscetível de fundamentar a efetiva condenação do Arguido pela prática do crime de violação.

Por outro lado,

F. A acrescer às declarações prestadas pela Recorrida, valorou também este Digníssimo Tribunal a prova documental junta aos autos, nomeadamente as mensagens escritas (de fls. 123 a 131 dos autos) trocadas entre a Recorrida e a sua progenitora, a testemunha DD, logo na manhã do dia 13 de Fevereiro de 2018, após ser libertada pelo Arguido, a fim de regressar imediatamente a casa,

G. E, ainda, a descrição presente no relatório de perícia clínica médico legal psicológica, devidamente conjugada com os esclarecimentos prestados em sede de audiência de julgamento pela Senhora Perita Dra. EE, a qual referiu, em suma, que as expressões da Assistente transcritas para o relatório foram consequências do evento traumático, não tendo a mesma verificado um qualquer indicador que levasse a descredibilizar a sua narrativa.

H. Pelo que, crê a Recorrida que este Digníssimo Tribunal fez, de facto, uma correta valoração de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento – nomeadamente das declarações da Recorrida, do relatório de perícia médico-legal psicológica e dos esclarecimentos prestados pela Senhora Perita Dra. EE -, valoração efetivamente permitida nos termos da lei, para além da dúvida razoável,

I. E, consequentemente, de forma absolutamente consentânea com as regras da experiência comum, alterou a matéria fáctica, passando a constar da matéria de facto provada os pontos constantes nas alíneas a) a m) que haviam sido incorretamente julgados pelo Tribunal de 1.ª instância, concluindo, através de um raciocínio absolutamente claro e lógico, pela condenação do Recorrente pela prática do crime de violação.

J. De modo que, não poderá proceder o douto Recurso apresentado pelo Recorrente, devendo ser confirmado, nos seus precisos termos, o douto Acórdão recorrido, por se encontrar devidamente fundamentado e por no mesmo ser efetivada uma correta aplicação do Direito.

Sem prejuízo de todo o supra exposto,

K. Dispõe o artigo 434.º do Código de Processo Penal que, “sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito”. (negrito e sublinhado nossos).

L. Sucede que, no douto Recurso apresentado, o Recorrente impugna a alteração da matéria de facto levada a cabo por este Digníssimo Tribunal, com fundamento no inconformismo quanto à valoração que o Tribunal atribuiu às provas produzidas em sede de audiência de julgamento e, bem assim, na violação dos princípios da imediação e da livre apreciação da prova, pretendendo, naturalmente, o reexame da matéria de facto, o que escapa aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

M. Ora, salvo melhor opinião, entende a Recorrida que o douto Recurso interposto pelo Recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça não é admissível, uma vez que convoca a reapreciação da decisão proferida por este Digníssimo Tribunal sobre matéria de facto, devendo o mesmo, desde logo, ser julgado totalmente improcedente. (Conforme vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente no douto Acórdão de 12-03-2009, proferido no âmbito do Proc. 08P3781, e disponível in www.dgsi.pt).

Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, entende-se não assistir razão ao Recorrente, devendo, por isso, o Recurso interposto ser julgado improcedente e, em consequência, ser confirmado o douto Acórdão recorrido, nos seus precisos termos, com o que modestamente se entende V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.

IV

Neste Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pela rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos do disposto nos artigos 400º nº 1 al. e) e 432º nº1 al. b) do CPP

Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº 2 do CPP.

Na sua resposta o recorrente veio aos Autos manifestar a sua discordância com a rejeição do recurso propugnada pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta e reafirmar o já anteriormente expendido quanto ao mérito da sua pretensão recursória.

E, a Assistente veio expressar a sua total concordância com todo o teor do referido Parecer e reiterar todo o exposto em sede de resposta ao recurso apresentado pelo recorrente.

V

Realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir:

O Acórdão recorrido é do seguinte teor:

B – Apreciando:

§ 1 - Do alegado erro notório na apreciação da prova:

A assistente motiva o seu recurso, formalmente, num alegado erro notório na apreciação da prova.

Para tanto, alega existir erro notório da apreciação da prova “no que se refere à decisão de facto relativamente aos factos dados como não provados nas alíneas a) a m), pelo que, surgindo a factualidade inserta sob tais pontos como fulcral para a condenação que incorreu o douto Acórdão no vício do erro notório na apreciação da prova, o que, por si só, é fundamento bastante do presente recurso, nos termos do disposto no artigo 410.º n.º 2 alíneas c) do Código Processo Penal.”.

Em resposta à motivação do recurso da assistente, o arguido respondeu que a assistente não concretizou qualquer erro notório na apreciação da prova.

Por seu turno, o Ministério Púbico também se pronunciou a esse respeito no parecer junto na presente instância, sustentando, em suma, que o erro notório na apreciação da prova, a existir, deve resultar do próprio texto da decisão recorrida, não tendo a recorrente concretizado, substancialmente, tal vício da decisão.

Apreciando.

De jure

O erro notório na apreciação da prova integra um vício da decisão (artigo 410º, nº 2, al. c), do Código de Processo Penal), que só ocorre quando a convicção do julgador (fora dos casos de prova vinculada) for inadmissível, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum.([1])

Deve assim tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Trata-se de um vício de decisão e não de julgamento que, enquanto subsistir, não permite que a causa seja decidida.

Recorde-se, ainda, que não existe tal erro quando a convicção das julgadoras plasmada na fundamentação da decisão é plausível, ou possível, embora pudesse ter sido outra. Nessa hipótese, a única forma do sujeito processual interessado reagir é mediante uma impugnação da decisão da matéria de facto, indicando prova que imponha decisão diversa – e não pela arguição de um vício formal, como é o caso da nulidade invocada -.

Em concreto.

Concretizado o enquadramento jurídico do vício formal em causa, torna-se mais fácil aferir a motivação da recorrente a respeito do mesmo.    

A motivação do recurso da assistente relativa ao alegado vício do acórdão não se fundamenta no texto do acórdão, mas na importância dos factos considerados não provados para a condenação do arguido.

Perante o exposto, resulta manifesto que a recorrente não consubstanciou qualquer erro notório na apreciação da prova, improcedendo de forma flagrante este argumento da sua motivação de recurso.

§ 2 - Da impugnação da decisão da matéria de facto

O Ministério Público e a assistente impugnaram os pontos a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l) e m), dos factos não provados, os quais, no seu entender, deverão ser julgados provados com a consequente condenação do arguido pela prática do crime pelo qual se encontra acusado.

A assistente identificou os seguintes meios concretos de prova que, no seu entender, devem fundamentar decisão diversa:

a) as declarações prestadas pela assistente BB (conforme ata de audiência de julgamento do dia 08/01/2020, declarações prestadas entre as 14:52:40 e as 16:23:50);

b) o depoimento da testemunha DD (conforme ata de audiência de julgamento do dia 14/01/2020, declarações prestadas entre as 09:44:53 e as 10:25:25);

c) o depoimento da perita EE (conforme ata de 55 audiência de julgamento do dia 23/01/2020, declarações prestadas entre as 14:22:24 e as 15:36:19).

Refere, a propósito do depoimento da Senhora Perita, e atento o teor do Relatório Pericial Médico-legal Psicológico, que se logrou explicar não ser incomum que uma vítima de um evento traumático, como o dos autos, uma vez que que foi sujeita a várias entrevistas, realizando múltiplos relatos, conjugado com o tempo decorrido, apresente imprecisões ou incongruências entre relatos.

Realça, igualmente, a conclusão da senhora perita relativa à capacidade cognitiva e emocional da assistente para testemunhar de forma consistente sobre uma situação vivenciada.

d) o depoimento da testemunha CC, designadamente o facto de a mesma ter descrito, e afirmado por diversas vezes, o estado emocional da Assistente, o que originou a que não tomasse como verdadeira a justificação da assistente em ter de se ausentar porque a sua avó teria ido para o hospital (Cfr. ata de audiência de julgamento do dia 08/01/2020, declarações prestadas entre as 16:32:36 e as 17:11:45).

O Ministério Público também motivou o seu recurso, indicando os meios concretos de prova que, no seu entender, justificam que se considere provada a factualidade impugnada:

a) foram erradamente apreciados os depoimentos prestados pela assistente BB, devidamente conjugados com a prova documental junta aos autos, designadamente o teor das sms's trocadas pela assistente com a sua progenitora e com o seu irmão logo após a prática dos factos, ainda na manhã do dia 13 de Fevereiro de 2018 (sms's juntos a fls. 123 até fls. 131, cujo teor aqui se dá por reproduzido) bem como o teor das sms's trocadas pela assistente com a testemunha CC no dia seguinte ao da prática dos factos (sms's juntos a fls. 133, cujo teor aqui se dá por reproduzido).

Conforme resulta da acta da audiência de julgamento, tendo sido realizadas três sessões de produção de prova, a que se seguiu a sessão destinada à leitura do acórdão, a assistente prestou declarações na sessão do dia 8 de Janeiro de 2020, conforme a gravação no sistema Citius Media Studio, com a referência ........42-........36-.......46 e prestou declarações na sessão do dia 23 de Janeiro de 2020, conforme as duas gravações no sistema Citius Media Studio, com as referências ..........55-.........36-.......46 e ........09-........36-.......46.

b) os depoimentos das testemunhas CC (amiga da assistente BB mas sobrinha do arguido AA) conforme gravação no sistema Citius Media Studio com a referência .............40-...........36-...........46; DD (mãe da assistente) conforme gravação no sistema Citius Media Studio com a referência ...........52-........36-.......46; FF (cunhado do arguido AA e, respectivamente pai e marido das testemunhas CC e GG) conforme gravação no sistema Citius Media Studio com a referência ...........26-........36-...........46; e GG (irmã do arguido AA e, respectivamente mãe e esposa das testemunhas CC e FF) conforme gravação no sistema Citius Media Studio com a referência .........30-.........36-........46.

Segundo o recorrente, resulta do depoimento da testemunha DD (mãe da assistente) conforme gravação no sistema Citius Media Studio com a referência ............52-...........36-...........46, que a mesma não se encontrava presente no local e data dos factos, não tendo assistido aos mesmos (especificamente do minuto 02:26 até ao minuto 03:18). Quanto aos factos propriamente ditos, a testemunha apenas foi naturalmente capaz de reproduzir o relato dos factos que lhe foi apresentado pela sua filha, no próprio dia da ocorrência, depois de a assistente ter chegado a casa e tomado banho (especificamente do minuto 05:25 até ao minuto 07:30) e (especificamente do minuto 12:30 até ao minuto 57 13:13).

A mesma testemunha depôs de forma direta relativamente à troca dos sms's acima mencionados e cujo teor consta de fls. 123-131 (especificamente do minuto 03:19 até ao minuto 05:24) e (especificamente do minuto 20:30 até ao minuto 24:47), bem como relativamente ao estado psíquico e anímico de que a sua filha foi acometida ao longo das semanas e meses posteriores aos da ocorrência (especificamente do minuto 09:43 até ao minuto 12:04) e (especificamente do minuto 13:28 até ao minuto 15:52). De todo o modo e como se disse, nada foi esta testemunha capaz de relatar, em depoimento directo, quanto aos factos propriamente ditos, os que constituem os pontos a) até m) dos factos erradamente dados como não provados.

Por outro lado, as testemunhas CC, FF e GG, todos ligados ao arguido AA por estreitas relações familiares, tendo estado presentes na residência onde os factos tiveram lugar, afirmaram ter estado a dormir não sendo por isso capazes de confirmar nem de infirmar os factos que constam imputados ao arguido na acusação, concretamente os pontos a) até m), dos factos não provados.

As testemunhas FF conforme gravação no sistema Citius Media Studio com a referência .................26-...........36¬...........46 e GG conforme gravação no sistema Citius Media Studio com a referência ............30-...........36¬...........46, que constituem um casal e são progenitores da testemunha CC, ocuparam o respetivo quarto onde afirmam terem estado a dormir e sendo por isso incapazes de prestar depoimento relativamente ao que eventualmente possa ter sucedido na sala comum da residência. Relativamente à testemunha FF, especificamente do minuto 09:36 até ao minuto 11:00 e do minuto 16:00 até a minuto 16:30. Relativamente à testemunha GG, especificamente do minuto 07:00 até ao minuto 08:40 e do minuto 14:50 até ao minuto 15:59. Não são por isso capazes de afirmar que o arguido tenha praticado os factos que lhe constam imputados mas, ao mesmo tempo, são igualmente incapazes de afirmar que o arguido não tenha efectivamente praticado tais factos.     58 A testemunha CC, sobrinha do arguido AA, conforme gravação no sistema Citius Media Studio com a referência .............40-...........36-...........46, ocupou juntamente com a assistente BB e com o arguido a cama improvisada no chão da sala comum da residência (especificamente do minuto 05:19 até ao minuto 07:00). Tal testemunha afirma ter adormecido durante a noite (especificamente do minuto 07:08 até ao minuto 07:40), tendo apenas acordado uma primeira vez no momento em que ouviu a irmã mais velha a chegar a casa de madrugada acompanhada de uma amiga (especificamente do minuto 10:59 até ao minuto 11:27), uma segunda vez no momento em que a mãe veio perguntar-lhe se pretendia que desligasse a televisão (especificamente do minuto 08:52 até ao minuto 09:18 e do minuto 10:59 até ao minuto 11:27) e, uma terceira vez, já de manhã, pouco antes do meio-dia, no momento em que a assistente BB a acordou pedindo-lhe que lhe chamasse um táxi pois pretendia regressar a casa (especificamente ao minuto 12:15 até ao minuto 14:15). Afirma esta testemunha que, encontrando-se a dormir, não pôde aperceber-se do que possa ter acontecido entre a assistente e o arguido (especificamente ao minuto 14:40 até ao minuto 15:03). Não é por isso capaz de afirmar que o arguido tenha praticado os factos que lhe constam imputados mas, ao mesmo tempo, é igualmente incapaz de afirmar que o arguido não tenha efetivamente praticado tais factos.

O arguido optou por exercer o seu direito ao silêncio a partir do qual nenhum resultado probatório pode ser obtido.

Subsistem apenas os dois depoimentos da assistente BB que, relativamente aos factos descritos na acusação, salvaguardando o devido respeito por melhor entendimento e desde logo pelo entendimento que fez vencimento no acórdão recorrido, depôs sempre de forma coerente e credível, descrevendo sempre de forma invariável os aspetos essenciais das sevícias sexuais a que o arguido a sujeitou.

No douto acórdão recorrido são apontadas discrepâncias e incongruências detetadas ao longo dos depoimentos da assistente que, no entendimento do tribunal recorrido, inevitavelmente geraram a dúvida razoável quanto à veracidade dos factos de que o arguido vinha acusado e motivaram a sua consequente absolvição por aplicação do princípio in dubio pro reo.

Segundo o Ministério Público, por contraponto à solidez dos depoimentos da assistente relativos aos factos essenciais em causa nos autos, as apontadas discrepâncias ou incongruências referem-se a meros pormenores, a aspetos laterais, a factos não essenciais e que, em última análise, se revelam insuficientes e inadequados para instalar a dúvida razoável no julgador e justificar o recurso ao princípio in dubio pro reo enquanto fundamento para a absolvição.

Por outro lado, parte das incongruências apontadas pelo tribunal recorrido aos depoimentos da assistente tiveram origem na confrontação da mesma com declarações supostamente por si prestadas anteriormente nos autos mas sem que o tribunal cuidasse de dar cumprimento ao formalismo consagrado no art.° 356.°, n.° 2, al. b), do Código de Processo Penal.

A este propósito surgem apontadas disparidades entre as declarações prestadas pela assistente em audiência de julgamento e os relatos de factos que a si lhe surgem sucessivamente imputados no relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls. 25-28 e no relatório de perícia psicológica de fls. 155-159, bem como no auto de inquirição perante órgão de polícia criminal de fls. 46 e seguintes.

No que diz respeito ao confronto da assistente, em plena audiência julgamento, com os segmentos relativos ao relato de factos que constam dos referidos relatórios de perícia, em rigor, e salvaguardando o devido respeito por melhor entendimento, nem sequer pode afirmar-se que a assistente tenha sido confrontada com anteriores declarações por si prestadas nos autos, desde logo porque tais relatórios, naturalmente, não se encontram por si subscritos. Os relatos ali expostos são da inteira e exclusiva responsabilidade de quem subscreve tais relatórios e resultam naturalmente da impressão, da interpretação e do tratamento de alegado relato feito pela assistente por parte de terceira pessoa.

Os relatos de factos habitualmente inseridos em tal espécie de relatórios, servindo apenas para contextualizar a perícia a realizar, não podem ser equiparados a autos de inquirição para efeitos do disposto no art.° 356.°, do Código de Processo Penal.

Acresce a isto que, ainda que pudessem ser assim equiparados, tais relatos, juntamente com o auto de inquirição de fls. 46 e seguintes efetuado perante mero órgão de polícia criminal, apenas poderiam ser objeto de confronto da assistente em plena audiência de julgamento se o tivessem sido em obediência aos ditames e ao regime processualmente consagrado no art.° 356°, do Código de Processo Penal, o que efetivamente não sucedeu.

Uma vez desconsideradas quaisquer discrepâncias resultantes do confronto da assistente com supostas versões anteriores dos factos a si imputadas, em violação ao regime do art.° 356.°, do Código de Processo Penal, as demais contradições que lhe são apontadas na decisão recorrida e verificadas em diferentes momentos dos depoimentos por si prestados em audiência, referem-se a meros aspetos laterais e que, de forma alguma, logram abalar a credibilidade do seu depoimento relativo à ofensa sexual efetivamente praticada pelo arguido.

Ora, salvo o devido e elevado respeito pela convicção diversa, afigura-se que ficou apurado em audiência de julgamento, a partir dos depoimentos da Assistente, devidamente conjugados com os sms's de fls. 123- 131 e de fls. 133, que o arguido efetivamente praticou os factos de que se encontra acusado, devendo considerarem-se provados os pontos a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l) e m), dos factos dados como não provados no acórdão recorrido.

Assim, deverá ser positivamente valorado e tido por credível todo o depoimento prestado pela assistente BB na sessão de audiência de julgamento de 08-01-2020, conforme gravação no sistema Citius Media Studio, com referência ............42¬...........36-...........46, e mais especificamente do minuto 13:46 até ao minuto 19:52; do minuto 20:02 até ao minuto 24:01; do minuto 24:02 até ao minuto 25:37; do minuto 25:55 até ao minuto 26:54; do minuto 29:34 até ao minuto 32:10; do minuto 32:52 até ao minuto 33:50 e do Minuto 38:00 até ao minuto 38:46.   

Igualmente deverá ser positivamente valorado e tido por credível todo o depoimento prestado pela assistente BB na sessão de audiência de julgamento de 23-01-2020, conforme gravação no sistema Citius Media Studio, com referência ...................55¬...........36-...........46, e mais especificamente do minuto 06:00 até ao minuto 06:40; do minuto 06:52 até ao minuto 07:07; do minuto 09:34 até ao minuto 10:10; do minuto 10:30 até ao minuto 10:55 e do minuto 11:30 até ao minuto 11:39, e conforme gravação no sistema Citius Media Studio, com referência ..............09-...........36-...........46, em toda a sua extensão de 07:04 minutos.

Além dos depoimentos prestados pela assistente de forma credível, segura e consistente relativamente aos aspetos essenciais do quadro fáctico trazido a julgamento, a decisão sobre a matéria de facto deve assentar ainda na aludida prova documental - designadamente o teor das sms's trocadas pela assistente com a sua progenitora e com o seu irmão logo após a prática dos factos, ainda na manhã do dia 13 de Fevereiro de 2018 (sms's juntos a fls. 123 até fls. 131) bem como o teor das sms's trocadas pela assistente com a testemunha CC no dia seguinte ao da prática dos factos (sms's juntos a fls. 133), o que ora se invoca para efeitos do disposto no art.° 412.°, n.° 3, al. b), do Código de Processo Penal.

De jure

Para a devida apreciação do mérito das impugnações em apreço, julga-se útil recordar, primeiramente, os critérios legais de apreciação da prova e as regras que condicionam a impugnação das decisões em matéria de facto, tendo por base um alegado erro de julgamento.

A valoração da prova produzida em julgamento é realizada de acordo com a regra geral prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal, segundo a qual o tribunal forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal - nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio in dubio pro reo -.

Esta regra concede aos julgadores uma margem de liberdade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverão ser capazes de fundamentar de modo lógico e racional.

Basta ler a fundamentação do acórdão recorrido para se concluir, imediatamente, que tanto a versão que obteve vencimento, como o voto de vencida se encontram profusa e logicamente fundamentadas, permitindo o seu devido escrutínio.

Não obstante existir o princípio de livre apreciação da prova, a liberdade na formação da convicção não é – de todo - absoluta, estando condicionada pela prudente convicção dos julgadores e temperada pelas regras da lógica e da experiência. A formação dessa convicção não se resume, pois, a uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, exigindo uma atividade intelectual de análise crítica da prova baseada nos critérios legais, beneficiando da imediação com a prova e tendo sempre presente que a dúvida inultrapassável – repete-se, inultrapassável - fará operar o princípio “in dubio pro reo”.

Tal impossibilita que fosse legalmente possível às julgadoras formar a sua convicção de um modo puramente subjetivo e emocional – o que, também, não ocorreu em relação às duas leituras distintas sobre a prova produzida plasmadas no acórdão recorrido -.

Para os cidadãos – e os Tribunais superiores – poderem controlar a formação da convicção que obteve vencimento, o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal exige que a sentença deverá conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”, podendo o rigor dessa fundamentação ser aferido, também, com recurso à documentação da prova. Como já se mencionou anteriormente, o acórdão recorrido satisfez plenamente tais exigências, podendo, por conseguinte, ser sindicada a convicção do Tribunal a quo em relação às provas produzidas em julgamento.

Tendo o tribunal "a quo" procedido a uma análise crítica dos meios concretos de prova produzidos em julgamento, tal permitiu aos recorrentes impugnar o processo de formação da convicção das julgadoras e este Tribunal só poderá revogar a decisão da matéria de facto recorrida, quando tal convicção não tiver sido formada em consonância com as regras da lógica e da experiência comum na análise dos meios concretos de prova produzidos em julgamento, o que poderá ser aferido com base na análise da fundamentação da decisão e verificação da sua conformação, ou não, com a prova produzida em julgamento.

Como é consabido, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” mas, não obstante, os dois recursos interpostos da decisão final estão estruturados, essencialmente, de modo a concretizar um entendimento divergente daquele que o tribunal coletivo produziu a respeito da prova produzida.

A reapreciação das provas gravadas só poderá abalar a convicção acolhida pelo tribunal recorrido, caso se verifique que a decisão sobre matéria de facto:

a) não tem qualquer fundamento nos elementos probatórios constantes do processo; ou

b) se os meios concretos de prova produzidos em julgamento não permitirem, racionalmente, sustentar suficientemente a decisão da matéria de facto.

Feito o enquadramento jurídico da questão, importa aplicar tais regras à apreciação da impugnação “in iudicium”.

Os recorrentes impugnam os factos não provados a) a m), a recordar:

“a) Cerca de uma a duas horas após terem adormecido, o arguido, que se encontrava deitado ao lado da ofendida, aproximou-se desta, ainda a dormir, e deu-lhe beijos na cara e na boca, ao mesmo tempo que lhe dizia: “Sou eu, o AA”.

b) Após, o arguido agarrou com força a ofendida e puxou-a para cima de si, tendo esta ficado deitada em cima de si, com o corpo completamente alongado no dele.

c) O arguido mantinha as suas mãos nos braços da ofendida, agarrando-a e apertando-os com força, de modo a segurar o corpo da ofendida, em cima do seu.

d) Nesse momento, a ofendida tentou sair de cima do corpo do arguido, não o tendo conseguido, devido ao facto de este estar a agarrar e a apertar os braços com força.

e) Ato contínuo, o arguido, fazendo força, colocou a sua mão direita no interior das cuecas da ofendida e introduziu a falange do dedo indicador direito no interior vagina.

f) Por diversas vezes, a ofendida tentou libertar-se da força que o arguido fazia e pediu-lhe para parar, o que o arguido não fez, tendo apenas cessado o seu comportamento quando a ofendida começou a chamar pela amiga CC.

g) Apesar de a ofendida ter chamado pela amiga CC, por duas vezes, em tom de voz alto, a mesma não acordou.

h) De seguida, o arguido deixou de agarrar o corpo da ofendida, tendo esta conseguido libertar-se e saído de cima do corpo daquele.

i) O arguido voltou a ocupar o lugar que inicialmente tinha escolhido para se deitar e a ofendida ocupou o sofá da sala, sendo que, nesse instante, o arguido ainda dirigiu à ofendida e disse-lhe: “Só quero fazer sexo contigo”.

j) Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia que atuava contra a vontade da ofendida, amiga da sua sobrinha, a qual manifestou ao arguido, quer verbalmente, dizendo que não queria manter com o mesmo contacto sexual, quer por gestos, fazendo força para se libertar do arguido que a agarrava.

k) Sabia ainda o arguido que com a sua conduta afetava, como afetou, a liberdade sexual da ofendida, a sua autoestima e o seu bem-estar.

l) Não obstante ser conhecedor de tais circunstâncias, o arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais e de alcançar, através da força física que exerceu sobre a ofendida, agarrando-a com força, manter com a mesma contacto sexual.

m) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Já se referiu, anteriormente, que tanto a versão que obteve vencimento, como o voto de vencida se encontram profusa e logicamente fundamentadas, permitindo o seu devido escrutínio.

Os recorrentes não motivam a sua impugnação da decisão da matéria de facto na circunstância dos factos considerados não provados, sob escrutínio, não terem qualquer fundamento nos elementos probatórios constantes do processo, mas, secundando o voto de vencida expressa no acórdão recorrido, alegam que a convicção que obteve vencimento não foi formada em consonância com as regras da lógica e da experiência comum na análise dos meios concretos de prova produzidos em julgamento. O tribunal “a quo” procedeu a uma análise crítica pormenorizada dos meios concretos de prova questionados pelos recorrentes, tendo identificado as razões objetivas pelas quais não conferiu credibilidade às declarações da assistente (meio concreto de prova que permitiria provar a factualidade considerada não provada), concluindo dever prevalecer a presunção de inocência do arguido – o mesmo é dizer não se ter provado que o arguido não tenha cometido os factos que foram considerados não provados, mas que a prova produzida em julgamento suscitou dúvidas insanáveis, devendo prevalecer o princípio "in dubio pro reo".

Recordando a fundamentação do tribunal coletivo:

As declarações da assistente, todavia, mostraram-se inconsistentes pelas contradições em que a própria foi incorrendo à medida que as foi prestando, alterando ao longo delas a versão dos acontecimentos, quer em função de esclarecimentos pedidos, quer em função do confronto com a demais prova constante dos autos, designadamente, com os relatórios periciais, como infra se demonstrará. E o incomum de toda a situação (em que a violação se teria perpetrado na mesma cama onde se encontrava outra pessoa a dormir, no contexto explicitado) reivindicava a prestação de declarações por parte da assistente mais seguras, coerentes e assertivas por forma a permitir compreender, por um lado, as incongruências entre o descrito e o que a experiência comum ensina e, por outro lado, apurar sem qualquer dúvida o que ocorreu na identificada noite de 12 para 13 de fevereiro.

Vejamos, pois.

Na primeira sessão de julgamento, e quanto à descrição que a assistente fez sobre o modo como os factos se sucederam, a assistente começou por dizer que:

» seriam cerca das 23 horas quando foram para a cama ver o filme, tendo adormecido cerca de 2 ou 3 horas depois e tendo a televisão ficado ligada, mas sem emitir som (apenas imagem estática);

» quando acordou, o arguido estava a seu lado (no lugar onde antes estava a CC) a dar-lhe beijos na cara e na boca, tendo-lhe dito “sou eu, o AA”;

» o arguido puxou-a para cima dele, colocando-a deitada de frente para ele, e agarrou-a pelos braços;

» quando se encontrava em cima dele, o arguido desapertou-lhe as calças e introduziu o dedo indicador na vagina, tendo sentido essa introdução;

» pediu ao arguido para parar e tentou libertar-se, mas não conseguiu;

» chamou a CC, mas ela não ouviu; chamou alto o nome dela, que estava mesmo ali ao lado; chamou-a duas ou três vezes;

» o arguido largou-a quando se apercebeu que o pai da CC estava a sair do quarto;

» foi logo para o sofá, tendo o arguido ido ter com ela, dizendo-lhe que só queria fazer sexo com ela;

» depois o arguido foi deitar-se novamente ao lado da sobrinha, como se nada tivesse acontecido;

» os factos descritos ocorreram cerca das 4.00h, tendo a assistente depois dos mesmos ficado no sofá e enviado, duas horas depois, mensagens à sua mãe a pedir para a irem buscar;

» cerca das 8.00h o pai da CC acordou e estranhou ela estar acordada;

» o arguido apenas a tocou na zona vaginal;

» o seu telemóvel estava na carteira, que estava no sofá;

Mais à frente, porém, ainda na primeira sessão de julgamento, e no que respeita ao que objetivamente se passou após ter ido para o sofá, a assistente disse que logo após o que se passou com o arguido, foi para o sofá e imediatamente começou a mandar mensagens.

Na terceira sessão de julgamento, após a reabertura de audiência, foi a assistente confrontada com os relatórios de perícia de natureza sexual e de avaliação psicológica juntos aos autos, respetivamente, a fls. 25 e ss. e 155 e ss.

Consta do relatório da perícia de natureza sexual, na parte referente ao histórico do evento (fls. 26), que a examinanda “Posteriormente terá começado a gritar “por ajuda” e o pai da sua amiga terá acordado e deslocando-se à sala. A examinanda não terá contado o que se passou, apenas pediu para ir para casa” e, na parte referente aos antecedentes (contexto sociofamiliar) (fls. 26v.), que a examinanda “Menciona ainda que o alegado agressor já teria dormido na sala de estar com a examinanda e a amiga numa outra ocasião (há uns tempos), mas não se passou nada”.

Por outro lado, no relatório de avaliação psicológica consta a fls. 157 v., na parte referente à observação e avaliação (avaliação global de desenvolvimento), que a examinanda questionada disse que “o alegado ofensor introduziu “o dedo indicador e do meio” (sic)” e que acrescentou, além do mais, que “Eu fui para lá às 19h30/20h, quando cheguei lá só estava ela e depois chegou a mãe o pai e o tio e jantei com eles”.

No âmbito dos pedidos de esclarecimento, e no confronto com os relatórios periciais, a assistente passou então a dizer, na terceira sessão de audiência de julgamento, primeiro que o arguido a virou para ele e começou a dar-lhe beijos, tendo-lhe também tocado nos seios; posteriormente, passou a dizer que, afinal, acordou já virada para ele, que achava que foram dois os dedos colocados na vagina e que jantou apenas com a CC. Finalmente, quando questionada, disse que, quando de manhã saiu de casa, a irmã da CC ainda não se encontrava em casa, facto de que se apercebeu quando foi ao quarto dela buscar a sua mala, alterando então a versão que havia dado na primeira sessão, passando a dizer que, afinal, o telemóvel estava no sofá a carregar (e não na carteira, que estava no quarto).

Cumpre ainda notar que, quando questionada a assistente, na primeira sessão, sobre se o arguido teria efetivamente arrastado a CC pela cama a fim de a colocar no seu lugar inicial (meio da cama), acabou por dizer que, afinal, ele não a teria arrastado e que apenas se deitou do outro lado da CC. Já na terceira sessão, quando confrontada com a citação constante do relatório avaliação psicológica – “uma pessoa ser puxada sente” –, acabou por confirmar que o arguido, depois do sucedido, puxou a CC para o meio da cama, facto que visualizou.

Finalmente, a propósito do arguido, a assistente disse na primeira sessão de julgamento, sem manifestar qualquer dúvida, que essa foi a primeira vez que o viu e esteve com ele, enquanto na terceira sessão de julgamento, quando confrontada também com o relatório pericial de fls.25 e ss., disse que já uma vez tinha estado com o arguido, no aniversário da CC.

Ora, ainda que relativas a pormenores, as incongruências são relevantes, sobretudo aquelas que, não se referindo à dinâmica do próprio acontecimento, revelam uma absoluta e injustificada desconformidade de realidades – disso são exemplo objetivo, entre todas as demais já evidenciadas, as diversas versões relativas ao facto de a assistente já ter estado anteriormente com o arguido ou não, as diferentes formas como afirmou ter sido tocada pelo arguido (com um ou dois dedos, no peito ou não) e as diferentes versões quanto ao local onde se encontrava o telemóvel (não sendo de olvidar que a assistente não se limitou a dizer na terceira sessão de julgamento que o telemóvel estava simplesmente em cima do sofá, mas que aí estava a carregar, estando a carteira no quarto, quando anteriormente tinha dito que o telemóvel estava dentro da carteira que estava em cima do sofá da sala).

E são tão relevantes quanto, como se disse, a descrição feita pela assistente comporta pormenores que dificilmente se compreendem à luz das regras da experiência comum, designadamente, não se compreende a razão pela qual o arguido, que se preparava para “violar” a assistente, se teria apresentado, dizendo, “eu sou o AA”, como dificilmente se compreende que o tivesse feito estando a partilhar uma cama improvisada com uma sobrinha (correndo o risco de esta acordar e se deparar com esse facto), que a sobrinha (a testemunha CC), como as demais pessoas que se encontravam em casa (designadamente os seus pais, que dormiam no quarto mesmo ao lado da sala, a qual, por sinal, conforme veio a ser referido pela assistente, nem porta tinha), não tivessem  efetivamente acordado quando a assistente chamou alto por ela (sendo que a casa encontrava-se em absoluto silêncio), que o arguido se tivesse preocupado unicamente em segurar a assistente, não lhe tapando a boca e, finalmente, que tivesse seguido a assistente até ao sofá, dizendo-lhe que só queria ter sexo com ela, quando tinha acabado de a libertar por ter ouvido o ruído de alguém a sair do quarto (arriscando-se, assim, a ser apanhado).

Toda esta conduta apenas se compreenderia se o arguido não tivesse qualquer problema em ser surpreendido pelas demais pessoas da casa (o que não se afigurava ser o caso, visto que o arguido libertou a assistente quando ouviu o ruído) ou se todos os demais estivessem conluiados com o arguido no sentido de saberem o que este pretendia fazer, mantendo-se a dormir ou ausentes do espaço enquanto tudo acontecia, o que não se provou minimamente, sendo que nada permite concluir que as testemunhas estivessem a faltar à verdade quando disseram que de nada se aperceberam.

E quanto às contradições é de sublinhar ainda que a própria assistente as assumiu na terceira sessão de julgamento, dizendo que o declarado nessa sessão é que correspondia à verdade e que na anterior sessão se encontrava nervosa, o que, manifestamente, não foi apreensível, desde logo pela forma objetiva e sem emoção visível como foi prestando declarações e respondendo às questões. Também este comportamento da assistente fragiliza as suas declarações, na medida em que dele se depreende que a assistente conscientemente altera o discurso e as versões dos factos.

Acresce dizer que, se bem que seja compreensível que a vítima de uma violação não se recorde de certos pormenores de somenos importância, já não se compreende que apresente várias versões desse mesmo acontecimento, necessariamente traumático e marcante.

Será que é compreensível que a vítima, que inicialmente afirmou, perante o perito que a observou, já conhecer o agressor, vir a julgamento dizer que não o conhecia e que foi a primeira vez que o viu?

Em nosso entender não é. Sendo que se desconhece a motivação com que o fez.

Em complemento de tudo quanto se deixou dito, cumpre notar que o arguido não prestou declarações (e o seu silêncio não o pode prejudicar), que no relatório de perícia de natureza sexual se conclui que a compatibilidade entre a informação prestada e os exames efetuados é possível, mas não demonstrável, que a testemunha DD, mãe da assistente, não presenciou quaisquer factos, que a perita que realizou a perícia psicológica esclareceu que a conclusão que nela obteve se fundou apenas no que até esse momento constava do processo (sendo que as principais divergências surgem com as declarações da assistente em julgamento) e que as mensagens constantes de fls. 122 a 131 não são concludentes, pelo que não pode deixar de persistir a dúvida razoável sobre a veracidade dos factos imputados ao arguido na acusação, dúvida essa razoável e inultrapassável e que à luz do princípio do in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência, assim justificou a resposta negativa àqueles factos."

Em suma, o tribunal "a quo" entendeu que as declarações da assistente não tiveram consistência bastante para permitir considerar provada a matéria de facto questionada nos recursos do Ministério Público e da assistente.

Para sustentar racionalmente tal inconsistência, conclui-se que o tribunal coletivo se apoiou no seguinte:

a) nos relatórios de perícia de psicologia datados de 19 de Fevereiro de 2018 e 22 de Abril de 2019, que incluem uma descrição dos factos([2]) manifestada pela assistente que é ligeiramente distinta daquela que foi expressa pela assistente na primeira sessão de julgamento (a versão produzida em julgamento corresponde, no essencial, à factualidade que o tribunal viria a considerar não provada);

b) nas declarações da assistente, produzidas na terceira sessão de julgamento, pois quando foi confrontada com o teor da versão dos factos que os peritos fizeram constar naqueles relatórios, a mesma alterou ligeiramente a sua versão dos acontecimentos, em aspetos laterais ([3]) ao fulcro do objeto do processo;

c) outra contradição entre as declarações prestadas na primeira e na terceira sessão do julgamento: na primeira sessão de julgamento, sem manifestar qualquer dúvida, a assistente declarou que essa foi a primeira vez que o viu e esteve com ele, enquanto na terceira sessão de julgamento, após ter sido confrontada com o teor do relatório pericial de fls.25 e ss., já admitiu ter visto o arguido uma vez anteriormente, no aniversário da CC;

d) ainda segundo o tribunal, a descrição dos factos produzida pela assistente comporta pormenores que dificilmente se compreendem à luz das regras da experiência comum, designadamente, "não se compreende a razão pela qual o arguido, que se preparava para “violar” a assistente, se teria apresentado, dizendo, “eu sou o AA”, como dificilmente se compreende que o tivesse feito estando a partilhar uma cama improvisada com uma sobrinha (correndo o risco de esta acordar e se deparar com esse facto), que a sobrinha (a testemunha CC), como as demais pessoas que se encontravam em casa (designadamente os seus pais, que dormiam no quarto mesmo ao lado da sala, a qual, por sinal, conforme veio a ser referido pela assistente, nem porta tinha), não tivessem efetivamente acordado quando a assistente chamou alto por ela (sendo que a casa encontrava-se em absoluto silêncio), que o arguido se tivesse preocupado unicamente em segurar a assistente, não lhe tapando a boca e, finalmente, que tivesse seguido a assistente até ao sofá, dizendo-lhe que só queria ter sexo com ela, quando tinha acabado de a libertar por ter ouvido o ruído de alguém a sair do quarto (arriscando-se, assim, a ser apanhado).

e) "Toda esta conduta apenas se compreenderia se o arguido não tivesse qualquer problema em ser surpreendido pelas demais pessoas da casa (o que não se afigurava ser o caso, visto que o arguido libertou a assistente quando ouviu o ruído) ou se todos os demais estivessem conluiados com o arguido no sentido de saberem o que este pretendia fazer, mantendo-se a dormir ou ausentes do espaço enquanto tudo acontecia, o que não se provou minimamente, sendo que nada permite concluir que as testemunhas estivessem a faltar à verdade quando disseram que de nada se aperceberam."

f) A assistente afirmou na terceira sessão de julgamento que o declarado nessa sessão é que correspondia à verdade e que na anterior sessão se encontrava nervosa, o que, manifestamente, não foi apreensível, desde logo pela forma objetiva e sem emoção visível como foi prestando declarações e respondendo às questões.

g) O tribunal não compreendeu que a vítima de uma violação apesentasse várias versões desse mesmo acontecimento, necessariamente traumático e marcante.

h) As mensagens constantes de fls. 122 a 131 não são concludentes, pelo que não pode deixar de persistir a dúvida razoável sobre a veracidade dos factos imputados ao arguido na acusação, dúvida essa razoável e inultrapassável e que à luz do princípio do in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência, assim justificou a resposta negativa àqueles factos."

Perante tais inconsistências da prova produzida em julgamento, o tribunal coletivo considerou terem subsistido dúvidas insanáveis, devendo prevalecer o princípio "in dubio pro reo".

Aferindo os argumentos em confronto, de modo a decidir a questão básica substancial que constitui o objeto do recurso:

Como referido anteriormente:

§ 1 - A solução da impugnação da decisão da matéria de facto não passa por um segundo julgamento da matéria de facto controvertida, mas pela aferição dos argumentos dos recorrentes, de modo a aferir se existe algum erro de julgamento caso se verifique que a decisão sobre matéria de facto:

a) não tem qualquer fundamento nos elementos probatórios constantes do processo; ou

b)  se os meios concretos de prova produzidos em julgamento não permitirem, racionalmente, sustentar suficientemente a decisão da matéria de facto.

§ 2 – Como também já se explicitou, a fundamentação da convicção do tribunal coletivo encontra-se baseada numa determinada valoração da prova produzida em julgamento.

Nenhum dos recorrentes pôs em causa que o teor da prova referida na fundamentação da decisão da matéria de facto tenha o conteúdo nela concretizado, divergindo apenas na sua valoração.

Por conseguinte, a decisão não foi impugnada à luz da primeira das alternativas acima concretizadas – ou seja, que a decisão da matéria de facto não tenha qualquer fundamento nos elementos probatórios constantes do processo -.

§ 3 – Resta aferir se os meios concretos de prova produzidos em julgamento não permitem, racionalmente, sustentar suficientemente a decisão da matéria de facto.

Tendo em conta a motivação dos recursos e a fundamentação da decisão recorrida, a aferição do mérito das impugnações da decisão da matéria de facto exige uma análise contextualizada das declarações prestadas em julgamento pela assistente, com a demais prova, de modo a determinar, racionalmente, se as mesmas são inconsistentes no domínio probatório, conforme resulta da convicção das duas julgadoras que obteve vencimento na deliberação da decisão final ou se, pelo contrário, deverão merecer a credibilidade propugnada na motivação dos recursos – e na declaração de voto do acórdão -..

A importância desse meio concreto de prova resulta da circunstância da assistente ser a única autora de prova oral produzida em julgamento que vivenciou o “facto histórico” que constitui o objeto do processo – além do arguido, que não prestou declarações a esse respeito -. Trata-se, por isso, de um meio concreto de prova essencial na fundamentação da decisão da matéria de facto e, também, da motivação da impugnação dessa mesma decisão nos dois recursos.

Tendo-se procedido à audição integral das declarações prestadas pela assistente em julgamento, tal operação permitiu percecionar, de forma manifesta, que o seu interrogatório foi negativamente marcado pela circunstância de não ter sido dada oportunidade à jovem de descrever o sucedido de forma contínua, prejudicando de forma flagrante a qualidade e o caráter espontâneo de tais declarações, uma vez que lhe foram dirigidas, na maior parte do tempo, perguntas isoladas e sugestivas, muito espaçadas no tempo – com intervalos de silêncio superiores a quinze segundos entre o fim de cada resposta e a pergunta seguinte.

Dir-se-á que a técnica de interrogatório poderia prejudicar a eficácia probatória das declarações, tanto mais que a assistente entrou em ligeiras contradições nas diversas sessões da audiência de julgamento, que pesaram na fundamentação da convicção do tribunal coletivo.

§ 3.1. As debilidades identificadas pelo tribunal coletivo nas declarações da assistente:

As contradições assinaladas pelo tribunal coletivo centraram-se tanto em aspetos externos aos factos que constituíram objeto do procedimento criminal, como nalguns pormenores do desenrolar dos factos descritos na acusação. Interessa, assim, dissecar as fragilidades identificadas pelo tribunal coletivo no aludido meio concreto de prova:

a) o tribunal coletivo começa por manifestar estranheza pela situação em que a violação se teria perpetrado na mesma cama onde se encontrava outra pessoa a dormir, no contexto explicitado; por se tratar de algo insólito, o seu relato deveria ser mais seguro do que aquele que foi produzido pela assistente;

Este entendimento plasmado pelo tribunal coletivo na fundamentação da convicção do tribunal não espelha as regras de experiência comum, que ensinam uma realidade bem distinta: sobretudo em matéria de sexualidade, aquilo que é normal para umas pessoas pode ser considerado estranho por outras. No caso em apreço, a presença de uma terceira pessoa, do sexo oposto, a dormir a pouca distância, pode ter servido, inclusivamente, como estímulo para o arguido ter a conduta descrita na acusação.

b) Na primeira sessão de julgamento, e quanto à descrição que a assistente fez sobre o modo como os factos se sucederam, a assistente começou por dizer que quando acordou, o arguido estava a seu lado (no lugar onde antes estava a CC) a dar-lhe beijos na cara e na boca, tendo-lhe dito “sou eu, o AA”;

O tribunal também manifestou estranheza a respeito desta passagem das declarações da assistente, referindo não compreender a razão pela qual o arguido se apresentou e que o tenha feito quando a sua sobrinha dormia muito próximo, correndo assim o risco de acordá-la.

Este argumento também não tem fundamento real, uma vez que o comportamento do arguido, ao ter a iniciativa de iniciar um relacionamento sexual nas aludidas condições, não estaria propriamente preocupado em não acordar a sua sobrinha, podendo até achar ter interesse nessa possibilidade. O facto de se dirigir à assistente, dizendo-lhe “sou eu, o AA” não é entendido no quadro das circunstâncias existentes como “apresentação”, mas como forma de abordagem e de acordar a assistente, de modo a iniciar o relacionamento físico.

c) Ainda na primeira sessão de julgamento, a assistente declarou que o arguido puxou a assistente para cima dele, colocando-a deitada de frente para ele e agarrando-a pelos braços; na terceira sessão, “passou a dizer que, afinal, acordou já virada para ele”;

Contrariamente ao referido pelo tribunal ao explicitar como formou a sua convicção, esta última afirmação não contraria a descrição dos factos efetuada pela assistente na primeira sessão, pois mesmo que esta tenha acordado virada de frente para o arguido, este sempre podia agarrá-la e reposicioná-la, puxando-a mais para cima dele, continuando a estar de frente para este.

d) A assistente declarou na primeira sessão que a seguir o arguido desapertou-lhe as calças e introduziu o dedo indicador na vagina, tendo sentido essa introdução e, já na terceira sessão, após ter sido confrontada com os relatórios periciais, tendo sido questionada a esse respeito, já declarou que achava terem sido dois os dedos introduzidos;

Para avaliar a credibilidade das declarações da assistente, impõe-se recordar a sua caracterização psicológica, para perceber, inclusivamente, até que ponto a técnica de interrogatório a que foi sujeita terá influenciado a sua prestação. O relatório pericial constante a folhas 159 e seguintes revela, designadamente, uma “dificuldade de gerir um evento potencialmente traumático (…) inferioridade associados à autodepreciação, desconforto e timidez no âmbito das interações sociais (…) ansiedade patente em nervosismo e tensão direcionados para o evento em apreço (os factos dos autos) e um afeto negativo caraterizado por hostilidades e suspeição. (…) No que respeita ao seu perfil de personalidade destaca-se a sua propensão para instabilidade e descompensação emocional. Tal instabilidade é agudizada face a uma circunstância abusiva como a relatada, (sublinhado nosso) que reforça negativamente a sua autoimagem e autoconfiança, já com pela falta de estrutura ao nível da sua personalidade, (sublinhado nosso) também sentimental e pueril.”

Esta caracterização impunha que o seu interrogatório, em julgamento, tivesse proporcionado à assistente um ambiente mais confortável, em que a sua liberdade de expressar o sucedido não fosse manietada e condicionada por perguntas isoladas, direcionadas frequentemente de um modo sugestivo, com pausas longas entre o fim das respostas e a formulação de nova pergunta. A mera audição das declarações permite percecionar o desconforto sentido pela declarante e a sua ânsia em tentar corresponder às expectativas de quem a interrogava com base na revelação das suas recordações do sucedido e mediante a reconstituição da sua memória dos acontecimentos, de acordo, também, com os dados que lhe eram fornecidos pela pessoa que a interrogava, procurando clarificar o que sucedeu e esteve na base do processo.

Decisivos se mostram também os esclarecimentos prestados em julgamento ao tribunal pela senhora perita, Dra. EE, que referiu não ser incomum que uma vítima de um evento traumático, como o dos autos, sendo sujeita a várias entrevistas, realizando múltiplos relatos, conjugado com o tempo decorrido, apresente imprecisões ou incongruências entre relatos. Mais: o contrário é que seria preocupante, o que aliás está de acordo com a literatura existente neste domínio científico.

Assim sendo, todas as incongruências, incluindo as mais relevantes acima mencionadas, encontram-se perfeitamente explicadas. A reduzida importância que uma pessoa dá a certos pormenores que presencia (por exemplo, se o telemóvel se encontrava, ou não, a carregar, se já tinha visto anteriormente o arguido numa festa de aniversário, se o arguido arrastou a sua amiga, primeiro, de modo a libertar o centro da ”cama”, se o arguido a chegou a tocar no peito, ou não – esse toque pode ter acontecido quando o arguido a estava a pegar ao mudá-la de posição -, et alia) encontram-se assim perfeitamente explicadas, não podendo retirar credibilidade às declarações da assistente quanto ao essencial.

e) O tribunal coletivo também considerou inverosímeis os segmentos das declarações da assistente, em que esta afirmou ter chamado em voz alta a sobrinha do arguido, que dormia ao lado, sem que esta ou as outras pessoas existentes na casa tivessem acordado, bem como a parte em que referiu que o arguido a seguiu até ao sofá, dizendo-lhe que apenas pretendia sexo, quando tinha acabado de a libertar, por ter escutado o ruído de alguém a sair do quarto ao lado;

Trata-se, mais uma vez, de juízos desprovidos da necessária correspondência com as regras da experiência comum: em primeiro lugar, a amiga da assistente poderia estar a fingir estar a dormir – o que pode ser explicado por diversas razões -, ou mesmo estar a dormir profundamente. Quanto às demais pessoas, desconhece-se se as mesmas chegaram a escutar a assistente e, em caso afirmativo, se lhe atribuíram alguma importância, tendo voltado a dormir, não ficando sequer registo na sua memória de tal facto, por na altura, não lhe terem atribuído qualquer significado.

§ 3.2. A consistência das declarações da assistente, desvalorizadas na decisão recorrida:

Não merecendo as declarações da assistente o descrédito plasmado na fundamentação da convicção do tribunal da primeira instância, a veracidade das mesmas também se mostra claramente sustentada em outros meios concretos de prova produzidos em julgamento, tal como fundamentado no voto de vencida da juíza presidente do tribunal coletivo e na motivação dos recursos -.

Como resulta claro do relatório de perícia clínica médico-legal psicológica, a folhas 159 e seguintes, a assistente revela, designadamente, uma “dificuldade de gerir um evento potencialmente traumático (…) inferioridade associados à autodepreciação, desconforto e timidez no âmbito das interações sociais (…) ansiedade patente em nervosismo e tensão direcionados para o evento em apreço (os factos dos autos) e um afeto negativo caraterizado por hostilidades e suspeição. (…) No que respeita ao seu perfil de personalidade destaca-se a sua propensão para instabilidade e descompensação emocional. Tal instabilidade é agudizada face a uma circunstância abusiva como a relatada, que reforça negativamente a sua autoimagem e autoconfiança, já com pela falta de estrutura ao nível da sua personalidade, (sublinhado nosso) também sentimental e pueril.” (…) A assistente após os factos imputados foi medicada e teve consulta de especialidade psiquiátrica onde lhe foi ministrada medicação que por lhe causar sono e não a permitir ficar desperta, nas aulas, abandonou, todavia o seu estado atual de perturbação implicou a recomendação médica por tal se afigurar pertinente que a BB retome o apoio psicoterapêutico de que beneficiou pontualmente, no sentido de que seja visada a sintomatologia psicopatológica identificada e acautelada uma eventual intensificação da mesma, auxiliando-a ainda na estruturação do seu projeto de vida e expetável autonomização normativa da sua faixa etária e desenvolvimental. (…) BB evidencia experienciação de sentimentos de inadequação pessoal, inferioridade, particularmente na comparação com outras pessoas. (…) manifesta-se na sua autodepreciação, hesitação, desconforto, timidez, em interação sociais, (…) humor deprimido ansiedade patente em nervosismo e tensão direcionados para o evento em apreço e um afeto negativo caracterizado por hostilidade e suspeição correlacionados com o evento – aborrece-se com facilidade, irritabilidade, sente medo com facilidade na rua e espaços abertos, ofende-se com facilidade a nível de sentimentos, evita lugares por medo, não tem esperança no futuro, sente-se sem valor, vergonha, isolamento, desconfiança, sentimentos de culpa e choro, nojo do corpo não permite o toque por lhe relembrar o evento, não consegue manter relacionamentos amorosos e íntimos”.

Tal caracterização psicológica da assistente revela, claramente, a ocorrência de um evento traumático, relacionado com a sexualidade, tal como aquele que o tribunal coletivo considerou não provado.

A prova produzida em julgamento – em especial, as declarações da própria assistente -, revela ter sido o arguido o causador do grave trauma psicológico revelado no relatório de perícia médico-legal, corroborando a veracidade dos factos imputados ao arguido na acusação.

A ocorrência da conduta do arguido descrita nas declarações da assistente também resulta do comportamento comprovado da assistente, logo a seguir ao evento em discussão nos autos, confirmado não só pelas suas próprias declarações, mas também por prova testemunhal e prova documental: a primeira reação da assistente foi a de se afastar fisicamente do arguido, evidenciando estar emocionalmente perturbada, tentar contactar a sua mãe através do telemóvel, trocando mensagens, pretendendo obter transporte imediato de regresso a casa, conforme se encontra bem expresso nas mensagens documentadas a folhas 123 a 131: (pelas 6h50m, a assistente pede à sua mãe que alguém a venha buscar, com “emojis” de choro; a resposta desta apenas acontece quando esta acorda e se apercebe, pelo que apenas a questiona sobre o que se passa às 7h40m; em resposta, a assistente escreve, dois minutos depois, que aconteceu uma coisa grave, mas pede para não ligar mas apenas trocar mensagens, tentando identificar o local onde se encontra a casa da amiga, para obter transporte - "tou perto do …….. eu vou tentar ver a morada” -. Às 7h48m, a mãe da assistente escreve à sua filha “apanhe um táxi, rápido”, no minuto seguinte a assistente procura descobrir a morada da casa da CC e desabafa não ter dinheiro; a mãe da assistente insiste em saber o que se passou, obtendo como resposta, numa mensagem enviada às 7h52m “mãe ai conto te melhor”, pelas 7h53, a mãe insiste “mas está tudo bem já chamaste um táxi”, às 7h53m, a assistente informa “vou chamar agora mãe vou acordar a CC", além de muitas outras que se seguiram, confirmando que a assistente acabou por chamar um táxi, como resulta da mensagem por si enviada pelas 8h01m.

Finalmente, às 8h05m, tentando esclarecer o sucedido, na sequência de muitas insistências recebidas, a assistente escreveu o que foi que quase foi violada melhor fg eu já vou para casa; às 8h06m escreve “oh mãe eu não quero falar disto ao pé da CC”.

A testemunha CC depôs em julgamento, referindo ter sido “abanada” pela assistente, para acordar, quando ainda se encontrava na “cama feita no chão”. A assistente estava a chorar e muito nervosa, pediu-lhe o endereço da casa onde estavam para chamar um táxi.

FF, pai de CC, também depôs, referindo ter ficado admirado quando, pelas 7h da manhã, encontrou a ora assistente sentada no sofá da sala, acordada – e não deitada a dormir na cama improvisada no chão -.

A mãe da arguida, DD, prestou depoimento em julgamento, confirmando a troca de mensagens acima mencionada e a descrição que lhe foi feita do sucedido pela ora assistente, logo que esta regressou a casa – relato que corresponde à sua descrição na acusação -, tendo também referido as repercussões do sucedido para esta, a subsequente ida à casa onde os factos sucederam, bem como a apresentação de queixa na polícia.

Resulta do exposto que os meios concretos de prova produzidos em julgamento não permitem, racionalmente, sustentar suficientemente a decisão da matéria de facto recorrida, no segmento relativo aos factos considerados não provados sob as alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l) e m), não podendo subsistir a presunção de inocência do arguido, contrariamente ao decidido, por ter sido feita prova sólida da ocorrência dos aludidos factos:

a) Cerca de uma a duas horas após terem adormecido, o arguido, que se encontrava deitado ao lado da ofendida, aproximou-se desta, ainda a dormir, e deu-lhe beijos na cara e na boca, ao mesmo tempo que lhe dizia: “Sou eu, o AA”.

b) Após, o arguido agarrou com força a ofendida e puxou-a para cima de si, tendo esta ficado deitada em cima de si, com o corpo completamente alongado no dele.

c) O arguido mantinha as suas mãos nos braços da ofendida, agarrando-a e apertando-os com força, de modo a segurar o corpo da ofendida, em cima do seu.

d) Nesse momento, a ofendida tentou sair de cima do corpo do arguido, não o tendo conseguido, devido ao facto de este estar a agarrar e a apertar os braços com força.

e) Ato contínuo, o arguido, fazendo força, colocou a sua mão direita no interior das cuecas da ofendida e introduziu a falange do dedo indicador direito no interior vagina.

f) Por diversas vezes, a ofendida tentou libertar-se da força que o arguido fazia e pediu-lhe para parar, o que o arguido não fez, tendo apenas cessado o seu comportamento quando a ofendida começou a chamar pela amiga CC.

g) Apesar de a ofendida ter chamado pela amiga CC, por duas vezes, em tom de voz alto, a mesma não acordou.

h) De seguida, o arguido deixou de agarrar o corpo da ofendida, tendo esta conseguido libertar-se e saído de cima do corpo daquele.

i) O arguido voltou a ocupar o lugar que inicialmente tinha escolhido para se deitar e a ofendida ocupou o sofá da sala, sendo que, nesse instante, o arguido ainda se dirigiu à ofendida e disse-lhe: “Só quero fazer sexo contigo”.

j) Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia que atuava contra a vontade da ofendida, amiga da sua sobrinha, a qual manifestou ao arguido, quer verbalmente, dizendo que não queria manter com o mesmo contacto sexual, quer por gestos, fazendo força para se libertar do arguido que a agarrava.

k) Sabia ainda o arguido que com a sua conduta afetava, como afetou, a liberdade sexual da ofendida, a sua autoestima e o seu bem-estar.

l) Não obstante ser conhecedor de tais circunstâncias, o arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais e de alcançar, através da força física que exerceu sobre a ofendida, agarrando-a com força, manter com a mesma contacto sexual.

m) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”

Pelo exposto, julgando-se providos os recursos do Ministério Público e da assistente, altera-se a decisão da matéria de facto, transitando para os factos provados a factualidade acima concretizada.

§ 3 - Das consequências jurídicas da alteração da decisão da matéria de facto:

Tornou-se pacifico no sistema processual penal, a partir da publicação do acórdão de fixação de jurisprudência (STJ) n.º 4/2016, de 22 de fevereiro, que “Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder a determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.”.

Nestes termos, importa proceder ao apuramento da eventual responsabilidade do arguido, emergente dos factos provados, tendo ainda presente os termos da acusação.

§ 3.1. Da tipificação da conduta do arguido

O arguido vinha acusado pela prática de um crime de violação, p. p. pelo disposto no artigo 164.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, sendo a acusação datada de 12 de Junho de 2019.

Nessa altura estava em vigor a redação emergente da Lei nº 83/2015, de 5 de Agosto:

“1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:

a) (…); ou

b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;

é punido com pena de prisão de três a dez anos.”

Como resulta da inserção sistemática desta incriminação no capítulo V (Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual), do livro II (Parte Especial) do título I (Dos crimes contra as pessoas), o bem jurídico protegido nesta norma é o da liberdade de determinação sexual, abrangendo, como o caso dos autos, condutas que não estão inseridas, tradicionalmente, na definição de violação, admitindo toda e qualquer penetração de natureza sexual operada, através de coação, por uma pessoa, designadamente, na vagina de outra ([4]).

O tipo objetivo de ilícito em causa consiste, na modalidade em causa nos autos, em o agente constranger outra pessoa (por meio de violência (…) ou posto na impossibilidade de resistir) a sofrer introdução vaginal de partes do corpo.

Trata-se de um tipo doloso, que só pode ser praticado nalguma das modalidades de dolo.

Apurou-se no caso em apreço que o arguido agarrou com força a ofendida e puxou-a para cima de si, tendo esta ficado deitada em cima de si, com o corpo completamente alongado no dele, manteve as suas mãos nos braços da ofendida, agarrando-a e apertando-os com força, de modo a segurar o corpo da ofendida, em cima do seu, impediu a ofendida de sair de cima do corpo do arguido, apesar de o ter tentado, devido ao facto de este estar a agarrar e a apertar os braços com força e, ato contínuo, o arguido, fazendo força, colocou a sua mão direita no interior das cuecas da ofendida e introduziu a falange do dedo indicador direito no interior vagina. Por diversas vezes, a ofendida tentou libertar-se da força que o arguido fazia e pediu-lhe para parar, o que o arguido não fez, tendo apenas cessado o seu comportamento quando a ofendida começou a chamar pela amiga CC. Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia que atuava contra a vontade da ofendida, a qual manifestou ao arguido, quer verbalmente, dizendo que não queria manter com o mesmo contacto sexual, quer por gestos, fazendo força para se libertar do arguido que a agarrava. Sabia ainda o arguido que com a sua conduta afetava, como afetou, a liberdade sexual da ofendida, a sua autoestima e o seu bem-estar. Não obstante ser conhecedor de tais circunstâncias, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais e de alcançar, através da força física que exerceu sobre a ofendida, agarrando-a com força, manter com a mesma contacto sexual.       

Nestes termos, mostram-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo, tendo o arguido agido com dolo direto (artigo 14º, nº 1, do Código Penal).

Porém, o tipo legal de crime imputado ao arguido sofreu uma alteração com a entrada em vigor da Lei nº 101/2019, de 6 de Setembro:

“Artigo 164º, nº 1, al. b), do Código Penal: 1 - Quem constranger outra pessoa a:

a) (…); ou

b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;

é punido com pena de prisão de um a seis anos.”

Perante a nova redação da norma, conclui-se que o arguido praticou, igualmente, o crime de violação tipificado no artigo 164º, nº 1, al. b), do Código Penal – já não exigindo o tipo legal de crime que o constrangimento tenha ocorrido de acordo com uma das modalidades anteriormente descritas no corpo do nº 1 do citado artigo -, mas passou a beneficiar de uma pena mais reduzida, passando a mesma de 3 a 10 anos para uma moldura situada entre 1 e 6 anos de prisão.

§ 3.2. Da dosimetria penal

A sucessão de leis penais no tempo tem as consequências jurídicas previstas no número 4 do artigo 2º do Código Penal (“Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.”), o que constitui uma exceção à regra geral prevista no número 1 do mesmo artigo: “As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.”

Cumpre, ora, determinar a pena concreta à luz das duas redações do artigo 164º, nº 1, al. b), do Código Penal, acima citadas, que se sucederam no tempo.

A determinação da medida concreta da pena é efetuada de acordo com os critérios gerais enunciados no artigo 71º do Código Penal ([5]), dependendo da gravidade do ilícito e da culpa do agente do crime. Esta norma estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, precisando o nº2 do mesmo artigo que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.”

Estas podem ser agrupadas em três grupos fundamentais:

a) fatores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpam sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta};

b) fatores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto}; e

c) fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto - alínea e) -. Conclui-se da ratio desta estatuição, que a culpa possui a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena e a prevenção geral a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.

Para o efeito, o tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor ou contra o agente, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, 2, do mesmo texto legal).

Em suma, impõe-se ter em consideração que é a culpa concreta do agente que impõe uma retribuição justa, devendo respeitar-se as exigências decorrentes do fim preventivo especial, referentes à reinserção social do delinquente, para além das exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade ([6]).

A perigosidade do agente revela-se, também, na gravidade do facto praticado: no contexto da factualidade que caracterizou o crime cometido – e as suas circunstâncias – importando destacar à luz do disposto no artigo 71º, nº 2, al. a), do Código Penal, o seguinte:

a) a sua conduta limitou-se, quase, ao minimamente necessário à consumação do crime (v.g. o modo como constrangeu a ofendida a suportar o ato sexual) tendo a própria penetração sido única e digital, não tendo o arguido prosseguido a prática do crime com receio da sua conduta ser descoberta pelas demais pessoas presentes no interior da casa (fator atenuante da pena, dotado de média eficácia);

No entanto, o grau de ilicitude e de culpa manifestados na prática do crime não podem ser qualificados como sendo reduzidos:

b) as repetidas tentativas da ofendida de tentar libertar-se do constrangimento a que o arguido a sujeitou, bem como o arrojo do arguido por ter consumado o crime estando deitado ao lado de uma terceira pessoa, sua sobrinha, não diretamente envolvida no crime, acentuam o desvalor da ação, com eficácia agravante média do crime;

c) intensidade dolosa (dolo direto) constitui também um fator de agravação da pena dotado de reduzida eficácia, uma vez que se trata da modalidade dolosa típica nestes crimes (artigo 71º, nº 2, al. b), do Código Penal;

d) não obstante os inúmeros antecedentes criminais do arguido, estes não podem interferir na medida concreta da pena, uma vez que são respeitantes a criminalidade nada relacionada com o bem jurídico protegido pelo artigo 164º do Código Penal, tendo o arguido sido restituído à liberdade, após a sua última reclusão prisional, em 2010 – após o que não voltou a cumprir qualquer pena de prisão, o que indicia uma alteração qualitativa do seu comportamento em relação a crimes mais graves – situação apenas alterada com a presente condenação -.

e) a sua inserção laboral, social e familiar, tendo companheira, tem uma eficácia atenuante reduzida, pois tal situação favorável não o impediu de cometer o crime em apreço (artigo 71º, nº 2, al. d), do Código Penal)

Ponderando os fatores acima concretizados, considera-se ajustado fixar as seguintes penas:

a) ao abrigo da lei em vigor à data da prática do crime (artigo 164º, nº 1, al. b), do Código Penal, na redação introduzida pela Lei nº 83/2015, de 5 de Agosto: 4 (quatro) anos de prisão;

b) ao abrigo da redação da mesma norma introduzida pela Lei nº 101/2019, de 6 de Setembro: 2 (dois) anos de prisão;

Tendo em conta a medida das penas aplicadas, não se mostra legalmente possível substituir a pena de prisão por outra pena não privativa da liberdade (além de se ter de equacionar a possibilidade de suspensão da execução da pena que, conforme definido pelo acórdão de fixação de jurisprudência nº 13/2016, de 7 de Outubro, deve ser considerada pena não privativa da liberdade).

Nos termos do disposto no artigo 50º nº 1 do Código Penal, que diz respeito à possibilidade de suspensão da execução das penas de prisão, estatui que o tribunal suspende a execução da pena aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição ([7]).

Esta norma fixa um pressuposto formal - o de que a pena seja de prisão em medida não superior a cinco anos – e um pressuposto material - o de que «o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente (...).»

Enquanto não oferece qualquer dúvida de que se verifica no caso concreto o pressuposto formal – tanto em relação à pena aplicada ao abrigo da lei em vigor à data do crime, como nos termos do regime mais favorável que se seguiu -, impõe-se decidir se o pressuposto material se encontra, ou não, preenchido no caso em apreço.

A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes.

Como salientado por Figueiredo Dias ([8]) "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo."

Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».” ([9])

No plano da evolução histórica da nossa lei criminal, já antes da revisão do Código Penal concretizada pelo Decreto-Lei nº 48/95 de 15 de Março, a suspensão da execução da prisão não seria decretada caso se opusessem “as necessidades de reprovação e prevenção do crime”, afastando quaisquer considerações relativa à culpa ([10])“mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.”([11])

A atual redação da norma refere a realização das finalidades da punição de forma adequada e suficiente. Houve um aperfeiçoamento de ordem legal de forma mais abrangente na dimensão da finalidade das penas, com repercussão nas penas concretas.

A socialização entronca num critério de exigências de prevenção especial.

É essa prevenção especial que perante um prognóstico favorável nos termos do artº 50º nº 1 do Código Penal, determina a socialização em liberdade do condenado, por ser adequada e suficiente às finalidades da punição. Como escreveu Eduardo Correia, «(…) averiguado o facto e aplicada a pena, o agente tem sempre a clara consciência da censura que mereceu o facto e viverá sob a ameaça, agora concreta, e portanto mais viva da condenação.»

Apreciando.

Uma vez que o arguido não tem qualquer antecedente criminal por crime semelhante e se encontra inserido social e familiarmente, estando também empenhado em manter atividade laboral, entende-se que a presente condenação lhe servirá de suficiente advertência para o inibir de repetir condutas semelhantes.

vvv

Nos presentes Autos, o recorrente pretende impugnar o Acórdão do Tribunal da Relação …….., que julgando providos os recursos interpostos pelo Ministério Público e pela Assistente da decisão de 1.ª instância que o havia absolvido da autoria material de um crime de violação, do artigo 164.º n.º 1 alínea b) do Código Penal, o condenou pela prática daquele crime, numa pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos.

Contrariamente à pretensão do recorrente, e face ao disposto nos artigos 400º nº 1 al. e) e 432º do CPP, aquela decisão do Tribunal da Relação …….. não se mostra como sendo recorrível para este Alto Tribunal.

Pois que, a pena aplicada ao recorrente, a pena de substituição de suspensão da execução a pena de prisão não se configura como uma pena privativa da liberdade e, como tal mostra-se abrangida pelo primeiro segmento da norma ínsita na al.e) do nº 1 do artigo 400º do C. Penal.

Na verdade, como defende Figueiredo Dias, as penas de substituição, tal como a aplicada “in casu” são configuradas no nosso ordenamento jurídico como verdadeiras penas autónomas “com o seu próprio conteúdo politico-criminal e o seu próprio campo de aplicação” ([12]). Explicitando que estas “deverão responder a um duplo requisito terem, por um lado, carácter não institucional ou não detentivo, isto é, serem cumpridas em liberdade(no sentido de extramuros), correspondendo deste modo, pelo melhor, aos propósitos político-criminais do movimento de luta contra a pena de prisão; e pressuporem por outro lado, a prévia determinação da medida da pena de prisão, para serem então aplicadas em vez desta, correspondendo deste modo, pelo melhor, ao perfil dogmático das penas de substituição. Aqui se agruparão, por conseguinte – sem as distinguir segundo o seu conteúdo ou a sua estrutura próprias –, as penas de suspensão de execução da prisão, de multa de substituição, de prestação de trabalho a favor da comunidade e de admoestação.([13])

Assim estabelecida a natureza não detentiva da pena aplicada ao recorrente forçoso é considerar, como já foi referido, que esta se encontra compreendida na exceção de irrecorribilidade prevista no primeiro segmento da norma ínsita na al. e) do nº 1 do artigo 400º do C. Penal.

A qual se não encontra abrangida pela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 595/2018 ([14]) na medida em que este cinge tal declaração às decisões constantes de Acórdãos da Relação “que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos” ([15]).

Ora, como se viu, tal não é o caso dos Autos, na medida em que, não obstante a condenação em causa se apresentar como uma reversão de uma absolvição, não ter aplicado uma pena de prisão efetiva não superior a cinco anos mas apenas e tão só uma pena substitutiva, logo não detentiva, de suspensão da execução da pena.

Nesta conformidade, e nos termos do disposto nos artigos 414º nº 2 e 3 não é admissível o presente recurso e, consequentemente, nos termos do disposto no artigo 420º nº 1 al. b) do CPP, não pode este Tribunal concluir por outra solução que não seja a da rejeição do presente recurso.

VI

Tendo em consideração todo o exposto, e face ao disposto nos artigos 414º nº 2 e 3, e 420º nº 1 al. b) do CPP., acorda-se em rejeitar o presente recurso por inadmissibilidade legal.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

Fixa-se em 5 UCs a importância a que se reporta o nº4 do artigo 420º do CPP.


Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15º-A do Dec-Lei nº20/2020 de 1 de maio, consigno que o presente Acórdão tem voto de conformidade do Ex.mo Adjunto, Juiz Conselheiro Sénio Reis Alves.

Feito em Lisboa, aos 16 de junho de 2021

Maria Teresa Féria de Almeida (relatora)

_______

[1] Recorda-se que constituem características comuns a todos os vícios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 410°, n° 2, do Código de Processo Penal as seguintes:

a) de fundamentarem o reenvio do processo para outro julgamento quando insanáveis no tribunal de recurso (artigos 426° e 436° do C.P.P.); e

b) de resultarem do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum.

[2] Consta do relatório da perícia de natureza sexual, na parte referente ao histórico do evento (fls. 26), que a examinanda “Posteriormente terá começado a gritar “por ajuda” e o pai da sua amiga terá acordado e deslocando-se à sala. A examinanda não terá contado o que se passou, apenas pediu para ir para casa” e, na parte referente aos antecedentes (contexto sociofamiliar) (fls. 26v.), que a examinanda “Menciona ainda que o alegado agressor já teria dormido na sala de estar com a examinanda e a amiga numa outra ocasião (há uns tempos), mas não se passou nada”.

Por outro lado, no relatório de avaliação psicológica consta a fls. 157 v., na parte referente à observação e avaliação (avaliação global de desenvolvimento), que a examinanda questionada disse que “o alegado ofensor introduziu “o dedo indicador e do meio” (sic)” e que acrescentou, além do mais, que “Eu fui para lá às 19h30/20h, quando cheguei lá só estava ela e depois chegou a mãe o pai e o tio e jantei com eles”.

[3] O arguido primeiramente a virou para ele e começou a dar-lhe beijos, tendo-lhe também tocado nos seios; posteriormente, passou a dizer que, afinal, acordou já virada para ele, que achava que foram dois os dedos colocados na vagina e que jantou apenas com a CC. Finalmente, quando questionada, disse que, quando de manhã saiu de casa, a irmã da CC ainda não se encontrava em casa, facto de que se apercebeu quando foi ao quarto dela buscar a sua mala, alterando então a versão que havia dado na primeira sessão, passando a dizer que, afinal, o telemóvel estava no sofá a carregar (e não na carteira, que estava no quarto).

[4] Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, a págs. 467.

[5] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem, 2ª edição atualizada, U.C.E., 2010, pág. 263, nota 1, Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, pena acessória e medidas de segurança, Universidade Católica, 1996, pág. 28 e Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, Coimbra Editora, 15ª ed., pág. 237.

[6] Considere-se, a este respeito, o entendimento expresso por Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, cujo teor se pode traduzir da seguinte forma: «o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena».

Movido por conceção semelhante, Maia Gonçalves, em anotação ao art. 72º, in loc cit., refere o seguinte: «a culpa do agente não é susceptível de uma medida exacta e, por isso, ao julgador é dada uma certa elasticidade na respectiva apreciação, elasticidade em que pode e, portanto, deve levar em conta as exigências de prevenção de futuros crimes».

Recorda-se, a propósito, que o princípio da culpa tem proteção normativa constitucional, decorrendo da dignidade da pessoa humana (art. 1º da Constituição da República Portuguesa) e do direito à liberdade (art. 27º, 1 do mesmo texto legal), conforme tem sido realçado pela doutrina – neste sentido, Maria Fernanda Palma, "Constituição e Direito Penal. As questões inevitáveis" in Perspectivas Constitucionais – Nos 20 anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, 1997, a págs. 234 e Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. III, Lisboa, 1999, a págs. 25.

No mesmo sentido tem-se pronunciado a jurisprudência do Tribunal Constitucional: Acórdãos números 663/98, in Diário da República, II Série, de 15 de Janeiro de 1999, 89/2000, in Diário da República, II Série, de 4 de Outubro de 2000 e 202/2000, in Diário da República, II Série, de 11 de Outubro de 2000.

Como refere Figueiredo Dias, in loc cit., a págs. 215, «Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime - ligado ao mandamento incondicional do respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção».

Considera-se errada a conceção segundo a qual é dado previamente ao Juiz, antes da consideração da culpa e da prevenção, um «ponto» médio (ou outro) da moldura penal, donde aquela deve partir (conceção que recebeu algum acolhimento da jurisprudência nacional - v.g., entre outros, o Ac. S.T.J., 85.11.13, B.M.J., 351º,-211 -.

A este propósito, com particular interesse, ainda, o Acórdão do STJ, datado de 24 de Fevereiro de 1988, B.M.J., 374º,-229, para além dos seguintes autores: Mezger, Tratado de Derecho Penal, trad. espanhola, t. II, a págs. 429 e Adelino Robalo Cordeiro, “Escolha e medida da pena”, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, C.E.J., a págs. 237 e segs. e “Moldura penal abstracta, pena concreta, escolha da pena”, Textos, I, 1990-91, C.E.J., a págs. 161 e seguintes.

[7] Segundo Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 15ª edição, 2002, pág. 197, notas 1 e 2, “Os pressupostos e a duração da suspensão da execução da pena constavam do artº 48º da versão originária do Código, o qual tivera por fontes, além do artº 88º do CP de 1886, os arts. 62º e 63º do Projecto de Parte Geral do Código Penal de 1963, discutidos nas 22ª e 23ª sessões da Comissão Revisora, em 10 e 17 de Maio de 1964 e a Base VIII da Proposta de Lei nº 9/X. Este artigo foi discutido nas 4ª, 6ª, 15ª e 41ª sessões da CRCP, em 14 de Fevereiro, 13 de Abril e 12 de Setembro de 1989 e em 22 de Outubro de 1990. (...) Trata-se de um poder-dever, ou seja de um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os apontados pressupostos (…)”.
[8] Ibidem, § 519
[9] Neste sentido, entre outros, Anabela Rodrigues, A posição jurídica do recluso na execução da pena privativa de liberdade, Coimbra, 1982, pág. 78 e seguintes, Almeida Costa, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 65º, 1989, pág. 19 e seguintes e Miranda Pereira, "Ressocialização", Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, V, 1987.
[10] Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Junho de 2003, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -, tomo II, 2003, pág. 221: “Na suspensão da execução da pena (de prisão) não são as considerações sobre a culpa do agente que devem ser tomadas em conta, mas antes juízos prognósticos sobre o desempenho da sua personalidade perante as condições da sua vida, o seu comportamento e bem assim as circunstâncias de facto, que permitam ao julgador fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.”.
[11] Mantém-se parcialmente válida a ratio legis evidenciada no Relatório da Proposta (constante do Diário da Câmara dos Deputados de 26 de Maio de 1893), que está na base da Lei de 6 de Julho de 1893 - que introduziu em Portugal a suspensão condicional da pena -: “Fica ao prudente arbítrio dos magistrados e dos tribunais a apreciação do carácter moral do delinquente, os seus antecedentes e costumes, das circunstâncias do crime, das causas externas e internas que o determinaram, o exame escrupuloso de todos os factos que os autorizem a aplicar a disposição da lei com discernimento e seguras probabilidades de êxito.”
[12] Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime – Coimbra Editora 2005 pag. 330.
[13] Ibidem pag.335.
[14] Publicado  no Diário da República n.º 238/2018, Série I de 11.12.2018
[15] Ac. TC nº 595/2018