DIVÓRCIO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
NEGÓCIO JURÍDICO
DIREITO DE HABITAÇÃO
DIREITO REAL
REGISTO PREDIAL
INOPONIBILIDADE DO NEGÓCIO
TERCEIRO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
Sumário


I. O acordo realizado no âmbito de um processo de divórcio por mútuo consentimento, mediante o qual a um dos cônjuges, a título gratuito, foi atribuída a utilização da casa de morada de família situada num imóvel habitacional que era propriedade exclusiva do outro cônjuge, traduz a constituição, por via negocial, de um direito real de habitação a favor do primeiro, nos termos do art. 1440º, ex vi art. 1485º do CC.
II. A aquisição de direitos reais, como o direito real de habitação, está sujeita a registo predial (art. 2º, nº 1, al. a), do CRP), sob pena de ineficácia quanto a terceiros, isto é, para aqueles que adquiram do autor comum direitos incompatíveis (art. 5º, nº 4, do CRP).
III. A ineficácia em relação a terceiros de atos sujeitos a registo predial não ocorre apenas quando exista equivalência entre os direitos sucessivamente constituídos pelo autor comum, mas também quando tenham natureza e conteúdos diferentes, como ocorre no confronto entre a constituição de um direito real de habitação sobre um imóvel e a subsequente transmissão do direito de propriedade a outra pessoa.
IV. Constituído a favor de um dos cônjuges um direito real de habitação sobre um imóvel que era propriedade exclusiva do outro, o qual não foi registado, esse direito é inoponível ao adquirente com quem o proprietário outorgou um contrato de compra e venda, registando a seu favor a aquisição do direito de propriedade.

Texto Integral

I - AA e BB instauraram a presente ação declarativa com processo comum contra CC e DD, pedindo que sejam condenadas a:

a) Procederem à entrega de um imóvel, quando a 2ª R. terminar o período escolar, com o respetivo aproveitamento (ou perfizer a idade de 25 anos, caso não tenha concluído os mesmos), livre de pessoas e bens;

b) Procederem solidariamente ao pagamento da compensação/contrapartida mensal no valor de € 950,00, pela utilização do imóvel que é propriedade dos AA., a contar da citação até à respetiva entrega, livre e de pessoais e bens, tudo acrescido de juros vencidos a contar da citação e dos vincendos, até integral pagamento.

Alegam que são proprietários do imóvel que adquiriram do anterior proprietário, o qual se encontra ocupado pelas RR. de forma gratuita, através de um direito de uso conferido pelo anterior proprietário, encontrando-se os AA. privados de usar, usufruir e dispor do prédio em questão de acordo com os seus interesses.

A 1ª R. contestou, arguindo a ineptidão do articulado inicial e a exceção de caso julgado.

A 2ª R. também apresentou contestação, arguindo as exceções dilatórias de ilegitimidade passiva e de ineptidão da petição inicial.

Os AA. apresentaram réplica.

No despacho saneador foram apreciadas as exceções invocadas, entre as quais a exceção de caso julgado, por se ter considerado que a causa de pedir e o pedido formulados pela 1ª R. contra os AA. e outros respeitava à simulação do contrato de compra e venda, sendo diversos dos que integram o objeto da presente ação.

Foi proferida sentença que julgou a ação procedente e, em consequência:

a) Condenou as RR. a entregarem aos AA., livre de pessoas e bens, o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com garagem, sito na ….., União de Freguesias …. e …, descrito na … CRP …. sob o nº ….19 (….) e inscrito na matriz predial urbana sob o art. ……40;

b) Condenou as RR. a pagarem mensalmente aos AA. o valor mensal de € 950,00, a título de contrapartida pela utilização do imóvel que é propriedade dos AA., a contar da citação até à respetiva entrega, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a citação até integral pagamento.

As RR. apelaram e a Relação revogou a sentença, julgando a ação improcedente, com fundamento em que os AA. não são terceiros para efeitos de registo relativamente à constituição, não registada, do direito real de habitação.

Os AA. interpuseram recurso de revista em que no essencial alegaram que:

Nos termos do disposto no art. 662º, nº 1, do CPC, a Relação não poderia ter procedido à alteração da matéria de facto dada como assente, mais concretamente não poderia ter eliminado a matéria dada como provada sob os pontos 4, 10, bem assim não poderia ter alterado o ponto 18 da matéria de facto dada como provada, uma vez que tal alteração não impunha decisão diversa da recorrida, devendo ser anulado o acórdão nessa parte, o que deverá ser reconhecido por este Supremo, para todos os devidos e legais efeitos.

A Relação procedeu à eliminação dos factos constantes nos nºs 4 e 10, da matéria de facto dada como provada, não tendo sido atribuído às declarações de parte a força probatória que a lei lhe confere, sujeita à livre apreciação da prova operada pelo Tribunal da 1ª Instância (tendo em conta os princípios da imediação e da oralidade), tendo por isso violado o disposto no art. 466º, nº 3, do CPC, e o art. 396º do CC, bem assim os arts. 2º, 3º, nºs 2 e 3, 8º, nº 1, 20º, nº 4, e 202º, todos da Constituição.

O direito de habitação da R. CC é parcialmente incompatível (e, tendencialmente, totalmente incompatível) com o direito de propriedade dos AA., uma vez que estes, de boa-fé e sem conhecerem o direito do qual se arroga a R. (que, apesar de o deter desde o ano de 2012, nunca o registou), adquiriram a propriedade do imóvel – através de escritura pública de compra e venda –, destinando tal imóvel à respetiva habitação.

O acórdão o recorrido refere que ao direito de habitação é aplicável, por força do art. 1490º do CC, o regime do usufruto, mas apenas quando tal regime é conforme a natureza do direito de habitação.

O referido direito de habitação foi constituído por acordo do anterior titular do direito de propriedade, tendo em conta a recente qualidade de ex-cônjuge da R. CC e as necessidades da então filha menor, com o objetivo de evitar que a rutura matrimonial levasse igualmente a uma rutura brusca da rotina e normalidade daquela família, razão pela qual o direito de habitação é constituído em função e na medida das necessidades pessoais e familiares do titular, pelo que não pode o acórdão recorrido considerar a limitação da extinção do direito de habitação apenas ao previsto no art. 1476º do CC.

A natureza do direito de habitação aqui em referência não é compatível, em bloco, com o regime do usufruto, devendo-se considerar as suas especificidades e considerar que a sua extinção pode dar-se pela cessação das necessidades que, à altura do divórcio, existiam, deste modo, o espírito presente nos vários normativos relativos ao destino da morada de família e da prestação de alimentos constantes na nossa lei civil, afere-se que essa atribuição tem sempre em conta e por medida as necessidades específicas do ex-cônjuge e dos filhos em comum à altura do divórcio, pelo que, mesmo que o direito de habitação da casa de morada de família não seja determinado temporalmente, está limitado pela permanência dessas mesmas necessidades.

A atribuição de um tal direito à R. CC foi em circunstâncias muito específicas e dentro de um determinado contexto, o que corrobora toda a fundamentação e entendimento perfilhado pelos AA., e conforme a R. CC, bem sabe e não pode negar, ou seja, a atribuição da casa de morada de família foi concedida à R. CC, enquanto ex-mulher do único proprietário e vendedor, no âmbito de um processo de divórcio por mútuo consentimento, sendo o imóvel um bem próprio do então marido (vendedor) e tal destino sobre a situação do bem imóvel visou tão só regular uma situação provisória (e não proceder à partilha de bens, até porque o imóvel não era um bem comum do casal, mas sim um bem próprio do vendedor).

Os fins, a medida e a razão da atribuição do direito de uso por parte vendedor EE à R. CC, já cessou devido à emancipação e conclusão dos estudos da filha do ex-casal (tendo em conta que a atribuição do referido direito teve em conta as necessidades da então menor DD), devendo a mesma reconhecer tal factualidade, bem assim, e perante tal, proceder à entrega, livre de pessoas e bens, do imóvel propriedade dos Autores, pelo que deverá ser revogado o acórdão proferido pela Relação, mantendo-se integralmente o decidido pelo Tribunal da 1ª Instância.

O direito de habitação não poderá ser exercido de forma gratuita, uma vez que enquanto titulares do direito de propriedade, têm o direito a obterem compensação/contrapartida pela utilização por parte das RR., em detrimento da sua própria utilização (sendo que, tal possibilidade para além de ser legal, ainda obtém maior força tendo em conta o regime estatuído no art. 1793º do CC, conjugado com o art. 990º do CPC, em que o nosso próprio legislador reconhece e tipifica uma renda mensal (a título de compensação/contrapartida) para os casos em que um dos cônjuges habite a casa de morada de família, pertencendo um tal imóvel a outro cônjuge; e, por outra ordem de razão, prevê o art. 1468º do CC que pode ser exigido ao próprio titular do direito de habitação uma caução, o que realça também a não graciosidade deste mesmo instituto).

Razão pela qual, e até que as RR. deixem de utilizar/habitar um tal imóvel, deverão as mesmas ser responsáveis no pagamento de uma renda mensal, a favor dos AA., a título de contrapartida/compensação pela respetiva utilização, até à entrega livre de pessoas e bens do imóvel, conforme decidiu o Tribunal da 1ª instância.

Não se pode aceitar que os AA., que, de boa-fé e honestamente, empreendem os esforços financeiros necessários para a compra de uma casa para a sua habitação e da sua família (e que desconheciam a existência de qualquer ónus), e com recurso a financiamento bancário, se vejam privados do seu uso, fruição e habitação, em toda a plenitude e disposição, pretendendo a R. CC exercer um suposto direito que lhe foi concedido em circunstâncias muito específicas, permanecer no imóvel que não é seu, de forma perpétua e graciosa, sem que a mesma tenha tido o “cuidado” de registar/publicitar um tal direito atribuído no dia 20-3-12 (e hoje ainda não se encontra registado), conforme legalmente a nossa lei impõe, sob pena de inoponibilidade a adquirentes de boa-fé (sob pena de subversão do sistema jurídico-registal), até porque caso a R. CC tivesse registado o seu direito, os AA. não estariam a passar pela situação dramática com que se deparam.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II – Factos provados:

1 – Por contrato de compra e venda outorgado em 15-4-14, as AA. adquiriram a EE, que, por sua vez, vendeu, o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com garagem, sito na ….., União de Freguesias … e …., descrito na …. CRP ….. sob o nº ….19. (…..) e inscrito na matriz predial urbana sob o art. …...40

2 – Os AA. procederam, no ato de outorga do referido contrato, ao pagamento da quantia de € 150.000,00 ao referido EE.

3 – Este obrigou-se à entrega do imóvel livre de quaisquer ónus ou encargos, ficando assegurado o cancelamento da hipoteca registada a favor da Caixa Geral de Depósitos.

4 – De acordo com as informações prestadas por EE aos AA. e de acordo com as demais que constavam na certidão predial do imóvel adquirido, a referida hipoteca era o único ónus que recaía sobre tal imóvel (eliminado pela Relação).

5 – A seguir à compra, a 1ª R. contratou um serralheiro e mudou a fechadura da porta que dá acesso ao imóvel, nele permanecendo até à presente data.

6 – As RR. encontram-se a habitar o imóvel supra identificado de forma totalmente gratuita.

7 – Quando os AA. pretenderam tomar posse do imóvel, a R. CC recusou-se a abandoná-lo porque, segundo a mesma “teria esse direito desde a data do divórcio” com o seu ex-marido EE.

8 – Quando os AA. tentaram ocupar o imóvel de sua propriedade, foram exibidos pela 1ª R. os seguintes acordos celebrados com EE:

DESTINO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA

Ambos os requerentes do divórcio decidiram acordar o seguinte sobre a casa de morada de família:

1. A casa onde os requerentes residiam juntamente com a filha, situada na …., ……, ……, é bem próprio do cônjuge marido, tendo sido adquirida por este antes do matrimónio.

2. A casa, enquanto habitação da requerente mulher CC e da filha DD, fica destinada à utilização habitacional da requerente mulher, a título gratuito.

3. Será da responsabilidade da requerente mulher o pagamento de todas as despesas referentes aos consumos de água, luz e outras decorrentes do uso desse imóvel.

9 – A 1ª R. prescindiu, aquando do divórcio, da prestação de alimentos, alegando deles não carecer.

10 – O identificado EE nunca informou os AA. da existência dos acordos referidos em 8. (Eliminado pela Relação).

11 – Até à presente data, os AA. estão impedidos de livremente usar, conforme os seus interesses, o referido imóvel.

12 – Pretendiam os AA. estar mais perto de um estabelecimento de restauração que detêm próximo do aludido imóvel, evitando deslocações à sua habitação sita na cidade do …..

13 – A 2ª R. já atingiu a maioridade.

14 – Não tendo, contudo, atingido o seu processo de formação educativa.

15 – O valor comercial do imóvel dos autos ronda atualmente € 300.000,00.

16 – São os AA. quem procede ao pagamento mensal da prestação bancária devida pela aquisição do imóvel.

17 – As RR. apenas procedem ao pagamento das despesas de manutenção do imóvel, como sejam as relativas ao saneamento, eletricidade e gás.

18 – O arrendamento de um imóvel com características semelhantes ao imóvel referido em 1 ascende a um valor mensal concretamente não apurado (Alterado pela Relação).

19 – A 2ª R. nasceu em 17-7-94.


III – Decidindo:

1. Foram suscitadas pelos AA. diversas questões, umas relacionadas com o julgamento da matéria de facto e outras com os efeitos jurídicos decorrentes do conjunto de factos considerados provados pelas instâncias.

Importa que se apreciem as questões relacionadas com a matéria de facto e só depois as atinentes à integração jurídica dos factos apurados, sendo que os recorrentes suscitam, a este respeito, no essencial, a inoponibilidade quanto a si, do direito real de habitação constituído a favor da 1º R., mas não registado, a caducidade do direito de habitação e a ressarcibilidade dos prejuízos causados enquanto as RR. não restituírem o imóvel.


2. Os AA. insurgem-se contra o acórdão da Relação que eliminou os pontos 4. e 10. dos factos provados, por ter considerado insuficiente a prova mediante declarações de parte prestadas pelos AA. Também em relação à alteração introduzida na redação do ponto 18.

Relativamente a cada uma das referidas decisões da Relação este Supremo Tribunal de Justiça apenas poderia intervir se acaso estivesse em causa a violação de algum preceito adjetivo relacionado com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto por parte da Relação ou alguma das situações prevenidas pelo nº 3 do art. 674º do CPC.

Ora, quanto à eliminação dos pontos 4. e 10., a Relação limitou-se a apreciar livremente o valor probatório das declarações de partes, na medida em que delas não resultava qualquer efeito confessório.

Relativamente a tal decisão não tem este Supremo Tribunal de Justiça qualquer poder de sindicância. A Relação não assumiu que as declarações de parte fossem, em abstrato, inidóneas para a sustentação da decisão relativa aos factos sobre que incidiram, nem desprezou a possibilidade de serem livremente apreciadas nos aspetos em que não existia efeito confessório. Limitou-se a considerar, dentro dos poderes que lhe estavam atribuídos, como tribunal de instância, que, por si só, as aludidas declarações eram insuficientes para sustentar os factos que nelas se apoiaram, divergindo do entendimento vertido na sentença de 1ª instância.

Quanto à modificação do ponto 18. também foi o resultado da livre apreciação dos meios de prova produzidos sobre o valor locativo do imóvel, sem que se verifique a violação de normas de direito adjetivo ou de direito material que este Supremo Tribunal de Justiça deva remediar.

Por conseguinte, improcedem as questões suscitadas em torno da decisão da matéria de facto.


3. No âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento, a 1ª R. e o seu ex-marido EE apresentaram um acordo complementar relativo à utilização da casa de morada de família que estava instalada num imóvel habitacional de que o último era exclusivo proprietário.

Tal acordo foi homologado, mas o ato não foi levado ao registo predial.

Posteriormente, o proprietário EE outorgou com os AA. uma escritura de compra e venda do mesmo imóvel, tendo os AA. procedido ao registo a seu favor da aquisição do direito de propriedade, ocorrendo ainda o registo de uma hipoteca a favor de uma instituição financeira a que recorreram para a aquisição.

Pretendendo os AA. obter a condenação da 1ª R. e da 2ª R., sua filha, na restituição do imóvel que ocupam, importa apreciar se, nos termos do art. 5º, nº 4, do CRP, os AA. devem ou não ser considerados terceiros para efeitos de registo.

A 1ª instância deu uma resposta afirmativa, considerando que o direito real de habitação assim constituído, por não ter sido registado, era inoponível aos AA. Com este fundamento julgou procedente a referida pretensão.

Já a Relação considerou que os AA. não são terceiros para efeitos de registo, antes se encontram na situação de parte, de modo que, nos termos do art. 4º, nº 1, do CRP, ser-lhes-ia oponível o direito real de habitação anteriormente constituído, ainda que não registado.


4. Para a resolução do caso considera-se ultrapassada uma questão que, em tese, poderia suscitar dúvidas ligada à qualificação jurídica do acordo relativo à utilização do imóvel que foi outorgado no âmbito do divórcio por mútuo consentimento.

A casa de morada de família do casal que era formado pela 1ª R. e por EE estava implantada num imóvel que a este pertencia em exclusivo. No âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na Conservatória Registo Civil (art. 1775º, nº 1, al. d), e art. 12º, nº 1, al. b), do DL nº 272/01, de 13-10), foi apresentado um acordo subscrito por ambos, nos termos do qual “a casa, enquanto habitação da requerente mulher CC e da filha DD, fica destinada à utilização habitacional da requerente mulher, a título gratuito”.

A homologação deste acordo, juntamente com a homologação do divórcio por mútuo consentimento, resolveu a questão de direito material regulada no art. 1793º do CC em torno da atribuição da casa de morada de família.

Existem, aliás, múltiplas formas de dar execução a tal direito que, em função das circunstâncias, pode ser conferido a qualquer dos cônjuges. Umas dependem do facto de o bem imóvel em causa ser bem comum do casal ou bem próprio de algum dos cônjuges; outras do facto de a casa de morada de família estar instalada em imóvel sujeito a contrato de arrendamento ou mesmo a um contrato de comodato. Em qualquer dos casos, importa sempre considerar os efeitos que, dentro dos limites legais, podem resultar do acordo de vontades estabelecido pelos cônjuges interessados relativamente à regulação dessa esfera de interesses.

Tratando-se de uma situação em que a casa de morada de família estava implantada num imóvel que era propriedade exclusiva de um dos cônjuges, Teixeira de Sousa, citado por Nuno Salter Cid, em A proteção da Casa de Morada de Família no Direito Português, p. 305, nota, 33, aponta algumas soluções que podem passar por ser “arrendada, doada, emprestada, dada de usufruto a um dos cônjuges e pode ainda constituir-se um direito de habitação a favor de um dos cônjuges”.

No caso, a cedência gratuita por parte do cônjuge proprietário da utilização do imóvel para habitação do outro cônjuge (e da filha de ambos) poderia encontrar acolhimento na figura do contrato de comodato ou na figura do direito real de habitação.

Mas não seria indiferente uma ou outra qualificação, pois enquanto o contrato de comodato confere ao comodatário um mero direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, insuscetível de produzir efeitos relativamente a terceiros (art. 406º, nº 1, do CC), já o direito real de habitação produz eficácia erga omnes, como é típico dos direitos reais.

Ora, sem embargo das exigências formais que podem servir para diferenciar a constituição de um ou de outro vínculo jurídico, a qualificação de um acordo estabelecido entre os cônjuges que se pretendem divorciar fica essencialmente dependente do teor das declarações de vontade e do contexto em que são emitidas.

Característica do contrato de comodato é a natureza tendencialmente precária ou limitada, envolvendo necessariamente, ainda que de modo implícito, a obrigação de restituir o bem comodatado (art. 1129º do CC). Já no direito real de habitação prevalece o objetivo de satisfazer a necessidade de habitação do usuário e da sua família (art. 1484º), de modo semelhante ao que, por via legal, está previsto no art. 2103º-A ou, relativamente à união de facto, no art. 5º da Lei nº 7/01, de 12-5, na redação introduzida pela Lei nº 23/10, de 30-8.

No caso, é como direito real de habitação que deve ser qualificado o acordo a que os autos se reportam, tal como, noutra situação semelhante, foi assumido por este Supremo no Ac. de 8-5-13, 1064/11, www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere, além do mais, que:

“O direito constituído por acordo feito no processo de divórcio por mútuo consentimento entre a ré e o seu ex-marido que teve por objeto a utilização da casa de morada de família, destinando esta à habitação da ré tendo em conta (e por medida) as suas necessidades e da sua família ao tempo em que o divórcio foi decretado, é um verdadeiro e próprio direito real de habitação (arts. 1484º, 1485º e 1490º CC)”.


Menezes Leitão, em Direito Reais, 5ª ed., p. 378, nota 749, citando um aresto da Relação de Lisboa, de 18-2-93, CJ, t. I, p. 149, refere que “tem sido ainda comum constituir, nos acordos de divórcio, um direito de uso e habitação sobre a casa de morada de família a favor de um dos cônjuges … sujeito ao regime geral dos arts. 1484º e ss. do CC”.


5. Assim ocorreu no caso concreto, tanto mais que a qualificação jurídica do acordo nem sequer é questionada pelas partes, depois de ambas as instâncias o terem qualificaram como constitutivo de um direito real de habitação.

A constituição de tal direito real de gozo representou, em termos objetivos, uma oneração do direito de propriedade sobre o imóvel na titularidade do ex-cônjuge EE, a que correspondeu a compressão desse direito real absoluto na justa medida dos poderes de uso que foram conferidos à 1ª R.

O direito real de habitação encontra cobertura legal nos arts. 1484º e ss. do CC, sendo que a sua constituição por via de contrato também é assegurada pelo art. 1440º, ex vi art. 1485º, sendo que o acordo foi apresentado perante o conservador do registo civil para a sua homologação e por este foi homologado nos seus precisos termos.

A partir de então, se caso o direito de propriedade se tivesse mantido na esfera do ex-cônjuge EE, o direito real de habitação manter-se-ia e seria eficaz independentemente do registo (art. 4º, nº 1, do CRP) até que ocorresse alguma das causas de extinção previstas no art. 1476º, para onde também remete o art. 1485º do CC, ou, porventura, até que o acordo fosse alterado, nos termos do regime especificamente previsto para os processos de jurisdição voluntária, atenta a norma genérica do nº 1 do art. 988º do CPC (semelhante ao que, relativamente à opção pelo arrendamento resulta do nº 3 do art. 1783º do CC).


6. Ocorre, porém, que o imóvel foi posteriormente vendido aos AA. pelo proprietário, ocasião em que se operou a transferência para aqueles do direito de propriedade. Na mesma ocasião foi constituído o direito real de hipoteca a favor de uma instituição financeira a que os AA. recorreram.

Tendo sido interposta pela 1ª R. uma ação que visava a declaração de nulidade de tais contratos, por simulação (proc. nº 889/14……), tal ação foi julgada improcedente por decisão judicial que constitui o doc. nº 5 junto com a petição inicial.

Coloca-se, pois, unicamente a problemática, sobre a qual as instâncias divergiram, em torno eficácia ou ineficácia desse direito real menor de habitação, não registado, relativamente aos posteriores adquirentes do direito de propriedade, os ora AA., que submeteram a registo tal aquisição.

A 1ª instância concluiu que a falta de registo da constituição daquele direito real de habitação tornava-o ineficaz relativamente aos AA., por estes terem a qualidade de terceiros para efeitos de registo, nos termos do art. 5º, nº 1, do CRP.

Todavia, a Relação concluiu que os AA. não são terceiros para efeitos de registo, sendo-lhes oponível esse direito real menor que, assim, continuaria a onerar e a comprimir o seu direito de propriedade. Concluiu que “a situação concreta pressuposta na hipótese da norma transcrita não pode deixar de ser a de um «conflito» entre titulares de direitos ou de pretensões incompatíveis, sujeitos a registo, sob pena de inoponibilidade”, ou seja, que é necessária a identidade de regime entre o direito que foi transferido em cada uma das ocasiões pelo titular do bem.

Em concreto, afirmou-se no acórdão recorrido que:

“Relativamente ao direito que se discute na presente demanda os autores e a apelante CC não são terceiros entre si, por ausência desse “conflito”. Sê-lo-iam se após a homologação do acordo relativo à casa de morada da família o ex-marido da ré tivesse constituído a favor dos autores direito idêntico tendo por objeto mediato o mesmo imóvel, caso em que teria de conferir-se prevalência ao direito de habitação primeiramente registado.

Não é essa, contudo, a situação que se debate nestes autos. Daí que, contrariamente ao que decidiu em 1ª instância, nada impede que a referida R. e ora apelante oponha triunfantemente aos AA. o seu direito de habitação, apesar de não o ter registado: é que, quanto a ele, a posição jurídica dos AA. coincide totalmente com a do ex-marido da apelante, a quem sucederam na titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel já limitado pelo direito de habitação anteriormente constituído, pois não são terceiro, mas antes parte, no sentido visado pelo nº 1 do citado art. 4º do CRP”.

E consignou-se no respetivo sumário que:

“O facto de o direito de habitação não estar inscrito no registo predial não impede a sua oponibilidade aos AA. reivindicantes que, entretanto, hajam adquirido o imóvel ao ex-cônjuge da beneficiária desse direito, visto que, relativamente a eles, não são terceiros entre si para os efeitos do disposto no nº 4 do art. 5º do CRP, mas antes parte, no sentido visado pelo nº 1 do art. 4º.

Parece-nos manifesto que a razão está do lado dos AA. e que, por isso, deve ser revogado o acórdão da Relação e repristinada, nesta parte, a sentença de 1ª instância.

Nem o facto de o referido entendimento corresponder ao que, num caso semelhante, foi decidido no Ac. do STJ, de 8-5-13, 1064/11, em www.dgsi.pt, modifica o entendimento deste coletivo, na medida em que, salvo o devido respeito, este aresto contraria a jurisprudência que sobre o conceito de terceiros para efeitos de registo fora fixada pelo AUJ nº 3/99 e que, ademais, ganhou consagração legal pelo aditamento do nº 4 do art. 5º do CRP.


7. Nos termos do art. 2º, nº 1, al. a), do CRP, “estão sujeitos a registo … os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão”.

Prevê-se no nº 1 do art. 4º que “os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros”, o que revela a adoção de um modelo em que o registo não tem efeito constitutivo, salvo quando a lei o prevê explicitamente, como ocorre com a hipoteca.

Porém, se, independentemente do registo predial, o direito real de habitação, ou qualquer outro direito real congénere não registado, pode ser invocado inter partes, já a sua eficácia perante terceiros está dependente da realização do registo, sendo este o mecanismo jurídico que confere ao ato a publicidade destinada a tutelar os interesses de terceiros alheios às relações existentes entre os intervenientes no ato precedentemente outorgado mas não levado ao registo.

É o que prescreve explicitamente o art. 5º do CRP, nos termos do qual “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo” (nº 1), sendo que, prevê o nº 4, que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

Como refere Rui Ataíde, em Os efeitos substantivos do registo predial, na ROA, ano 77º, tomos I-II, p. 565, “os direitos reais, quando se constituem em conformidade com as normas substantivas competentes, produzem normalmente efeitos contra os terceiros em geral, apenas deixando de os produzir se os respetivos factos constitutivos não estiverem registados quando os terceiros que adquiriram a um autor comum registarem a sua aquisição”.

Este regime integra-se no objetivo principal do registo predial que visa conferir um nível ajustado de segurança jurídica nos negócios que tenham por objeto bens imobiliários, permitindo que qualquer interessado possa apurar, em qualquer altura, a situação jurídica em que o bem imóvel se encontra. Deste modo procura-se obstar a que terceiros alheios às relações estabelecidas entre os outorgantes de ato anterior sejam surpreendidos com a invocação de direitos que, no entanto, se mantiveram ocultos, por não lhes ter sido dada a devida publicidade assegurada pelas regras do registo, quando este seja obrigatório.

O caso sub judice é exemplo disso, na medida em que o acordo sobre a utilização da cada de morada de família, tendo por objeto um imóvel que era propriedade do outro cônjuge, não figurava no registo predial quando os AA. outorgaram com o proprietário o contrato de compra e venda que submeteram ao registo.


8. O conceito de terceiros para efeito de registo constitui um dos temas mais problemáticos na doutrina e na jurisprudência em matéria registal, como o revela, designadamente, o facto de a questão ter suscitado a prolação por parte deste Supremo Tribunal de Justiça de dois Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência, por sinal, em sentido divergente. No campo legislativo, motivou o aditamento do nº 4 ao art. 5º do CRP.

Este Supremo Tribunal de Justiça, no AUJ nº 15/97, começou por definir que “terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por um qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente”.

Todavia, tal aresto suscitou tantas e tão fortes críticas de todos os lados, incluindo alguns acórdãos posteriores deste Supremo, que motivaram, pouco tempo depois, a modificação dessa jurisprudência que foi concretizada através do AUJ nº 3/99 para o qual, “terceiros, para efeitos do disposto no art. 5º do CRP, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”.

Na génese da jurisprudência contraditória estavam situações em que a constituição da segunda posição jurídica resultava de um ato praticado no âmbito de processo judicial, como a penhora, arresto ou venda do bem imóvel que anteriormente fora alienado ou onerado sem que a correspondente aquisição ou oneração tivesse sido registado. Em tais situações era acesa a discussão de saber se os direitos incompatíveis provinham ou não do mesmo autor comum, acabando por ser assumida no segundo aresto a tese restritiva defendida pro Manuel de Andrade que, depois, foi formalmente consagrada pelo legislador.

Porém, esta polémica não afetou nem afeta situações como a dos presentes autos em que nos confrontamos com uma realidade substancialmente diversa e líquida, já que inequivocamente a constituição do direito real de habitação (que não foi não registada) emanou do mesmo titular que, depois disso, veio a outorgar com os ora AA. o contrato de compra e venda que foi sujeito a registo.

A concreta situação coloca-nos precisamente na linha da intervenção legislativa operada pelo DL nº 533/99, de 11-12, que, na sequência do AUJ nº 3/99, se traduziu no aditamento ao art. 5º do CRP do nº 4, com a seguinte redação: “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

Deste modo, como refere Rui Ataíde, ob. cit., p. 570, o legislador acabou por consagrar o conceito de terceiros que ficara definido naquele AUJ nº 3/99, com a seguinte justificação preambular: tomar partido “pela clássica definição de Manuel de Andrade, para inserir no art. 5º do Código do Registo Predial o que deve entender-se por terceiros, para efeitos de registo, pondo-se cobro a divergências jurisprudenciais geradoras de insegurança sobre a titularidade dos bens”.

Segundo Mónica Jardim, em Escritos de Direito Notarial e Registal, os requisitos necessários para que se seja invocada a inoponibilidade do ato sujeito a registo são os seguintes:

a) Ser terceiro perante o ato, o que apenas exclui as próprias partes ou os seus herdeiros;

b) Não ser representante legal vinculado pela obrigação de proceder ao registo, nem herdeiro deste;

c) Ser titular de um direito sujeito a registo, sob pena de inoponibilidade, e ter obtido o correspondente registo com prioridade.

Ora, no caso concreto, sob qualquer perspetiva, a 1ª R. e os AA. adquiriram do mesmo autor comum - o anterior proprietário e ex-marido da 1ª R. - direitos que, sendo ambos sujeitos a registo, são parcialmente incompatíveis, na medida em que a constituição e a persistência do direito real de habitação constitui uma forte restrição aos poderes de uso inerentes à qualidade de proprietários.

É verdade que aquele a quem é transmitido o direito de propriedade tem que suportar a oneração existente quando esta provenha de um contrato de arrendamento, atento o disposto no art. 1057º do CC. Já, porém, relativamente à generalidade dos demais direitos pessoais de gozo, como o comodato, o vínculo obrigacional apenas produz efeitos entre os sujeitos que se vincularam, sendo ineficaz em relação ao novo titular. Assim o prescreve o nº 2 do art. 406º do CC que consagra a regra da eficácia meramente obrigacional dos contratos.

Mas, sem qualquer dúvida, nos casos em que, como o presente, o mesmo autor comum outorgue com interessados diferentes atos sujeitos a registo, aquele que não proceder ao registo do direito adquirido por essa via, mantendo-o oculto, não o pode opor o seu direito àquele que tiver procedido ao registo, verificando-se a situação típica que esteve na base do aditamento do referido nº 4 do art. 5º do CRP.


9. Refere-se no parecer nº 101/2011 SJC-CT, do Cons. Consultivo dos Registos e Notariado publicado em https://www.irn.mj.pt que:

4. O acordo sobre o destino da casa de morada de família é um acordo complementar do divórcio destinado a regular um aspeto das relações pós-matrimoniais entre os cônjuges, mas que a lei, deliberadamente, não coloca na inteira disponibilidade das partes, atribuindo ao juiz ou ao conservador a aferição do seu conteúdo de forma a não permitir que se deixe desacautelados os interesses dos cônjuges e dos filhos.

5. Ainda assim, a existência deste conjunto de interesses ou desta ordem pública da família, embora condicionando o princípio da autonomia privada, não é de molde a prejudicar a essência negocial dos acordos e, por isso, poderá dizer-se que os acordos a que se refere o art. 1775º do CC, sendo, por um lado, o fruto do cruzamento das vontades dos cônjuges, apoiadas em interesses de sinal oposto e, por outro, o resultado de uma exigência legal em cujo conteúdo o juiz ou o conservador do registo civil pode interferir, não deixam de assentar sobre a vontade real dos requerentes, sendo que, as próprias alterações sugeridas pelo juiz ou pelo conservador só valem se forem aceites por eles e não por força de uma decisão judicial, cuja eficácia não depende obviamente da aceitação das partes.

6. No acordo sobre o destino da casa de morada de família o que está em causa é tão-somente a ‘’utilização’’ da casa de morada da família e o seu enquadramento jurídico em termos de um direito real ou de um direito obrigacional cujo conteúdo se apresente como o adequado ou imprescindível para assegurar, suficientemente, os interesses do cônjuge que fica com a casa e dos filhos que lá ficam com ele.

Noutro parecer da mesma entidade consignou-se, dentro do mesmo tema, o seguinte:

“III - O acordo sobre o destino da casa de morada da família, com homologação transitada em julgado, que traduza a vontade de constituir o direito de habitação a favor do cônjuge não proprietário constitui título suficiente para o registo de aquisição desse direito (arts. 1484º e ss. do CC e arts. 43º e 68º do CRP)”.

Na medida em que o anterior proprietário transmitiu a sujeitos diferentes direitos que entre si conflituam, o acordo de constituição do direito real de habitação a favor da 1ª R. apenas seria eficaz relativamente aos AA. adquirentes se tivesse sido levado ao registo predial.

Ao invés do que foi assumido no acórdão recorrido, a ineficácia relativamente a terceiros do ato sujeito a registo não depende da equivalência dos direitos sucessivamente transmitidos, antes da incompatibilidade total ou parcial entre ambos. Basta, pois, que a coexistência dos direitos sucessivamente constituídos de forma voluntária determine uma sobreposição parcial traduzida numa oneração, compressão ou redução dos poderes do proprietário.

Na verdade, a aquisição do direito de propriedade absoluto por parte dos AA. que ocorreu com a escritura pública de compra e venda (art. 879º, al. a), do CC) é parcialmente incompatível com a invocação do direito real de habitação invocado pela 1ª R., na medida em que este impede os AA. do exercício do jus utendi que o direito de propriedade também assegura, nos termos do art. 1305º do CC (cf. Rui Ataíde, ob. cit., p. 564).

A eventual persistência do direito real de habitação, se fosse eficaz em relação aos AA., determinaria que estes ficariam numa posição de inferioridade relativamente ao titular do direito de propriedade desonerado de qualquer outro direito real menor, deste modo se revelando a incompatibilidade dos atos que foram realizados pelo proprietário EE, tendo como contra-interessados pessoas diversas.


10. De modo algum os AA. podem ser considerados partes no contrato que foi firmado entre a 1ª R. e o seu ex-cônjuge, na medida em que não sucederam na sua posição jurídica nem têm a qualidade de substitutos do anterior proprietário.

Discorda-se, pois, do que foi assumido no Ac. do STJ, de 8-5-13, já citado, quando nele se refere que:

“Não colhe, finalmente, o argumento retirado pelos recorrentes do art. 5º, nº 1, do CRP.

Na verdade, segundo este preceito, “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo”, sendo certo que o direito de habitação está sujeito a registo, nos termos do art. 2º, nº 1, a).

Simplesmente, o nº 4 do referido art. 5º dispõe que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”, e o art. 4º, nº 1, que “os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros”.

Ora, em relação ao direito que nesta ação se discute os AA. e a R. não são terceiros entre si: sê-lo-iam se após a homologação do acordo relativo à casa de morada de família o ex-marido da R. tivesse constituído a favor dos AA. direito idêntico tendo por objeto o mesmo imóvel, caso em que teria de conferir-se prevalência ao direito de habitação primeiramente registado.

Mas não foi isso o que sucedeu, como já se viu.

Sendo assim, nada impede que a R. oponha triunfantemente aos AA. o seu direito de habitação, apesar de não o ter registado: é que, quanto a ele, a posição jurídica dos recorrentes coincide totalmente com a do ex-marido da recorrida, a quem sucederam na titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel já limitado pelo direito de habitação anteriormente constituído (são parte, no sentido visado pelo art. 4º, nº 1, do CRP, acima citado)”.

Em contraponto, os AA. têm inequivocamente a qualidade de terceiros relativamente aos sujeitos que intervieram no acordo constitutivo do direito real de habitação e, por conseguinte, este não produz efeitos na sua esfera jurídica, sendo-lhes inoponível.

Com este fundamento, há que reverter o que foi decidido no acórdão da Relação, nesta parte, e determinar a procedência do pedido de condenação das RR., como decidiu a 1ª instância.


11. Na sentença as RR. foram ainda condenadas a indemnizarem os AA. pela utilização do imóvel.

Este segmento decisório foi impugnado por cada uma das RR. nos recursos de apelação que, no entanto, nesta parte, não foram apreciados pela Relação, tendo em conta que a questão ficou prejudicada pela resposta que foi dada à questão precedente.

A Relação limitou-se a alterar a redação do ponto 18. dos factos provados, sobre os efeitos patrimoniais decorrentes da privação do gozo do imóvel, não se tendo pronunciado sobre as questões que foram suscitadas por cada uma das RR. (a 1ª R. enquanto beneficiária direta do direito de habitação constituído por contrato; a 2ª R., que não é parte nesse contrato, como beneficiária indireta desse direito de habitação; ambas, ainda assim, ocupantes do prédio reivindicado).

Relativamente a tal matéria impõe-se a remessa dos autos à Relação, a fim de emitir pronúncia sobre a mesma.


IV – Face ao exposto, acorda-se em:

a) Julgar procedente a revista e revogar o acórdão, repristinando a sentença de 1ª instância na parte em que condenou as RR. a entregarem aos AA., livre de pessoas e bens, o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com garagem, sito ….., União de Freguesias …. e ….., descrito na ….. CRP …. sob o nº ….19 (….) e inscrito na matriz predial urbana sob o art. …...40

b) Determinar a remessa dos autos à Relação para que sejam apreciadas as apelações interpostas por cada uma das RR. na parte em impugnaram a sentença que as condenou no pagamento aos AA. do valor mensal de € 950,00, a título de contrapartida pela utilização do imóvel.

Custas da revista a cargo de cada uma das RR. e custas da apelação a cargo de cada uma das apelantes.

Notifique.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

Notifique.

Lisboa, 1-7-21


Abrantes Geraldes (relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo