VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
FACTOS GENÉRICOS E CONCLUSIVOS
DIREITO DEFESA ARGUIDO
Sumário


I- Os factos imputados na acusação (e consequentemente na sentença) não podem traduzir-se numa mera descrição de conceitos vagos, imprecisos, genéricos e conclusivos, sob pena de ficar prejudicado o contraditório e, consequentemente, o direito de defesa do arguido.
II- O arguido terá de conhecer, com o necessário rigor, os factos que lhe são imputados, descritos de forma a que não subsistam dúvidas no seu espirito sobre qual o “pedaço de vida” em discussão. Pois pior do que não poder defender-se é, à semelhança de um processo tipo kafkiano, não saber do que defender-se.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo comum singular nº 2/20.0GEBRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Braga – Juiz 2, em que é arguido J. P., com os demais sinais nos autos, por sentença proferida e depositada em 11.01.2021, foi decidido, no que para o caso releva, o seguinte (transcrição):
a) Condenar o arguido J. P. pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do CP, na pena de 3 (três) anos de prisão (ofendida C. S.);
b) Condenar o arguido J. P. pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a) do CP, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão (ofendida V. M.);

c) Condenar o arguido J. P. pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art. 353.º do CP, na pena de 6 (seis) meses de prisão;

d) Em cúmulo jurídico, condená-lo na pena única de 4 (quatro) anos de prisão;

e) Condenar o arguido J. P. na pena acessória de proibição de contacto com C. S. e V. M., com afastamento da residência destas, pelo período de 3 (três) anos;

f) Condenar o arguido J. P. a pagar a C. S. a quantia de €2.500 (dois mil e quinhentos euros), a título de reparação pelos prejuízos por si sofridos;

g) Condenar o arguido J. P. a pagar a V. M. a quantia de €2.000 (dois mil euros), a título de reparação pelos prejuízos por si sofridos;

h) Condenar o arguido nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.C.
2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1ª – Entende o aqui recorrente que a Sentença recorrida viola de forma contundente o Princípio do contraditório e o Princípio do Processo Equitativo, assegurados pelo artigo 32º nº1 e nº5 da Constituição da República Portuguesa, pelos artigos 61º nº1 alínea a) e o artigo 283º, nº3 alínea b), ambos do CPP e pelo artigo 3º nº 3 do CPC.
2ª - A norma que prevê e pune o crime de violência doméstica não pode ter-se como dispensando, sem mais, a concretização dos factos.
3ª - Não se pode ter como acusação, no sentido confirmado pela sentença in crise, a imputação de factos genéricos, vagos, que não permita ao acusado localizar, no tempo, as acções que lhe são atribuídas.
4ª – Foi pois profícuo, o Tribunal a quo, na fundamentação de facto o recurso que realizou na imputação de factos genéricos e vagos, sem localização no tempo.
5ª- No entendimento do Recorrente o conteúdo dos pontos 22, 38,39, 40 e 41 da fundamentação de facto da Sentença in crise é meramente conclusivo.
6ª - Na verdade, tanto o despacho de acusação como a sentença in crise não localizaram temporalmente vários factos, não foi apurada a motivação do arguido para essa conduta, mormente através da identificação do veículo e seu proprietário, no cerne dos pontos 22, 38 e 41 dos factos provados.
7ª - Imputações genéricas não são factos e violam os direitos de defesa do arguido violando, por isso, o princípio do processo equitativo, resultando daqui que não podem sustentar uma condenação penal.
8ª - Acresce ainda que in casu, trata-se de violência doméstica, um crime que pela sua gravidade não pode constituir um crime “borracha” que apaga preocupações processuais e dispensa grande rigor na linguagem, investigação, instrução e prova nos autos.
9ª - Entente pois o recorrente que no tipo de crime de violência doméstica é incompatível com uma generalização factual sob pena de futura ineficácia do tipo, para além da presente violação dos mais elementares direitos de defesa, “um intolerável achincalhamento do contraditório”.
10ª – Aliás, o resultado é que seria muito mais fácil acusar e condenar pelo crime de violência doméstica – por dispensar qualquer esforço de concretização e localização -, do que pelos crimes em que o mesmo se decompõe, menos graves do que aquele!
11ª - No crime de violência doméstica, de que o recorrente vem condenado, o bem jurídico tutelado – como é comummente apontado -, seja a pessoa e a sua dignidade humana, compreendendo nesta a saúde, a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, de tal forma que a violência desenvolvida pelo agente sobre a vítima redunde num abuso de poder daquele e numa situação de degradação e humilhação desta.
12ª - Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
13ª - O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, sendo aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade.
14ª – Sendo certo que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar a especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.
15ª - Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
16ª - Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.
17ª - O que no caso subjudice não se verifica: tanto pela situação de independência económica, o número de elementos adultos que viviam na residência (duas mulheres e um homem adultas).
18ª - Note-se que tanto a C. S., como a V. M. (juntamente com o companheiro B. D.), apesar dos rendimentos que auferem, continuaram todos a residir na casa onde alegadamente viviam com medo e com ansiedade.
19ª - Entende pois o Recorrente que eventuais episódios que consubstanciam o crime de injúria ou o crime de ameaça não se transmudam em violência doméstica, apenas por serem dirigidos ao ex cônjuge e filha.
20ª - Adassim, o Tribunal a quo não logrou provar o dolo do tipo legal da violência doméstica, sendo que os factos descritos na sentença recorrida são insuficientes à sua condenação.
21ª - Do conjunto da prova produzida e tendo em atenção as regras da experiência comum, restem dúvidas sobre o momento em que se verificaram dos factos em análise nos pontos 22, 38,39, 40 e 41, e as circunstâncias que rodearam a conduta do recorrente, essas dúvidas teriam sempre e necessariamente de aproveitar ao recorrente, por aplicação do princípio in dúbio pro reo.
22ª – Ora, esta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada acarreta uma violação do Princípio do in dubio pro reo.
23ª - Do exposto resulta que, do conjunto da prova produzida e tendo em atenção as regras da experiência comum, restem dúvidas sobre quando se verificaram alguns dos factos em análise, as circunstâncias que os rodearam, essa dúvida teria sempre e necessariamente de aproveitar ao recorrente, por aplicação do princípio in dúbio pro reo.
24ª – Em suma, e face ao exposto, entende o Recorrente que a Sentença in crise viola o preceituado no art. 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa e o art. 410º n.º 2 alínea a), do C.P.P.

NESTES TERMOS: menos pelo alegado do que pelo os Venerandos Desembargadores sabiamente suprirão, como é Vosso mister e apanágio, deve ser dado provimento ao recurso ora interposto, revogando-se a douta sentença recorrida na parte que condena o recorrente, pela prática de dois crimes de violência doméstica de que vinha acusado.

3. O M.P. na primeira instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, tendo concluído no sentido de que [transcrição]:

1. No âmbito dos presentes autos foi o arguido J. P. condenado, além do mais, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do CP, na pena de 3 (três) anos de prisão na pessoa da ofendida C. S., pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. a) do CP, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, na pessoa da ofendida V. M., pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art. 353.º do CP, na pena de 6 (seis) meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
2. A factualidade imputada ao arguido encontra-se suficientemente balizada no tempo e no espaço.
3. Pois existem comportamentos em relação aos quais não é possível (nem exigível) a exacta concretização do dia e da hora.
4. Sendo que o artigo 283º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal refere que as concretizações aí previstas devem ser feitas “se possível”.
5. Assim sendo, a sentença recorrida não violou os princípios do contraditório e do processo equitativo.
6. Atenta a factualidade dada como provada, mostram-se preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime de violência doméstica nas pessoas da ofendida C. S. e V. M..
7. A conduta do arguido traduz-se na prolacção de insultos e ameaças às ofendidas (sua ex-mulher e filha, que se encontrava grávida e que com ele residia) e ainda na produção de agressões físicas à ofendida C. S., que se prolongaram no tempo, sendo que a reiteração constitui sempre um elemento relevante para se aferir da gravidade dos “maus tratos”.
8. A factualidade dada como provada é suficientemente grave para pôr em causa a dignidade humana das duas ofendidas.
9. Pelo que, e apelando à “imagem global do facto”, urge concluir que o ora recorrente actuou com o propósito de achincalhar, menosprezar e ofender a dignidade pessoal das ofendidas e que o seu comportamento traduziu-se em sofrimento e humilhação para ambas.
10. Os factos dados como provados na decisão recorrida são suficientes para concluir que o recorrente praticou os aludidos crimes de violência doméstica.
11. Motivo pelo qual a decisão recorrida não padece do vício constante na al. a) do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal.
12. Não há lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo, uma vez que o Tribunal a quo não teve dúvidas de que o arguido praticou os factos que lhe foram imputados.
13. Nesta senda, urge concluir que não foram violados quaisquer preceitos legais, designadamente, os artigos 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal e 32º, nº 5, da Lei Fundamental.
Pelo exposto, deve a douta sentença recorrida ser mantida na íntegra, negando-se assim provimento ao recurso.
Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA.
4. Nesta instância, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, tendo concluído no sentido de que o recurso deverá ser julgado improcedente.
5. Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
6. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso (1) do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP.

Assim, considerando o teor das conclusões do recurso interposto no sentido acabado de referir, o objeto do presente recurso centra-se nas seguintes questões:
- Da violação dos princípios do contraditório e do processo equitativo;
- Da não verificação dos elementos do crime de violência doméstica;
- Do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da violação do princípio do in dubio pro reo.

2- A Decisão recorrida

2.1- A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação de facto [transcrição]:

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A) Factos provados

Com relevância para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:
1. O arguido e C. S. contraíram casamento em - de setembro de 1997.

2. E divorciaram-se em - de maio de 2019.

3. Dessa relação nasceram dois filhos: V. M., nascida em - de fevereiro de 1998, e D. J., nascido em - de outubro de 2011.

4. Por sentença proferida no âmbito do processo comum singular n.º 3/18.9GEBRG, em 19 de setembro de 2018, transitada em julgado em 19 de outubro de 2018, o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 4 do Código Penal, na pena de prisão de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, suspensa na sua execução pelo período de dois (dois) anos, acompanhada de regime de prova e condicionada à obrigação de frequência do «Programa para Agressores de Violência Doméstica» (PAVD), caso, após avaliação prévia por parte da DGRSP, tal frequência se mostre viável, e à obrigação de, durante o período de suspensão, o arguido não contactar por nenhum meio com a ofendida C. S., o que também foi imposto por pena acessória pelo período de 2 (dois) anos.

5. Apesar do decretamento do divórcio, o casal não realizou a partilha dos bens, pelo que a residência sita na Rua …, permanece indivisa.

6. C. S. viveu na mencionada residência até 07 de janeiro de 2018, data em que saiu de casa com os filhos e passou a residir em casa dos seus pais até 27 de janeiro, data em que, por sua vez, arrendou uma residência sita na Calçada da …, onde permaneceu até ao dia 09 de novembro de 2019.

7. O arguido trabalha e reside habitualmente em França.

8. No mês de setembro de 2019, V. M., filha do arguido e de C. S., encontra-se grávida.

9. No decurso do mês de setembro de 2019, em dia não concretamente apurado, o arguido sugeriu a C. S. que, em virtude de o mesmo se encontrar a residir no estrangeiro, a filha V. M. se encontrar grávida e não necessitar de pagar renda, a mesma e os seus filhos voltassem a residir na residência sita na Rua ….

10. C. S., com vista a evitar custos com a renda e porque a filha estava grávida, decidiu aceitar tal proposta do arguido.

11. Nessa altura, o arguido disponibilizou a C. S. as chaves de casa e disse-lhe que quando viesse a Portugal, previsivelmente na altura do Natal, ficaria em casa dos seus pais.
12. Assim, desde 09 de novembro de 2019, C. S. passou a habitar a referida casa com o seu filho menor, a sua filha V. M. e B. D., na altura, namorado da V. M..

13. Sucede que, cerca de uma semana depois de as ofendidas C. S. e V. M. se terem instalado na habitação, ainda no decurso do mês de novembro de 2019, o arguido regressou de França e foi viver na mencionada residência, isto apesar de conhecer a decisão condenatória referida em 4.

14. O arguido residiu na mencionada residência desde data não apurada do mês de novembro de 2019 até 12 de março de 2020 (data em que lhe foi aplicada a medida de coação de não permanecer na residência), com exceção dos dias 22 a 27 de fevereiro de 2020, altura em que se deslocou a França.

15. Não obstante ter regressado à mencionada residência, C. S. e o arguido continuaram a fazer vidas separadas.

16. Sensivelmente a partir do Natal de 2019, o arguido retomou a ingestão de bebidas alcoólicas, encontrando-se, diariamente, alcoolizado.

17. Entre o Natal de 2019 e o dia 12 de março de 2020, com exceção do período que se deslocou a França, o arguido passava praticamente todas noites a beber e a fazer barulho, batendo com as portas, batendo às portas dos quartos de dormir onde C. S. e o filho menor ou a filha V. M. e o seu companheiro se encontram a descansar, falando alto, arrastando móveis, subindo e descendo as escadas, impedindo todos os residentes da casa de repousar durante esse período.

18. C. S. e V. M., com medo, dormiam nos respetivos quartos com as portas trancadas à chave.

19. Por várias vezes, no referido período temporal, o arguido, embriagado, fechou a água do poço para que não tivessem água de manhã, ligou o alarme da casa, ligou a aparelhagem da música e desligou a Internet.

20. No referido período temporal, diariamente, no interior da referida residência, o arguido, embriagado, dirigia a C. S. expressões como “puta”, “cabra”, “vaca”, dizia que a ia matar, que lhe ia rebentar a cabeça.

21. No referido período temporal, todas as semanas, pelo menos, uma vez por semana, no interior da referida residência, o arguido, embriagado, dirigia a V. M. expressões como “puta”, “cabra”, “vaca”, dizia que a ia matar.

22. Em data não apurada do referido período temporal, à noite, no interior da referida residência, o arguido disse à V. M. que iria incendiar o seu carro; a Vera, com receio, passou a estacionar o carro num parque distante da residência.

23. No referido período temporal, C. S. e V. M., com medo, não regressavam a casa sozinhas.

24. No dia 03 de janeiro de 2020, à noite, no interior da residência, onde se encontravam todos os residentes, tendo tomado conhecimento de que a filha V. M. tinha escolhido uma irmã da C. S. e o seu cônjuge para padrinhos do seu filho que iria nascer, o arguido, embriagado, disse que os matava a todos, que só por cima do cadáver dele é eles iam ser os padrinhos, que não autorizava, que ele é que ia ser o padrinho.
25. O filho D. J. começou a chorar.
26. Neste contexto, a GNR foi chamada ao local.
27. Na sequência da deslocação da GNR ao local, o arguido saiu da residência, mas, depois de a GNR se ter ausentado, regressou e passou a noite a bater nas portas e janelas para que o deixassem entrar.
28. A partir desse dia, por várias vezes, no interior da residência, o arguido dizia que tinham feito queixa dele, que se ele fosse preso que os ia matar a todos.
29. No dia 23 de janeiro de 2020, C. S. chegou a casa entre as 19h00 e as 19h30, e, de imediato, o arguido, embriagado, perguntou-lhe onde tinha estado e com quem tinha estado.

30. Na hora do jantar, quando se encontravam todos os residentes, o arguido disse que qualquer dia colocaria veneno na comida e que os matava a todos.

31. O filho D. J., com medo, nem comeu.

32. Neste contexto, a GNR foi chamada ao local.

33. No dia 29 de fevereiro de 2020, durante o dia, o arguido andava a podar em casa dos seus pais e, por várias vezes, ia à mencionada residência beber.

34. Nessas idas à residência, perante C. S. e V. M., dizia: “saí daqui”, “vou-vos matar”, “sai daqui cabra, leva a vaca da tua filha”.

35. À hora de jantar, na cozinha, o arguido, embriagado, arremessou um prato na direção de C. S., atingindo-a na zona do cotovelo, por a mesma ter levantado o braço para se proteger.
36. Nessas circunstâncias, C. S. tinha uma camisola vestida e não ficou com qualquer lesão.

37. Neste contexto, a GNR foi chamada ao local.

38. Em data não apurada, mas anterior a 04 de março de 2020, cerca das 8h00, quando C. S. se encontrava na garagem da residência, no interior do veículo automóvel, acompanhada do filho D. J., preparada para se ausentar da habitação, o arguido apareceu no local e fechou a porta da garagem, impedindo a C. S. de sair.

39. Quando C. S. saiu do veículo para voltar a abrir o portão, o arguido fechou a porta do carro e colocou-se à frente da mesma, impedindo-a de entrar no veículo.

40. Tal situação apenas terminou após a intervenção de B. D., que segurou o arguido, o que possibilitou que C. S. se ausentasse da habitação no veículo.

41. Cerca de cinco vezes, quando C. S., acompanhada do filho D. J., pretendia sair de casa para trabalhar aos fins de semana, o arguido ia atrás dela para a garagem, dizendo “não vais nada puta”, “não vais trabalhar para lado nenhum”, “e levas o menino para quê?”, “deixa o menino em casa sua cabra”, tendo fechado o portão da garagem, pelo menos, numa outra ocasião distinta da supra descrita.
42. No dia 04 de março de 2020, pouco depois das 07h00, no corredor de acesso aos quartos da residência, o arguido, dirigindo-se a C. S., disse-lhe “só estás a acordar agora?”; “só vens agora minha puta?”; “já devias estar acordada há muito tempo”, ao que a C. S. lhe respondeu que, de noite, era para dormir; nessa altura, o arguido desferiu-lhe uma bofetada na cara.

43. O filho D. J. ouviu e começou a chorar.

44. Neste contexto, a GNR foi chamada ao local.

45. O arguido, por força dos atos descritos, causou a C. S. sofrimento ao nível físico e psíquico, humilhação, nervosismo, constrangimento, desgosto e medo, o que lhe causou instabilidade emocional permanente e se refletiu na sua vida do dia-a-dia.

46. O arguido causou a V. M. sofrimento psíquico, humilhação, nervosismo, constrangimento, desgosto e medo, o que lhe causou instabilidade emocional permanente e se refletiu na sua vida do dia-a-dia.

47. O arguido agiu com plena consciência de que não lhe era permitido atingir, como fez, a integridade física e psíquica da sua ex-mulher e a integridade psíquica da sua filha que se encontra grávida, e a respetiva liberdade.

48. O arguido, agindo da forma descrita, decidiu contactar a ofendida C. S., violando a pena acessória a que estava sujeito, desrespeitando decisão judicial que lhe havia sido imposta por decisão transitada em julgado, a qual conhecia e sabia que estava a violar e respeitar.

49. O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que as condutas eram proibidas e punidas pela lei penal como crime.

*
50. C. S. é assistente técnica no Hospital de …, auferindo, mensalmente, em média, cerca de €775 (setecentos e setenta e cinco euros) líquidos.
51. Reside com o filho D. J., a filha V. M., o companheiro desta, B. J., e o neto, filho de V. M., nascido em abril de 2020.

52. É proprietária de um veículo automóvel da marca Renault, modelo Mégane, de 2002.

53. A filha V. M. é empregada de mesa num restaurante, auferindo, mensalmente, cerca de €615 (seiscentos e quinze euros) líquidos.

54. O companheiro da filha é assistente operacional, auferindo a Retribuição Mínima Mensal Garantida.

55. V. M. e o companheiro contribuem para as despesas domésticas com quantia não apurada.
*
56. O processo de desenvolvimento de J. P. decorreu no seio de uma família numerosa, marcada por dificuldades económicas, as quais foram sendo atenuadas pelo apoio e contributo dos irmãos quando estes se iniciaram profissionalmente.

57. A economia doméstica assentava na atividade profissional do pai, serrador, e no complemento de uma agricultura de subsistência praticada pela mãe.
58. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade, tendo abandonado o ensino por valorizar a sua integração no mundo do trabalho.
59. J. P. estruturou o seu percurso laboral como operário de construção civil, decidindo emigrar para França para melhorar a condição financeira do agregado constituído e aceder a meios económicos suficientes para finalizar a construção da casa de morada de família, que foi construída, de forma faseada, pelo próprio.
60. Enquanto trabalhador no estrangeiro, a sua presença no seio familiar ficou condicionada aos períodos de férias e/ou de interrupção da atividade da empresa durante os meses de inverno mais rigorosos (em regra de dezembro até final de fevereiro), quadras festivas e alguns fins de semana.
61. O arguido celebrou matrimónio com C. S., precipitado pela gravidez e precedido de um namoro de dois anos.
62. J. P. tem dois filhos, cujo processo educativo foi liderado por C. S., dado a situação laboral do arguido.

63. O casal fixou residência na freguesia de ..., numa casa que construíram em 2004/05, num local retirado e relativamente isolado, mas tendo como vizinhos os pais e um irmão.
64. Em contexto de tempos livres, era habitual o arguido frequentar alguns cafés da sua área de residência, sendo-lhe atribuído consumo regular e abusivo de bebidas alcoólicas.
65. Por encaminhamento do seu médico de família, J. P. foi presente a uma consulta de psiquiatria no Hospital de … em 07/09/2017, que não teve continuidade por falta de adesão e negação do seu comportamento aditivo.
66. No âmbito do acompanhamento levado a cabo pela DGRSP no processo n.º 3/18.9GEBRG, J. P., inicialmente, demonstrou recetividade para o alcance dos objetivos formulados no plano de reinserção social, mas, por se manter emigrado em França, não pôde frequentar as sessões do Módulo Psicoeducacional dos Programas implementados Para Agressores de Violência Doméstica que decorreram durante o período da medida.
67. No que concerne ao tratamento à dependência de alcoolismo, o arguido deveria comparecer no Centro de Saúde, com o objetivo de se iniciar o estudo clínico e a prescrição de exames complementares de diagnóstico protocolizados em doentes PLA (Problemas Ligados ao Álcool), para, posteriormente, poder ser sujeito a consulta no CRI e ao tratamento que lhe viesse a ser prescrito.
68. Porém, revelou desmotivação em diligenciar pela marcação de uma consulta no Centro de Saúde, inviabilizando o tratamento.
69. J. P. mantém-se emigrado em França há cerca de doze anos, a trabalhar na área da construção civil, com perspetivas de continuidade, designadamente, pela vantagem remuneratória.
70. O arguido subsiste do seu trabalho, auferindo um salário mensal médio no valor de €1.500 (mil e quinhentos euros) líquidos e apresenta, como despesas fixas mensais, as relativas à renda da habitação e aos consumos domésticos, no montante global de €500 (quinhentos euros), e à prestação de alimentos ao filho, no montante de €120 (cento e vinte euros).
71. J. P. contactou com alguma regularidade os filhos, sobretudo o mais novo, menor, a quem prometeu vir passar períodos de férias a Portugal, nomeadamente, o período Natalício de 2019, durante o qual ficaria a residir com os seus pais, que residem próximo da casa de morada da família, e de cujo apoio beneficia.
72. No meio sociofamiliar, o arguido é referenciado como sendo um indivíduo trabalhador, de personalidade emocionalmente instável, a qual tende a agravar-se quando está sob efeito alcoólico; contudo, sem registo de incidentes graves na interação social.
73. J. P. evidenciou dificuldades na compreensão da sua constituição de arguido nos presentes autos, encarando-a com uma atitude de minimização dos acontecimentos e de externalização de responsabilidade.
74. Sinalizou, como alterações nas suas condições de vida decorrente deste processo, a continuação da proibição de contactos e o afastamento da casa de morada de família e do convívio normal com os filhos, sentindo-se depreciado e assumindo um discurso de vitimização.
75. Quando confrontado com a natureza dos factos que suportam este processo, em abstrato, J. P. reconhece a sua ilicitude, bem como, a existência de vítimas e danos.
76. O arguido negou a prática dos factos.
77. Não reconhece a sua problemática aditiva.
78. Evidenciou não ter interiorizado o desvalor da sua conduta.
79. Por decisão de 22/09/2017, transitada em julgado em 23/10/2017, proferida no processo n.º 46/16.7GEBRG, deste Tribunal, o arguido foi condenado pela prática, em 22/03/2016, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €7 (sete euros), num total de €1.400 (mil e quatrocentos euros).
80. Por decisão de 19/09/2018, transitada em julgado em 19/10/2018, proferida no processo n.º 3/18.9GEBRG, do J1 deste Juízo Local Criminal, foi condenado pela prática, por factos ocorridos entre 22/12/2017 e 07/01/2018, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, com regime de prova e condicionada à obrigação de frequência do «Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), caso, após avaliação prévia por parte da DGRSP, tal frequência se mostre viável, e à obrigação de, durante o período da suspensão, não contactar, por nenhum meio, com a ofendida C. S., tendo sido condenado na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida C. S. pelo período de 2 (dois) anos.
81. Por decisão de 28/02/2018, transitada em julgado em 09/04/2018, proferida no processo n.º 21/18.7GEBRG, do J1 deste Juízo Local Criminal, foi condenado pela prática, em 29/01/2018, de um crime de desobediência qualificada e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena única de 225 (duzentos e vinte e cinco) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros), num total de €1.350 (mil trezentos e cinquenta euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 12 (doze) meses.
82. Por decisão de 13/09/2019, transitada em julgado em 14/10/2019, proferida no processo n.º 22/18.7GEBRG, do J3 deste Juízo Local Criminal, foi condenado pela prática, em 27/01/2018, de um crime de simulação de crime, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €8 (oito euros), num total de €720 (setecentos e vinte euros).

B) Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados outros factos, em contradição com aqueles ou para além deles, designadamente os seguintes:
a) Que C. S. tenha vivido na residência sita na Rua ..., n.º …, ... até 07 de fevereiro de 2018;
b) Que C. S. tenha residido em casa dos seus pais até 28 de janeiro de 2018;
c) Que o arguido tenha sugerido a C. S. que a mesma e os seus filhos voltassem a residir na mencionada residência em virtude de a casa ter maiores dimensões e condições;
d) Que C. S. tenha aceitado a proposta do arguido por ter grandes dificuldades económicas e não conseguir suportar sozinha o pagamento da renda;
e) Desde dezembro de 2019, diariamente, o arguido dirigiu a C. S. as expressões “és uma cabra”, “filha da puta”, “já arranjaste outros homens”, “andas metida com outros?”, “tens outros homens?”, “cala-te sua puta”, “tu aqui não mandas nada”, “acabo contigo”, “eu acabo comigo e depois com todos vocês”;
f) Para além disso, o arguido quis inteirar-se de tudo o que C. S. e sua filha faziam, onde iam e o que iam fazer;
g) Que, quando tomou conhecimento de que a filha V. M. tinha escolhido uma irmã da C. S. e o seu cônjuge para padrinhos do seu filho que iria nascer, o arguido lhe tenha dito: “vou-te expulsar de casa, ou mudas de padrinhos ou não vais ter onde viver”, “esta casa é minha e aqui quem manda aqui sou eu”;
h) Desde dezembro de 2019 até ao dia 12 de março de 2020, diariamente, o arguido dizia à C. S. e à filha V. M. “eu acabo comigo e depois com todos vocês”;
i) A partir do dia 03 de janeiro de 2020, o arguido, diariamente, disse à C. S. e à filha V. M.: “se não tirarem a queixa eu vou preso, mas quando sair dou cabo de todos vocês”, “se eu for preso alguém vai para debaixo da terra”, “eu mato-te torço-te o pescoço”, ao mesmo que fazia gestos de rodar a mão, com o punho cerrado, “se não tirares a queixa e eu for preso, quando sair eu vou acabar contigo, sua puta”, “ponho-te fora de casa”, “troco a fechadura”;
j) No dia 23 de janeiro de 2020, C. S. chegou a casa do trabalho cerca das 19h20 e, de imediato, o arguido perguntou-lhe: “porque é que estás a chegar a esta hora?”, ao mesmo tempo que lhe dirigia as expressões “sua puta” “sua drogada, sua cabra”, “vou dar cabo de ti”, “se eu for preso alguém vai para baixo da terra”, “eu vou-vos envenenar a todos”, “ides morrer todos”;
k) No dia 24 de janeiro de 2020, cerca das 7h30, o arguido dirigiu-se ao quarto onde C. S. dormia com o filho menor e questionou-a sobre se só tinha acordado aquela hora, ao que a C. S. lhe respondeu que, de noite, é para dormir e, de manhã, tinha de trabalhar e o filho menor tinha de ir para escola;
l) Nessas circunstâncias, quando se encontravam na zona do corredor de acesso aos quartos, o arguido aproximou-se da C. S. e desferiu-lhe uma bofetada na cara;
m) Após, C. S. desceu para a zona da garagem da residência com o filho menor a fim de se ausentar da habitação para trabalhar e transportar o filho menor à escola;
n) Quando se encontrava no interior do veículo, acompanhada do filho menor, o arguido apareceu nesse local e fechou a porta da garagem, impedindo a C. S. de sair de casa;
o) Em virtude de não dispor de comando para abrir novamente o portão, a C. S. saiu do veículo a fim de acionar o botão para abrir o portão;
p) Nessa ocasião, o arguido colocou-se em frente da C. S. e impediu-a de regressar ao veículo, onde se encontrava o filho menor de ambos, o que só terminou após a intervenção da filha V. M. e do companheiro, que o imobilizaram, segurando-o, o que possibilitou que a C. S. se ausentasse da habitação no seu veículo;
q) No dia 15 de fevereiro de 2020, cerca das 8h48, o arguido agarrou a C. S. pelo braço e disse-lhe: “vai para a tua casa cabra, não entras mais aqui”;
r) Que, no dia 29 de fevereiro de 2020, cerca das 19h20, o arguido tenha arremessado o prato depois de ter dirigido à C. S. ameaças de morte e que o prato não a tenha atingido em virtude de a mesma se ter desviado;
s) Cerca das 22h00, o arguido dirigiu à sua filha V. M. as seguintes expressões: “arrebento-te a cabeça”, “incendeio-te o carro”.

III. MOTIVAÇÃO

O Tribunal fundou a sua convicção, concreta e globalmente, no confronto, apreciação e análise crítica das declarações do arguido, das declarações da assistente, dos depoimentos das testemunhas inquiridas e dos documentos constantes dos autos, tudo conjugado com as regras da experiência e da normalidade do acontecer.
Assim, a matéria relativa à relação familiar que existiu entre o arguido e a assistente, aos filhos resultantes dessa relação e ao divórcio, entretanto, ocorrido, resultou, desde logo, do assento de casamento de fls. 18/19 e dos assentos de nascimento de fls. 20/21 e 24/25.
A anterior condenação pela prática do crime de violência doméstica encontra-se atestada pela certidão de fls. 48 ss, extraída do processo n.º 3/18.9GEBRG, do J1 deste Juízo Local Criminal.
No mais, e designadamente quanto às circunstâncias de tempo, lugar e modo como os factos ocorreram ponderou-se, desde logo, as declarações da assistente C. S., que, de forma que se nos afigurou absolutamente sincera, imparcial e coerente, descreveu, de modo concreto, circunstanciado e convincente, todo o comportamento do arguido e respetivas consequências, comportamento esse apenas terminado com a medida de coação de afastamento da residência aplicada nestes autos (cfr. fls. 228 ss), evidenciando relatar os factos ocorridos, na exata medida da sua perceção e recordação dos mesmos, independentemente de corresponderem ou não à versão da acusação e sem qualquer pretensão de empolamento do sucedido. Por isso, as suas declarações mereceram crédito.
As deslocações da GNR ao local na sequência de alguns dos episódios descritos resultaram também dos autos de notícia/aditamentos de fls. 4/5, 4 ss do apenso de inquérito, 190 ss e 196/197.
Relativamente ao episódio sucedido em 29 de fevereiro de 2020, à hora de jantar, as declarações da assistente obtiveram sustentação no teor do vídeo junto aos autos em audiência.
As declarações da assistente obtiveram sustentação nos depoimentos das testemunhas V. M., filha do arguido e também ofendida nos autos, e B. J., companheiro desta, que também se referiram às circunstâncias em que foram residir para a habitação em causa e ao comportamento adotado pelo arguido, na parte por si presenciada, em moldes, em termos gerais, concordantes com o relato efetuado pela assistente, evidenciando também relatar os factos ocorridos, na exata medida da respetiva perceção e recordação dos mesmos.
As consequências do comportamento do arguido na pessoa da sua ex-mulher resultaram das declarações da assistente, que as vivenciou, e dos depoimentos das testemunhas V. M. e B. J., que observavam o estado em que a mesma se encontrava, e, bem assim, das regras da experiência comum, considerando a concreta atuação do arguido.
As consequências do comportamento do arguido na pessoa da sua filha, resultaram do depoimento da testemunha V. M., que as vivenciou, das declarações da assistente e do depoimento da testemunha B. J., que observavam o estado em que a mesma se encontrava, e, bem assim, das regras da experiência comum, considerando a concreta atuação do arguido.
O arguido, admitindo ter regressado à residência em causa em novembro de 2019, referiu que o fez na sequência do acordado, aí fazendo vida de casal com a C. S., dormindo, inclusive, no mesmo quarto. Negou a prática dos factos e também o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, referindo mesmo nunca ter estado embriagado no período em causa nos autos. Justificou as chamadas da autoridade policial à residência com uma pretensão incriminatória por parte da ex-mulher ou da filha, que não compreende já que sempre se deram bem, atribuindo a situação em que se encontra à intervenção de terceiro no relacionamento.
Tais declarações, porque totalmente contrariadas pela restante prova produzida, não só não convenceram o Tribunal como serviram para reforçar o crédito das declarações e depoimentos que a sua própria versão pretendeu invalidar, evidenciar a credibilidade que o arguido deve merecer (nenhuma) e ainda serviram para demonstrar a falta de interiorização do desvalor da sua conduta.
Os aspetos subjetivos resultaram dos factos objetivos apurados, em conjugação com as regras da experiência comum.
Quanto às condições pessoais, familiares, económicas, do arguido considerou-se o teor do relatório social junto aos autos, do qual também se extraíram outros aspetos pertinentes para a decisão, e as cópias do contrato de trabalho e recibo de vencimento de fls. 419 ss.
As condições pessoais, familiares e económicas, das ofendidas resultaram das declarações da assistente, dos depoimentos das testemunhas V. M. e B. J. e das cópias dos recibos de vencimento de fls. 403 ss.
O passado criminal resultou do certificado do registo criminal junto aos autos e da certidão de fls. 48 ss.
Os factos não provados assim foram considerados por ausência de prova ou por se encontrarem em contradição com os exatos termos provados.

3. Apreciação do recurso
3.1- O recorrente insurge-se contra os factos provados, descritos sob os números 22, 38, 39, 40 e 41 da sentença recorrida, na medida em que, segundo refere, se traduzem na imputação de factos genéricos, vagos e conclusivos, sem localização no tempo. No seu entender, a sentença recorrida “viola de forma contundente o princípio do contraditório e o princípio do processo equitativo, assegurados pelo artigo 32º nº1 e nº5 da Constituição da República Portuguesa, pelos artigos 61º nº1 alínea a) e o artigo 283º, nº3 alínea b), ambos do CPP e pelo artigo 3º nº 3 do CPC” (cfr. conclusão 1ª).
Vejamos se lhe assiste razão.
A questão suscitada pelo recorrente relativa à deficiente descrição e concretização dos factos imputados ao arguido na acusação e/ou na sentença tem sido objeto de apreciação por parte da jurisprudência sobretudo quanto à narração dos factos relativos aos crimes habituais e aos crimes de trato sucessivo, que se caraterizam por as condutas do agente se prolongarem no tempo. Ou seja, situações em que a conduta do agente se repete, com contornos muito semelhantes ou até da mesma forma, por um período considerável de tempo, dificultando o processo da sua memorização por parte daqueles que posteriormente tenham necessidade de relatar os factos em tribunal, com o necessário rigor, o mesmo é dizer, localizando-os no tempo e no espaço, por forma individualizada, especificada e contextualizada. Desta circunstância decorrem naturais dificuldades de prova desses factos, que não podem ser ultrapassadas por via de um menor rigor na narração dos factos, em prejuízo do direito de defesa do arguido.
Assim, a propósito do crime de tráfico de produtos estupefacientes, segundo o Ac. STJ de 15.12.2011, processo 17/09.0TELSB.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt, “Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante deste STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o imputado comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.” No mesmo sentido, vide v.g. Ac STJ de 21.02.2007, processo 06P4341, disponível em www.dgsi.pt.
No que concerne ao crime de violência doméstica, como se refere no Ac. RP de 08.07.2015, processo 1133/13.9PHMTS.P1, publicado em www.dgsi.pt, estamos no âmbito do direito penal, o qual revestindo quanto ao processo natureza acusatória, e sendo regido pelos princípios da tipicidade e da legalidade quanto ao crime impõe particulares exigências ao nível da certeza, da clareza e da precisão e da completude dos actos imputados de tal forma que o arguido acusado deles se possa eficazmente defender, e daí que a própria norma processual impunha a narração dos factos imputados e sendo possível “ o lugar, o tempo e a motivação da sua pratica…” artº 283º 1b) CPP, o que é relevante não apenas para eficazmente o arguido/ acusado poder exercer o seu direito de defesa (porque no dia X estava no local Y e não no local A, etc …), mas também para averiguar da ausência de condições de procedibilidade (v.g exercício do dto de queixa) ou factos extintivos do procedimento criminal (v.g. prescrição) ou até da existência de crime.
(…) Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados / imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele.”.
Relativamente à questão em apreço quanto ao crime de violência doméstica, vide ainda, no mesmo sentido, v.g. Ac STJ de 20.02.2019, processo 25/17.7GEEVR.S1; Ac RP de 13.11.2019, processo 109/19.7GAARC.P1 e Ac RC de 17.01.2018, processo 204/10.8GASRE.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Em sentido idêntico, segundo Maia Costa (2) “A narração dos factos deverá ser tanto quanto possível concreta, em termos de tempo e de lugar e, havendo vários agentes, quanto à intervenção particular de cada um, sendo irrelevantes imputações genéricas ou coletivas, a não ser como enquadramento de factos devidamente individualizados”.
A necessidade de concretização e especificação dos factos imputados ao arguido, com indicação das respetivas circunstâncias de tempo e de lugar decorre, desde logo, de serem asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa por imperativo constitucional, cfr. artigo 32º, nº 1 da CRP. Na verdade, o arguido só poderá efetivamente defender-se se puder contraditar as provas que sejam oferecidas contra ele e que o possam prejudicar. Para tanto, o arguido terá de conhecer, com o necessário rigor, os factos que lhe são imputados, descritos de forma a que não subsistam dúvidas no seu espirito sobre qual o “pedaço de vida” em discussão. Pois pior do que não poder defender-se é, à semelhança de um processo tipo kafkiano, não saber do que defender-se.
Todavia, do acima transcrito nº3 al. b) do artigo 283º do CPP, quanto aos factos que devem constar da acusação e/ou sentença, decorre não ser obrigatória a indicação do lugar e da data dos factos, da motivação e do grau de participação do agente, e das circunstâncias relevantes para a determinação da pena. Com efeito, como decorre expressamente da letra da lei, tais indicações apenas serão de efetuar no caso de ser possível.
Porém, impõe-se que “a indicação os limites temporais da ação se mostrem suficientemente demarcados, adstritos a um concreto período de tempo, circunstância que conjugada com a descrição dos atos integrantes da atividade, dos respetivos intervenientes e local onde ocorreram não conduz a uma compressão inadmissível do exercício dos direitos de defesa do arguido ou da sua posição processual, em suma posto que transpareça devidamente enquadrada pelos demais elementos na norma referidos e que em caso de dúvida sustentada sobre a concreta data do «evento», mostrando-se tal relevante, nomeadamente, mas não só, para efeitos de prescrição, adopte o tribunal a posição [fáctica] que menos prejudica, ou dito de outro modo, mais beneficia o agente do crime”, cfr. Ac RC de 25.02.2015, processo 369/13.7GAMGL.C1, disponível em www.dgsi.pt
Nesta ordem de ideias, no âmbito penal, o nosso ordenamento jurídico acolheu o princípio do processo justo e equitativo, que por imposição constitucional decorre dos artigos 20º, nº 4 e 32º, nº 1 e 5 da CRP, consubstanciado em princípios fundamentais do processo penal, como seja o contraditório, do acusatório e da igualdade de armas, consagrados no CPP e em instrumentos de direito internacional, cfr. v.g. artigo 6º da CEDH, que fazem parte do direito português, cfr. artigo 8º da CRP.

No caso vertente os factos provados sob os números 22, 38, 39, 40 e 41 da sentença recorrida contra os quais o recorrente se insurge, têm a seguinte redação:
22. Em data não apurada do referido período temporal, à noite, no interior da referida residência, o arguido disse à V. M. que iria incendiar o seu carro; a V. M., com receio, passou a estacionar o carro num parque distante da residência.
38. Em data não apurada, mas anterior a 04 de março de 2020, cerca das 8h00, quando C. S. se encontrava na garagem da residência, no interior do veículo automóvel, acompanhada do filho D. J., preparada para se ausentar da habitação, o arguido apareceu no local e fechou a porta da garagem, impedindo a C. S. de sair.
39. Quando C. S. saiu do veículo para voltar a abrir o portão, o arguido fechou a porta do carro e colocou-se à frente da mesma, impedindo-a de entrar no veículo.
40. Tal situação apenas terminou após a intervenção de B. D., que segurou o arguido, o que possibilitou que C. S. se ausentasse da habitação no veículo.
41. Cerca de cinco vezes, quando C. S., acompanhada do filho D. J., pretendia sair de casa para trabalhar aos fins de semana, o arguido ia atrás dela para a garagem, dizendo “não vais nada puta”, “não vais trabalhar para lado nenhum”, “e levas o menino para quê?”, “deixa o menino em casa sua cabra”, tendo fechado o portão da garagem, pelo menos, numa outra ocasião distinta da supra descrita.
Ao contrário do que defende o recorrente, os factos supra descritos encontram-se devidamente localizados no tempo e no espaço, não podendo suscitar a mínima dúvida, designadamente no arguido, quanto à imputação que lhe é feita.
Efetivamente, o arguido, depois de ter sido condenado no processo nº 3/18.9GEBRG, por sentença transitada em julgado em 19.10.2018, pela prática de um crime de violência doméstica, em que foi ofendida C. S., sua ex esposa (cfr. ponto 4º dos factos provados da sentença recorrida), nos presentes autos foram-lhe imputados factos, que vieram a ser considerados provados e pelos quais foi condenado pela prática de dois crimes de violência doméstica em que são ofendidas a indicada C. S. e a sua filha V. M., por factos ocorridos entre o Natal de 2019 e o dia 12 de março de 2020, na habitação sita na Rua ..., nº …, ..., por eles reocupada em novembro de 2019.
Assim, os factos descritos sob o ponto 21, ocorreram entre o Natal de 2019 e o dia 12 de março de 2020, com exceção do período que o arguido se deslocou a França (cfr. ponto 17). Outrossim, os factos vertidos nos pontos 38, 39, 40 e 41 tiveram lugar durante o mesmo espaço temporal até 4 março de 2020. Ou seja, num período de tempo de cerca de cerca de dois meses e meio, sempre no interior da referida residência, sendo explicáveis por na altura o arguido se encontrar diariamente alcoolizado (cfr. pontos 16 e 21).
Acresce que os factos imputados ao arguido e considerados como provadas não são genéricos, vagos e conclusivos.
Com efeito, relativamente aos factos provados descritos sob os números 38, 39 e 40, a identificação do veículo automóvel, designadamente através da respetiva matricula, no contexto dos referidos factos apresenta-se como sendo irrelevante. Pois que se refere inequivocamente ao veículo automóvel utilizado pela ofendida C. S..
No que se refere ao número das ocasiões em que o arguido procedeu da forma descrita no ponto 41 dos factos provados, temos que se trata do número mínimo apurado. Ou seja, de um número em que, na ausência de prova cabal sobre o número exato em que o arguido assumiu tal procedimento, se considerou ter o arguido seguramente atuado.
Por conseguinte, no caso em apreço, não se vislumbra como é que possam ter sido violadas as garantias de defesa do arguido, designadamente o princípio do contraditório e, com isso, o princípio do processo justo e equitativo. Donde decorre não assistir razão ao recorrente quanto à versada questão.
3.2- O recorrente questiona a qualificação jurídica dos factos efetuada na sentença recorrida como integrando a prática, em autoria material, do crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 als. a) e d) e nº 2 al. a) do CP por as ofensas não assumirem gravidade bastante.

Em síntese, segundo o recorrente, verifica-se que:

“Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano” (conc. 15ª).
“Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo” (conc. 16ª).
“O que no caso sub judice não se verifica: tanto pela situação de independência económica, o número de elementos adultos que viviam na residência (duas mulheres e um homem adultas)” (conc. 17ª).
“Note-se que tanto a C. S., como a V. M. (juntamente com o companheiro B. D.), apesar dos rendimentos que auferem, continuaram todos a residir na casa onde alegadamente viviam com medo e com ansiedade” (conc. 18ª).
“Entende pois o Recorrente que eventuais episódios que consubstanciam o crime de injúria ou o crime de ameaça não se transmudam em violência doméstica, apenas por serem dirigidos ao ex cônjuge e filha” (conc. 19ª).

Comete o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 do C. Penal “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de um a cinco anos de prisão, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”.
2. No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
é punido é punido com pena de dois a cinco anos.”
O crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º do C. Penal foi introduzido no C. Penal pela Lei nº 59/2007, de 04.09, agora a par do crime de maus tratos (artigo 152º - A do C. Penal).
No crime de violência doméstica, tal como acontecida no tipo legal que o antecedeu, ou seja, o crime de maus tratos, “…o bem jurídico diretamente protegido é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental; e bem jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afetem a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”, cfr. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 2ª edição, 2012,Tomo I, pág. 512
A ratio do tipo não está, pois, na proteção da comunidade familiar ou conjugal, (…), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”, cfr. Taipa de Carvalho, ob. e loc. cit..
No mesmo sentido vide Ac. STJ de 05.11.2008, in www.dgsi.pt, processo 08P2504 “o bem jurídico protegido nesta incriminação, tendo em conta até a sua inserção sistemática no Título I do CP (“Crimes contra as pessoas”), é a pessoa do cônjuge (ou equiparado), a sua integridade física, a sua saúde e a sua dignidade, enquanto pessoa humana, e não a instituição familiar. Na verdade, da descrição típica não consta qualquer referência que possa induzir a preocupação do legislador com a família, ou o ambiente familiar. É certo que a punição do cônjuge infrator poderá contribuir para a pacificação familiar, mas também poderá suceder o oposto. Em qualquer caso, serão efeitos reflexos ou laterais da tutela penal, pois é óbvio que a preocupação do legislador, neste preceito, é o cônjuge-vítima, a sua saúde física ou psíquica, a sua dignidade como pessoa.(3) É um crime contra as pessoas, não um crime contra a família”.
Acresce que, tal como se refere no Ac. RP de 28.09.2011, in www.dgsi.pt, processo 170/10.0GAVLC.P1No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima”.
As condutas previstas e punidas neste preceito são de várias espécies: maus tratos físicos, ou seja, ofensas corporais simples, maus tratos psíquicos, isto é, humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradas em si crime de ameaça.
Antes da alteração empreendida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, além da específica relação que intercedesse entre o agente e o sujeito passivo, nos casos em que as condutas daquele configurassem a prática de ilícitos como os de ofensa à integridade física, ameaças e injúrias, o que determinava a verificação do tipo legal de crime de maus tratos era a reiteração de tais condutas, sendo que, em tais circunstâncias, entre aqueles ilícitos e o tipo legal de crime de maus-tratos (inexistia então previsão legal de crime de violência doméstica) intercedia uma relação de especialidade, aplicando-se apenas a punição própria deste último.
Porém, discutia-se a questão de saber se uma conduta isolada mas grave poderia ou não integrar o tipo legal de crime de maus tratos.
Atualmente mantém-se a referida relação de especialidade entre os crimes de violência doméstica e de maus tratos, de um lado, e crimes como os de ofensa à integridade física, ameaças e injúrias, de outro.
Todavia, a reforma penal veio consagrar a orientação segundo a qual a verificação dos crimes de violência doméstica e de maus tratos não exige a reiteração de condutas, sendo suficiente a ocorrência de “um único ato ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor da ação e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/04/2010, em www.dgsi.pt, processo nº 13/07.1GACTB.C1.
No caso vertente, na situação retratada na factualidade considerada como provada estão em causa factos ocorridos durante um período de um pouco mais do que dois meses, ou seja, desde o Natal e 2019 até 4 de março de 2020 período de tempo em que o arguido e as ofendidas habitaram a mesma residência sita na rua ..., nº ….
No aludido espaço temporal, as ofendidas (ex esposa e filha do arguido que se encontrava grávida) foram alvo de ameaças, injúrias e de provocações, sendo que a ofendida ex esposa do arguido foi ainda alvo de uma ofensa à integridade física, as quais pela sua gravidade objetiva, mas sobretudo pela sua reiteração e pelo seu prolongamento no tempo, atentam de forma grave, a integridade física, a honra, e a liberdade de ação das ofendidas, podendo aqui falar-se de lesão ou de perigo de lesão especialmente desvaliosa para a sua saúde física ou psicológica, em particular desta última.
No entender do recorrente, a violação do bem jurídico tutelado terá de ser de tal forma grave que “a violência desenvolvida pelo agente sobre a vítima redunde num abuso de poder daquele e numa situação de degradação e humilhação desta”. E de facto assim deverá ser, o que no caso vertente indiscutivelmente se verifica.
Porém, pese embora seja decisivo para o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica uma configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima, a qual normalmente ocorre quando aquele se encontra em situação de domínio e controlo, a verdade é que esta situação de domínio e controlo não tem necessariamente de existir.

No caso vertente, aquando da prática dos factos, o arguido não detinha uma situação de completo domínio e controlo sobre as vítimas. Porém, ao contrário do sustentado pelo recorrente a propósito dos rendimentos auferidos pelas vítimas, não podemos olvidar que foram questões de natureza económica (cfr. pontos 9 e 10 dos factos provados) que conduziram a que aquelas tenham aceitado regressar à residência da Rua ..., nº …, onde vieram a ocorrer os factos e seguramente a aí permanecer não obstante a sua ocorrência.
A factualidade provada, considerada na sua globalidade, revela uma reiteração e intensidade bastantes para conformarem um modelo de comportamento revelador de uma situação de aviltamento da dignidade das ofendidas por parte do arguido.
Nesta conformidade, somos levados a concluir no sentido de que os factos provados integram a previsão do tipo legal de crime de violência doméstica.
3.3- O recorrente suscita o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão do nº 2 al. a) do artigo 410º do CPP, em virtude de o tribunal a quo não ter logrado provar o dolo do tipo legal de violência doméstica.
O aludido vício é um vício de confeção da decisão, o qual terá de resultar do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. E significa que os factos são insuficientes para justificar a solução de direito ou o tribunal não esgotou os seus poderes de investigação sobre o objeto do processo tal como se encontra definido pela acusação, contestação e dos factos que resultem da discussão da causa, em conformidade com o disposto no artigo 368º, nº 2 do CPP.
Por outras palavras, como dizem Simas Santos e Leal Henriques, “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação; no cumprimento do dever de descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do art.º 340.º do Código de Processo Penal, o tribunal podia e devia ter ido mais longe; não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa, cfr. Código de Processo Penal Anotado, pág. 738, parafraseando o acórdão do STJ de 99/06/02, processo n.º 288/99”.
Ora, quanto à questão suscitada, pelo recorrente, como bem refere Taipa de Carvalho a propósito do crime de violência doméstica, ob. cit., pág. 520, “Este crime exige o dolo. É necessário o conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica, e o conhecimento e vontade da conduta (caso, p. ex., das ofensas sexuais) e do resultado (caso, p. ex., das ofensas corporais), consoante os comportamentos subsumíveis ao âmbito teleológico-normativo do artigo 152º configurem tipos de crime formais ou materiais”.

No caso vertente emerge dos factos provados da sentença recorrida, nomeadamente, que:
“45. O arguido, por força dos atos descritos, causou a C. S. sofrimento ao nível físico e psíquico, humilhação, nervosismo, constrangimento, desgosto e medo, o que lhe causou instabilidade emocional permanente e se refletiu na sua vida do dia-a-dia.
46. O arguido causou a V. M. sofrimento psíquico, humilhação, nervosismo, constrangimento, desgosto e medo, o que lhe causou instabilidade emocional permanente e se refletiu na sua vida do dia-a-dia.
47. O arguido agiu com plena consciência de que não lhe era permitido atingir, como fez, a integridade física e psíquica da sua ex-mulher e a integridade psíquica da sua filha que se encontra grávida, e a respetiva liberdade.
49. O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que as condutas eram proibidas e punidas pela lei penal como crime.”.
Em face dos factos acima transcritos, na fundamentação da sentença recorrida referiu-se que “Provou-se que o arguido agiu com plena consciência de que não lhe era permitido atingir, como fez, a integridade física e psíquica da sua ex-mulher e a integridade psíquica da sua filha que se encontra grávida, e a respetiva liberdade; agiu de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que as condutas eram proibidas e punidas pela lei penal como crime.
Preenchido, também, se mostra o elemento subjetivo do tipo, tendo o arguido atuado com dolo direto (art. 14.º, n.º 1 do CP).”

Assim, quanto à questão em apreço, sem mais delongas, somos levados a concluir pela verificação do elemento subjetivo do tipo legal de crime de violência doméstica, o mesmo é dizer pela manifesta falta de razão do recorrente.

3.4- O recorrente suscita ter ocorrido violação do princípio in dubio pro reo, porquanto “Do conjunto da prova produzida e tendo em atenção as regras da experiência comum, restem dúvidas sobre o momento em que se verificaram dos factos em análise nos pontos 22, 38,39, 40 e 41, e as circunstâncias que rodearam a conduta do recorrente, essas dúvidas teriam sempre e necessariamente de aproveitar ao recorrente” (conc. 21ª).

A invocação por parte do recorrente do princípio do in dubio pro reo (3) carece totalmente de sentido.
O aludido princípio, previsto no artigo 32º, nº 2 2ª parte da CRP, tem o significado de que o juiz quando não tiver a certeza sobre a ocorrência de factos relevantes que prejudiquem o arguido, e subsistir a dúvida, deverá decidir em favor do arguido (4).
Mas, nesse caso, terá de ser uma dúvida razoável, inultrapassável, que impeça a convicção do tribunal (5).
Como é sabido, em processo penal não existe um ónus da prova que impenda sobre os sujeitos processuais, devendo o tribunal investigar autonomamente o caso submetido a julgamento.
Nas palavras de F. Dias (6) “À luz do princípio da investigação, bem se compreende, efetivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (…) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam considerar-se como «provados». E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir todas as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova (…) tem de ser sempre valorado a favor do arguido”.
A violação do in dubio pro reo ocorre, nomeadamente, quando o tribunal tendo ficado com dúvidas sobre factos relevantes e, mesmo assim, tenha decidido contra o arguido, pelo que, nesta hipótese - como tem sido salientado pela jurisprudência, nomeadamente, do STJ (7) enquanto tribunal de revista - tal como os vícios da sentença do artigo 410º do CPP, o estado de dúvida do julgador terá de resultar do texto da sentença, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, sendo o caso suscetível de configurar erro notório na apreciação da prova do nº 2 al. c) do artigo 410º do CPP.
Mas, a violação do princípio do in dubio pro reo pode ser analisado em duas perspetivas consoante o estado de dúvida que se considere relevante, ou seja, a dúvida subjetiva sentida pelo tribunal, ou a dúvida em sentido objetivo, não se exigindo, neste caso, a dúvida subjetiva ou histórica, para que possa ocorrer a sua violação (8).
Neste último sentido (dúvida em sentido objetivo), que é em nosso entender o claramente perfilhado pelo legislador, ocorre violação do princípio do in dubio pro reo na hipótese de o tribunal recorrido considerar como provados factos relevantes desfavoráveis que prejudiquem o arguido relativamente aos quais, numa análise racional, objetiva e criteriosa da prova, se impunha que tivesse dúvidas inultrapassáveis.
Por isso, diferentemente do que sucede no caso do STJ enquanto tribunal de revista, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, cfr. artigo 428º do CPP. E, sendo assim, mesmo que a violação do princípio in dubio não resulte do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, enquanto erro notório na apreciação da prova da al. c) do n.º2 do artigo 410.º do C.P.P., pode a mesma ser detetada no âmbito de impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Nesta conformidade, faz todo o sentido afirmar-se que pode acontecer que o tribunal recorrido considere, expressa ou implicitamente, não ter tido dúvidas, quando deveria tê-las, (9) ocorrendo, neste caso, um vício na formação da convicção do tribunal. Nesta hipótese, deverá a questão ser a analisada no âmbito de uma eventual violação do princípio da livre apreciação da prova do artigo 127º do CPP (10), tendo presente, nomeadamente, a possibilidade de violação das regras da experiência comum, isto evidentemente caso tenha sido impugnada, por forma ampla, a matéria de facto.
No caso vertente - em que foi impugnada, nos termos sobreditos, a matéria de facto – o tribunal recorrido não teve dúvidas, nomeadamente, quanto aos factos provados 22, 38, 39, 40 e 41 da sentença recorrida indicados pelo recorrente. A simples leitura da fundamentação de facto da sentença recorrida é clara a este propósito, tendo o tribunal recorrido explicado e evidenciado, as razões porque se convenceu da ocorrência desses factos. Ou seja, em função de juízos de normalidade, segundo as regras da experiência comum, donde resulta não ter sido violado o princípio invocado do in dubio pro reo.
Em síntese, a decisão recorrida está devidamente fundamentada, tendo sido claramente explicitados, sendo por isso perfeitamente percetíveis, os motivos da convicção alcançada pelo tribunal.
Por conseguinte, também quanto à questão em apreço não assiste razão ao recorrente, pelo que o presente recurso improcede na sua totalidade.

III- Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo do arguido, com taxa de justiça que se fixa em 4 Ucs - artigo 513º do CPP e artigo 8º, nº 9 do RCP e tabela III anexa ao referido código.
Notifique.
Guimarães, 05.07.2021
(Texto integralmente elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários, (artigo 94º, nº 2 do C. P. Penal).

(Armando da Rocha Azevedo - Relator)
(Clarisse Machado S. Gonçalves - Adjunta)



1. De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
2. In Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 992.
3. Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519, “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
4. Este princípio restringe-se ao domínio da apreciação da prova, constituindo um limite ao princípio da livre apreciação da prova, cfr. Ac STJ de 27.05.2010, processo 18/07.2GAAMT.P1.S1, relator Raúl Borges; e Ac. STJ de 12.03.2009, processo 07P1769, relator Soreto de Barros, ambos acessíveis em www.dgsi.pt
5. A dúvida que leva o tribunal a decidir “pro reo” tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda uma dúvida que impeça a convicção do tribunal, cfr. Cristina Líbano Monteiro, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, 1997, pág. 51.
6. In Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2004, pág. 213.
7. Assim, vide, v.g., Ac STJ de 12.03.2009, processo 07P1769, relator Soreto de Barros; e Ac STJ de 14.07.2010, processo 149/07.9JELSB.E1.S1, relator Raúl Borges, ambos publicados em www.dgsi.pt
8. Cfr Ac RL de 07.05.2019, processo 485/15.0GABRR.L2-5, relator. Jorge Gonçalves; Ac RE de 13.09.2016, processo 89/15.8GTABF.E2, relator António Latas; Ac RE de 30.01.2007, processo 2457/06-1, relator António Latas, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
9. Note-se que, neste caso, trata-se de uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito, mesmo que de revista alargada. Neste sentido vide Ac STJ de 12.03.2009, processo 07P1769, relator Soreto de Barros, disponível em www.dgsi.pt
10. Cfr. Ac. STJ de 05.07.2007, proc. 07P22279, rel. Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt