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HERANÇA JACENTE
ACEITAÇÃO TÁCITA
PERSONALIDADE JURÍDICA
FALTA
VÍCIO INSANÁVEL
Sumário
1. A figura da herança jacente designa o património da pessoa falecida durante o período de crise que decorre entre o chamamento do sucessível e a aceitação efectiva da herança ou legado, ou seja, entre o momento da vocação sucessória e a devolução efectiva dos bens e dos deveres que integram a herança. 2. A aceitação da herança jacente é um negócio jurídico unilateral, não receptício e singular, traduzido na vontade do sucessível adquirir, efectivamente, a herança, estando, por isso, sujeita aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos (art. 236.º, n.º 1, do CC); 3 (...) o que significa que os comportamentos do sucessível têm que criar uma situação que permita concluir, com grande probabilidade, que aceitou a herança, de acordo com o sentido que, segundo os ditames da boa fé e à luz das regras da experiência comum, da lógica das coisas, dos usos sociais, daquilo que é normal acontecer, deles inequivocamente retiraria o homem médio, o bom pai de família, medianamente inteligente e capaz. 4. Assim, deve considerar-se existir aceitação tácita da herança num caso em que, sucessivamente: a) por morte da de cujus, foi realizada escritura de habilitação de herdeiros; b) as herdeiras identificadas naquela escritura liquidaram a totalidade de um mútuo celebrado entre a de cujus e uma instituição bancária; c) tendo a de cujus entregado à pessoa com quem mantinha uma relação amorosa, a quantia que lhe havia sido entregue pelo banco no âmbito do mútuo referido em b), para aquisição, por essa pessoa, de um veículo automóvel, é instaurada contra a dita pessoa acção na qual se pede a sua condenação na devolução de parte daquela quantia. 5. A falta de personalidade judiciária não tem remédio no processo, não pode ser suprida, logo, a intervenção activa da “herança jacente” quando os respectivos interessados se encontrem determinados e tenham aceitado a herança, não é remediável através da intervenção dos herdeiros ou do cabeça de casal, acarretando inevitavelmente a absolvição do réu da instância.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I - RELATÓRIO[1]:
Herança Aberta pelo óbito de MG, «representada pela sua filha Cabeça de Casal, BV», instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra RS, alegando, em suma, que o réu e MG mantinham, à data do falecimento desta, uma relação de namoro.
No âmbito dessa relação, MG decidiu ajudar o réu na aquisição de um veículo automóvel.
Uma vez que o réu não dispunha de capacidade económica para aquisição do veículo, e nem sequer para contrair um empréstimo bancário para o efeito, foi MG quem, no dia 17 de fevereiro de 2016, contraiu tal empréstimo junto do MB, no montante de € 19.587,27, a reembolsar em 96 prestações mensais no valor de € 227,94 cada uma.
Concedido tal empréstimo a MG, esta transferiu para o réu, no dia 22 de fevereiro de 2016, a quantia de € 18.400,00, comprometendo-se este a transferir mensalmente para aquela a referida quantia de € 227,00.
O réu apenas pagou a quantia de € 1371,76.
Após a morte de MG, foi liquidada a totalidade do mútuo bancário que lhe foi concedido pelo MB, em montante que ascendeu a € 19.255,11, quantia que o réu não restituiu à herança aberta por óbito daquela.
A herança autora conclui assim a petição inicial: «Nestes termos, nos melhores de Direito e com o mui Douto suprimento de V. Exa., deve a presente acção ser julgada procedente por provada, reconhecendo-se o direito da Autora, sendo, em consequência: a) O Réu condenado a restituir à Autora a quantia de 19.255,11€ por conta de empréstimo por esta contratado e liquidado para benefício exclusivo do R., acrescida de juros civis vencidos calculados nesta data na cifra de 2.808,11€ e aqueles que se venham a vencer até pagamento integral; b) Subsidiariamente o Réu condenado a restituir à Autora a quantia por esta àquele entregue de 18.400,00€, ao abrigo do princípio geral do enriquecimento sem causa, acrescida de juros civis vencidos calculados nesta data na cifra de 2.839,15€ e aqueles que se venham a vencer até integral pagamento; c) O Réu condenado no pagamento de custas processuais, de parte, procuradoria condigna e demais encargos passíveis de ressarcimento, nomeadamente aqueles afectos ao funcionamento do Tribunal ou à condição da Autora, tal como decorre do Regulamento das Custas Processuais; d) O Réu condenado em eventual sanção pecuniária compulsória, no valor de 250,00€ a prestar à Autorapor cada dia deatraso em relação ao prazo eventualmente fixado para cumprimento das obrigações a que venha a ser condenado, considerando o histórico injustificado de incumprimento adstrito à sua conduta.»
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Regularmente citado, o Réu apresentou contestação, a qual, por despacho de 8 de setembro de 2020, veio a ser desentranhada por intempestiva.
Por despacho de 13 de outubro de 2020 foram considerados provados os factos alegados na petição inicial, nos termos do art. 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[2].
Notificadas as partes nos termos e para os efeitos do n.º 2 do mesmo artigo, tanto a autora como o réu apresentaram alegações.
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Apresentadas as alegações, a senhora juíza a quo, no mesmo momento processual, proferiu:
- em sede de questão prévia, decisão pela qual julgou improcedentes as exceções de dilatórias consistentes na «falta de personalidade judiciária e ilegitimidade activa»;
- sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte: «Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a acção e, em consequência: a) Declara-se a nulidade por inobservância da forma legalmente prevista, do mútuo celebrado entre a Autora e o Réu; b) Condena-se o Réu a restituir à Autora a quantia de € 17.883,35 (dezassete mil oitocentos e oitenta e três euros e trinta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legalmente prevista, calculados desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento. c) Custas a cargo de ambas as partes de acordo com o decaimento, fixando-se 95% para o Réu e 5% para a Autora – cfr. art. 527º CPC. d) Valor da causa – € 22.063,00 (vinte e dois mil e sessenta e três euros).»
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Inconformado, o réu interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações: «1) O art. 567º do CPC, sob a epígrafe efeitos da revelia, estabelece o seguinte: (...). 2) Nos termos do nº 1 deste artigo, “consideram-se confessados” os factos alegados pelo autor. Trata-se, portanto, de prova (os factos ficam provados em consequência do silêncio do Réu) e, aparentemente, duma ficção (ficciona-se uma confissão inexistente, equiparando os efeitos do silêncio do R. aos da confissão, de que tratam os arts. 352º e ss., do CC). 3) De facto, fala-se tradicionalmente de confissão ficta (ficta confessio) para designar o efeito probatório extraído do silêncio da parte sobre a realidade dum facto alegado pela parte contrária, seja mediante a pura omissão de contestação, seja mediante a não impugnação desse facto, em contestação ou outro articulado apresentado, em inobservância do ónus de impugnação (cfr. Prof. Lebre de Freitas e Drs. A. Montalvão Machado e Rui Pinto, no CPC Anotado, Vol. 2º, págs. 266-267). 4) Observam ainda estes autores, na anotação 4ª ao art. 484º (art. 567º do NCPC): “Considerarem-se os factos alegados pelo autor como confessados não implica que o desfecho da lide seja, necessariamente, aquele que o demandante pretende, porque o juiz deve, seguidamente, julgar a causa aplicando o direito aos factos admitidos.” 5) Para designar esta circunscrição do efeito cominatório da revelia aos factos usa a doutrina a expressão efeito cominatório semi-pleno, em oposição ao efeito cominatório pleno. 6) “(…) Nos processos cominatórios semi-plenos, apesar de os factos alegados pelo autor se considerarem admitidos, o juiz fica liberto para julgar a ação materialmente procedente (como se admite que seja a hipótese mais vulgar), mas também para se abster de conhecer do mérito da causa e absolver o réu da instância (quando verifique a falta insanável de prossupostos processuais), para julgar a ação apenas parcialmente procedente (quando, por exemplo, o autor tiver formulado dois pedidos, sendo um deles manifestamente infundado), para a julgar totalmente improcedente (se dos factos admitidos não puder resultar o efeito jurídico pretendido) e até para reduzir aos justos limites determinada indemnização peticionada (art. 566º/2 CC)” – (cfr. Ob. Cit., Vol. 2º, págs. 268-269). 7) Resulta, assim, desta disposição legal que não tendo o Réu contestado – e tendo sido ou devendo considerar-se regularmente citado – consideram-se confessados os factos articulados pelo Autor e é em seguida proferida sentença, julgando a causa conforme for de Direito, a causa, não obstante se considerarem confessados os factos articulados pelo Autor, tem de ser julgada conforme for de Direito. 8) Mas uma sentença deve obedecer, na sua elaboração, ao estatuído no nº3 do art. 607º do CPC, que manda discriminar os factos que o julgador considera provados, o que implica naturalmente uma prévia seleção dos factos articulados pelo Autor. Só depois se pode julgar a causa conforme for de Direito. 9) No caso dos autos, a PI contém 45 artigos e nem todos contêm apenas factos. 10) Impunha-se então a discriminação dos factos que o juiz considera provados, pois, só dessa forma é possível sindicar tal decisão, em sede de recurso, ainda que a matéria de facto não tenha sido impugnada (cfr. art. 712º do CPC), bem como proceder à aplicação da regra da substituição do tribunal recorrido, sendo caso disso (cfr. art. 715º do mesmo CPC), não devendo negligenciar-se que o Réu revel, bem como lembra Abílio Neto (CPT Anotado, 3ª Ed. 2002, pág. 144), continua a ser afinal o destinatário da decisão e deve saber quais os factos tidos por relevantes e que estiveram na base da sua condenação (cfr. Ac. Rc de 20.05.2004, proc. 697/04). 11) Ocorre, deste modo, a causa de nulidade da sentença, prevista no nº 1 al. b) do art. 615º, segundo o qual “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. 12) Conforme o descrito, o ponto 3 da matéria dada como provada, não poderia, não obstante o efeito cominatório da revelia, dar como provado um facto (aquisição de uma viatura), cuja prova, por se tratar de um negócio jurídico de compra e venda, não prescinde de documento escrito, conforme art. 568º/d do CPC. 13) Igualmente, o ponto 4 não poderia ter sido dado como provado, porquanto, se efetivamente a A. decidiu auxiliar o R. na aquisição de uma viatura (ponto 3) e o R. não tinha capacidade financeira para contrair empréstimo bancário e se encontrava desempregado, seria ilógico que tendo a de cujus maior capacidade financeira, aliás, como alega a A., uma situação financeira excelente, de que os 150.000,00 euros da conta de depósito a prazo representavam apenas uma ínfima parte do seu património, resulta, salvo melhor opinião, contra sensual que ao invés da de cujus ter oferecido um veículo automóvel ao R. ou conceder-lhe um empréstimo do capital necessário para aquisição da viatura, fosse ela própria contrair um mútuo bancário, e oferecer um penhor de depósito no montante de 20.000,00 euros, para um período de 8 anos, sem que tivesse a preocupação de garantir que o “desempregado e sem capacidade financeira” lhe assegurasse de alguma forma o cumprimento do mútuo. 14) Ao contrário, a prova documental parece indicar tratar-se de uma liberalidade, não se vislumbrando qual a obrigação do R.. 15) Outro tanto, foi dado como provado que em 17.02.2016, a falecida MG assinou o crédito pessoal (contrato com o nº _____), no entanto, é omitido que no mesmo ato foi outorgado um contrato de penhor de depósito de conta a prazo, facto que, em nosso singelo entendimento, se revelaria fundamental ter sido analisado pelo Mmo. Tribunal a quo, porquanto, dele decorre a prévia deliberação de MG em vida da compensação contratualizada. 16) No entendimento do Recorrente, a contratualização do penhor de depósito bancário no montante de 20.000,00 euros (doc. 2 da PI), implicaria que a sentença condenatória decidisse em sentido oposto ao decidido, porquanto, a quantia mutuada assim garantida, não faria parte do acervo hereditário. 17) Na prática, se não tivesse sido ordenada a extinção do mútuo bancário pela cabeça de casal, 48 horas após o óbito de MG, necessariamente, teria operado a compensação do crédito tal como foi deliberado em vida pela autora da sucessão. Não fora o ato praticado da cabeça de casal, todo este processo seria inexistente, revelando-se o crédito peticionado ao R. nada mais do que uma falsa inexistente questão. 18) Pelo que, o facto dado como provado no ponto 6, igualmente se encontra em contradição com os documentos de prova, não sendo suficiente a alegação de que MG e o R. acordaram a escolha de tal mútuo e as condições, bem como, que o R. assumiu. 19) Da análise dos documentos de prova resulta sim que o R. insistiu com a cabeça de casal, desde maio de 2016 até dezembro de 2016, que lhe fosse facultado o acesso ao contrato de mútuo e às condições que foram acordadas. 20) Na verdade, o R., se tivesse acordado a escolha do mútuo e as exatas condições, não só teria cabal conhecimento dos termos do mesmo, como, não teria interpelado a cabeça de casal nos exatos termos do disposto no doc. 5 da PI. 21) Na verdade, à A. não lhe bastaria alegar que o R. assumiu verbalmente o pagamento de todas as prestações e despesas inerentes, não sendo suficiente a mera alegação para a obtenção do efeito pretendido com a presente ação, conforme art. 568º/c do CPC. 22) Efetivamente, em 22.02.2016, MG transferiu para conta titulada pelo R. a quantia de 18.400,00 euros. Contudo, a matéria de facto provada no ponto 8, já não encontra correspondência com a prova documental junta aos autos, sendo meramente especulativo de que o R. liquidou as duas prestações de março e de abril de 2016, pelo montante de 230,00 euros cada. 23) Na verdade, o R. transferiu a quantia de 230,00 euros no mês de março e no mês de abril de 2016, no entanto, e atendendo ao montante dado como provado, certo é que este não coincide com o montante das prestações a que se obrigou a de cujus. 24) Assim, não só a quantia de 18.400,00 euros não coincide com a totalidade do crédito mutuado (18.900,00 euros), como igualmente, 230,00 euros não coincidem com o valor da prestação de 227,94 euros. 25) No que diz respeito ao ponto 14 da matéria de facto dada como provada, uma vez mais, resulta, em nosso singelo entendimento, o oposto da prova documental na sua globalidade, existindo mais do que um documento de prova em que o R., por mais de 6 meses, solicitou que lhe fosse facultado o contrato de mútuo bancário, o comprovativo do distrato, bem como, insistiu com a cabeça de casal de que a sua mãe lhe havia indicado que o pagamento de todas as suas obrigações se encontravam garantidas por seguro, motivo pelo qual o R. no documento nº 5 da PI tranquiliza a cabeça de casal de que “tudo ficará regularizado”. 26) Salvo melhor entendimento, a indicação à cabeça de casal de que o banco teria de informar que aquele não tinha seguro, porquanto, a de cujus lhe havia dito que sim, e que por via de tal tudo ficaria regularizado, não encontra correspondência com a prova feita de que este sempre assumiu que pretendia regularizar os montantes, antes pelo contrário. 27) Igualmente, o ponto 15 dos factos provados padece de erro, porquanto, o mútuo identificado veio a ser liquidado na totalidade, tendo sido paga a quantia de 19.225,11 euros em 09.05.2016, e não em 09.05.2019. 28) No caso dos autos, o Tribunal a quo considerou que a Autora Herança Jacente alegou e provou, ao abrigo do art. 342º do CC, que efetivamente cedeu a quantia de 18.400,00 euros correspondente ao valor do capital do mútuo bancário por si contraído, com a condição de este pagar à mesma as quantias atinentes às prestações bancárias e demais despesas, concluindo que o R. aceitou e se obrigou às condições elencadas, contudo, sem que esse acordo tivesse sido devidamente formalizado. 29) Por consequência, a sentença ora recorrida considerou que existiu um empréstimo efetuado ao Réu, que esse empréstimo deve ser classificado como um contrato de mútuo, mas porque o empréstimo não foi celebrado por escrito, é nulo por vício de forma. Alega a sentença em crise, que o contrato de mútuo celebrado é nulo, nos termos do estatuído nos arts. 1143º, 219º e 220º do CC. 30) Concluindo que o R. fica constituído na obrigação de restituir à A. a quantia mutuada deduzido o montante já devolvido, nos termos do disposto no art. 289º do CC. 31) Seguidamente, a Douta Sentença em crise coloca a questão de que o montante entregue diretamente pela falecida, corresponde a 18.400,00 euros, erradamente tendo considerado ser este o valor sobrante face ao mútuo celebrado e suas despesas. 32) Todavia, concluiu que não foi este o montante acordado devolver pelas partes, mas sim, que o R. procedesse ao pagamento das mensalidades devidas pelo mútuo bancário, bem como, pelas suas despesas. 33) Em rigor, tendo considerado que o acordo entre as partes é nulo, ao R. apenas poderia ser exigido ao nível dessa nulidade o pagamento que lhe foi entregue, no caso, a quantia de 18.400,00 euros, e não, o correspondente ao mútuo bancário na sua globalidade. 34) Em excesso de pronúncia, a sentença ora recorrida considerou, contudo, que tal questão fosse ultrapassada com recurso ao enriquecimento sem causa. 35) Para o efeito, limitando-se a elencar os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa sem que tivesse sido fundamentado com os factos que legitimariam o preenchimento dos requisitos legais para operar o enriquecimento sem causa. 36) Considerando que o R. ao não cumprir o que acordara (embora por acordo verbal nulo nos termos expostos), e a herança ao ter pago o remanescente devido e demais despesas, num total de 19.255,11 euros, acarretou para o R. o enriquecimento ilícito no montante de 855,11 euros e uma perda correspetiva da herança, ora Autora. 37) Assim, condenando o R. à obrigação de restituir, a título de enriquecimento sem causa, a quantia de 887,11 euros, ou seja, a Douta Sentença de cuja decisão ora se recorre, uma vez mais se revela ininteligível, não se percebendo se afinal o R. é devedor da quantia de 855,11 euros se da quantia de 887,11 euros. 38) De qualquer modo, uma condenação no pagamento de uma quantia que se encontra prescrita, tendo decorrido mais de 3 anos entre o conhecimento do crédito e o seu devedor à data da entrada da ação em juízo. Na prática, o que foi decidido foi de que o Réu foi ajudado pela falecida, que para o ajudar a adquirir um veículo Renault celebrou um contrato de mutuo bancário em seu nome, porquanto beneficiava de melhores condições e poderia excluir do empréstimo a obrigação de celebrar contrato de seguro, o que implicaria que o Réu iria beneficiar de prestações mensais de mais baixo valor. Ora, ao considerar que o empréstimo foi de 18.900,00 euros; que ao Réu foi transferida a quantia de 18.400,00 euros; que o custo total do empréstimo foi de 19.587,27 euros, o Réu, na tese da A., obrigou-se a pagar o valor de prestações sobre quantia que não beneficiou nem lhe foi transferida, obrigou-se a pagar mais do que lhe teria sido transferido e ainda deve ser condenado a pagar despesas de constituição, juros, imposto de selo e comissões, note-se, num empréstimo que foi constituído para o “ajudar”. Com o devido respeito, quem transferiu 18.400,00 euros diretamente ao Réu foi a falecida, e o que foi decidido entre ambos, certamente não seria que este iria pagar integralmente um mutuo contraído pela autora da sucessão, não só por ter esta garantido o pagamento por penhor de depósito de conta a prazo, como porque a assunção na íntegra pelo Réu, contraria frontalmente a tese de que este foi o único beneficiário, que não foi, como ao invés de o ajudar, o estaria a prejudicar em muito. Em abono da verdade material dos factos, o Réu juntou na contestação desentranhada, mas cujos documentos se encontram disponíveis no processo, com o número de registo 25812503 na plataforma Citius, o veículo Renault Mégane referido pela A., foi adquirido pelo preço de 13,500.00 euros, o que revela total antagonismo com a factualidade alegada e provada, constituindo a sua condenação não só uma injustiça, como consubstancia locupletamento pela A. à custa do empobrecimento injustificado imposto ao Réu. 39) Igualmente, a conclusão de que a herança permanece jacente inexistindo a pretendida falta de personalidade judiciária e ilegitimidade ativa, foi erradamente decidida, tendo-se feito errada avaliação dos elementos de prova constantes dos autos e errada aplicação do Direito, desconsiderados atos tácitos inequívocos de aceitação da herança. 40) O Mmo. Tribunal a quo considerou apreciar se “o Réu deve ser condenado na restituição da quantia de € 19.255,11, crescida de juros moratórios à taxa legal, conforme peticionado, ou, subsidiariamente, no pagamento da quantia de € 18.400,00 e respetivos juros moratórios.” 41) Ao decidir como decidiu, a Douta Sentença fez errada aplicação do Direito, proferindo decisão no pedido principal e no pedido secundário, sendo que o primeiro foi por esta considerado procedente. 42) Na verdade, o R. não consegue entender a condenação final por esta não corresponder ao pedido ou pedidos formulados na petição inicial, como considera que a condenação final configura excesso de pronúncia. A douta sentença igualmente omitiu dever de resposta ao pedido formulado pelo R. de ser apreciada uma situação de venire contra factum proprium, tendo a sucessível ordenado em 48h a liquidação total do mutuo bancário, impedida a compensação contratualizada, bem sabendo que o mutuo fora garantido por penhor, o que teria operado e por via da compensação, o saldo final dos depósitos e aplicações da de cujus, a emitir após a habilitação de herdeiros não indicaria o valor do mutuo bancário entretanto extinto por compensação. A sentença recorrida não poderia ter dado provado que a herança liquidou o mutuo, sem que tivesse sido provado que o crédito se encontrava ativo e fora relacionado pela cabeça de casal. Na procedência dos fundamentos do presente Recurso, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que acolha o exposto nas anteriores conclusões, não sendo o Réu condenado a liquidar à A. qualquer quantia que lhe foi entregue a título de liberalidade pela sua então unida de facto. Termos em que se requer a Vossas Excelências, sempre com Douto suprimento, seja ordenada a revogação da Sentença proferida em primeira instância pelo Mmo. Tribunal a quo, por procedência da exceção dilatória da falta de personalidade judiciária da A.; b) Consideradas procedentes as alegações do Recurso e por via de tal revogada a decisão da primeira instância. Assim se decidindo, será necessariamente realizada a acostumada e necessária, JUSTIÇA!» *
Não foram apresentadas contra-alegações.
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II - ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir, sucessivamente:
a) da exceção dilatória consistente na falta de personalidade judiciaria ativa;
b) da exceção dilatória consistente na ilegitimidade ativa;
c) da obrigação do réu restituir a quantia peticionada.
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III - FUNDAMENTOS:
3.1 - Fundamentação de facto:
A sentença recorrida considerou provado o seguinte: «1. O réu namorou com a falecida MG, falecida a 7.05.2016. 2. BV, filha da de cujus, exerce o cargo de cabeça de casal da herança jacente por morte da mesma. 3. Por força da relação amorosa, a Autora decidiu auxiliar o Réu na aquisição de uma viatura. 4. Posto que o Réu não detinha capacidade financeira por se encontrar desempregado para contrair um empréstimo bancário e a Autora tinha maior capacidade financeira, acordaram que fosse esta a solicitar um mútuo para o efeito, em seu nome. 5. A falecida MG assinou, em 17.02.2016, o acordo escrito “Crédito Pessoal – Contrato” com o n.º _____, no montante de € 19.587,27, a pagar em 96 prestações, vencendo-se a primeira em 17.03.2016, no montante de € 227,94 cada. 6. A escolha de tal mútuo e condições foram acordadas entre MG e o Réu, e este assumiu verbalmente o pagamento de todas as despesas e prestações inerentes. 7. MG transferiu em 22.02.2016, para a conta titulada pelo Réu a quantia de € 18.400,00. 8. O Reu liquidou as duas prestações de Março e Abril de 2016, mediante transferência bancária para a conta n.º _____, de que era titular MG, pelo montante de € 230,00 cada. 9. O Réu não procedeu ao pagamento da prestação no mês de Maio de 2016, mês em que a de cujus faleceu. 10. Posteriormente pagou por transferência em Junho e Julho de 2016, a quantia de € 227,94. 11. No mês de Agosto de 2016 pagou por transferência bancária a quantia de € 227,00. 12. Em Setembro de 2016 transferiu a quantia de € 228,88, para pagar o valor em falta nos meses de Junho e Julho. 13. A partir de Setembro de 2016 o Réu deixou de fazer qualquer pagamento para abatimento da quantia, tendo pago o total de € 1.371,76. 14. O Réu sempre assumiu perante a cabeça de casal e terceiros, pessoalmente e por telefone, e por correspondência que pretendia regularizar os montantes. 15. O mútuo identificado supra veio a ser liquidado na totalidade, tendo sido paga a quantia de € 19.225,11, em 09.05.2019, liquidação efectivada a expensas do património da herança. 16. O comprovativo do pagamento da liquidação do mútuo bancário foi entregue ao Réu em data não apurada.»
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3.2 - Mérito do recurso:
3.2.1 - Nota prévia:
(...)
3.2.2 - Da personalidade judiciária da herança aberta por óbito de MG, aqui representada pela cabeça-de-casal, a filha da de cujus, BV
Nos termos do art. 608.º, n.º 1, «sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.». Trata-se de um preceito aplicável aos acórdãos da Relação, por via do disposto no art. 663.º, n.º 2.
Assim, considerando o disposto nos arts. 278.º, 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, importa começar por conhecer da exceção dilatória consistente na falta de personalidade judiciária da herança aberta por óbito de MG, invocada pelo réu nas alegações que apresentou ao abrigo do disposto no art. 567.º, n.º 2, e que a senhora juíza a quo decidiu assim: «(...) A herança jacente goza, nos termos dos artigos 2046.º do Código Civil e 12.º, al. a) do Código do Processo Civil, de personalidade judiciária, cabendo a sua administração, até à sua liquidação e partilha, ao cabeça-de-casal (art.º 2079.º do Cód. Civil), podendo este, nos termos do art.º 2089.º do Cód. Civil, cobrar as dívidas ativas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente. Por seu turno, a herança aceite, ainda que indivisa, pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091.º, n.º 1 do Cód. Civil. A este propósito, cumpre, delimitar três figuras jurídicas distintas: a herança jacente, a herança indivisa e a herança já partilhada. A herança jacente, conforme prescreve o artigo 2046.º, do Código Civil, é aquela que já foi aberta, porquanto já ocorreu o decesso do seu autor, mas ainda não foi aceite ou declarada vaga para o Estado. Por sua vez, a herança indivisa é havida como aquela que já foi aceite pelos sucessores do de cujus, mas que ainda não foi partilhada. A herança indivisa pode ser qualificada como um património autónomo, no sentido de ser um património colectivo, deixando de o ser aquando da aludida partilha, nos termos do disposto nos artigos 2101.º e seguintes, do Código Civil. Neste caso, após a partilha, o património autónomo que constituía a herança indivisa dissolveu-se ou diluiu-se nos patrimónios dos herdeiros do de cuius, passando cada um dos bens que a compunham, a integrar a esfera jurídica patrimonial do herdeiro a que foi respetivamente adjudicado, perdendo, por tal, qualquer ligação à herança. A aceitação da herança – que é um negócio jurídico pode ser expresso ou tácito (cf. artigo 2056.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que, à luz do artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil, “há aceitação tácita quando haja um comportamento do sucessível do qual se deduza, com toda a probabilidade, a intenção de aceitar” (cfr. Jorge Duarte Pinheiro in “o Direito das Sucessões Contemporâneo”, Reimpressão, AAFDL, 2011). Resulta patente em termos doutrinários e jurisprudenciais que apenas a herança jacente e não aceite goza de personalidade judiciária e não a herança aceite e indivisa. Veja-se o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 2186/8.9T8VRL-A.G1, de 24.10.2019: “I- Apenas a herança jacente (a que ainda não foi aceite) goza de personalidade judiciária, e já não a herança indivisa. II - A excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da herança não consente suprimento. III - Para a procedência da excepção importa que à data da propositura da ação existam elementos seguros no sentido de que a herança já foi aceite. IV - A aceitação posterior da herança não pode ter como consequência a absolvição da instância, pois tal implicaria fazer retroagir a perda superveniente de personalidade judiciária à data da dedução da acção. Em tal situação deve fazer-se intervir na acção quem passou a deter personalidade judiciária”. Ora, ocorre aceitação tácita da herança, conforme se afere do art. 217º do Código Civil, quando o sucessível tem comportamentos em face dos quais se conclua que com toda a probabilidade aceitou a herança, devendo tais comportamentos, nos termos do artigo 236º do mesmo diploma, ser aferidos de acordo com os padrões de um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, valendo com o sentido que este pudesse deduzir de tais comportamentos, salvo se o declaratário não puder razoavelmente contar com ele. Tais elementos (comportamentos) devem existir à data da propositura da acção. Na verdade, na situação em apreço não foram invocadas circunstâncias que tornem claro que à data da propositura da acção a herança não se encontrava jacente. A capacidade judiciária deve ser algo de fácil constatação, e a falta de personalidade (e capacidade) judiciária numa situação como a apresentada, impõe uma abordagem cuidadosa e equilibrada. No caso nada nos diz que à data da propositura da ação a herança havia já sido aceite, sendo que a mera habilitação de herdeiros, ou mesmo a nomeação de cargo de cabeça de casal não acarreta automaticamente a aceitação da herança, desacompanhado de factos concretos que induzam à sua aceitação. Veja-se o douto acórdão do STJ de 18.04.2006, processo n.º 06A719: “1) O instituto da aceitação da herança prende-se quer com uma postura íntima do sucessível para com a personalidade e relações com o "de cujus" e também, com mais frequência, com o conjunto de direitos e obrigações inerentes à herança; 2) A aceitação, como manifestação de vontade positiva, pode ser expressa ou tácita, é irrevogável e, sendo expressa não está sujeita à forma exigida para a alienação da herança; 3) Quer os actos de administração, quer o cumprimento de obrigações fiscais em sede de imposto sucessório não implicam aceitação tácita”. Cumpre, desta feita, concluir que a herança permanece jacente, inexistindo a pretendida falta de personalidade judiciária e ilegitimidade activa. Ainda que assim se não entendesse, a jurisprudência tem vindo a considerar uma postura mais aberta, no sentido de “atendendo à filosofia subjacente ao nosso CPC – que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância, tendo em vista o máximo aproveitamento dos actos processuais – não se justificará, em tal situação, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança indivisa que, formalmente, vem indicada como sendo a autora, restando apenas saber se a cabeça de casal tem ou não legitimidade para a propositura da acção e providenciando, em caso negativo pela sanação da sua eventual ilegitimidade e pela intervenção dos demais herdeiros” – acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26.12.2019, processo n.º 1222/16.8T8VIS-C.C1, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, com o n.º 348/18.8T8FND-A.C1, in www.dgsi.pt. Todavia, nos autos, não ressaltando estar-se perante uma herança aceite tal questão de eventual sanação de excepção não se coloca. Improcede, assim, a suscitada excepção de falta de personalidade judiciária e ilegitimidade activa. (...).»
Dispõe o art. 11.º: «1 - A personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte. 2 - Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária.»
Nos termos da al. a) do art. 12.º «têm ainda personalidade judiciária (...) a herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado.»
São três os elementos em torno dos quais a lei fixa os limites da jacência da herança:
- Em primeiro lugar, é necessário que tenha havido abertura da herança;
- Em segundo lugar, exige-se que não tenha havido ainda aceitação mesmo que o herdeiro (chamado) seja conhecido e os bens hereditários se encontrem detidos por ele;
- Por último é essencial que a herança não tenha ainda sido declarada vaga.
Ou seja, diz-se jacente, a herança aberta mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado - art. 2046º do Cód. Civil, ao qual pertencem as disposições legais doravante citadas sem outra menção de origem.
A figura da herança jacente designa o património da pessoa falecida durante o período de crise que decorre entre o chamamento do sucessível e a aceitação efetiva da herança ou legado, ou seja, entre o momento da vocação sucessória e a devolução efetiva dos bens e dos deveres que integram a herança[3].
É pela aceitação efetiva que a herança deixa de estar jacente, assim perdendo a suscetibilidade / capacidade de ser parte.
Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, «por mais próximo que seja o vínculo de parentesco existente entre o “de cujus” e o sucessível chamado, e por mais fortes que sejam os laços de afecto ou de gratidão criados entre um e outro, o chamado só sucederá, como herdeiro ou legatário, se quiser aceitar o chamamento. Há como todos sabem, uma modalidade ou variante da sucessão a que, na doutrina, se dá geralmente o nome de sucessão forçosa ou necessária, mas apenas para significar que o direito à legítima, por parte dos herdeiros legitimários, existe, independentemente da vontade do autor da sucessão - e não para exprimir a ideia de que a legítima se transmite para o seu titular por simples força da lei independentemente da aceitação do chamado.»[4].
Nos termos do art. 2056º, a aceitação pode ser expressa ou tácita (nº1) e a aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro (nº 2).
No entender de Rabindranath Capelo de Sousa, «o facto de não se vislumbrar sequer uma noção de aceitação tácita e os termos com que está redigido o art. 1056.º levam-nos igualmente a concluir que as noções de aceitação expressa e tácita se deverão retirar a partir das noções gerais do art. 217.º do Código Civil. E compreende-se, na lógica do sistema, que a aceitação da herança, e muito menos a expressa, não sejam actos formais, porque são naturais, são a regra e o próprio sistema está interessado em que ela ocorra e o mais rapidamente possível (...). Só que, nos termos gerais, e quer se trate de aceitação expressa ou tácita, se exige uma intenção inequívoca de aceitar a herança ou de a adquirir»[5].
Em conclusão, afirma o Autor, a aceitação, nos termos do art. 217.º, n.º 1, do Cód. Civil, é tácita quando a vontade de aceitar «se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam, sendo a lei aqui especialmente exigente, a ponto de considerar que “os actos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação da herança (n.º 3 do art. 2056.º do CCiv)»[6].
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, «quanto à aceitação tácita, também o Código de 1867, com a tal intuição dos especiais interesses em jogo na clarificação das situações ligadas à consumação da sucessão, restringiu nesta área o conceito de declaração tácita. “É tácita, prescrevia o § 2.º do artigo 2027.º a propósito da declaração de aceitação da herança quando o herdeiro pratica algum facto de que necessariamente se deduz a intenção de aceitar, ou de tal natureza, que ele não poderia praticá-lo senão na qualidade de herdeiro”. E a mesma necessidade de maios exigência na formulação do conceito (de aceitação tácita da herança) se reflete no texto correspondente do Anteprojecto de Galvão Telles, quando no artigo 29.º, 3.º, se dizia que “a aceitação é tácita quando o sucessível pratica algum acto que pressupõe necessariamente a vontade de aceitar e que só poderia realizar na qualidade de herdeiro»[7].
Acrescentam os citados Autores, mais adiante, quanto à aceitação tácita, que «embora implicitamente se satisfaça com a noção geral dada no art. 217.º (...), o art. 2056.º não deixa de adiantar significativamente que não implicam aceitação tácita da herança os actos de administração praticados pelo sucessível. Essa é, aliás, a solução logicamente mais coerente com a disposição do art. 2047.º, ao prescrever que o sucessível chamado à herança, que ainda não tenha aceitado nem repudiado a herança, não está inibido de praticar actos de administração dos bens, dando nitidamente a entender que não é pelo simples facto de tomar as providências dessa natureza, autorizadas por lei, que ele vai ser considerado como aceitante. E compreende-se que assim seja, dada a natural equivocidade desses actos, que tanto podem ter, de facto, na sua raiz a vontade de aceitar o chamamento, como a simples intenção de não deixar perder ou deteriorar os bens da herança»[8].
Catarina Pimenta Coelho salienta, em anotação ao art. 2056.º do Cód. Civil, que «o que normalmente acontece é que o sucessível chamado começa a comportar-se como herdeiro, p. ex., pagando as dívidas da herança, recebendo os rendimentos dos bens da herança, partilhando (se forem vários os sucessíveis) os bens da herança, cumprindo as obrigações fiscais, etc.. O n.º 3 esclarece que a simples prática de atos de administração da herança mexime a tomada de providências de administração urgentes, não implica a aceitação da herança. No entanto, se o sucessível não se limitar a administrar, mas se comportar como verdadeiro proprietário, nomeadamente fazendo seus os frutos, já se afigura existir aceitação»[9].
Em suma, pois, a aceitação tácita terá de obedecer ao requisito do art. 217º, nº 1, do Cód. Civil, isto é, terá de se apoiar em factos que, com grande probabilidade, confirmem a sua existência, o mesmo é dizer, tem de se traduzir em atos inequívocos, sendo, no entanto, suficiente um comportamento que, interpretado segundo a boa fé, com referência aos usos sociais, deixe entender a vontade do sucessível de reter a herança.
A sentença recorrida entendeu que, no caso concreto, nada há que demonstre ter ocorrido a aceitação tácita da herança aberta por óbito de MG.
Com o devido respeito, não podemos concordar com semelhante entendimento, pois, a nosso ver, o processo fornece-nos elementos mais do que suficientes para que se conclua no sentido da aceitação tácita daquela herança.
Desde logo, a escritura pública de habilitação de herdeiros!
Por escritura pública de habilitação de herdeiros realizada no dia 20 de junho de 2016, no Cartório Notarial da _____, BV declarou «que lhe incumbe o cargo de cabeça de casal da herança aberta pelo óbito» de MG, ocorrido no dia 7 de maio de 2016.
Mais declarou «que a falecida não deixou testamento, nem qualquer outra disposição de última vontade, sucedendo-lhe como únicas herdeiras (...), as suas únicas filhas», a própria declarante, BV e LV, menor.
Além disso temos a presente ação, instaurada, repete-se, pela Herança Aberta por óbito de MG, representada pela sua filha, cabeça de casal, BV.
Resulta da petição inicial que após a morte de MG, a cabeça de casal, BV, liquidou junto do MB o empréstimo bancário por aquela ali contraído, cujo montante, segundo é alegado, se destinou a ser entregue ao aqui réu, RS para aquisição, por este, de um veículo automóvel.
No art. 25.º daquela peça processual BV assume-se como herdeira de MG.
Nesta ação é pedida a condenação de RS na restituição da quantia que a falecida MG, alegadamente, lhe entregou para aquisição, por aquele, de uma viatura.
Não se nos afigura existirem grandes dúvidas de que estamos perante factos que, com grande probabilidade, confirmam a aceitação da herança; se se quiser, o comportamento de BV, filha da de cujus, é inequivocamente revelador da aceitação da herança aberta por óbito de sua mãe, da qual é cabeça de casal.
A aceitação da herança jacente é um negócio jurídico unilateral, não recetício e singular, traduzido na vontade do sucessível adquirir, efetivamente, a herança[10].
A aceitação da herança, mesmo a aceitação tácita, está, assim, sujeita aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos, segundo o art. 236.º, n.º 1, do Cód. Civil, onde se encontra consagrada a chamada teoria da impressão do destinatário.
Ou seja, os comportamentos do sucessível têm que criar uma situação que permita concluir, com toda a probabilidade, que aceitou a herança (art. 217.º do Cód. Civil), de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento daquele (art. 236.º do mesmo código).
Na situação sub judice, à luz dos ditames da boa fé e de acordo com as regras da experiência comum, da lógica das coisas, daquilo que é normal acontecer segundo os usos sociais, é inequívoco que o tal homem médio, o bom pai de família, medianamente inteligente e capaz, não deixaria de entender o descrito comportamento de BV, filha da de cujos, como sendo de aceitação da herança aberta por óbito de sua mãe.
O próprio ato de propositura da presente ação, não deixaria, só por si, de ser entendido como de aceitação da herança.
Conforme decidido no Ac. do S.T.J. de 09.07.1991, Proc. n.º 078277 (Beça Pereira), in www.dgsi.pt, «a propositura de acções judiciais, que só um herdeiro pode e tem interesse em instaurar, constitui e implica a aceitação tacita da herança».
Não ocorrendo uma situação de jacência da herança, a «Herança Aberta pelo óbito de MG, «representada pela sua filha Cabeça de Casal, BV» carece a mesma de personalidade judiciária.
Afirma-se na sentença recorrida, que ainda que se entendesse estarmos, não em presença de uma herança jacente, mas, antes, de uma herança já aceite, «a jurisprudência tem vindo a considerar uma postura mais aberta, no sentido de “atendendo à filosofia subjacente ao nosso CPC – que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância, tendo em vista o máximo aproveitamento dos actos processuais – não se justificará, em tal situação, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança indivisa que, formalmente, vem indicada como sendo a autora, restando apenas saber se a cabeça de casal tem ou não legitimidade para a propositura da acção e providenciando, em caso negativo pela sanação da sua eventual ilegitimidade e pela intervenção dos demais herdeiros” – acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26.12.2019, processo n.º 1222/16.8T8VIS-C.C1, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, com o n.º 348/18.8T8FND-A.C1, in www.dgsi.pt.
Conhecedores de tal entendimento jurisprudencial não podemos com o mesmo concordar.
A ação é intentada, sem margens para dúvidas, pela Herança Aberta pelo óbito de MG, «representada pela sua filha Cabeça de Casal, BV».
Conforme refere Castro Mendes, «a personalidade judiciária ocupa um lugar muito especial entre os pressupostos processuais (como a personalidade jurídica entre os “status”): é o pressuposto dos restantes pressupostos processuais subjectivos relativos às partes.»[11].
A falta de personalidade da autora constitui uma exceção dilatória, determinante da absolvição do réu da instância.
A falta de personalidade judiciária não permite que haja qualquer suprimento, ela é irremovível.
Tal como salienta Alberto dos Reis, a falta de personalidade judiciária não tem remédio, não pode ser suprida. produzindo inevitavelmente a absolvição da instância[12].
Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, apos questionarem se a personalidade judiciaria pode ser sanada, afirmam: «Nem no artigo 23.º([13]), onde se trata do suprimento da incapacidade judiciária e da irregularidade da representação, nem no artigo 269.º([14]), onde se prevê o suprimento de um caso típico de ilegitimidade, se faz qualquer referência à possibilidade de sanação da falta de personalidade judiciária. E compreende-se que assim seja, porquanto, ao invés da incapacidade judiciária e da ilegitimidade, a exigência de personalidade judiciária é, em princípio, irremovível. É nomeadamente o caso de a acção ter sido proposta por uma sucursal, agência, filial ou delegação, fora do condicionalismo previsto nos n.ºs 1 e 2 do art. 7.º([15]). Quando assim suceda, pode e deve o juiz, por analogia com o disposto no artigo 24.º([16]), fixar o prazo dentro do qual o administrador principal poderá sanar o vício, intervindo ele na acção e ratificando os actos anteriormente praticados, sob pena de o réu ser absolvido da instância»[17].
No mesmo sentido alinha Abrantes Geraldes, ao afirmar que «detectada a falta de personalidade, se tal falha puder ser sanada, como prevê o art. 8.º do CPC([18]), caberá ao juiz “providenciar pelo suprimento da excepção dilatória (...) e com isso evitar a absolvição da instância. Este regime é aplicável apenas aos casos de falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representações, devendo o juiz ordenar a citação (se respeitar ao sujeito passivo) ou notificação (sujeito activo) da administração principal da sociedade, a fim de evitar, com a sua intervenção, a absolvição do réu da instância (art. 8º). Já a demanda ou a intervenção activa da “herança jacente”, quando os respetivos interessados se encontrem determinados e tenham aceitado a herança, não é remediável através da intervenção dos herdeiros ou do cabeça de casal»[19].
Concorda-se inteiramente com este entendimento, por ser aquele que, como se viu, inequivocamente resulta da lei processual civil portuguesa, presente e passada.
Diga-se, para finalizar, que, ainda que assim não fosse, na situação sub judice sempre seria necessária a intervenção, do lado ativo, de todos os herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de MG, em situação litisconsorcial necessária ativa, ou seja, de BV e de LV, como decorre do art. 2091.º, n.º 1, do Cód. Civil, não sendo, sequer, possível argumentar ser aplicável o art. 2089.º do mesmo código, pois, como bem salienta Cristina Pimenta Coelho, «relativamente à cobrança de dívidas ativas (créditos), a lei teve em conta que o exercício do cargo de cabeça de casal é, por natureza, temporário e desejavelmente de curta duração, pelo que, como regra, não lhe deve caber a tarefa de cobrar as dívidas para com o falecido. Será o herdeiro a quem tais direitos forem atribuídos na partilha que terá o interesse na cobrança das dívidas ativas, não parecendo justo que as despesas decorrentes da mesma sejam suportadas por todos, como acontecerá se for o cabeça de casal a desenvolver tal atividade. Nesta medida, este artigo vem atribuir ao cabeça de casal o poder/dever de proceder a tal cobrança apenas em dois casos: o primeiro prende-se com o facto de haver urgência na cobrança da dívida (p. ex., uma dívida que esteja em vias de prescrição ou em que haja sério receio de que o devedor se coloque em posição de não poder pagar)[20]; o segundo[21] diz respeito a situações em que o devedor pretende, espontaneamente, saldar a sua dívida, não havendo neste caso qualquer razão para que o cabeça de casal não possa aceitar o pagamento»[22].
***
IV - DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, na procedência da apelação, em julgar a «Herança Aberta pelo óbito de MG, representada pela sua filha Cabeça de Casal, BV», destituída de personalidade judiciária, razão pela qual, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 11.º, n.º 1, 278º, al. c), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577, al. c), todos do Cód. Proc. Civil, razão pela qual absolvem o réu da instância.
Custas pela apelada.
Lisboa, 13 de julho de 2021
José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
_______________________________________________________ [1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original. [2] Diploma a que pertencem todos os preceitos que vierem a ser citados sem indicação da respetiva fonte. [3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, p. 68. [4]Código Civil cit., p. 79. [5]Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1993, pp. 28-29. [6]Lições cit., p. 29. [7]Cód. Civil cit. p. 92. [8]Cód. Civil cit. p. 93. [9]Código Civil Anotado, II Vol. (Coord. Ana Prata),Almedina, 2017, p. 968. [10] Diogo Leite de Campos / Mónica Martinez de Campos, in Lições de Direito das Sucessões, Almedina, 2017, p. 121, afirmam que «a aceitação da herança é um direito potestativo, ato jurídico unilateral e não receptício. São-lhe aplicáveis, com algumas modificações, os princípios gerais do negócio jurídico quanto à capacidade, vícios da vontade, etc.». [11]Direito Processual Civil, Vol. II, AAFDL, 1980, p. 13. [12]Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição - Reimpressão, Coimbra Editora, 1982, p. 66. [13] Do C.P.C./61, correspondente ao art. 27.º do C.P.C./13. [14] Do C.P.C./61, correspondente ao art. 261.º do C.P.C./13. [15] Do C.P.C./61, correspondente ao art. 13.º do C.P.C./13. [16] Do C.P.C./61, correspondente ao art. 28.º do C.P.C./13. [17]Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 115-116. [18] Do C.P.C./95-96, correspondente ao art. 14.º do C.P.C./13. [19]Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol., 3.ª Edição, Almedina, 2000, pp. 67-68. [20] Situação que não foi sequer alegada nos autos. [21] Que também não ocorre no caso concreto. [22]Código Civil cit., pp. 997-998.