I- A reclamação constitui expediente jurídico de reacção contra a não admissão de recurso e tem como única pretensão a alteração do despacho de indeferimento.
II- A impugnabilidade da decisão singular do relator do processo é apenas consentida através da reclamação para a conferência. Assim, o regime processual que resulta do disposto nos n.ºs 3 4 e 5 do artigo 652.º do CPC, e dos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 1, in fine e 671.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo CPC, mostra-se inequívoco no sentido de não ser admissível recurso de revista da decisão singular do relator.
I – Relatório
1. AA, invocando o artigo 652.º, nº 3, do Código de Processo Civil (doravante CPC), veio requerer que recaia acórdão sobre a matéria do despacho da relatora (proferido ao abrigo do n.º 1 do artigo 643.º do CPC) que manteve a decisão reclamada de não admissão da revista.
Considera-se prejudicada com a decisão singular proferida porquanto, em seu entender, a mesma não tomou em linha de conta o facto do tribunal da Relação não ter procedido à convolação em reclamação para a conferência o requerimento que anteriormente havia apresentado, facto que lhe cerceou os seus direitos recursivos.
Defende, por isso, ter a Relação violado o disposto no artigo 547.º, do CPC, que impõe ao juiz o dever de adoptar a tramitação processual adequada por forma a assegurar um processo equitativo, o contraditório e o acesso ao recurso.
2. A Requerida, BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, SA, pronuncia-se no sentido da reclamação carecer de utilidade invocando a inutilidade superveniente da instância recursiva com o trânsito em julgado do acórdão deste STJ que negou a revista interposta do acórdão.
Defende, também, o indeferimento da reclamação por falta de fundamento.
3. Em causa a reclamação por parte da Requerente, na qualidade de Embargante (Embargos de Terceiro - Processo n.º 269/18…….), ao abrigo do disposto no artigo 643.º, do CPC, apresentada quanto ao despacho que não admitiu o recurso de revista que interpôs da decisão (de 19-11-2020), que determinou que “a decisão que indeferiu a reclamação da requerente AA mantem-se para todos os efeitos” (em face do efeito devolutivo atribuído ao recurso de revista do acórdão que julgou improcedente o recurso extraordinário de revisão relativamente à decisão proferida nos embargos de terceiro deduzidos pela mesma).
Sustenta a Reclamante a admissibilidade do recurso defendendo que “o processo (que já vai longo) não se compadece com uma simples justaposição de despachos isolados uns dos outros, ou requerimentos avulsos, como parece ser a perspetiva da Veneranda Relatora”. Invoca ainda a seguinte ordem de argumentos:
- o tribunal ao não admitir o recurso impondo-lhe a obrigação de reclamar para a conferência configura uma manifestação de má-fé processual e abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, despojando-a de qualquer hipótese de recorrer.
- o emaranhado processual e a contradição dos despachos proferidos não lhe deixaram outra alternativa processual senão a de reclamar da decisão singular por forma a submeter à apreciação do STJ o que apelida de atropelos praticados no processo sob pena de ver negada a garantia constitucional do direito à defesa e do acesso ao direito e aos tribunais.
4. A decisão reclamada não admitiu o recurso de revista em função da natureza da decisão recorrida, por se tratar de um despacho singular. Mostra-se ainda considerado que o requerimento de interposição de recurso não poderia ser convolado ou corrigido oficiosamente em reclamação para a conferência, por o mesmo ter sido apresentado para além do prazo legal para o efeito, ou seja, 10 dias subsequentes à notificação da decisão singular, nos termos dos artigos 149.º, n.º 1 e 652.º, n.º 3, do CPC.
II - Apreciando
1. Face dos elementos disponíveis no processo, importa consignar a sequência dos actos processuais relevantes por forma a obter-se uma compreensão cabal das vicissitudes processuais subjacentes ao proferimento do despacho recorrido:
a) O Banco Comercial Português SA intentou providência cautelar de entrega judicial de bem contra Bitugueder-Sociedade Imobiliária SA, peticionando a entrega de um prédio urbano sito em ……;
b) Tal providência foi deferida e transitou em julgado, tendo, porém, sido indeferido o pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal;
c) Objecto de apelação, foi proferida decisão singular que, dando procedência à apelação, julgou a título definitivo e antecipado a causa principal quanto à pretensão do Banco Requerente relativa ao direito à restituição do imóvel;
d) AA reclamou dessa decisão para a conferência;
e) O Banco Comercial Português SA opôs-se a tal pretensão com fundamento na falta de legitimidade da Requerente;
f) AA deduziu embargos de terceiro relativamente à providência cautelar de entrega judicial, que foram julgados improcedentes;
g) Posteriormente os referidos embargos foram objecto de um recurso extraordinário de revisão de sentença interposto pela aqui Reclamante (Processo nº 850/14…….), o qual foi, primeiramente, julgado procedente pelo tribunal da Relação ……, decisão que foi objecto de revogação pelo STJ e, nessa sequência, foi proferido novo acórdão pelo tribunal da Relação …… que julgou tal recurso de revisão improcedente;
h) AA recorreu de revista tendo sido atribuído efeito devolutivo ao recurso, que foi julgado improcedente por decisão de 10-03-2021 cujo trânsito não se mostrava certificado nos autos à data do proferimento da decisão singular da relatora;
i) Por despacho de 06-12-2018 a instância foi suspensa até que a Embargante juntasse aos autos a decisão do STJ, proferida no âmbito do Processo n.º 850/14…. com nota de trânsito;
j) Por despacho de 14-10-2019 foi prolongada a suspensão da instância até ser proferida nova decisão no Processo n.º 850/14……;
k) Em 10-03-2020 foi mantida a suspensão da instância nos termos determinados no despacho de 14-10-2019;
l) Em consequência da prolação do acórdão do Tribunal da Relação … de 14-07-2020 no âmbito do recurso extraordinário de revisão relativamente aos Embargos de Terceiro (Processo n.º 850/14……) que o julgou improcedente, o tribunal recorrido proferiu despacho (datado de 07-09-2020) do seguinte teor: “Assim sendo, face à decisão proferida no recurso extraordinário de revisão, a reclamante não tem qualquer legitimidade para reclamar para a conferência da decisão singular, pois não é parte nem pessoa, directa ou indirectamente afectada com a decisão. (art.º 631 nº 1 e 2 e 652 nº 3, ambos do CPC) Termos em que não admitimos a referida reclamação. Custas pela requerente”;
m) AA veio alegar que o acórdão proferido no Processo n.º 850/14…… foi objecto de recurso para o STJ;
n) Após confirmação do efeito (devolutivo) atribuído à revista (do acórdão que julgou improcedente o recurso extraordinário de revisão relativamente à decisão proferida nos embargos de terceiro deduzidos pela mesma) foi proferida decisão (de 19-11-2020), que determinou que “a decisão que indeferiu a reclamação da requerente AA mantem-se para todos os efeitos”;
o) AA, notificada deste despacho a 25-11-2020, veio arguir (em 04-12-2020) a nulidade, tendo o tribunal recorrido (em 11-01-2021) proferido o seguinte despacho: “Assim, não faz qualquer sentido a arguição de nulidade de um despacho invocando-se o regime das nulidades processuais à luz do art. 195º CPC, quando o que poderia estar em causa era a aplicação do preceituado nos artº/s 666 nº 1 e 613º, nº 3 ambos do CPC. Se a reclamante entendesse impugnar o despacho em causa, não o considerando de mero expediente, teria que, em tempo, observar o preceituado no art. 652º nº 3 e 666 nº 2 ambos do CPC. O que não sucedeu. Termos em que indefiro o requerimento”.
p) A Reclamante foi notificada deste despacho a 25-11-2020 e, em 05-01-2021, interpôs recurso para o STJ nos seguintes termos: “(…) notificada do douto despacho datado de 25/11/2020 com a refª Citius ….. que repristina a decisão singular datada de 23/4/2018 com a refª Citius ….., pondo termo ao processo, vem, tempestivamente, interpor recurso, nos termos dos arts. 152º a contrario, 195º, 629º, 630º, nº 1 a contrario, 631º, nº 2, 637º, 638º, 639º, 705º do Código de Processo Civil (CPC) e art. 10º do Código Civil (CC), recurso este de revista, conforme art. 671º, nº 1, com subida nos próprios autos art. 675º, nº 1 do CPC cujo efeito, a atribuir ao recurso, deverá ser suspensivo já que causa um prejuízo considerável à Recorrente, com os fundamentos constantes das seguintes.”.
2. BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, SA, Reclamada nos autos, invocou a inutilidade superveniente da presente reclamação por já não se encontrar pendente o recurso extraordinário de revisão em face da prolação do acórdão do STJ que o julgou improcedente, deixando, assim de ter interesse o recurso que a Requerente pretende ver admitido, porquanto tal acção constituía o elemento de aferição da legitimidade processual da Reclamante para intervir nos autos de procedimento cautelar.
Na decisão singular da relatora relativamente a esta questão foi considerado que a questão poderia assumir cabimento “(…) caso o indicado acórdão da Relação ….. consubstanciasse uma decisão definitiva, aspecto que a Reclamada não assegurou nos autos”, concluindo, contudo, não se encontrar demonstrado qualquer motivo para ser declarada extinta a reclamação por inutilidade superveniente.
Em resposta à reclamação para a conferência vem a Requerida reiterar a pretensão de ver declarada extinta a instância recursiva documentando o trânsito em julgado da decisão proferida pelo STJ.
Trata-se, porém, de pretensão que neste âmbito não pode assumir cabimento tendo presente a natureza/função da presente decisão, que se encontra duplamente limitada, porquanto o seu objecto mostra-se circunscrito à apreciação do despacho reclamado proferido pelo tribunal a quo em função dos pressupostos que estiveram subjacentes à decisão singular da relatora que sobre ele recaiu.
Com efeito, a figura da reclamação prevista no artigo 643.º, do CPC, constitui expediente jurídico de reacção relativamente à não admissão de recurso e tem como única pretensão a alteração do despacho de indeferimento, não cabendo no seu âmbito a apreciação de questões que extravasam os fundamentos em que se alicerçou a decisão reclamada (no caso, reconduzida à natureza não colegial da decisão recorrida); por outro lado, em sede de impugnação da decisão singular, nos termos do n.º 3 do artigo 652.º do CPC (n.º 4 in fine do artigo 643.º do CPC), o objecto de cognição por parte do colectivo encontra-se também delimitado pelos fundamentos daquela decisão singular .
Assim, a certidão do acórdão do STJ proferido no processo de revisão agora junto pela Requerida não permite alterar o entendimento da decisão da relatora a tal respeito.
3. Constitui objecto de reclamação nos termos do artigo 643.º, do CPC, a decisão de não admissão do recurso interposto do despacho (singular) proferido pelo Tribunal da Relação (em 19-11-2020) com o seguinte teor: “a decisão que indeferiu a reclamação da requerente AA mantem-se para todos os efeitos” – (cfr. II – alínea n)).
Como resulta das ocorrências processuais supra consignadas, tal despacho mostra-se contextualizado na decorrência do efeito devolutivo atribuído ao recurso de revista interposto pela aqui Reclamante relativamente ao acórdão da Relação que julgou improcedente o recurso extraordinário de revisão referente aos Embargos de Terceiro (Processo n.º 850/14…..) deduzidos à providência de restituição de imóvel e julgados improcedentes – (cfr. II – alíneas f) e l)) .
Por outro lado, a decisão (objecto de revista cuja despacho de não admissão está em causa na presente reclamação) mantém a decisão que indeferiu a reclamação para a conferência apresentada pela Reclamante (por falta de legitimidade desta) quanto à decisão singular que julgou procedente o procedimento cautelar de restituição de imóvel ao Banco aqui Requerido (cfr. II – alíneas c), d) e l)).
A decisão de não admissão do recurso de revista e mostra-se ancorada nos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 1, in fine e 671.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
3.1 Em defesa da recorribilidade da decisão singular a Reclamante faz apelo ao facto de a mesma dever ser entendida não como despacho único isolado, mas resultando de uma sequência de actos processuais lesiva dos seus direitos de defesa e, nessa medida, justificativa de ser apreciada por este supremo tribunal. Nesse sentido, invoca os princípios de acesso ao direito e de defesa, alegando ainda que o tribunal a quo não levou em devida conta os efeitos do incumprimento, pelo tribunal da Relação, do dever de adequação processual adstrito ao juiz, que lhe impunha convolar o requerimento de interposição de recurso por si apresentado em reclamação para a conferência. Faz ainda fazer referência ao facto de ter arguido nulidade a que não foi dada resposta.
Trata-se de argumentação que não tem em devida conta os seguintes aspectos:
- as exigências técnicas a que as partes se encontram sujeitas;
- a realidade processual efectivamente ocorrida;
- o princípio da auto responsabilidade das partes.
Constituindo o processo uma série de actos dirigidos a um fim - a decisão judicial que resolve o conflito entre as partes -, o mesmo impõe a obediência a formas e requisitos adequados para o efeito, sujeitando as partes a um conjunto de actos e ónus necessários à boa administração da justiça.
Por outro lado, ao invés do que a Reclamante afirma, das ocorrências processuais acima registadas não conseguimos descortinar em que medida foi preterido o direito de defesa da Requerente, porquanto impende sobre a mesma, enquanto parte, o ónus decorrente das suas opções de intervenção processual de acordo com o princípio da auto-responsabilidade das partes.
Acresce que se impõe fazer realçar que, conforme resulta das ocorrências factuais supra consignadas, ao invés do que parece resultar do referido pela Reclamante, o requerimento por ela apresentado (de 04-12-2020) constitui uma arguição de nulidade (nos termos do artigo 195.º, do CPC) que não foi “ignorada”pelo tribunal a quo, mas objecto de decisão em 11-01-2021.
Carece, por isso, de total razão, conforme se justificará em reforço do decidido no despacho reclamado.
4. Na sequência do já assinalado, a reclamação, figura prevista no artigo 643.º, do CPC, constitui expediente jurídico de reacção contra a não admissão de recurso e tem como única pretensão a alteração do despacho de indeferimento.
No presente caso está em causa uma decisão singular do relator do processo cuja impugnabilidade apenas é consentida através da reclamação para a conferência, sendo que a decisão colegial a proferir nesse âmbito é que poderá ser objecto de recurso.
Este é o regime processual inequívoco que resulta do disposto nos n.ºs 3, 4 e 5, do artigo 652.º do CPC.
Por outro lado, conforme também não oferece qualquer dúvida, resulta expresso do artigo 671.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, que só cabe recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, que constitui uma decisão colegial (cfr. artigos 152.º, n.ºs 2 e 3 e 153.º, n.º 1, ambos do CPC).
Acresce que a inadequação do meio processual por que a Recorrente optou (pretensão recursória) não poderia no caso ter sido corrigida e convolada em reclamação para a conferência, não só porque se encontrava ultrapassado o prazo legal (de dez dias – artigo 149.º, do CPC) para o efeito, como colidiria com os ditames decorrentes do princípio da auto-responsabilidade das partes impondo que os interessados conduzam o processo assumindo os riscos da sua actuação, utilizando por isso os meios processuais disponíveis para, na altura própria, fazerem valer os seus direitos sob pena de sofrerem consequências das respectivas condutas[1].
Com efeito, os princípios da cooperação e da adequação formal coexistem com outros princípios que estruturam o nosso sistema jurídico processual edificado no princípio do dispositivo. Nessa medida, não cabe ao juiz, em derrogação do princípio da auto-responsabilidade das partes, corrigir regras e ónus processuais que às partes cabe cumprir e/ou optar e sem as quais não era possível corresponder aos imperativos e valores que disciplinam o processo, designadamente, em termos de igualdade das partes.
Assim sendo, uma vez que o processo jurisdicional constitui um conjunto de actos ordenados em função de determinados fins e sob uma lógica assente, sobretudo, na auto-responsabilidade das partes, não se vislumbra em que medida (a Requerente, não o justifica, limitando-se a afirmá-lo), no caso, o entendimento consignado consubstancia atropelo às normas dos artigos 13.º; 18.º e 20.º, da Constituição da República Portuguesa.
Assim sendo, o recurso de revista interposto é inadmissível.
III - Decisão
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em manter a decisão reclamada de não admissão de recurso.
Custas do incidente pela Reclamante, fixando-se em 3 Uc´s a taxa de justiça.
Lisboa, 22 de Junho de 2021
Graça Amaral (Relatora)
Maria Olinda Garcia
Ricardo Costa
Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
_______________________________________________________
[1] Cfr. acórdão do STJ de 11-07-2013, Processo n.º 6961/08.4TBALM-B.L1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.