CESSÃO DE QUOTA
TERCEIRO
ESTATUTOS
CONSENTIMENTO
SOCIEDADE
INEFICÁCIA DO NEGÓCIO
Sumário


I- Para efeitos de determinação de uma cessão de quotas não livre (dependente de consentimento da sociedade para ser eficaz perante a sociedade: arts. 228º, 2 e 3, 229º, 3, do CSC) por força de cláusula dos estatutos, o cessionário identificado nessa cláusula como “estranho” é a pessoa que não seja sócio, quer seja ou não gerente (membro titular do órgão de administração e representação), e independentemente das relações familiares de maior proximidade com sócios (atendidas no art. 228º, 2, do CSC para os seus herdeiros legitimários), que se integra na qualidade genérica de terceiro-não sócio.
II- Os «cônjuges, ascendentes e descendentes» dos sócios, enquanto intervenientes nas cessões de quotas referidos nas cessões supletivamente livres do art. 228º, 2, 2ª parte, são sujeitos “estranhos”, que não estão no mesmo plano enquanto cessionários para efeitos de dispensa de consentimento.
III- Se o cessionário é filho-sucessor-herdeiro legitimário do cedente, é sujeito “estranho” para a interpretação da cláusula estatutária que impõe que a cessão a “estranhos” está dependente de consentimento da sociedade, nos termos permitidos pelo art. 229º, 3, do CSC, pelo que, não tendo havido consentimento da sociedade, a cessão é ineficaz perante a sociedade nos termos aplicáveis do art. 228º, 2, 1ª parte, do CSC.

Texto Integral






Proc. Nº 1378/17.2T8OAZ.P1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação ….., …... Secção

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

AA e “Supra – Sociedade Unida de Produtos Aglomerados, Lda.” intentaram acção declarativa de condenação contra BB e CC, pedindo a declaração de ineficácia em relação aos Autores dos actos de divisão e cessão de quota efectuados em 27/05/2016; ineficácia perante terceiros de todos os efeitos jurídicos decorrentes de tal acto; a fixação, a título de sanção pecuniária compulsória, do montante de 5.000,00€ a pagar por cada um dos RR. por cada infracção que venha a ser levada a efeito, em conjunto ou separadamente, por cada um deles e que tenha por base a cessão da quota. Para isso alegaram que o primeiro Autor moveu contra o primeiro Réu uma acção de destituição de gerente com pedido cautelar de suspensão do exercício de tal cargo e que, tendo o Réu tido conhecimento dos factos em causa nessas acções, decidiu dividir/ceder parte da sua quota a favor do seu filho e aqui 2º R., mas fê-lo sem que tivesse obtido o necessário consentimento e sem que a sociedade Autora tivesse tido prévio conhecimento de tal decisão. Foi apensado a estes autos o de procedimento cautelar que havia corrido sob o nº 2709/16…...

Os Réus apresentaram Contestação, alegando que o Autor AA foi destituído da gerência a 6/6/2016 e que a acção pela qual o Autor pretendia a destituição do primeiro Réu da gerência ainda não está julgada, pelo que a Autora «Supra» não está regularmente representada nos autos pois que o Autor desacompanhado do primeiro Réu não obriga a sociedade Autora. Quanto ao mais, sustentaram a validade do negócio de divisão e cessão da quota.

O Autor apresentou, por escrito, Resposta às excepções deduzidas na contestação.

2. Na pendência dos autos faleceu o Réu BB, tendo sido habilitados DD, EE e CC.

3. Foi proferida sentença em 21/11/2019 pelo Juiz … do Juízo de Comércio ….. (Tribunal Judicial da Comarca …..), em que, julgando procedente a acção, se dispôs: “1 – Declara-se ineficaz, em relação aos AA., o acto de divisão e cessão de quotas efectuado pelos primitivos RR. em 27/05/2016; 2 – Declaram-se suspensos todos os efeitos jurídicos que decorram de tal negócio de divisão e cessão de quotas, excepto entre os requeridos; 3 – Fixa-se em 5.000,00€ o valor da sanção pecuniária compulsória, a pagar por cada um dos RR. por cada infracção que, em conjunto ou separadamente, levem a cabo em desrespeito a tal ineficácia, ou seja, por cada acto que pratiquem com base no acto de divisão e cessão de quotas.”

4. Os Réus interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação ….. Em acórdão proferido em 8/9/2020, identificada a questão decidenda como sendo a de “saber se a cessão de quota a que alude o item 11 dos factos dados como provados poderia ser concretizada, como o foi, sem o consentimento da sociedade autora tendo em consideração o que consta no art. 8º dos respectivos estatutos (item 16º dos factos dados como provados)”, foi dado provimento ao recurso e, em consequência, revogou-se a decisão proferida e absolveram-se os Réus dos pedidos contra si formulados.

5. Inconformados, vieram os Autores interpor recurso de revista para o STJ, tendo por base o art. 671º, 1, do CPC, visando revogar o acórdão recorrido e finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões:
“a) A sociedade Recorrente consagrou expressamente, através do teor da cláusula 8.ª do contrato de sociedade, uma vontade inequívoca de todos os seus sócios, materializada no facto das cessões e respectivas divisões das respectivas quotas serem livres entre estes, contudo proibidas a favor de estranhos sem o consentimento primacial da sociedade Recorrente, após exercício do direito de voto de cada um, expresso através de aprovação de deliberação social.

b) Os sócios da Recorrente quiseram contemplar expressa e inequivocamente nos estatutos da mesma, uma clara proibição à livre cessão de quotas, por qualquer dos sócios, a estranho à sociedade, independentemente de quem fosse o dito estranho.

c) O propósito dos sócios e da Recorrente em submeter qualquer cessão a estranhos – tal como decorre da cláusula 8.ª do contrato de sociedade – ao consentimento desta, encontrou correspondência, ex vi do n.º 3 do art.º 229 do C.S.C. e da parte inicial do n.º 2 do art.º 228.º do mesmo diploma legal e, por assim ser, o contrato de sociedade não foi objecto de alteração no sentido de afastar tal necessidade de consentimento, independentemente do seu destinatário, fosse ele familiar directo, cônjuge, unido de facto, etc., ou seja, todos aqueles que não sejam sócios da sociedade.

d) Os sócios da Recorrente pretenderam, desde sempre evitar, quer na vigência da LSQ, quer na vigência do C.S.C., a entrada de quaisquer sócios na sociedade, fossem eles, cônjuges, filhos, pais, mães, etc.

e) Opera-se a permanência superlativa da imperatividade da cláusula 8.ª do contrato de sociedade, por aplicação das disposições conjugadas nos art. 229 n.º 3 e da parte inicial do n.º 2 do art. 228.º, ambos do C.S.C., independentemente da 2.ª parte do n.º 2 do art. 228.º do C.S.C.

f) O n.º 2 do artigo 228.º do actual C.S.C. inverteu a ordem prevista na antiga LSQ, concretamente no seu art. 6º corpo  §3 que contemplava a livre transmissibilidade das quotas, transformando em regra geral a necessidade do consentimento da sociedade enquanto limitação imposta à vontade do titular da quota, com excepção das situações em que se verifique a cessão entre os cônjuges, entre ascendentes ou descendentes ou entre sócios, não se devendo ignorar o cuidado imediato manifestado pelo legislador quando condiciona a liberdade de aplicação de tal norma, através do n.º 3 do artigo que a sucede.

g) O n.º 3 do art. 229.º do C.S.C. é uma “válvula de segurança” criada pelo legislador, no sentido de condicionar a amplitude de liberdade de cessão de quotas, estatuída nos termos do n.º 2 do art.º 228 do C.S.C.

h) O Mmo. Tribunal a quo, não deveria ter concluído, como concluiu, que a natureza familiar da sociedade Recorrente se pretendia ver livremente estendida aos respectivos sucessores dos sócios.

i) Resulta do teor do Contrato da Sociedade, que por vontade exclusiva dos sócios, estes pretenderam sempre impedir quaisquer intromissões de terceiros/estranhos, nos destinos da Recorrente.

j) Os sócios fundadores da Recorrente não mais fizeram que usar desta possibilidade, autorizando a sociedade a “fechar” a entrada, no grémio societário, aos herdeiros dos sócios falecidos.

k) Exemplo do propósito já evidenciado dos sócios fundadores da Recorrente, as cláusulas respeitantes à amortização, as quais traduzem o estrito e rigoroso respeito pela vontade dos mesmos, os quais quiseram e aceitaram que, no caso de falecimento de um dos sócios, a sociedade pudesse amortizar a sua quota, de molde a impedir a entrada de novos sócios.

l) À semelhança do cuidado manifestado pelo legislador, quer ao abrigo da L.S.Q. (ao contemplar a possibilidade do contrato de sociedade estipular barreiras à entrada de estranhos à sociedade) quer ao abrigo do C.S.C. (através da redacção do seu n.º 3 do art. 229.º) os sócios da Recorrente continuaram a pretender manter, nesta parte, a cláusula 8.ª do contrato em questão.

m) Após a entrada em vigor do C.S.C., a qual ocorreu escassos meses após a data da constituição da sociedade aqui Recorrente, os sócios conformaram-se com a salvaguarda prévia das suas vontades, contemplada no respectivo contrato de sociedade, inexistindo, face ao contrato social da sociedade Recorrente, qualquer colisão deste, quer com as pretéritas disposições legais que se lhe aplicavam, quer com a lei vigente que se lhe aplica.

n) Não se vislumbra razão justificável para que o Mmo. Tribunal a quo pretenda vir alterar uma vontade que, para além de lícita, encontra-se formalmente consagrada em documento adequado e exigível.

o) Tanto são estranhos à sociedade os cônjuges, ascendentes ou descendentes, como os demais, independentemente de serem filhos ou cônjuges de qualquer dos sócios.

p) O legislador abriu a possibilidade de cessão sem consentimento da sociedade, aos cônjuges, ascendentes ou descendentes, por forma a distingui-los dos demais estranhos à mesma, atento o grau de proximidade que os liga à pessoa do sócio, contudo sem descurar a previsão estatuída no n.º 3 do art. 229.º do CSC, norma que, sempre salvo o devido respeito, foi também ostensivamente violada pelo Mmo. Tribunal a quo.

q) Pelo exposto, violou assim o Mmo. Tribunal a quo, o preceituado no n.º 2 do artigo 228.º do C.S.C. e o n.º 3 do art. 229.º ao ter considerado que quer o Recorrido CC, quer o falecido Sr. BB, poderiam ter realizado o acto de cessão de quota a que se propuseram e levaram avante sem consentimento.

r) A norma preceituada no n.º 2 do art. 228 do C.S.C. deverá ser interpretada no sentido de, enquanto legitimadora da abertura aos actos de livre cessão de quota de qualquer sócio, a estranho à sociedade, não deverá nunca afastar a imperatividade da vontade expressada pelos sócios no contrato de sociedade, por aplicação da salvaguarda decorrente do n.º 3 do art. 229.º do C.S.C., que, por seu turno, visa impedir a entrada de estranhos no grémio societário, não conferindo aos contemplados qualquer espécie de ascendente, quer em face da sociedade, quer em face dos demais estranhos a esta.

s) O acto de cessão de quota do falecido sócio ao seu filho aqui Recorrido, jamais salvaguardou a base social da Recorrente, não se aceitando o entendimento sufragado pelo Mmo. Tribunal a quo nesse sentido, sempre com todo o respeito que nos merece.

t) O Mmo. Tribunal a quo violou o preceituado no art. 2.º da nossa lei fundamental, posto que, consagrando a mesma, o Princípio da Segurança Jurídica e da Protecção da Confiança enquanto princípio classificador do Estado de Direito Democrático, implicando um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, tal vontade legítima dos sócios, vê-se violada pela decisão judicial a que ora se reage.

u) O Mmo. Tribunal a quo, através do acto decisório emanado, legitimando uma cessão sem consentimento da sociedade, logo abusiva, violou assim o preceituado no art. 230.º do C.S.C. tendo optado por desobedecer a toda a tramitação aí oferecida.

v) Tudo num contexto de fortíssima clivagem assente em litígio permanente, entre o falecido cedente, o cessionário e o Recorrente AA.

w) O Recorrido CC, independentemente do laço que o ligava e liga ao falecido sócio BB, primeiramente enquanto filho e, actualmente enquanto filho e herdeiro, foi sempre o de um ente estranho à sociedade aqui Recorrente, decorrendo tal evidência, das disposições conjugadas no n.º 2 do art. 228 do C.S.C., no n.º 3 do art. 229.º do C.S.C. e, por fim, do contrato de sociedade que foi também ostensivamente ignorado e violado pelo Mmo. Tribunal a quo.”

Os Réus e Recorridos contra-alegaram, sustentando a negação da revista ou, se assim não se entendesse, procederem os argumentos expendidos na ampliação do objecto do recurso (art. 636º, 1, CPC), assim concluindo:

“1. O nº 2, do artigo 228º, do CSC, prescreve a necessidade do consentimento da sociedade, enquanto limitação imposta à vontade do titular da quota, com excepção das situações em que se verifique a cessão entre os cônjuges, entre ascendentes ou descendentes ou entre sócios.

2. O pacto social da “Supra” prevê no seu artigo 8º que as cessões e respectivas divisões ficam livres entre sócios, mas proibidas a favor de estranhos, sem o consentimento da sociedade, em primeiro lugar, e dos sócios não cedentes, em segundo lugar, previamente prestado, mais estabelecendo que o sócio que quiser ceder a sua quota deve comunica-lo à gerência, por carta registada com aviso de recepção e, nessa oportunidade, qualquer dos outros sócios poderá, neste caso, adquirir a quota do cedente.

3. O entendimento da sentença recorrida não é o mais correcto na interpretação e aplicação dessas normas legais.

4. A cessão de quota ocorreu entre pai e filho, POR DOAÇÃO.

5. O negócio jurídico impugnado nesta acção é um contrato privado que é uma cessão de quotas, por doação, entre um sócio e seu filho, sendo questão que não interessa às pessoas dos Autores.

6. A respectiva validade e eficácia não dizem respeito nem se repercutem na esfera jurídica dos Autores, por imposição do nº 2 do art. 406º do Cód. Civil.

7. A sentença recorrida fez incorrectas interpretação e aplicação dos arts. 229º, n.º 3 e 5 – a) e 228º, n.º 2, parte final, CSC.

8. A cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta com a excepção de ela ocorrer entre cônjuges, ascendentes e descendentes ou entre sócios, caso em que, por regra, fica dispensado o consentimento.

9. A lei faz prevalecer os interesses familiares do titular da quota a possíveis interesses da sociedade.

10. A lei distingue entre a cessão de quotas a estranhos e a cessão de quotas entre cônjuges, ascendentes e descendentes ou entre sócios.

11. Na vigência da Lei das Sociedades por Quotas de 11 de Abril de 1901, por força do preceituado pelo artigo 6º, corpo, e § 3º, no interesse do sócio cedente, as quotas sociais eram livremente transmissíveis, nos termos gerais de direito dos artigos 424º a 427º, do Código Civil, embora a escritura social pudesse fazer depender a cessão de quotas do consentimento da sociedade ou de outros requisitos.

12. Assim, as citadas cláusulas do pacto social não se aplicam à cessão de quotas entre ascendentes ou descendentes ou entre sócios.

13. As cláusulas 8ª e 9ª do pacto social da Supra são as cláusulas que constavam originalmente dos estatutos da sociedade aquando da respectiva constituição.

14. A sociedade Supra foi constituída em 13 de Julho de 1986.

15. Ora, o CSC foi aprovado pelo Dec Lei nº 262/86, de 2 de Setembro e entrou em vigor em entrou em vigor em 30.06.1.11.1986 (art. 2º nº 1 de diploma preambular).

16. Neste contexto, em 13.07.1986 os estatutos não podiam, nem podiam prever, que seria possível conter uma cláusula de autorização da sociedade para cessão de quotas entre ascendentes ou descendentes ou entre sócios.

17. É que essa redacção estatutária foi aprovada pelos sócios constituintes em plena vigência da LSQ (Lei das Sociedades por Quotas), os quais não podiam antever a actual redacção do CSC.

18. Assim, as citadas cláusulas do pacto social não se aplicam à cessão de quotas entre ascendentes ou descendentes ou entre sócios, uma vez que o pacto social foi aprovado pelos sócios no acto constituinte da sociedade na vigência da LSQ.

19. E na vigência dessa lei não havia liberdade de cessão de quotas, que era a regra e não havia a referência à cessão entre cônjuges entre ascendentes e descendentes.

20. O contrato da sociedade não exige o consentimento da sociedade para a cessão entre ascendentes e descendentes, designadamente nas cláusulas 8ª e 9ª.

21. À míngua de restrição constante do pacto social (ao abrigo do nº 3 do art. 229º) é livre a cessão de quotas entre ascendentes e descendentes.”

Consignados os vistos legais (art. 675º, 2, CPC), cumpre apreciar e decidir o dissenso colocado pelas instâncias.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Objecto do recurso

Vistas as Conclusões, delimitadoras das questões a resolver, cabe em revista saber se a cessão de quota, após divisão, operada entre os Réus é ou não eficaz perante a sociedade, em função do regime legal aplicável do CSC e do regime previsto na pertinente cláusula dos estatutos da sociedade.

2. Factualidade

Foram considerados pelas instâncias os seguintes factos provados:
1 – A sociedade por quotas «Supra – Sociedade Unida de Produtos Aglomerados, Lda.» foi constituída em 02/10/1986, tem o capital social de 105.000,00€, o qual se mostra distribuído por duas quotas iguais de 52.500,00€ cada e que pertenciam, respectivamente, ao aqui A. AA e ao falecido R. BB.
2 – A sociedade obriga-se pela assinatura de dois gerentes sendo que ambos os sócios estavam nomeados gerentes.
3 – No dia 17/04/2016, o aqui A. AA instaurou contra o falecido R. BB uma acção de destituição e providência cautelar de suspensão de titular de órgão social, a qual pendeu neste J….. com o nº 1608/16……..;
Nessa acção formulou o A. pedido de destituição do seu irmão (o falecido R.) das funções de gerente da sociedade «Supra» formulando ainda pedido de suspensão imediata dessas funções.
4 – Por despacho de 04/05/2016, e sem audição do requerido, foi agendada data para inquirição das testemunhas do requerente (nos termos e para os efeitos de decisão da providência cautelar enxertada na acção comum) para o dia 02/06/2016;
As testemunhas foram notificadas por carta registada datada de 18/05/2016.
5 – No dia 27/05/2016 o falecido R. juntou procuração forense a esses autos e requereu inquirição de testemunhas, o que lhe foi indeferido uma vez que não tinha ainda sido citado para os termos do processo.
6 – Inquiridas as testemunhas do requerente, foi proferida decisão cautelar, datada de 07/06/2016, pela qual se determinou a suspensão do aqui requerido BB do cargo de gerente da «Supra».
7 – O Requerido deduziu oposição a qual, julgada, veio a ser declarada suficiente para afastar a decisão cautelar proferida pelo que, por decisão final proferida no dia 14/03/2017 foi determinado que o falecido R. assumisse, de novo, a gerência da «Supra».
8 – O pedido principal não chegou a ser julgado nem decidido pois que por sentença de 08/01/2019 foi considerado que, em face do falecimento do R., ocorria inutilidade superveniente da lide, o que se declarou.
9 – AA instaurou no dia 28/06/2016 procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais contra a «Supra» pedindo a suspensão da deliberação social tomada no dia 16/06/2016, em processo que foi distribuído ao J….. com o nº 2710/16……. e que agora constitui o apenso A do processo nº 3006/16……., pendente neste J……. As deliberações em causa são as de destituição do aqui A. AA de gerente da Supra e de destituição do Presidente da Mesa.
10 – No procedimento cautelar foi declarada extinta a instância por ter sido proferida sentença no processo principal, mas nesse processo, interposto que foi recurso de revisão de sentença, ainda não há decisão pois que foi determinada a citação dos RR.
11 – Por documento particular datado de 27/05/2016, que as partes denominaram de Contrato de Divisão e Cessão de Quotas, e em que figuram como intervenientes os primitivos RR. e DD, declarou o falecido R. BB que pretendia dividir a quota social que detinha na «Supra» em duas quotas, uma no valor de 50.000,00€ e outra no valor de 2.500,00€, pretendendo ainda doar esta última ao aqui R. CC que declarou aceitar.
12 – A transmissão de quotas foi devidamente registada pela Dep. 147 de 30/05/2016, figurando o requerido CC como titular de uma quota de 2.500,00€ e o requerido BB como titular de uma quota de 50.000,00€.
13 – Por carta datada de 31/05/2016, o falecido R. BB convocou o A. AA para uma assembleia geral a realizar no dia 16/06/2016 pelas 9h30 com a ordem de trabalhos única de deliberar a destituição com justa causa do A. do cargo de gerente da «Supra», declarando ainda que o requerente estaria impedido de votar.
14 – No dia 16/06/2016, quer o A. AA, quer o falecido R. BB, fizeram-se representar por terceiros na AG, tendo ainda comparecido na referida AG, CC, aqui R.
O representante de BB e o aqui R. CC votaram favoravelmente a destituição que assim foi tida como aprovada com os votos de 50% do capital social.
15 – Por carta datada de 03/06/2016, o falecido R. BB convocou o A. AA para uma assembleia geral a realizar no dia 20/07/2016 pelas 9h30 com a ordem de trabalhos melhor descrita a fls. 29/29v. do apenso e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
16 – O pacto social da “Supra” prevê no seu artigo 8º que “as cessões e respectivas divisões ficam livres entre sócios, mas proibidas a favor de estranhos, sem o consentimento da sociedade, em primeiro lugar, e dos sócios não cedentes, em segundo lugar, previamente prestado”.

17 – E no seu artigo 9º que o sócio que quiser ceder a sua quota deve comunicá-lo à gerência, por carta registada com aviso de recepção. Qualquer dos outros sócios poderá, neste caso, adquirir a quota do cedente, pelo valor médio dos últimos três balanços aprovados e, se mais do que um quiser proferir, será a quota dividida entre os pretendentes, na proporção das respectivas quotas. Se nenhum sócio quiser usar este direito, fica a sociedade obrigada a adquirir a quota cedente pelo referido valor médio.
18 – O R. BB faleceu no dia 11 de Março de 2018 e foram habilitados, em seu lugar, os intervenientes DD, EE e CC.


3. Direito aplicável

3.1. Sobre a questão decidenda e a solução encontrada, o acórdão recorrido fundamentou nos seguintes termos:

“O recorrente argumenta, em suma, que não era necessário o sobredito consentimento ao invés do decidido pelo tribunal a quo e da argumentação a esse propósito expendida pelos recorridos (o tribunal a quo considerou, além do mais, que o recorrido, face ao art. 8º dos estatutos da sociedade, era um estranho a esta e para que a cessão da quota fosse legítima teria que ter sido colhido previamente o consentimento daquela).
Com a entrada em vigor do CSC (1986) a transmissão de quotas entre vivos é fortemente condicionada (na ausência de disposição estatutária em contrário, só é livre a transmissão em favor dos sócios ou do cônjuge ou de parentes na linha recta como é o caso do recorrente).
O art. 8º dos estatutos da recorrente proíbe a cessão de quotas a estranhos sem consentimento o que até vai ao encontro da regra geral em vigor que tem subjacente o propósito da crescente pessoalização das sociedades por quotas cada vez mais fechadas ao exterior.
Neste contexto, há que determinar quem é estranho (ou terceiro) para os fins em apreço e se a cessão de quota efectuada ao recorrente (herdeiro legitimário do cedente entretanto falecido e em absoluto estranho à sociedade) é livre ou não tendo como pano de fundo o CSC e a citada regra dos estatutos da recorrida.
Importa também averiguar se é inequívoco ter sido intenção dos sócios da recorrida limitar contratualmente a cessão em questão face à regra geral acima aludida sendo certo que, nos termos do art. 229º nº 3 do CSC, os estatutos podem exigir o consentimento mesmo para as cessões legalmente autorizadas.
A sociedade em causa é uma sociedade familiar (dois irmãos titulares das duas quotas) que inclusive face ao falecimento do primitivo réu, em princípio, viu a quota deste ser transmitida aos respectivos herdeiros (entre os quais o recorrente) dadas as regras da sucessão mortis causa.
Do preceituado no art. 228º nº 2 do CSC deduz-se que sócios e familiares próximos do cedente são tratados em contraposição com outros estranhos à sociedade uma vez que aqueles não têm apetência para alargar a base social o que a lei visa salvaguardar (a cessão entre sócios reduze-a e a sucessão mortis causa impõe-se à sociedade independente da vontade desta).
Podendo fazê-lo, a recorrida não fez verter nos estatutos uma explicita proibição à cessão em causa o que tudo conjugado (composição da sociedade, salvaguarda da base social com o dito negócio e ausência de explicitação inequívoca de vontade em contrário) conduz à conclusão de que, no caso em apreço, não havia necessidade de autorização societária para a cessão em causa que, aliás, não foi pedida e tendo sido registada (item 12 dos factos provados) é eficaz perante a sociedade recorrida (art. 242º - A do CSC).”

Inverteu, por isso, o sentido decisório da sentença de 1.ª instância, que fundamentou de modo diverso:

“Ao contrário do que acontecia no âmbito da Lei das Sociedades por Quotas de 11 de Abril de 1901, em que, por força do preceituado pelo artigo 6º, corpo, e § 3º, no interesse do sócio cedente, as quotas sociais eram livremente transmissíveis, nos termos gerais de direito dos artigos 424º a 427º, do Código Civil, embora a escritura social pudesse fazer depender cessão de quotas do consentimento da sociedade ou de outros requisitos, o nº 2, do artigo 228º, do CSC actual, inverteu a ordem desses factores, transformando em regra geral a necessidade do consentimento da sociedade, enquanto limitação imposta à vontade do titular da quota, com excepção das situações em que se verifique a cessão entre os cônjuges, entre ascendentes ou descendentes ou entre sócios.

Porém, mesmo para estes casos – em que a transmissão se faz a favor de cônjuges, entre ascendentes ou descendentes ou entre sócios – pode o contrato de sociedade exigir tal consentimento – artigo 229º, nº 3 do CSC.

Assim sendo, o consentimento da sociedade constitui um requisito legal da eficácia da cessão de quotas, cuja falta não determina a invalidade da cessão, mas apenas a sua ineficácia para com a sociedade, tudo se passando, enquanto não for consentida, como se a cessão não tivesse existido.

Em consonância com tais regras, estabelece o artigo 246º, nº 1, al. b) do CSC que tais negócios dependem da deliberação dos sócios, tomadas por uma das formas previstas no artigo 247º do CSC.

Quanto à forma como o consentimento da sociedade há-de ser prestado para que os negócios de transmissão de quotas sejam eficazes perante a sociedade, regem os artigos 230º e 231º do CSC.

Acresce que o pacto social da “Supra” prevê no seu artigo 8º que as cessões e respectivas divisões ficam livres entre sócios, mas proibidas a favor de estranhos, sem o consentimento da sociedade, em primeiro lugar, e dos sócios não cedentes, em segundo lugar, previamente prestado, mais estabelecendo que o sócio que quiser ceder a sua quota deve comunica-lo à gerência, por carta registada com aviso de recepção e, nessa oportunidade, qualquer dos outros sócios poderá, neste caso, adquirir a quota do cedente.

Ora, atendendo a que BB era sócio da “Supra” não podia ignorar tal cláusula do pacto social da Supra.

E não ignorava, até porque na contestação que apresentou não refutou a falta de obtenção de consentimento prévio para o negócio que decidiu realizar, defendendo antes que tendo sido o negócio celebrado com o seu filho, tal consentimento não era necessário.

Estando em causa a divisão de quota e posterior transmissão a favor do seu filho – o aqui R. CC – de parte da quota assim dividida, tem de analisar-se o regime do artigo 228º, nº 2, 229º, nº 3 do CSC à luz do pacto social da Supra, sendo certo que temos para nós que apesar de o aqui requerido ser filho do sócio, para efeitos de sociedade é estranho, conceito e expressão que no pacto social está usado em contraposição com a qualidade de sócio (únicos a favor de quem a transmissão é livre).

Diga-se, aliás, que em relação às sociedades, os familiares dos sócios são tidos (regra geral) como estranhos.

De facto, a jurisprudência dominante dos nossos tribunais superiores considera o artigo 8º do CSC como uma norma interpretativa.

Na interpretação dominante na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, não é correcto que, em regime de comunhão geral, ou, sendo caso disso, em regime de comunhão de adquiridos, a quota de um cônjuge se comunique ao meeiro, em termos de este adquirir ex vi do regime de bens, a qualidade social. Em palavras extractadas de algumas dessas decisões: “A quota social, nos regimes de bens do casamento, só é comunicável quanto ao seu valor económico”; “A qualidade de sócio de uma sociedade por quotas não se comunica ao seu cônjuge, mesmo que casados sob o regime de comunhão geral de bens, já que é apenas um associado ou agregado a essa quota” (cfr. acórdãos da Relação de Lisboa, de 26 de Abril de 1990, e da Relação do Porto, de 25 de Setembro de 1990, na CJ, Ano XV, Tomos II e IV, a págs. 166 e 220, respectivamente).

Pelo que dúvidas não nos restam de que, sendo o filho do aqui requerido (e também requerido) um estranho à sociedade, para que lhe fosse transmitida parte da quota do seu pai era necessário percorrer o formalismo previsto no pacto social. Mas os requeridos não o observaram.

(…)

Fica, pois, provado, em consonância com o que havia já ficado indiciariamente demonstrado no procedimento cautelar, que o R. CC não pode exercer os seus direitos como sócio porque não está reconhecido pela sociedade nem pelo A. AA, e, por isso, os efeitos jurídicos do negócio que celebrou com o seu pai só são eficazes na relação entre os dois e nada mais.”

Como decidir agora neste STJ?


3.2. A cessão de quota ou quotas de uma sociedade comercial por quotas (transmissão voluntária da titularidade ou propriedade por intermédio de negócio inter vivos, gratuito ou oneroso[1]) não produz efeitos para com a sociedade enquanto esta não a consentir, salvo se se tratar de cessão entre cônjuges, ascendentes e descentes ou, independentemente dessas relações familiares-sucessórias, entre sócios; nestes casos, estaremos perante cessão livre: art. 228º, 2, CSC. Sendo não livre, pode ser válida (art. 228º, 1, 4º-A, CSC), eficaz entre cedente e cessionário e relativamente a terceiros (se for registada: arts. 3º, 1, c), 14º, 1, CRCom.; 168º, 1 e 2, CSC), porém, é ineficaz perante a sociedade enquanto e se o consentimento não for dado (por deliberação dos sócios: arts. 246º, 1, b), 230º, 2, CSC); tal significa que, para a sociedade e para as relações internas e externas que ela mobiliza, continua a ser o cedente (e não o cessionário) o proprietário-titular da quota ou das quotas e, por isso, o sócio que tem na sua esfera jurídica e na relação com a sociedade os respectivos direitos e obrigações.
Independentemente da cessão ser livre quanto ao consentimento da sociedade, a eficácia da cessão de quota ou quotas está sempre dependente e necessitada do cumprimento do dever de comunicação por escrito da cessão à sociedade ou, em alternativa, do seu reconhecimento, expresso ou tácito, pela sociedade – assim manda o art. 228º, 3, do CSC, uma vez que a cessão é modalidade ou espécie da (prevista na lei) «transmissão de quota entre vivos». Essa comunicação – dirigida ao ou aos gerentes ou a um ou alguns deles (art. 261º, 3, CSC) – pode ser feita pelo cedente e pelo cessionário, disjuntiva ou copulativamente, e terá que conter os elementos identificadores e condições da cessão (v. art. 230º, 1, CSC). E é imperativa, não podendo ser afastada pelo pacto social nem (aqui ou por outro meio declarativo) ser-lhe imputada qualquer outro efeito diferente do previsto legalmente.[2]
De todo o modo, esta eficácia – melhor, este pressuposto de eficácia – não depende – como se de outro pressuposto de eficácia se tratasse – de solicitação da promoção do registo da cessão da quota ou das quotas, nos termos do art. 170º do CSC («A eficácia para com a sociedade de atos que, nos termos da lei, devam ser-lhe notificados ou comunicados não depende de registo de publicação»), o que preclude a aplicação do art. 242º-A do CSC (não sendo o registo, por depósito, da cessão[3], por maioria de razão, facto condicionante da eficácia perante a sociedade)[4].
Em resumo (para as sociedades por quotas plurais):
“há cessões de quotas que, para serem eficazes relativamente à sociedade, têm de cumprir dois requisitos: o consentimento da sociedade e a comunicação a esta (ou o reconhecimento por ela); as cessões que não necessitam do consentimento têm de ser comunicadas à sociedade (ou por ela reconhecidas)”[5].
                       
3.3. No entanto, a lei prevê que os estatutos da sociedade possam derrogar o regime do art. 228º, 2, dispensando o consentimento da sociedade para todas ou algumas situações – art. 229º, 2, CSC – ou demandando o consentimento para todas ou algumas das cessões referidas no art. 228º, 2, parte final, ou seja, para todas ou algumas das cessões livres – art. 229º, 3, do CSC. Estamos, portanto, confrontados com um regime supletivo quanto ao consentimento-regra da sociedade.
Por seu turno, o n.º 5 do art. 229º do CSC não permite que o “contrato de sociedade” subordine os efeitos da cessão a «requisito diferente do consentimento da sociedade, mas pode condicionar esse consentimento a requisitos específicos, contanto que a cessão não fique dependente: a) Da vontade individual de um ou mais sócios ou de pessoa estranha, salvo tratando-se de credor e para cumprimento de cláusula de contrato onde lhe seja assegurada a permanência de certos sócios; b) De quaisquer prestações a efetuar pelo cedente ou pelo cessionário em proveito da sociedade ou de sócios; c) Da assunção pelo cessionário de obrigações não previstas para a generalidade dos sócios». Isto é, o consentimento como pressuposto pode ficar condicionado por via estatutária a requisitos específicos não proibidos por lei.

3.4. À luz deste regime, como avaliar a cláusula 8.ª dos estatutos da sociedade «Supra – Sociedade Unida de Produtos Aglomerados, Lda.» (“as cessões e respectivas divisões ficam livres entre sócios, mas proibidas a favor de estranhos, sem o consentimento da sociedade, em primeiro lugar, e dos sócios não cedentes, em segundo lugar, previamente prestado”: cfr. facto provado 16.), redigida – a sociedade foi constituída em 02/10/1986: cfr. facto provado 1. – na previgente Lei da Sociedade por Quotas de 1901 (LSQ)?

3.4.1. Em primeiro lugar, teremos que aceitar que o regime legal do CSC (com entrada em vigor em 1/11/1986[6]) quanto à cessão de quotas – em que se encontra a distinção entre cessão entre sócios e a cessão entre sócios e outros sujeitos para efeitos de consentimento – se aplica aos contratos de sociedade celebrados antes da entrada em vigor do CSC:

— a lei nova do CSC é ainda uma lei que dispõe directamente sobre o conteúdo da relação jurídica, abstraindo do facto que lhe deu origem – em especial, o regime do art. 228º, 2, em conjugação com o seu n.º 3 e o art. 229º, 3, do CSC, não interessa apenas às partes no contrato de sociedade –, estando, assim, directamente abrangida pelo art. 12º, 2, 2ª parte, do CCiv. («entender-se-á que a lei [nova] abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor»);

 — assim se determina em função da norma transitória do art. 530º, 1, 1ª parte, do CSC, a contrario sensu, uma vez que a cláusula 8.ª sobre a dispensa e exigência de consentimento para a cessão de quotas, celebrado antes da entrada em vigor do CSC, é permitida por este e, portanto, regulada pelo CSC em função da não imperatividade do art. 228º, 2, em relação com o art. 229º, 2 e 3, do CSC;

— igualmente assim se conclui uma vez que, agora lançando mão extensivamente da 2ª parte desse art. 530º, 1, se consagra a licitude do recurso à «aplicação das disposições de carácter supletivo que ao caso convierem» no que toca às «cláusulas dos contratos de sociedade celebrados, na forma legal, antes da entrada em vigor desta lei», neste caso uma cláusula que (ainda que não proibida pela lei nova do CSC, como literalmente refere a norma) não afasta a regra legal supletiva do CSC, antes se move no seu âmbito de aplicação de coordenação normativa – cessão livre entre sócios (2ª parte do art. 228º, 2); cessão não livre com cessionários “estranhos” (arts. 228º, 2, 1ª parte, 229º, 3, que se convencionara à luz do § 3 do art. 6º da LSQ de 1901 [«A escritura social pode fazer depender a cessão de quotas do consentimento da sociedade ou doutros requisitos.»]).[7]

Seja como for, vista de acordo com a LSQ de 1901, em vigor antes do CSC, ou vista à luz do CSC – e do modelo legal supletivo inerente a cada um desses regimes: cessão livre (art. 6º, corpo, da LSQ [«As quotas sociais são transmissíveis nos termos de direito,»]); cessão sujeita a consentimento da sociedade (art. 228º, 2, 1.ª parte, do CSC) –, estamos perante uma cláusula incidente sobre a transmissibilidade das quotas – frequentes antes e depois do CSC – que impõe que nesta sociedade só é livre a cessão se tiver como intervenientes os sócios da sociedade. Para todos os outros negócios transmissivos com outros sujeitos cessionários – considerados “estranhos” à sociedade –, a cessão é proibida e dependente de consentimento – assim reza a cláusula. Não resultando dela qualquer indicação no sentido do afastamento ou afrontamento do regime supletivo do CSC, aplica-se, por isso, o art. 228º, 2, assim como o relacionado art. 229º, 3, do CSC.  

Acontece que a cláusula se refere a cessão “proibida” a favor de estranhos. Não sendo equiparável – cessão proibida (art. 229º, 1, CSC) e cessão dependente de consentimento (art. 228º, 2, e 229º, 3, CSC) –, e devendo ser distinguida, o certo é que a cessão não livre, tal como consta da cláusula estatutária sob escrutínio e ficando expressamente dependente de consentimento na sua redacção literal, estará submetida ao regime do consentimento da sociedade, em especial a disciplina dos arts. 228º, 2 e 3, sob pena de ineficácia ou inoponibilidade perante a sociedade[8].


3.4.2. Assim sendo, para a interpretação devida da cláusula à luz do art. 228º, 2, do CSC, quem é sujeito “estranho”?
Deve entender-se como a pessoa que não seja sócio, quer seja ou não seja gerente (titular do órgão de administração e representação), e independentemente das relações familiares de maior proximidade com sócios (atendidas no art. 228º, 2, do CSC para os seus herdeiros legitimários), que se integra, por isso, na qualidade genérica de terceiro-não sócio (que, enquanto tal, pode ter relação externa com a sociedade, pode ter ligação orgânica ou outra à sociedade e à empresa social ou não ter sequer qualquer relação objectiva com a sociedade).[9]
Desde logo, para esta asserção concorre o fundamento racional da desnecessidade supletiva de consentimento prevista no art. 228º, 2, 2.ª parte, do CSC, uma vez que vemos com clareza que ele é diferenciado consoante estejamos perante um cessionário sócio ou um cessionário que seja familiar próximo-herdeiro legitimário do sócio cedente:
— sendo cessão entre sócios, a cessão é livre justamente porque o cessionário não é um estranho e com este não se promove a entrada de terceiros indesejados na composição do substrato pessoal da sociedade que a cessão não livre pretende obstar;
— sendo cessão entre sócios e seus familiares próximos (como sucessores, herdeiros legitimários em relação às duas primeiras classes de herdeiros legítimos: arts. 2157º e 2133º, 1, a) e b), do CCiv.), a razão da cessão livre (supletiva) prende-se com a compatibilização e harmonização com o regime (também supletivo) de transmissão da quota mortis causa, contemplado no art. 225º, 1, do CSC («O contrato de sociedade pode estabelecer que, falecendo um sócio, a respetiva quota não se transmitirá aos sucessores do falecido, bem como pode condicionar a transmissão a certos requisitos (…).»), uma vez que, “se, por força deste regime (supletivo), determinados estranhos – os sucessores do sócio – podem entrar para a sociedade pela via da sucessão mortis causa, compreende-se que o legislador tenha estabelecido, também supletivamente, que (alguns d)esses mesmos sujeitos possam entrar para a sociedade por transmissão inter vivos da participação social”, ou seja, “possam, igualmente sem consentimento da sociedade, adquirir uma quota por negócio inter vivos”, sendo certo e razoável “admitir que algum dos sujeitos que integram este núcleo mais restrito poderá, à morte do sócio, vir a tornar-se sócio da sociedade sem o consentimento desta”, “permitindo que o sócio, ainda em vida, ceda a quota livremente”[10].
Esta diferença racional implica, justificadamente, que sócios e «cônjuges, ascendentes e descendentes» dos sócios não estejam no mesmo plano enquanto cessionários para efeitos de dispensa de consentimento e, por isso, sejam estes últimos considerados “estranhos”, em contraposição aos sócios, e nessa categoria de “estranhos” se enquadrem quando a eles não se refira expressamente uma cláusula estatutária pertinente.
Esta é a interpretação, de outra banda, que se deve ter na decifração do sentido de «pessoa estranha» constante do art. 229º, 5, a), do CSC, para o efeito de sujeito portador de vontade insusceptível de condicionar os efeitos da cessão de quotas[11] – argumento a pari ratione na interpretação enunciativa do art. 228º, 2, do CSC[12], relativamente a serem “estranhos” o cônjuge, ascendentes e descendentes do sócio e, nesta óptica, serem como tal considerados nas cláusulas do pacto social que convoquem o seu regime.
Este é o resultado, por seu turno, que, recorrendo às regras de interpretação da declaração negocial (arts. 236º, 1, 238º, 1, CCiv.), adaptadas com pendor (mais) objectivo às cláusulas estatutárias de organização e funcionamento social – também relevantes para sócios futuros e terceiros (cláusulas “normativas”), “de forma a descobrir-se a vontade dos sócios tal como se revela (objectivada) no ato constituinte, no texto das cláusulas estatutárias em causa e no contexto estatutário”[13] –, se ajusta a uma cláusula estatutária que distingue os sócios como cessionários, para dispensar o consentimento para atribuição de eficácia, de todos os outros cessionários que não são sócios, para não o dispensar.

Pois bem.
Se o cessionário filho-sucessor-herdeiro legitimário do cedente, como no caso da cessão a que se refere o facto provado 11., é sujeito “estranho” para a interpretação da cláusula 8.ª dos estatutos e a sua conformidade com os arts. 228º, 2, e 229º, 3, do CSC;
Se a cessão a “estranhos” está estatutariamente dependente de consentimento da sociedade, nos termos permitidos pelo (aplicável) art. 229º, 3, do CSC, que permite exigir consentimento para as cessões em princípio livres a ascendentes, cônjuges e descendentes dos sócios enquanto “estranhos”;
Se não houve consentimento da sociedade, pois tal não resulta da factualidade assente e é assumido pelas partes, a cessão é ineficaz perante a sociedade nos termos prescrito pelo (aplicável) art. 228º, 2, 1ª parte, do CSC.

3.5. Falhando este pressuposto de eficácia, fica prejudicada a discussão de saber se o adicional requisito de eficácia da cessão se verificou no caso: a saber, a verificação de comunicação dirigida à sociedade, nos termos do art. 228º, 3, e da cláusula 9.ª, 1.ª frase, dos estatutos (cfr. facto provado 17.) ou, em alternativa, o reconhecimento dessa cessão, sempre no âmbito de aplicação do art. 228º, 3, do CSC.
Portanto, não se afigura relevante decifrar se foi solicitada a promoção do registo à sociedade e o seu valor de comunicação (nos termos vistos e em função do registo da cessão – cfr. facto provado 12.).
Nem se afigura pertinente saber se a realização da assembleia da sociedade, a que se refere o facto provado 14., com a participação do cessionário, equivale ao reconhecimento, expresso ou tácito, a que a lei se refere no art. 228º, 3.
Na verdade, o primeiro dos pressupostos – tal como exigido pelos estatutos – não se verifica e, sem esse consentimento, a transmissão almejada pela cessão da quota, depois de divisão, não produz efeitos em relação à sociedade.

Razões pelas quais procedem as Conclusões dos Recorrentes e deve ser sufragada a posição expressa na decisão de 1.ª instância (incluindo a referente à divisão de quota do cedente, considerando o disposto no art. 221º, 4 e 5, do CSC).


III) DECISÃO

Em conformidade, julga-se procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença proferida em 1.ª instância.

Custas pelos Recorridos.


STJ/Lisboa, 22 de Junho de 2021

Ricardo Costa (Relator)

Nos termos do art. 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do DL 20/2020, de 1 de Maio, e para os efeitos do disposto pelo art. 153º, 1, do CPC, declaro que o presente acórdão, não obstante a falta de assinatura, tem o voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos que compõem este Colectivo.

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).



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[1] RICARDO COSTA, A sociedade por quotas unipessoal no direito português. Contributo para o estudo do seu regime jurídico, Almedina, Coimbra, 2002, nt. 259 – págs. 270-271.
[2] V. RAÚL VENTURA, Sociedades por quotas. Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Vol. I – Artigos 197.º a 239.º, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 1989, págs. 577, 586 e ss.
[3] Arts. 3º, 1, c), 53º-A, 5, a), CRCom.; 242º-E, 1, 242º-D, CSC, 29º, 5, 29º-A, CRCom.
[4] COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, Vol. II, Das sociedades, 7.ª ed., 2021, págs. 347-348 (convergente, ainda que na adaptação do regime à SQU: RICARDO COSTA, ob. cit., pág. 330; também, quanto à não aplicação do art. 242º-A, PEDRO MAIA, “Registo e cessão de quotas”, Reformas do Código das Sociedades, IDET – Colóquios n.º 3, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 166: “A cessão, cujo registo não tenha sido solicitado à sociedade, não deixará de produzir efeitos em relação a esta se, nos termos do art. 230.º CSC, tiver sido prestado o consentimento”), Professor que acrescenta ser razoável entender que “uma solicitação (documentada) à sociedade para que promova o registo da cessão de quota, feita pelo cedente e/ou pelo cessionário, vale também como comunicação à sociedade dessa cessão (prevista no art. 228º, 3)”. E também é de considerar razoável que, se na solicitação da promoção do registo dirigida à sociedade está contida a referência à cessão efectuada, com os elementos identificadores, não há que exigir comunicação autónoma, que assim a absorve (neste sentido, ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Artigo 228º”, Código das Sociedades Comerciais em comentário, coord. de J. M. Coutinho de Abreu, Volume III (Artigos 175º a 245º), 2.ª ed., 2016, pág. 467.
[5] COUTINHO DE ABREU, ob. cit, págs. 346-347.
[6] Art. 2º, 1, do DL 262/86, de 2 de Setembro, que aprovou o CSC.

[7] Para esta conclusão e alguns dos argumentos, embora não totalmente coincidentes, v. ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, Cessão de quotas. Alguns problemas, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, págs. 97 e ss, “Artigo 530º”, Código das Sociedades Comerciais em comentário, coord. de J. M. Coutinho de Abreu, Volume VII (Artigos 481º a 545º), 2.ª ed., 2021, Almedina, Coimbra, pags. 587-588, 589 e ss, em esp. nt. 12, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 530º”, Código das Sociedades Comerciais anotado e regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais (DLA), coord. de António Menezes Cordeiro, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, pág. 1736 e nts. 2 e 3
Questão diferente – mas que exorbita do objecto do presente recurso – é a sorte (perante o CSC) da parcela da cláusula 8.ª que faz depender cumulativamente a eficácia da cessão das quotas do consentimento dos sócios não cedentes: tendo em conta o art. 229º, 5, a), do CSC, que proíbe a dependência da cessão da «vontade individual de um ou mais sócios», estamos no campo de aplicação directa do efeito ope legis prescrito na 1.ª parte do art. 530º, 1, 1ª parte, do CSC.
[8] De todo o modo, por analogia, também a cessão que não respeitasse a proibição pura e simples de transmissão é de considerar ineficaz, ainda que com atribuição do direito de exoneração nos termos dos arts. 229º, 1, e 240º, do CSC: ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Artigo 228º”, loc. cit., pág. 472.

[9] Expressamente neste sentido – “cônjuge, ascendentes e descendentes dos sócios são sujeitos estranhos à sociedade” –, v. PEDRO MAIA, “Cessão de quotas”, Os quinze anos de vigência do Código das Sociedades Comerciais, Fundação Bissaya Barreto/Instituto Superio Bissaya Barreto, Coimbra, 2003, pág. 130, assim como JOÃO CALVÃO DA SILVA, "S.T.J. – Acórdão de 12 de Setembro de 2013. Âmbito de aplicação e eficácia real de cláusula estatutária de preferência", RLJ, Ano 143º, n.º 3983, 2013, págs. 118, 120 – “cessão a estranhos (terceiros, não sócios)”.

Na jurisprudência do STJ, v., obiter dictum, o Ac. de 7/2/2017, processo n.º 153/04.9TYLSB.L1.S1, Rel. ALEXANDRE REIS, in www.dgsi.pt: “Tendo a sociedade A sido constituída por escritura outorgada em 16-12-1978, ficou estipulado no artigo quarto do respectivo contrato social que dependeria sempre do consentimento da sociedade a cessão de quotas que viesse a ser feita a estranhos, ou seja, não à sociedade ou a outros sócios” (sublinhado nosso)..
[10] Assim: PEDRO MAIA, “Cessão de quotas”, loc. cit., pág. 131.
[11] Neste sentido, inequívoco, RAÚL VENTURA, ob. cit., págs. 609-610.
[12] CASTANHEIRA NEVES, “Interpretação jurídica”, Digesta. Escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, pág. 367, JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito. Introdução e teoria geral, 13.ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, pág. 469.
[13] COUTINHO DE ABREU, ob. cit., págs. 146-147 (“A interpretação objetiva das cláusulas em questão justifica-se outrossim pelo facto (…) de as mesmas deverem constar de escrito e/ou do registo – forma e formalidade que visam tutelar também interesses de terceiros.”).