I – A falta dum pressuposto processual deixou de conduzir automaticamente à absolvição da instância, que só tem lugar quando a sanação for impossível ou quando, dependendo ela da vontade da parte, esta se mantiver inativa perante o convite ao aperfeiçoamento.
II – A lei consagra, assim, um dever do juiz de providenciar pela sanação da falta de pressuposto processual que seja sanável.
III – Este dever não se reporta apenas aos casos previstos em disposições legais específicas, mas abrange todos os pressupostos cuja falta possa, por natureza, ser sanada, a fim de que sejam removidos todos os impedimentos da decisão de mérito.
I - Relatório
1. AA, BB, CC e DD, vieram intentar ação declarativa, com processo comum, de restituição de posse contra Herança aberta por óbito de EE, representada por FF, GG, HH, II, JJ e LL, onde concluem, pedindo que a ação seja julgada procedente, por provada e, em consequência:
a) Declarar-se que os autores são donos e legítimos possuidores da água proveniente da Mina dos Enxertos referida no artigo 14 da petição e que dela usufruem da forma descrita;
b) Condenar-se os réus a reconhecer a posse e propriedade dos autores sobre a referida água;
c) Condenar-se os réus a absterem-se de praticar quaisquer atos que impeçam os autores de proceder ao uso e aproveitamento da água, tal como vêm fazendo na forma descrita nos arts. 14º a 59º;
d) Condenar-se solidariamente os réus a pagar aos autores o valor diário de €200,00 (duzentos euros) a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia em que persistir o incumprimento do peticionado na alínea precedente, a liquidar em execução de sentença;
e) Condenar-se solidariamente os réus a pagar aos autores o valor de €7.100,00 (sete mil e cem euros) a título da sanção pecuniária compulsória, já vencida, decretada na decisão cautelar, pelo incumprimento desta sentença, computada desde 23 de julho de 2019 até hoje;
f) Condenar-se solidariamente os réus a pagar aos autores o valor diário de €100.00 (cem euros) a título de sanção pecuniária compulsória enquanto persistir incumprimento referido na alínea precedente, até à prolação da decisão definitiva que atualize este valor nos termos peticionados na alínea d) do petitório.
g) Condenar-se solidariamente os réus a pagar aos autores o valor global de €15.716,20 (quinze mil setecentos e dezasseis euros e vinte cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais acima descriminados, acrescidos dos respetivos juros moratórios legais.
h) Condenar-se solidariamente os réus em custas, procuradoria e demais encargos.
Os réus FF, GG e LL, na qualidade de representantes da Herança Ilíquida e indivisa aberta por óbito de EE apresentaram contestação, onde invocam a ilegitimidade da ré Herança aberta por óbito de EE.
2. A fls. 43 vº foi proferido o seguinte despacho:
“Ao abrigo do disposto no artigo 593º, nº1 CPC decide-se dispensar a audiência prévia.
Não existem nulidades que afetem o processado.
A presente ação foi instaurada contra “Herança Aberta por óbito de EE”, representada por …”
Apreciando e decidindo:
Apenas a herança jacente tem personalidade judiciária – artigo 12º, al. a) CPC.
Os autores alegam no artigo 13º da p.i. que os réus são donos e legítimos possuidores de um prédio.
Assim sendo, não se estando perante uma herança jacente, mas perante uma herança aberta, ilíquida e indivisa (cf. documento de fls. 67 da providência cautelar), são os herdeiros dessa herança quem têm personalidade e legitimidade para estarem em juízo (cf. artigo 2091º CC).
Pelo exposto, decide-se absolver da instância a referida e descrita herança aberta, por falta de personalidade judiciária.
Os autores são parte legítima.
A exceção da ilegitimidade passiva da Herança e a alegação dos réus contida no artigo 24º da sua contestação encontra-se supra apreciada e portanto prejudicada, sendo os réus parte legítima na qualidade de herdeiros, nos termos do artigo 2091º CC.
Importa apreciar na presente ação se os autores são donos e legítimos possuidores da água proveniente da Mina dos Enxertos referida no art.º 14º da p.i., procedendo ao uso e aproveitamento da mesma nos termos e pela forma descritos nos arts. 14º a 59º.
Saber se os réus violaram tal direito, e na afirmativa, aferir dos os prejuízos/danos patrimoniais e não patrimoniais que provocaram, e que direitos assistem aos autores em face dessa violação e incumprimento do decidido na providência cautelar.
A) Aferir da constituição do invocado direito à água, pelos autores, nos termos descritos nos artigos 14º a 59º da petição inicial.
B) Aferir dos invocados atos violadores do referido direito de propriedade sobre a dita água.
C) Aferir da autoria dos invocados atos violadores.
D) Aferir dos danos patrimoniais e não patrimoniais provocados em consequência da apurada violação.
(…)”
3. Por sentença proferida nos autos principais em 19-02-2020 (conforme certidão junta ao recurso de revista pelos recorrentes), o tribunal de 1.ª instância decidiu julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:
«a) Declarar que os autores são donos e legítimos possuidores da água proveniente da Mina dos Enxertos referida em 1.11. dos factos provados.
b) Condenar os réus a reconhecer a posse e propriedade dos autores sobre a referida água.
c) Condenar a co-ré FF de se abster de praticar quaisquer actos que impeçam os autores de proceder ao uso e aproveitamento da água, tal como vêm fazendo na forma descrita em 1.12. a 1.33. e 1.36. a 1.39. dos factos provados, absolvendo os restantes RR deste pedido.
d) Em face do decidido nas anteriores alíneas, declarar convertida em definitivo a sanção pecuniária compulsória decretada na providência cautelar apensa relativamente à co-ré FF, absolvendo-se os restantes RR da sanção pecuniária compulsória peticionada na presente acção.
e) Condenar-se a co-ré FF a pagar aos autores o valor de €775,20 a título de indemnização pelos danos patrimoniais; o valor de €5.000,00 ao co-autor AA e de €1.000,00 aos restantes, a título de indemnização por danos não patrimoniais; todos os valores acrescidos dos juros de mora, à taxa de 4%, a contar da citação relativamente à quantia a título de indemnização por danos patrimoniais e a partir da presente decisão relativamente à indemnização por danos não patrimoniais.
2. Custas a cargo de AA e RR na proporção respectivamente de 1/4 e 3 /4».
3. Inconformados, a ré FF e outros, na qualidade de representantes da Herança aberta por óbito de EE, vieram interpor recurso do despacho saneador acima transcrito, que foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo (ref. ...028).
As questões suscitadas na apelação foram as seguintes:
1) Se deverá ser alterado o despacho que absolveu da instância a Herança aberta por óbito de EE;
2) Se deverá ser designada data para a realização de audiência prévia.
O Tribunal da Relação ...., por acórdão de 26-11-2020, decidiu julgar a apelação procedente e revogar a decisão recorrida, determinando o arquivamento dos autos.
Sumariou a seguinte conclusão acerca da questão decidida:
«A ilegitimidade singular é insuscetível de ser sanada, apenas se admitindo o suprimento da ilegitimidade plural, no caso de preterição de litisconsórcio necessário».
4. Inconformados, os autores interpõem recurso de revista, em cuja alegação formulam as seguintes conclusões:
«I. Vem a presente revista interposta do acórdão da Relação .... que
“Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a douta decisão recorrida, determinando-se o arquivamento dos autos. Custas pelos apelados.”
II. Para tanto, estribou-se o acórdão revidendo no entendimento de que a ilegitimidade singular é insusceptível de suprimento.
III. Ressalvado o devido respeito, que muito é, consideram os impetrantes que, se semelhante entendimento, se abstractamente correcto redunda, no caso em apreço, num resultado manifestamente iníquo e contrário às leis de processo, com o qual os recorrentes não podem conformar-se.
IV. Donde invocam como fundamento para a presente revista, para efeitos do disposto no art. 674º, nº 1, alínea b) do CPC a violação, pelo aresto recorrido, do Dever de Gestão Processual e do Princípio de Economia Processual, ínsitos, respectivamente, nos arts. 6º, nº2 e 590º, nº 1, alínea a) e no art. 130º do Código de Processo Civil.
V. Estamos diante de acção proposta contra herança jacente, quando deveria ter sido proposta contra os herdeiros que compõem a herança indivisa, esta que carece de personalidade jurídica (cfr. art. 12º, alínea a) a contrario CPC).
VI. Não obstante a presente acção, apesar de proposta contra a herança jacente foi intentada contra a pessoa de todos os herdeiros.
VII. Todos herdeiros foram citados para a presente lide nas datas de 16 e 17 de Outubro de 2019 – cfr. notas de citação (ref.ªs CITIUS nºs …918, …917, …916, …915, …914 e …913, todos de 09/10/2019) e respectivos avisos de recepção (ref.ªs CITIUS nºs …968, …413, …417, …425, …428 e …432 ) que ora se dão por reproduzidos.
VIII. Vários dos réus intervieram nos autos, contestando, apresentando requerimentos, intervindo em audiência de julgamento e no recurso de apelação da sentença, nos autos principais.
IX. Cumpriu-se, por isso, o disposto no art. 2091º do Código Civil.
X. Assim, não estamos propriamente diante de uma situação de ilegitimidade singular passiva pura e simples: não há in caso uma acção proposta contra A quando deveria ter sido intentada contra B como, em nosso ver erradamente, se invoca na fundamentação do douto acórdão revidendo.
XI. O que ocorre, no caso vertente é que uma acção foi proposta contra um património autónomo, que nem sequer personalidade jurídica tem, apesar de, transitoriamente, ter personalidade judiciária.
XII. Ou seja, a lei ficciona a susceptibilidade de ser interveniente processual de um património autónomo cujos titulares sejam desconhecidos (cfr. art. 12, alínea a) do Código de Processo Civil).
XIII. Não obstante, repita-se, neste caso foram demandadas todos as pessoas que deveriam ter sido.
XIV. A circunstância de terem sido citados na qualidade de herdeiros de um património autónomo – que não tem personalidade jurídica (nem sequer, já, judiciária) - não é nem pode ser impeditiva de se considerarem citados para os devidos efeitos legais, designadamente para exercerem o respectivo contraditório, como de resto o fizeram.
XV. Razão pela qual o, aliás douto, despacho saneador proferido em primeira instância, que determinou a absolvição da herança jacente e o prosseguimento dos autos contra a pessoa dos herdeiros, não merece reparo algum, já que privilegiou o apuramento do mérito da causa, em detrimento de um formalismo que se afigura excessivo.
XVI. Efectivamente, a Meritíssima Senhora Juíza de primeira instância mais não fez do que aplicar o Dever de Gestão Processual imposto pelos arts. 6º, nº 2 e 590º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil.
XVII. De outro modo, a manter-se o entendimento do acórdão recorrido, os presentes autos serão arquivados, levando à propositura de nova acção, com os mesmos fundamentos e - na prática – contra as mesmas pessoas que já foram citadas e intervieram nos presentes autos.
XVIII. Ou seja, a manutenção do aresto recorrido levará a uma duplicação desnecessária de processos, à repetição de todo o respectivo ritualismo - da petição inicial ao julgamento e putativos recursos - em violação do Princípio da Economia Processual, corporizado no art. 130º do CPC.
XIX. O efeito útil normal da presente lide foi obtido pela decisão de primeira instância, proferida nos autos principais a 19/02/2020 (cfr. sentença com a referência CITIUS nº ..034), entretanto objecto de recurso por um dos réus nos autos principais.
XX. Assim, a absolvição da instância da herança jacente, desacompanhada do prosseguimento dos autos contra os herdeiros propriamente ditos, originando o arquivamento dos autos, consubstancia uma interpretação excessivamente formalista que contraria os princípios do Novo Código de Processo Civil acima identificados, e que por isso não deve ser atendida.
XXI. Veja-se, neste sentido, inter alia, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 10/07/1990 (Moreira Mateus), processo nº 078685, e ainda os arestos da Relação de Coimbra, de 24/02/2015 (Catarina Ramalho Gonçalves), processo nº 1530/12.7TBPBL.C1 e de 27/05/2008 (Regina Rosa), processo nº 400/2002.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
XXII. A interpretação feita na jurisprudência ora citada, e bem assim no despacho saneador de primeira instância corresponde, aliás, à ratio subjacente à actual lei processual, que privilegia o apuramento do mérito em detrimento da forma, como se afere da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, que originou o actual Código de Processo Civil (promulgado pela Lei 41/2013 de 26 de Junho), disponível em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679
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XXIII. Em face do exposto, o acórdão revidendo violou as normas ínsitas nos arts. 6º, nº 2, 130º e 590º, nº 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, devendo por isso ser revogado e substituído por outro que, mantendo o teor do despacho saneador de primeira instância, permita o prosseguimento dos autos e conhecimento do mérito da causa.
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, dando provimento à presente Revista, fará este Supremo Tribunal inteira JUSTIÇA»
5. Os réus, notificados das alegações de recurso, não apresentaram contra-alegações
6. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, a única questão a decidir é a de saber se, tendo sido declarada a ilegitimidade passiva da herança jacente, a ação pode prosseguir contra as pessoas dos herdeiros que a representam e que foram citados nos presentes autos.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A – Os factos
Os factos a considerar são os que constam do Relatório que antecede.
B – O Direito
1. No despacho saneador proferido pelo tribunal de 1.ª instância decidiu-se que apenas a herança jacente tem personalidade (artigo 12º alínea a), do CPC), entendendo-se por tal a herança aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado (artigo 2046º Código Civil).
Todavia, julgou o tribunal que no caso dos autos não se estava perante uma herança jacente, mas perante uma herança aberta, ilíquida e indivisa (cf. documento de fls. 67 da providência cautelar), sendo então os herdeiros dessa herança quem têm personalidade e legitimidade para estarem em juízo (artigo 2091º do Código Civil), devendo a ação prosseguir contra eles.
Já o acórdão do Tribunal da Relação ..... entendeu, diferentemente, que, tendo sido a ação intentada unicamente contra a Herança aberta por óbito de EE, representada por FF, GG, HH, II, JJ e LL e não, também, contra os identificados herdeiros, com a absolvição da instância da ré Herança deixou de haver parte passiva.
Assim, não poderia prosseguir a ação, nem poderia o tribunal providenciar oficiosamente pelo suprimento da ilegitimidade, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, do CPC, dado que a ilegitimidade singular é insanável e que a lei processual apenas consente o suprimento da ilegitimidade plural (preterição de litisconsórcio necessário). O Tribunal da Relação .... deu assim por verificada a exceção dilatória de ilegitimidade, absolvendo da instância todos os réus (artigos 577º, al. e), 576º, nº 2, e 278º, nº 1, al. d), todos do CPC), não admitindo a sanação desta exceção dilatória.
2. Ora, em face do descrito, há que afirmar, em primeiro lugar, que a decisão do tribunal recorrido produz um efeito contrário ao princípio da economia processual, inutilizando um processo que já se encontra com sentença de mérito proferida e em fase de recurso de apelação. Este efeito choca com a ideia de proporcionalidade inerente ao Direito e aos princípios fundamentais vigentes na ordem jurídica. Todavia, para se consagrar a solução mais pragmática de determinar o prosseguimento do processo, conforme pretendem os recorrentes, é necessário que a lei a legitime ou que, pelo menos, não a exclua.
Vejamos:
Estando cada um dos herdeiros identificado na ação e tendo todos sido, individualmente, citados, como réus, não há obstáculos, fácticos e jurídicos, a que a presente ação possa prosseguir.
Em termos de direito processual, a ilegitimidade das partes é uma exceção dilatória que determina a absolvição da instância, nos termos do artigo 577.º, al. e), do CPC. Com a exigência da legitimidade das partes a lei pretende garantir que estejam em juízo os titulares da relação material litigiosa, para que se atinja o objetivo do processo, isto é, que a decisão a proferir possa efetivamente resolver o conflito. Assim, bem se compreende que, não figurando na lide ou faltando algum interessado cuja presença seja necessária, se justifique a absolvição da instância, admitindo-se a sanação do vício nos casos de preterição de litisconsórcio necessário passivo (artigos 590.º, n.ºs 2, al. a) e 6, n.º 2), o que pode culminar na intervenção provocada dos interessados em falta, nos termos do artigo 316.º, n.º 1, do CPC (cfr. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 656).
Para obviar à inutilização do processo, a lei processual admite, ao abrigo do artigo 39.º do CPC, no caso de haver dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação material controvertida, a dedução subsidiária do mesmo pedido contra réu diverso do que é demandado a título principal.
A proposta de lei que deu origem ao Código de Processo Civil de 2013 optou por desenvolver o conceito de gestão processual e acentuar os poderes judiciais de direção formal do processo, nos seus aspetos técnicos e de estrutura interna, valorizando o princípio do inquisitório e aderindo a uma conceção de processo civil diversa da primitiva conceção liberal. O juiz passa, assim, a ter poderes para assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo. Designa-se este poder como “poder-dever de agilização do processo”, o qual tem eficácia como poder de adequação formal e como um elemento de interpretação de outras normas (que concedam ao juiz poderes determinados de atuação), no sentido de estabelecerem deveres do juiz e não meros poderes discricionários (cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 22).
A reforma culminou com o artigo 6.º do CPC/2013, que, sob a epígrafe, «Dever de gestão processual», que no seu n.º 2 afirma o seguinte: «O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo».
Por seu turno, o artigo 7.º (Princípio da cooperação) implica para os juízes um dever de cooperar com as partes para que se atinja, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
O artigo 6.º, n.º 2, do CPC erigiu em regra a intervenção judicial no sentido da sanação da falta de pressupostos processuais. Nestes termos, ao juiz cabe providenciar, por iniciativa oficiosa, se as partes não o requererem, o suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação ou convidar as partes a suprir a deficiência para que a instância fique regularizada.
Como esclarecem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, ob. cit., p. 46), antes da revisão do CPC de 1961, a lei previa a sanação da falta de alguns pressupostos processuais, como a capacidade e a legitimidade em caso de litisconsórcio necessário. Com a revisão, o que era exceção, dependente de uma lei que especialmente a previsse, tornou-se a regra, e a falta dum pressuposto processual deixou de conduzir automaticamente à absolvição da instância, que só tem lugar quando a sanação for impossível ou quando, dependendo ela da vontade da parte, esta se mantiver inativa perante o convite ao aperfeiçoamento. A lei consagra, assim, um dever do juiz de providenciar pela sanação da falta de pressuposto processual que seja sanável (cfr. Lebre de Freitas, Ação declarativa comum, 4.ª edição, Gestlegal, Coimbra, 2018, n.º 11.2, p. 184). E este dever não se reporta apenas aos casos previstos em disposições legais específicas, mas abrange todos os pressupostos cuja falta possa, por natureza, ser sanada, a fim de que sejam removidos todos os impedimentos da decisão de mérito (Ibidem, p. 185).
O artigo 590º, nº 2, alínea a), CPC dispõe que “Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a: a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6º”.
Com a evolução verificada ao longo das sucessivas reformas do Código de Processo Civil, pode afirmar-se, que a insupribilidade é hoje residual, respeitando apenas àquelas exceções que, pela sua natureza ou por via do seu regime, não consentem suprimento, oficioso ou mediante convite às partes, ao abrigo do artigo 6.º, n.º 2, do CPC, tais como a ineptidão da petição inicial, o erro na forma do processo (quando não passível de adequação formal), a litispendência e o caso julgado (artigo 577.º, al. i), do CPC), a falta de personalidade judiciária de alguma das partes e a ilegitimidade de alguma das partes, quando não proveniente da falta de intervenção de terceiro litisconsorte necessário (artigos 30.º, 53.º, 261.º e 577.º, al. e), todos do CPC) - cfr. Lebre de Freiras/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 623.
Como afirmam os autores citados (ob. cit., p. 623), «Diversamente do estatuído antes da revisão de 1995-1996 da Reforma do CPC de 1961 deixou de haver uma enumeração taxativa dos pressupostos processuais cuja falta gera o indeferimento liminar, mas, em compensação, o indeferimento só de dá nos casos extremos em que o pressuposto em falta é absolutamente insuscetível de suprimento ulterior, de harmonia com a preocupação de assegurar, sempre que possível, a decisão de mérito».
Tem sido defendido, pela doutrina (Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Vol 2.º, ob. cit., p. 628), a propósito a preocupação da lei com a realização da função processual, mediante a pronúncia de decisão de mérito, a existência de um dever do juiz de providenciar pela sanação da falta de pressupostos processuais (artigo 278.º, n.º 4, do CPC).
Relativamente à questão da legitimidade da herança, dispõe a lei que apenas a herança jacente tem personalidade (artigo 12º alínea a), do CPC), entendendo-se por tal a herança aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado (artigo 2046º Código Civil), por desconhecimento da existência de herdeiros, por existência de herdeiros legítimos ou testamentários que ainda não aceitaram a herança ou pelo facto de ter sido deixada a favor de nascituro ou conceturo. A herança jacente assume provisoriamente o lugar do de cujus na relação jurídico litigada e não se confunde com os herdeiros que venham a habilitar-se (artigos 2050 e ss do Código Civil), correspondendo a uma fase transitória de relativa indefinição jurídica no fenómeno sucessório que, contudo, não se confunde com a herança indivisa (cfr. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, Código Civil Anotado, vol. 1.º, ob. cit., p. 46).
No caso vertente, a herança já foi aceite, mas permanece num estado de indivisão, pelo que não tem personalidade judiciária, sendo parte ilegítima na ação.
Contudo, a ilegitimidade da herança para ser ré na ação só implicaria a absolvição de instância insanável, se os herdeiros não tivessem sido nomeados para a ação. Ora, tendo todos eles sido nomeados como réus (ainda que em representação da herança), e efetivamente citados para a ação, nessa qualidade, não se pode afirmar, como faz o acórdão recorrido, que estamos perante uma situação de ilegitimidade singular insanável. Esta foi pensada para os casos em que se demanda A, quando se devia ter demandado B. Contudo, no caso vertente figuram como réus da ação os sujeitos que para tal têm legitimidade, todos os herdeiros. O erro na nomeação da herança aberta como ré não deixa a ação sem sujeito passivo ou com um sujeito passivo sem legitimidade processual. O que se verificou não foi um erro insanável, mas apenas uma indicação errónea da herança como ré, por falta de personalidade judiciária desta, que, todavia, não impede que a ação possa prosseguir contra quem tem, de facto, legitimidade, desde que tenha sido citado para a ação na qualidade de réu. Embora impropriamente se fale em herança aberta “representada” pelos herdeiros cujo nome é indicado individualmente, são os herdeiros quem tem legitimidade para intervir como parte ativa ou passiva na ação (artigo 2091º, n.º 1, do Código Civil). A regra, segundo o artigo 2091.º, n.º 1, do Código Civil, é a de que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos (conjuntamente) por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. Trata-se de um caso de litisconsórcio necessário, em que a falta de qualquer dos herdeiros interessados na ação é fundamento de ilegitimidade de qualquer dos intervenientes (cfr. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, Anotação ao artigo 2091.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 152). E, se a falta de um dos herdeiros, por se tratar de litisconsórcio necessário, pode ser suprida mediante convite ao aperfeiçoamento, também, em virtude de um raciocínio de analogia, tem de se concluir que, se todos os herdeiros foram citados para a ação como réus (do lado passivo), a procedência da exceção dilatória da ilegitimidade da herança aberta e indivisa para ser parte não impede que a ação prossiga contra os herdeiros, à luz dos valores fundamentais de processo civil plasmados no princípio da economia processual (artigo 130.º do CPC) e nos deveres do juiz de gestão processual e de cooperação (artigos 6.º e 7.º, ambos do CPC), de acordo com a interpretação ampla que lhes tem sido dada pela doutrina e pela jurisprudência posteriores à reforma de 1995-1996 e ao novo Código Processual de 2013. A circunstância de os herdeiros terem sido indicados como réus, a título de representantes da herança indivisa, a quem veio a ser negada legitimidade processual para ser parte, e não diretamente na qualidade pessoal de herdeiros, não torna o vício da ilegitimidade passiva insanável. Em primeiro lugar, não se julga adequado usar, como fez o acórdão recorrido, o paradigma da legitimidade singular para afirmar o caráter insuprível do vício, pois estamos perante uma ação em que do lado passivo temos uma situação de litisconsórcio necessário e não uma situação de legitimidade singular. Em segundo lugar, todos os herdeiros foram citados individualmente e tiveram a possibilidade de contestar e de participar na ação, exercendo o contraditório, pelo que não falta qualquer sujeito na ação, que devesse ter sido demandado e não o fosse, revelando-se contrário aos deveres de gestão processual e de cooperação, bem como ao princípio de economia processual o arquivamento do presente processo e a obrigação das partes instaurarem uma nova ação com o mesmo objeto e contra as mesmas pessoas. Por outras palavras, a ilegitimidade da herança não determina o arquivamento do processo se a ação foi proposta contra todos os herdeiros individualmente.
De facto, a herança já aceite, expressa ou tacitamente, perde o seu caráter jacente e a correspetiva personalidade judiciária (artigo 12.º, alínea a), a contrario CPC), sendo exigível que os direitos exercidos pela ou contra a herança indivisa o tenham que ser na pessoa de todos os herdeiros (artigo 2091º do Código Civil). Assim, têm razão os autores quando afirmam que a ilegitimidade singular, neste caso, é apenas aparente ou ficcional. Na verdade, não se demandou a pessoa errada, mas sim um património autónomo (sem personalidade jurídica) representado pelas mesmas pessoas que devem figurar na lide como réus, enquanto titulares da herança indivisa. Neste sentido, Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa (Código Civil Anotado, vol. 1.º, ob. cit., pp. 45 e 47), entendem que apesar de ser incorreta a designação da parte como “Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de X” ou “Herança H, representada pelos herdeiros X, Y e Z”, pois que a herança indivisa, na medida em que é atribuída a herdeiros que estão identificados, não se subsume à noção de património autónomo, tal não impõe a absolvição imediata do réu da instância, mas antes uma interpretação corretiva, se for evidente, como em geral sucede, que se trata de uma situação de herança indivisa cujos interesses são titulados pelos respetivos herdeiros.
Assim, deve entender-se que, estando individualmente identificados na ação todos os herdeiros como réus e tendo sido citados individualmente para contestar, são estes que têm personalidade judiciária e legitimidade processual para serem réus na ação, não se justificando o arquivamento dos autos.
Em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, por violação das normas extraídas dos artigos 6º, nº 2, 130º e 590º, nº 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil e determina-se a descida do processo ao tribunal recorrido para decisão sobre a segunda questão suscitada na apelação, a designação de data para a realização de audiência prévia, cujo conhecimento ficou prejudicado.
Anexa-se sumário elaborado ao abrigo do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:
I – A falta dum pressuposto processual deixou de conduzir automaticamente à absolvição da instância, que só tem lugar quando a sanação for impossível ou quando, dependendo ela da vontade da parte, esta se mantiver inativa perante o convite ao aperfeiçoamento.
II – A lei consagra, assim, um dever do juiz de providenciar pela sanação da falta de pressuposto processual que seja sanável.
III – Este dever não se reporta apenas aos casos previstos em disposições legais específicas, mas abrange todos os pressupostos cuja falta possa, por natureza, ser sanada, a fim de que sejam removidos todos os impedimentos da decisão de mérito
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e repristinar a decisão do tribunal de 1.ª instância, baixando o processo ao tribunal recorrido para decisão sobre a designação de data para a realização da audiência prévia.
Custas pelos recorridos.
Lisboa, 6 de julho de 2021
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunta)
Fátima Gomes (2.ª Adjunta)