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APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
Sumário
Não é de aplicação imediata a lei processual penal que prevê em relação a determinado crime, ao contrário da lei antiga, a possibilidade de constituição de assistente
Texto Integral
Acordam nesta Secção do Tribunal da Relação do Porto
No inquérito n.º …/92.7TAVRL, depois de requerida a instrução, no âmbito da qual se procedeu a produção de prova e a debate instrutório, foi proferido o despacho de não pronúncia de fl.s 4449 a 4459, que, a final, não pronunciou os arguidos e determinou o arquivamento dos autos.
Inconformado, recorreu o assistente B….., já identificado nos autos, concluindo a sua motivação do seguinte modo:
1. A competência territorial para apreciar toda a matéria constante do inquérito deverá ser a do Tribunal de Comarca de Vila Real, por haver conexão de processos (art.º 24, do CPP) e ainda porque nos termos do artigo 21 do mesmo código porque nas circunstâncias concretas constantes dos autos houve factos que ocorreram também na comarca de Vila Real e foi nesta comarca que primeiro houve notícia do crime.
2. O crime de peculato, p. e p. no artigo 375, do CP, praticado pelo arguido C….. em 1995 (há menos de 10 anos) ainda não se encontra prescrito, atendendo à sua moldura penal e ao disposto no artigo 118, n.º 1, al. b), do mesmo código.
3. O crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. no artigo 36, do DL 28/84, de 20/01, em que os arguidos participaram por omissão, deverá nos termos do artigo 30, do CP, ser qualificado de crime continuado com última tranche paga em 1994 pelo que, no que respeita à prescrição, também neste caso ainda não aconteceu.
Termos em que, peticiona seja concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão instrutória de não pronúncia, substituindo-a por outra que, determinando a competência territorial do Tribunal de Comarca de Vila Real, para o conhecimento de todos os factos constantes do inquérito e pronuncie os arguidos pela prática dos crimes ainda não prescritos, indicados no requerimento de abertura de instrução.
O MP na comarca, respondeu pugnando pela improcedência do recurso, com o fundamento em que a Juiz de Instrução não podia versar sobre factos que o MP entendeu, por questões de competência, deverem ser investigados noutras comarcas, bem como que os factos fixados, que o recorrente não conseguiu impugnar, não se podem enquadrar a outros tipos legais que não os referidos no despacho de arquivamento, os quais, como aí se salienta já se encontram prescritos.
De igual modo, refere o MP que, considerando o regime legal em vigor à data dos factos, a admissibilidade da figura do assistente é de duvidosa legalidade.
Pelo que termina pedindo a manutenção do despacho recorrido.
Por sua vez, o arguido D….., respondeu alegando que na fase de instrução já não poderia ser questionada a matéria da incompetência territorial e que os eventuais crimes estão prescritos, pelo que, consequentemente, pugna pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Os arguidos E….. e F….., responderam alegando que o recorrente não tem legitimidade para interpor o recurso em análise, pelo menos em relação a eles, com o fundamento em que na lei processual penal ao tempo em vigor, não era admissível a constituição de assistente para o crime que lhes é imputado.
Relativamente à questão da competência territorial, defendem estes arguidos que a mesma já se encontra fixada, face ao entendimento perfilhado na decisão recorrida de que a consumação de tal tipo de crime se verifica com a entrega das quantias recebidas por força da atribuição do subsídio.
Por último, defendem, ainda, que os crimes que lhes são imputados já se encontram prescritos, atenta a data em que foi efectuado o último depósito.
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador – Geral Adjunto apôs o seu visto, aderindo ao fundamentos das respostas anteriormente oferecidas tanto pelo MP em 1.ª instância como pelos arguidos E….. e F…. .
Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, há que decidir.
O âmbito dos recursos afere-se e delimita-se através das conclusões formuladas na respectiva motivação conforme jurisprudência constante e pacífica desta Relação, bem como dos demais tribunais superiores, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As questões a resolver são as seguintes:
A. A legitimidade do ora recorrente, com o fundamento em que na lei processual penal em vigor à data dos factos não era admissível a constituição de assistente, relativamente ao crime de fraude na obtenção de subsídio.
B. Qual a competência territorial a atribuir ao Tribunal de Comarca de Vila Real, relativamente aos crimes em causa nos presentes autos.
C. Se o crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375, do Cód. Penal, praticado pelo arguido C….. em 1995, se encontra ou não prescrito e;
D. Se o crime de fraude na obtenção de subsídio, praticado por todos os arguidos, também não se encontra prescrito, por dever ser qualificado como integrando uma continuação criminosa.
A. Legitimidade do ora recorrente, com o fundamento em que na lei processual penal em vigor à data da prática dos factos não era admissível a constituição de assistente, relativamente ao crime de fraude na obtenção de subsídio.
É ponto assente que os factos que deram origem aos presentes autos ocorreram em data anterior a 01 de Outubro de 1995.
Por outro lado, como consta de fl.s 3933, o ora recorrente, ao requerer a abertura de instrução fê-lo com o propósito de que todos os arguidos fossem pronunciados pela prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, p. e p. pelo artigo 36, do DL 28/84, de 20/1 e ainda os arguidos G….. e C….., pela prática de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo artigo 420, n.º 1, do CP de 1982 e 372, n.º 1, do actual.
Conforme fl.s 4114, o ora recorrente foi admitido como assistente em 15 de Julho de 2002.
De acordo com o disposto no artigo 68, n.º 1, al. e), do CPP, na redacção anterior à que lhe foi dada pela Lei 59/98, de 25/8, qualquer pessoa se podia constituir assistente, nos crimes de corrupção e de peculato.
Só na redacção que pela Lei ora citada foi dada a este preceito é que surgiu, relativamente ao crime de fraude na obtenção de subsídio, a possibilidade de qualquer pessoa se poder constituir como assistente, o que ocorreu já depois de os presentes autos terem sido instaurados.
De acordo com o artigo 10.º de tal Lei, a mesma entrou em vigor (salvas as excepções previstas no n.º 2 deste preceito, em que não se integra a constituição de assistente) em 01 de Janeiro de 1999.
Como regra, a lei processual penal é de aplicação imediata, de acordo com o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do CPP.
No entanto, assim não sucede, cf. n.º 2, al. a), deste artigo, “…quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:
a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa, …”.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal anotado, vol. I, 2.ª edição, a pág.s 83 e 84, trata-se de um conceito abstracto, conferindo ao julgador a faculdade de, em cada caso concreto, dizer o que poderá constituir ou não agravamento sensível da situação processual do arguido, acrescentando os mesmos autores que por tal se tem de entender “um agravamento palpável, significativo, importante, com repercussão na esfera jurídica processual do arguido”.
Ora, uma das faculdades que a lei atribui ao assistente, cf. artigo 287, n.º 1, al. b), do CPP, é a de este poder deduzir acusação, relativamente a factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação.
Daqui decorre, pois, que não é inócuo para o arguido que seja ou não, possível a constituição de uma qualquer pessoa como assistente relativamente a certo crime, uma vez que sendo-o, o arguido pode vir a ser sujeito de instrução, a que se poderá ou não seguir o julgamento, o que se traduz num agravamento importante na esfera jurídica processual de um arguido, já que encerra mais uma possibilidade de ser submetido a julgamento, no caso de o MP não deduzir acusação.
Consequentemente, tem de concluir-se, em face do disposto no artigo 5.º, n.º 1, al. a), do CPP, que, in casu, não se aplica o disposto no artigo 68, n.º 1, al. e), do CPP, na redacção que lhe foi dada pela Lei 59/98, de 25/8, mas sim a redacção original, na qual, relativamente ao crime de fraude na obtenção de subsídio não era possível a constituição de assistente e, por consequência, também não era possível que a instrução fosse requerida como o foi, por lhe faltar a qualidade de assistente – neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra, de 29/1/92, in CJ, ano XVII, tomo 1, pág. 111 e Souto Moura, Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, pág. 122 e seg.s - como agora o pode ser, pelo assistente, pelo que, relativamente ao crime de fraude na obtenção de subsídio não deveria ter sido admitido o ora recorrente a intervir como assistente nem, consequentemente, deveria ter sido aberta a instrução.
Mas o facto é que tanto o ora recorrente foi admitido a intervir como assistente como tal crime foi, igualmente, objecto da instrução.
Pelo que importa ver quais as consequências que, a nível processual decorrem de tal admissão.
Como se constata de fl.s 4114, o despacho de admissão do ora recorrente como assistente, tem carácter tabelar, não tendo, em concreto, averiguado da legitimidade do mesmo para o fazer.
Ainda assim, o despacho de admissão do queixoso como assistente não faz caso julgado, sendo reversível, tal como decidido no Acórdão da Relação de Lisboa, de 25/06/2002, in CJ, 2002, tomo 3, pág. 147 e desta Relação, de 26/04/2000, in CJ, 2000, tomo 2, pág. 242.
Efectivamente, como se refere nestes Arestos, a constituição de alguém como assistente está dependente da verificação dos requisitos formais e materiais que para tal a lei enumera e logo que se verifica que falha um de tais pressupostos, então daí devem tirar-se as devidas consequências, ou seja, declarar a ilegitimidade para tal de alguém ainda que anteriormente como tal tenha sido constituído.
De acordo com o disposto nos artigos 48 a 50 e 68 e 69, do CPP, é ao MP que cabe a titularidade da acção penal, desiderato que não pode ser posto em causa pelo facto de, contra legem, alguém ter sido indevidamente admitido como assistente e, por arrastamento, ter sido feita a instrução a requerimento de quem assim foi admitido a intervir.
Assim, atenta tal falta de legitimidade ao ora recorrente para poder requerer a abertura de instrução, relativamente a tal crime, a qual é de conhecimento oficioso e atento a que os despachos de admissão como assistente e de abertura da instrução não constituem, quanto a tal questão, força de caso julgado e atento a que o MP não deduziu acusação quanto ao crime de fraude na obtenção de subsídio, fica sem suporte a pretensão do ora recorrente, relativamente a tudo o que respeita a tais crimes, apenas nos cabendo apreciar as demais.
B. Qual a competência territorial a atribuir ao T. J. de Vila Real?
O ora recorrente insurge-se contra o facto de o MP ter mandado extrair diversas certidões para remeter às comarcas onde foram depositadas as quantias relativas a cada um dos subsídios atribuídos, sendo do entendimento daquele que o Tribunal de Vila Real é o competente para conhecer de todos eles, por alguns dos factos aqui também terem ocorrido e por ser esse o local em que primeiro houve notícia do crime.
Através do Acórdão n.º 2/2006, de 23/11/05, in DR I-A, de 04/1/2006, o Supremo Tribunal, uniformizando a jurisprudência, decidiu que o crime de fraude na obtenção de subsídio se consuma com a disponibilização ou entrega do subsídio ou subvenção ao agente, pelo que nada há a assinalar quanto ao critério seguido quer pelo MP quer pela M.ma Juiz de Instrução relativamente à consumação dos crimes de fraude na obtenção de subsídio.
Por outro lado, é indubitável que estamos perante uma questão de competência material.
Pelo que, conforme o disposto no artigo 32, n.º 2, al. a), do CPP, é extemporânea a alegação de tal tipo de competência/incompetência, a qual só podia ser deduzida e declarada, como ali expressamente se refere, até ao início do debate instrutório, o que não se verificou, cf. acta de fl.s 4395 e 4396.
Assim, impõe-se concluir que a questão da incompetência territorial já se encontra definitivamente fixada, pelo que, quanto a tal, não pode o presente recurso proceder.
C. Prescrição ou não do eventual crime de peculato, p. e p. pelo arguido C……, em 1995.
Para tal, alega o recorrente que o arguido em causa, já depois de Março de 1995, se apoderou de lenha pertencente à DGF e usou o trabalho de alguns funcionários em obras particulares.
A M.ma Juiz de Instrução, aderindo aos fundamentos expandidos pelo MP aquando da prolacção do despacho de arquivamento, entendeu que, face aos factos dados por indiciariamente apurados e que o recorrente não atacou, não se verifica a prática do crime de peculato, dada a insusceptibilidade da apropriação da mão de obra que não pode ser qualificada de “coisa” e que as eventuais entregas de dinheiro, foram feitas antes de 1990, pelo que, relativamente ao crime de corrupção sempre se teria por verificada a prescrição.
Compulsando o despacho de arquivamento do MP, no que concerne a tal arguido, designadamente fl.s 3857 e 3858, verifica-se que, relativamente ao crime de fraude na obtenção de subsídio, se decidiu repartir o seu conhecimento face ao critério de fixação de competência territorial a que já acima se aludiu.
Quanto o crime de peculato, entendeu-se que a factualidade em causa não o integrava, por a energia do trabalho não se poder equiparar a coisa e a apropriação da lenha é objecto de averiguação autónoma.
No que respeita ao de corrupção, nos moldes acima assinalados, ordenou-se o arquivamento dos autos por prescrição, o que o ora recorrente não pôs em causa, uma vez que nas respectivas conclusões de recurso apenas se insurge relativamente ao arquivamento, por prescrição, no que toca ao crime de peculato.
Assim sendo e porque as conclusões delimitam o objecto do recurso, apenas incumbe observar se a factualidade em causa integraria o crime de peculato ou o de abuso de poderes, o que é de fundamental importância para a questão da prescrição, uma vez que o crime de peculato só prescreve decorridos que sejam 10 anos, ao passo que o de abuso de poderes prescreve ao fim de 5 anos, como se assinala a fl.s 10 (4458, dos autos) do despacho de não pronúncia.
Defende o recorrente que o uso de mão de obra de funcionários da DGF, de Vila Real, para a execução de tarefas particulares, por parte de tal arguido, integra a prática do crime de peculato, enquanto que o MP propugna que tais actos integram a prática de um crime de abuso de poderes.
Um dos elementos exigidos para que se possa ter por verificada a prática de um crime de peculato é o de que o agente se aproprie de algo que já pré-detém por inerência das funções que desempenha.
A questão que divide os diversos intervenientes é a de saber se a “força de trabalho humana” pode ser considerada “coisa” para efeitos criminais, entendida esta no sentido de propiciar a apreensão exclusiva por alguém.
No artigo 375, do Código Penal, estão previstas apenas duas categorias de bens – dinheiro ou qualquer coisa móvel, pelo que no seu n.º 2, a referência a “valores ou objectos referidos no número anterior”, apenas pode entender-se como designando o dinheiro e as coisas móveis, embora o dinheiro seja não apenas o papel-moeda, mas em todas as suas formas possíveis – neste sentido Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense …, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág.s 692 e 693.
Assim sendo, para que a conduta do ora recorrente e no que respeita a este tipo de crime, o preencha, e porque será de afastar a hipótese de a energia/força de trabalho ser considerada como dinheiro, terá a mesma de ser entendia como coisa móvel.
E nem se diga que a mesma, considerando, o valor correspondente ao trabalho assim será de considerar (como valor, nos termos enunciados no n.º 2 do artigo 375, CP), aqui se integra, pois que a expressão “valores” apenas se refere a dinheiro, em qualquer das suas vertentes (papel moeda, cheques, notas de banco estrangeiro, títulos de crédito, etc.).
De outro modo estaria encontrada a forma de fazer entrar no tipo legal de crime em causa, uma conduta ali não prevista, o que é vedado pelo disposto no artigo 1.º, n.os 1 e 3, do Cód. Penal. Consequentemente, para que a conduta do arguido C….. integre a prática de tal crime terá que considerar-se que a “força/energia de trabalho” pode ser configurada como uma “coisa” para efeitos da prática de um crime.
A definição de “coisa” para efeitos da incriminação de crimes contra o património (sendo que no crime de peculato, para além da tutela da probidade e fidelidade dos funcionários, também se visa a defesa dos bens patrimoniais do Estado – cf. Conceição Ferreira da Cunha, ob. cit., a pág. 688) não tem colhido unanimidade na doutrina e na jurisprudência, quer actualmente, quer no passado.
Para José Faria Costa, in Comentário …, Parte Especial, tomo II, Coimbra Editora 1999, pág. 34 e seg.s, a pedra de toque para tal definição reside na corporeidade, enquanto susceptível de apropriação individual – pág. 37.
Por seu turno, Paulo Saragoça da Mata, in Liber Discipulorum …, Coimbra Editora, 2003, de pág.s 1000 a 1003, partindo do mesmo conceito de Faria e Costa, defende que o conceito de “coisa” para efeitos de incriminação de um crime “…tem de ter características que nem todas as coisas, para o Direito em geral têm”, seguidamente ao que, para melhor explicitação analisa detalhadamente alguns dos casos mais dúbios, como o cadáver humano, partes do corpo humano ou órgãos, próteses e energias mecânicas e outras substâncias não palpáveis: electricidade, energia térmica e gás e informação armazenada em suportes informáticos, concluindo que em todos estes casos se pode verificar a apropriação por outrem.
Posição idêntica à de Faria Costa, tem Manuel da Costa Andrade conforme o mesmo defende em anotação ao artigo 212, do Código Penal, in Comentário …, vol. II, já cit., a pág.s 208 e 209, assentado tal definição na corporeidade, entendida esta no sentido de se tratar de coisa materialmente apreensível ou, de qualquer forma, exposta à acção do homem, quer destrutiva quer modificativa, independentemente do seu estado físico.
Também a nível jurisprudencial, tem havido evolução, sendo hoje comummente aceite que a energia eléctrica, impulsos telefónicos, sinal de TV e de TV Cabo, são susceptíveis de apreensão e por isso passíveis de fazer incorrer quem as apreenda na prática de um crime contra o património.
Igualmente se passou a considerar como “coisa” para tais efeitos a apreensão de bens e objectos que, antes de separados, faziam parte de coisas imóveis, v.g. certas quantidades de água de um poço ou nascente, árvores que se separam do solo ou frutos que se arrancam de uma árvore, estátuas, partes componentes de prédios rústicos ou urbanos, como transparece, entre outros, dos Acórdãos referidos in BMJ 460, 380 e da Relação de Lisboa, de 10/10/2001, CJ, ano XXI, pág. 141, para além da resenha, que a tal respeito faz Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 17.ª edição, Almedina, 2005, a pág. 674.
No tocante à força de trabalho humano não descortinámos nenhuma decisão jurisprudencial, sendo que a nível doutrinário existem algumas referências quanto a tal.
Assim, Faria Costa, in ob. cit., pág. 39, na senda dos autores italianos ali referidos, afasta a possibilidade de a mesma ser entendida como coisa em sentido jurídico-penal, por contraposição com as chamadas energias mecânicas, que o são.
Também Conceição Ferreira da Cunha, in ob. cit., a pág. 693, afasta a possibilidade de o uso do trabalho dos subordinados para fins particulares poder integrar a noção de coisa móvel para o fim tido em vista, nem sequer se podendo como tal considerar o valor correspondente à parte do salário relativa ao trabalho efectuado, por a força de trabalho não ser coisa móvel para tais efeitos, sendo que, quanto à questão do valor/resultado do trabalho prestado pelos funcionários em causa ao ora recorrente, já acima nos pronunciámos, no sentido de o excluir do tipo legal de crime de peculato.
Os autores italianos citados por Faria Costa, são Giovanni Fiandaca e Enzo Musco, os quais, in Diritto penale, Parte speciale, Volume II, tomo secondo, Delitti contro il património, Zanichelli, Bologna, 1997, em anotação ao artigo 624, do código penal italiano, capítulo 4.5.1 (da obra agora referida), afastam a possibilidade de “coisificação” da energia humana e animal, por insusceptíveis de apropriação por parte de outrem, condescendendo, apenas, no caso de uso não autorizado da força potenciada pela utilização de um animal, a hipótese de, quem assim procede, poder vir, em última ratio, a incorrer na prática de um crime de furto de uso.
Traçado o quadro teórico de tal questão, tudo se resume a uma questão de opção (justificada) por uma das teses em confronto.
E fazendo-o, por nós, entendemos que a energia/força de trabalho humana consiste em algo que não é susceptível de apreensão por parte de outrem. Nada a compara às energias ditas mecânicas, v. g., eléctrica, impulsos telefónicos, sinal de tv cabo, tráfego cibernáutico ou similar, não é controlável nem quantificável, é algo que é inerente e faz parte da própria natureza humana e como tal insusceptível de ser objecto de apreensão por outrem.
A força de trabalho é insindicável da própria pessoa que a exerce, tendente a produzir um certo resultado – o trabalho prestado – umas vezes conseguido outras nem por isso, ou só em parte, consistindo este na contrapartida pela quantia recebida a título de salário.
O resultado do trabalho prestado e força de trabalho não se confundem, o primeiro consiste no resultado da acção ou conduta do trabalhador e a segunda no meio através do qual se alcança o fim tido em vista.
Não obstante, ao fim de um dia de trabalho, não se pode quantificar a “energia” gasta por uma pessoa na prossecução de um certo fim, que, inclusive, pode ser alcançado por diversas maneiras e com um dispêndio maior ou menor de “energia”, energia esta que tenderá a ser reposta biologicamente.
Por outro lado, não se pode dizer que ao fim de um dia de trabalho, a pessoa que o exerceu não seja a mesma que o era no início de tal tarefa, não perdeu nenhuma parte de si mesmo, poderá estar mais cansado, mas nenhuma das suas faculdades ou energia foi apreendida, em termos de corporeidade, por outrem. Não é quantificável nem mensurável, nem apreensível o dispêndio físico ou mental investido numa tarefa.
Por tudo isto, somos de opinião, na esteira dos autores acima citados, que a força de trabalho humana não constitui “coisa móvel” para efeitos de incriminação pela prática do crime de peculato.
Consequentemente, e porque tais factos, apenas poderiam vir a integrar a prática de um crime de abuso de poderes, cujo prazo prescricional é o de 5 anos, bem andou a M.ma Juiz de Instrução ao não pronunciar o arguido C….. pela prática do aludido crime de peculato.
Pelo que, também quanto a tal, improcede o presente recurso.
D. Prescrição do crime de fraude na obtenção de subsídio, que no entender do recorrente integra uma continuação criminosa, pelo que ainda não estaria prescrito.
Como consequência do que se decidiu aquando da análise da questão supra identificada sob a letra “A”, carece o recorrente de legitimidade para se pronunciar quanto a esta questão, pelo que da mesma não se conhece.
Nestes termos se decide:
Julgar por não provido o presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
O recorrente pagará 5 (cinco) Uc.s de taxa de justiça.
Porto, 05 de Abril de 2006.
Arlindo Martins Oliveira
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
José Joaquim Aniceto Piedade