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CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXIAL
REQUISITOS
ACTO EXIBICIONISTA
LIBERDADE SEXUAL
AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL
Sumário
I – A prática de um ato exibicionista perante pessoa que nele não consente e com ele se sente importunada é, só por si, de acordo com o legislador, um ato violador da liberdade sexual dessa pessoa, ou da sua autodeterminação sexual, se se tratar de um menor de catorze anos. II – A esse tipo de atos não se seguem normalmente outros mais gravemente violadores da liberdade e autodeterminação sexuais e nem por isso deixou o legislador de conferir a tais atos relevo criminal.
Texto Integral
Proc. nº 751/19.6GPEGDM.P1
Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
I – B… veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Gondomar do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que o condenou, pela prática de um crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170.º do Código Penal, na pena de noventa dias de multa, à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos.
Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões: «1ª Vem o presente Recurso interposto da douta sentença de fls. proferida pelo tribunal “a quo”, que condenou “ o arguido B… pela prática, em 22 de Julho de 2019, em autoria material e na forma consumada, de um crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170º do Código Penal, numa pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a quantia de €585.00 (quinhentos e oitenta e cinco euros)”. 2ª O arguido, ora Recorrente interpõe o presente recurso por não se conformar com a decisão dos autos pois entende que há uma discordância entre a prova produzida e a decisão, bem como não ter sido aplicado o direito em conformidade com os preceitos legais em vigor, nomeadamente, o não preenchimento do tipo legal de crime. 3ª O depoimento da ofendida C… tem um discurso incongruente e impreciso, desde a data da prática dos factos à hora da sua ocorrência.
Afirma também peremptoriamente que as únicas pessoas presentes, eram ela e a sua filha D…. Além disso, não demonstra qualquer constrangimento ou receio com os alegados actos, demonstrando apenas que se terá sentido revoltada com as palavras proferidas. 4ª O depoimento da testemunha D… não deveria ser valorado, por se tratar de familiar directo da ofendida e com interesse directo na causa.
Além disso, a testemunha D… apresenta um discurso incoerente, desorganizado e com inúmeros lapsos, tendo um discurso pela “rama” em larga medida arrancado e orientado.
Refere-se a uma situação frequente e recorrente de insultos entre a ofendida e o arguido.
Do seu depoimento parece-nos claro que da mesma forma que foram dados como não provados os factos relatados no ponto 1.2 da douta sentença a fls. 3, em virtude da alegada frase “ tu com doze anos já andavas a levar nele, debaixo da ramada” ter sido dirigida à D…, o alegado acto exibicionista a ter acontecido foi igualmente dirigido à D…, durante uma troca de insultos, e não à ofendida. 5ª A ofendida C… é peremptória ao afirmar que no momento da alegada ocorrência dos factos, só estavam presentes, ela e a filha. Assim sendo, a M.ma Juiz “a quo” não deveria ter valorado o depoimento da testemunha E…. 6ª Além disso, a testemunha E… no seu depoimento, apresenta pormenores muito diferentes das outras testemunhas. Indiciando claramente um discurso (mal) ensaiado, indo de encontro á versão do arguido, de que estaremos perante uma retaliação contra ele. 7ª Quer-nos parecer que o comportamento do arguido em sala de audiência originou uma censura por parte da M.ma Juiz “a quo”, fazendo com que descredibilizasse as suas declarações. Ora, o arguido em momento algum pretendeu desrespeitar o tribunal, e o seu comportamento, apesar de tudo incorrecto, perante declarações de alguém que não presenciou os factos, acaba por ter alguma justificação pois, como diz o ditado popular “quem não se sente não é filho de boa gente!” e não pode ser motivo de qualquer conclusão quanto à veracidade do que narra. O facto de ter tido uma atitude errada durante a audiência de julgamento, não pode provocar qualquer juízo de valor desfavorável. O que aqui está em causa é a alegada prática dos factos pelo arguido e não o seu comportamento em sala de audiência. 8ª São muitas as imprecisões, contradições, incongruências e dúvidas insanáveis que resultam da prova produzida em audiência de julgamento.
Assim sendo, deveria o tribunal “a quo” ter decidido em favor do arguido. 9ª Efectivamente, o Tribunal “a quo” no seu douto juízo retrospectivo não se poderá compadecer com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas, tendo de, para decidir pela condenação do aqui arguido, formar uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido. 10ª Pela falta de credibilidade que tem de ser dada as testemunhas, bem como as dúvidas subjacentes aos factos ocorridos a 22 de Julho, impõem-se que seja a prova novamente apreciada devendo ser dado como não provado o ponto 1 e 2 dos factos provados, sobressaindo a dúvida, levando à absolvição do arguido, nos termos do artigo 32ª da C.R.P. e, ordem ao princípio “In dúbio pró reo”. 11ª Ainda assim, o que só por mera hipótese se concebe, se os factos alegadamente cometidos pelo arguido/ recorrente, tivessem sido cometidos, mais se diria, que não integrariam os pressupostos do ilícito típico de importunação sexual, uma vez que, 12ª Analisando o tipo legal de crime verificamos que o bem jurídico protegido é a liberdade sexual de outra pessoa, num sentido amplo. O interesse em ter conversas ou ouvir afirmações de teor sexual apenas com quem se quiser e onde se quiser. 13ª O crime de importunação sexual, na esteira do que já resultava do tipo do artigo 171º do C.P., na redacção de 1995, para que a realidade fosse criminalizada o que exigia, tal como agora: era e é o facto de o acto dito exibicionista representar, para a pessoa perante a qual era praticado, um perigo de que se lhe seguisse a prática de um acto sexual. 14ª Resulta claro para nós que o que é punido, antes como agora, não é o acto em si mas o perigo de agressão à liberdade sexual que ele representava (Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 26-02-2012, disponível em www.dgsi.pt).
O legislador preferiu criminalizar tais comportamentos pelo “convite” que eles envolviam. 15ª O arguido foi condenado pelo crime de importunação sexual por ter adoptado um comportamento exibicionista, mais concretamente, por alegadamente: “ abriu o fecho das calças que trajava e retirou o seu órgão genital, que segurou na mão, exibindo-o, ao mesmo tempo que dizia pega, está aqui, pega”. 16ª Como resulta directamente dos autos, o arguido não visou qualquer fim libidinoso que fosse projectado directamente contra a ofendida C…, pois como se depreende das declarações quer da ofendida quer da testemunha D…, o mesmo terá proferido a expressão “pega, está aqui pega!” dirigindo-se à testemunha D…. 17ª Reafirma-se que para que se preencha o tipo criminal do artigo 170º do C.P., para uma vítima maior de idade, em que não está em causa a tutela do desenvolvimento livre da personalidade sexual, mas apenas o da liberdade sexual, exigir-se-á a comprovação de factos complementares, dos quais resulte que o ato exibicionista representou, no caso e em concreto, para a pessoa visada, o perigo de que se lhe siga a prática de um acto sexual que ofenda a sua liberdade de autodeterminação sexual (Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14-01-2014 e Acórdão da Relação do Porto, publicado in www.dgsi.pt de 06/05/2009, no processo nº 598/06.JAPRT.P1). 18ª O que não foi o caso. 19ª Como podemos observar pelos depoimentos prestados pelas testemunhas e ofendida, ainda que tivesse existido tal comportamento este compreenderia em si uma dimensão de má educação mas nunca de perigo produzido para a vítima ou para as demais presentes, que em momento algum, referiram que a ofendida se tenha sentido inibida, perturbada ou constrangida sexualmente! 20ª Em suma, atendendo à posição do douto Tribunal para o qual se recorre, bem como para a opinião da maioria da jurisprudência, e à ratio com que o legislador pretendeu alterar a inserção do crime para o Capítulo relativo aos crimes sexuais, preenche o crime de Importunação Sexual p. p pelo artigo 170.º do CP, aquele acto exibicionista, que ultrapassa a mera imoralidade e o exibicionismo tradicional, traduzindo-se portanto num acto perturbador, perturbação essa causada pelo perigo produzido no íntimo e psicológico da “vítima” de que lhe siga a tentativa ou consumação, de agressão à sua liberdade sexual por aquele que se mostra, e bem assim, aquele acto que possui fim libidinoso e conotação sexual com densidade penalmente relevante.
Não sendo assim punidos os actos de mera má educação, exibicionismo de ego ou aqueles que causam choque, surpresa e perplexidade, por ver uma parte do corpo que outrora fora completamente tabu. 21ª Quanto ao elemento subjectivo, relativamente aos actos de carácter exibicionista só relevam se resultar provado que o agente agiu com a intenção de importunar algum ou alguns dos transeuntes (cf. Albuquerque, Paulo Pinto, in ob.cit., p.677). 22ª Em momento algum, das declarações da ofendida e das testemunhas, podemos concluir que a ofendida se tenha sentido importunada, chocada, atemorizada, constrangida e amedrontada com esta alegada situação. 23ª Tendo em conta todo o supra exposto, o quadro de desavenças, claro se afigura que ainda que tal conduta tivesse sido perpetrada pelo arguido, a mesma não configuraria o preenchimento do ilícito típico do crime p. e p. pelo artigo 170.º do Código Penal, na medida em que não reúne os requisitos objectivos e subjectivos mencionados na norma. 24ª Impondo-se assim, a absolvição do arguido quanto ao crime de importunação Sexual, pelo qual foi condenado a 90 dias de multa à razão diária de 6,50€. 25ª Impondo-se assim, que sejam dados como não provados os factos 1 e 2 que foram dados como provados na douta sentença que ora se recorre, por nunca terem existido, não passando de mais uma vingança contra o Recorrente, ou ainda que assim não se entenda sempre se terá de avaliar a subsunção dos factos à matéria de direito, dado que são os mesmos, tendo em conta a linha da Jurisprudência não se subsumem hoje, no ilícito pelo qual vem o arguido condenado. 26ª Ao condenar o arguido a M.ma Juiz “a quo” violou:
- o artigo 412º do C.P.Penal pois existe discordância entre a prova produzida (ao dar como provados os factos constantes dos pontos 1 e 2 da sentença recorrida) e a decisão, havendo um erro de julgamento da matéria de facto;
- o estatuído no artigo 170º do C. Penal, porque os factos dados como provados não integram os pressupostos do ilícito típico do crime de Importunação Sexual.»
O Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.
O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.
II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes
- saber se a prova produzida, também à luz do princípio in dubio pro reo, impõe decisão diferente da que foi tomada na douta sentença recorrida, devendo o arguido ser absolvido do crime por que foi condenado;
- saber se a factualidade provada não integra a prática de um crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170.º do Código Penal, por que o arguido e recorrente foi condenado.
III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:
«(…) II. DOS FACTOS 1.1. FACTOS PROVADOS
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos, expurgando-se os factos absolutamente irrelevantes, repetidos, conclusivos ou que contém apenas matéria de direito: 1. No dia 22 de julho de 2019, pelas 22:30 horas, o arguido B… desentendeu-se com a sua vizinha C…, quando se encontravam na Rua …, em Gondomar, após o que abriu o fecho das calças que trajava e retirou o seu órgão genital, que segurou na mão, exibindo-o a C…, ao mesmo tempo que dizia «pega, está aqui, pega». 2. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, no propósito concretizado de exibir o seu órgão genital a C… e com isso molestá-la, sabendo que o fazia contra a vontade dela, que reagiria com desagrado e desconforto a tal atitude, como sucedeu. 3. O arguido sabia que a sua conduta é proibida e punível por lei. Mais se provou que: 4. O arguido é serralheiro mecânico e aufere a quantia de € 885,00 (oitocentos e oitenta e cinco euros). 5. O arguido vive em casa arrendada e paga uma renda mensal na quantia de € 300,00 (trezentos euros). 6. O arguido tem uma filha à qual paga uma prestação de alimentos na quantia de €100,00 (cem euros) e uma mensalidade a título de propinas na quantia de € 100,00 (cem euros). 7. O arguido não possui antecedentes criminais.
* 1.2. FACTOS NÃO PROVADOS
a. Na situação relatada no facto n.º 1, o arguido disse a C… «tu com doze anos já andavas a levar nele, debaixo da ramada», querendo dizer que C… já mantinha relações sexuais desde essa idade.
*
Motivação da matéria de facto
A convicção do Tribunal sobre os factos provados e não provados resultou da livre apreciação de toda a prova produzida no seu conjunto (cf. Artigo 127.º do Código de Processo Penal), a qual foi analisada criticamente à luz da lógica e das regras da experiência comum.
Na audiência de julgamento foram narradas duas versões contraditórias: a do arguido, o qual, em síntese, negou a prática dos factos; a das testemunhas C…, D… e E…, as quais presenciaram directamente os factos, tendo referido que a expressão que consta do facto a. Foi dirigida à filha de C… (D…) e não a esta, julgando-se, assim, não provado aquele facto.
Isto posto, cumpre destacar que as referidas testemunhas narraram os factos que presenciaram de forma espontânea e congruente, fazendo menção ao circunstancialismo fáctico-temporal sem qualquer hesitação, não revelando qualquer sentimento de retaliação em relação ao arguido, a não ser o constrangimento normal que uma situação como esta causa no cidadão comum.
Quanto ao depoimento da testemunha F…, filha do arguido, o mesmo revelou-se inócuo, uma vez que não presenciou diretamente os factos.
Por sua vez, a versão do arguido, ao negar os factos, apenas justificando a denúncia da queixosa com motivos de retaliação, não vingou, uma vez que na audiência de julgamento, além da queixosa, também as testemunhas D… e E… prestaram depoimento de forma harmónica com a versão de C…, denotando-se que apenas queriam esclarecer aquilo que se passou naquele dia, colhendo, por isso, a credibilidade do Tribunal. Além do mais, não podemos deixar de sublinhar o comportamento lastimável do arguido, o qual, ao ouvir a testemunha E… a narrar tudo aquilo que presenciara, interrompeu por várias vezes o seu depoimento e, apesar de solenemente advertido para não o fazer, persistiu nesse comportamento, numa manifesta falta de respeito perante a testemunha (que apenas estava a cumprir o seu dever enquanto cidadã) e perante um órgão de soberania, o que apenas deu mais certezas ao Tribunal de que a versão que narrara (insinuando de que se tratava de uma cabala contra ele) não correspondia à verdade.
Os elementos considerados provados e relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo referente à conduta do arguido (factos n.ºs 2 e 3) foram considerados assentes a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum. Nesta esteira, atente-se no teor do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3 de março de 2010, processo n.º 2753/06.3 TAVIS.C1, donde «Omeioprobatórioporexcelênciaaqueserecorrena práticaparadeterminaraocorrênciadeprocessospsíquicossobreosquaisassentaodolonãosãoas ciênciasempíricas,nemtãopoucoaconfissãoautoinculpatóriadosujeitoactivomasaaplicaçãodasregras daexperiência–premissamaior–aosfactospreviamenteprovadosequeconstituemapremissa.». Nas palavras de Germano Marques da Silva,«osatosinteriores(ou“factosinternos”comolheschama CavaleirodeFerreira),querespeitamàvidapsíquica,amaiorpartedasvezesnãoseprovam diretamente,masporilaçãodeindíciosoufactosexteriores» (cf. SILVA, Germano Marques da, in CursodeProcessoPenal,Vol.II, 5ª edição, Edições Verbo, p. 149).
A convicção do Tribunal quanto às condições económicas e sociais do arguido estribaram-se nas suas declarações em audiência de julgamento.
Finalmente, no que toca à ausência de antecedentes criminais, foi decisivo o teor do certificado de registo criminal junto aos autos de fls.106.
(...)»
IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que a prova produzida impõe, também à luz do princípio in dubio pro reo, decisão diferente da que foi tomada na douta sentença recorrida, devendo ele ser absolvido do crime por que foi condenado. Alega que todas as outras testemunhas indicadas pela acusação são familiares diretos da queixosa, pelo que não poderão ser consideradas credíveis e isentas. Alega que os depoimentos da queixosa e dessas testemunhas estão repletos de incongruências, contradições e imprecisões (como procura demonstrar citando partes desses depoimentos), o que lhes retira credibilidade. Também retira credibilidade a tais depoimentos o contexto de conflitos entre si e a queixosa, sendo esta queixa movida por propósitos vingativos. Alega que as suas próprias declarações não podem deixar de ser consideradas credíveis, apesar de ter assumido um comportamento em audiência que foi censurada pela Mª Juíza que a ela presidia.
Estamos perante a impugnação da matéria de facto provada nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. Não se trata, como alega o arguido e recorrente, de um erro notório na apreciação da prova nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal, pois este erro teria de decorrer do próprio texto da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (o que não é o caso, pois o arguido e recorrente invoca o teor dos depoimentos referidos, para além do próprio texto da sentença recorrida).
A respeito da impugnação da matéria de facto provada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, há que considerar o seguinte.
Como se refere nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006 (procs. nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e acessíveis in www.dgsi.pt), e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003, proc. nº 024324, relatado por. Afonso Correia, também acessível in www.dgsi.pt).
E, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 26 de novembro de 2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pg.s. 176 e segs.), «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido directamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores» (assim, o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003), fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2003, proc. nº 3100/02, relatado por Leal Henriques, acessível em www.dgsi.pt).
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
Quando, no artigo 412.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
À luz destes pressupostos, há que analisar o recurso interposto pelo arguido.
Pretende o arguido e recorrente contestar o juízo de credibilidade formulado pelo Tribunal recorrido a respeito dos depoimentos da queixosa e das outras testemunhas indicadas na acusação. Como resulta da fundamentação da sentença recorrida na parte acima transcrita, esse juízo de credibilidade assenta, em medida decisiva, em fatores (como os da espontaneidade e a ausência de hesitações) que dependem da imediação, de que nesta sede estamos privados. E as alegadas imprecisões e incongruências, tal como os laços de parentesco entre a queixosa e as demais testemunhas, e tal como o contexto conflitual que caracteriza o relacionamento entre o arguido e a queixosa, não servem para, por si, colocar em causa tal juízo de credibilidade (sendo que o Tribunal recorrido não deixou de considerar esses aspetos).
É verdade que, como alega o arguido e recorrente, não se afigura curial inferir de um comportamento indisciplinado e censurável do arguido em audiência uma menor credibilidade do seu depoimento. Mas não se afigura que esse fator tenha sido decisivo na formulação do juízo de credibilidade do depoimento do arguido no confronto com os depoimentos da queixosa e das demais testemunhas indicadas na acusação.
Na sentença recorrida não se verifica alguma violação do princípio in dubio pro reo. A decisão em apreço baseia-se num juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, «para além de toda a dúvida razoável»), não em juízos de suspeita ou mera probabilidade.
Assim, dever ser negado provimento ao recurso quanto a esta aspeto.
IV 2. –
Vem o arguido e recorrente alegar que a factualidade provada não integra a prática de um crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170.º do Código Penal, por que foi condenado. Alega que, para que se verifique a prática de tal crime será necessário que o ato exibicionista represente para a pessoa visada o perigo de que se lhe siga a prática de um ato sexual que ofenda a sua liberdade sexual e que isso não se provou. Não basta que o ato exibicionista configure um ato imoral, indecoroso, chocante, de má educação, ou que provoque surpresa ou perplexidade. Em qualquer dessas situações, não se verifica ofensa ao bem jurídico em causa, que é o da liberdade sexual. Alega, por outro lado, que não se provou que a queixosa se tenha sentido importunada ou constrangida, nem que ele tenha agido com intenção de nela provocar importunação ou constrangimento.
Vejamos.
A tese sustentada pelo arguido, segundo a qual para que se verifique a prática de um crime de importunação sexual será necessário que o ato exibicionista represente para a pessoa visada o perigo de que se lhe siga a prática de um ato sexual que ofenda a sua liberdade sexual, poderá encontrar apoio na doutrina (ver Anabela Miranda Rodrigues in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, anotação ao artigo 171.º, §6, pg. 534; e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora. Lisboa 2008, pg. 468).
Tal tese é, porém, rejeitada no acórdão desta Relação de 9 de março de 2011, proc. n.º 329/09.2PBVRL.P1, relatado por Joaquim Gomes, e nos acórdãos da Relação de Coimbra de 26 de fevereiro de 2014, proc. n.º 17/11.0GBAGD.C1, relatado por Isabel Valongo, e de 15 de março de 2017, proc. n.º 13/15.8GBFIG.C1, relatado por Orlando Gonçalves, todos acessíveis in www.dgsi.pt, acórdãos invocados na douta sentença recorrida. Também segue esta linha de rejeição dessa tese o mais recente acórdão da Relação de Guimarães de 23 de novembro de 2020, proc. n.º 1700/17.1PBBRG-G1, relatado por Jorge Bispo, também acessível in www.dgsi.pt.
Em síntese, consideram estes acórdãos que um ato exibicionista não consentido pela pessoa a que se dirige pode representar, só por si, um ato de importunação sexual violador da liberdade ou autodeterminação sexual dessa pessoa (e não apenas um ato imoral, grosseiro ou indecoroso); que há que distinguir o crime de importunação sexual de um ato preparatório de outro crime contra a liberdade ou autodeterminação sexual; e que o facto de os atos exibicionistas não serem normalmente acompanhados de outros atos violadores da liberdade ou autodeterminação sexual da pessoa visada levaria, se fosse seguida a tese em causa, a retirar sentido útil à incriminação da importunação sexual por meio desses atos exibicionistas. Essa tese levaria à exigência de um elemento típico que não consta da Lei, nem na sua letra, nem no seu espírito.
Afigura-se-nos de seguir o entendimento perfilhado nos acórdãos citados.
Há que ter em conta, desde logo, a definição legal do crime de importunação sexual na versão do artigo 170.º do Código Penal hoje vigente, resultante das Leis n.º 59/2007, de 4 de setembro, e n.º 83/2015, de 5 de agosto (versão não tida em conta nos textos doutrinais acima referidos).
A incriminação da importunação sexual e a definição legal desse tipo de crime no artigo 170.º do Código Penal (para que remetem também os artigos 171.º, n.3, a), e 172.º, n.º 2, do mesmo Código) revelam que o legislador considera a simples importunação sexual como violação da liberdade e autodeterminação sexuais, bem jurídico protegido através das incriminações constantes do capítulo V desse Código, onde se inserem esses artigos. Trata-se, por isso, de um crime de dano (dano que se traduz na importunação), e não de um crime de perigo abstrato ou concreto (perigo de que se seguissem outros atos, esses violadores da liberdade e autodeterminação sexuais).
A prática de um ato exibicionista perante pessoa que nele não consente e com ele se sente importunada é, por si, de acordo com o legislador, um ato violador da liberdade sexual dessa pessoa (ou da sua autodeterminação sexual, se se tratar de um menor de catorze anos). Como bem se refere nos acórdãos referidos, a esse tipo de atos não se seguem normalmente outros mais gravemente violadores da liberdade e autodeterminação sexuais e nem por isso deixou o legislador de conferir a tais atos relevo criminal
É significativo que a atual versão do artigo 170.º do Código Penal, resultante da Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto (Lei que transpôs normas da Convenção de Istambul) tenha acrescentado à definição do tipo legal de importunação sexual a «formulação de propostas de teor sexual». A formulação dessas propostas, quando causadora de importunação, é (tal como a prática de atos exibicionistas) pelo legislador considerada violação da liberdade sexual da pessoa visada, por si e independentemente de que se lhe sigam atos mais gravosos na perspetiva da violação.
Não merece, pois, reparo que a sentença recorrida tenha considerado que a factualidade provada integra o elemento objetivo do tipo de crime de importunação sexual, p, e p. pelo artigo 170.º do Código Penal
E integra também o elemento subjetivo. Resultou provado que o arguido agiu com intenção de molestar a queixosa, sabendo que o fazia conta a vontade dela e que ela reagiria com desagrado e desconforto a tal atitude, o que sucedeu (ver ponto 2 do elenco dos factos provados). Esta é outro modo de dizer que o arguido agiu com intenção de importunar sexualmente a queixosa e que essa importunação se verificou. Já vimos que não há motivos para pôr em causa nesta sede a prova desses factos, sendo que estamos perante algo de perfeitamente normal e verosímil face à objetividade da conduta do arguido e do contexto em que ela surge.
A sentença recorrida não é, pois, merecedora de reparo.
Deverá ser negado provimento ao recurso.
O arguido e recorrente deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 513.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal, e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).
V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida.
Condenam o arguido e recorrente em 3 (três) U.C.s de taxa de justiça.
Notifique.
Porto, 12 de maio de 2021
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo