ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
MOVIMENTAÇÃO DE CONTAS BANCÁRIAS
ATO DE MERA ADMINISTRAÇÃO
Sumário


I- A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal.
II- A movimentação de contas bancárias tituladas pelo falecido constitui um ato de mera administração, não envolvendo em si mesmo qualquer ato de disposição, pelo que pode ser levada a cabo pelo cabeça-de-casal.
III- O Banco apenas tem que se assegurar de que foram cumpridas as obrigações fiscais relativas à transmissão dos depósitos e que está comprovado o óbito e a qualidade de herdeiro (assento de óbito e habilitação de herdeiros).
IV- É indiferente ao Banco a boa ou má aplicação dos capitais levantados, questão que apenas interessa aos herdeiros, que têm ao seu dispor mecanismos de controlo da atuação do cabeça-de-casal.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

J. L. deduziu ação declarativa contra “Caixa ..., SA” pedindo que se reconheça que o autor é o cabeça de casal da herança aberta por óbito de sua mulher M. F. e que a ré seja condenada a permitir que o autor, na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por óbito de M. F., proceda à movimentação ou levantamento das quantias aí depositadas na conta bancária aberta na sua agência sita no Largo ..., n.º … em Guimarães, e aí depositadas à data do óbito da falecida titular, com a natureza de “à ordem” e de Poupança e com o número, respetivamente, de ............900 e ............961, entregando ao autor as quantias de € 163,66, mais a quantia de € 11.379,97, acrescidas de juros calculados à taxa legal, desde 06/03/2020, até efetiva e integral entrega. Mais pede que a ré seja condenada a pagar ao autor a quantia de € 2.000,00, a título de danos morais, acrescida de juros à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento.

Alegou que é um dos três herdeiros habilitados como únicos e legais herdeiros de M. F., falecida no dia 05/07/2019, sendo cabeça de casal da herança. Nessa qualidade, apresentou à ré o pedido de levantamento dos valores que a falecida tinha em depósito, o que lhe foi negado, com o argumento de que só entregaria as verbas objeto de habilitação a todos os herdeiros em conjunto. Deslocou-se por várias vezes à agência da ré, em pleno período de “Covid-19”, sem conseguir resolver a situação e só passados 10 meses obteve uma resposta formal, o que lhe causou tristeza, desespero e angústia, sentindo-se ofendido com a atuação da ré.
A ré contestou excecionando a ilegitimidade do autor, por entender que os saldos que integram o património hereditário da sua falecida mulher só poderão ser entregues conjuntamente a todos os seus herdeiros, o que, desde sempre, comunicou ao autor, não tendo havido qualquer atraso na decisão.
O autor replicou, pugnando pela improcedência da exceção.
Foram notificadas as partes com vista ao conhecimento imediato do mérito, nada tendo sido requerido
Foi proferido despacho saneador, com conhecimento imediato do mérito da causa, aí se tendo decidido julgar a ação parcialmente procedente, condenando a ré a permitir que o autor, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de sua mulher M. F., proceda à movimentação ou levantamento das quantias aí depositadas nas contas bancárias abertas na sua agência sita no Largo ..., n.º .., Guimarães, e aí depositadas à data do óbito da falecida titular, com a natureza de à “Ordem” e de “Poupança” e com os números, respetivamente, de ............900 e ............961, condenando-se, ainda, a ré no pagamento dos juros de mora à taxa legal, contados desde 06/03/2020 sobre a quantia aí depositada nesta data e até efetivo e integral cumprimento.

A ré interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1. A procedência da presente ação funda-se exclusivamente no entendimento de que a movimentação das contas bancárias consubstancia um ato de mera administração e, como tal, pode ser efetuado pelo cabeça-de-casal com a dispensa de intervenção dos demais herdeiros.
2. A Ré, ora Recorrente, e ressalvado o muito e devido respeito, discorda de tal entendimento.

Com efeito,
3. E tal como resulta do ponto 4 da factualidade provada, o Autor apresentou à Ré, em 06 de março de 2020, o pedido de transferência dos aludidos valores em depósito para uma conta por si titulada, assinado pelo aqui Autor herdeiro e cabeça-de-casal, instruído com os documentos Assento de Óbito, habilitação e os relacionados com o cumprimento das obrigações fiscais, conforme documento 8 junto com a PI e que aqui se dá como reproduzido.
4. Ora, nos termos do disposto no artigo 2091.º do CC, o exercício dos direitos da herança é efetuado em conjunto pelos herdeiros, com as exceções constantes dos artigos 2087.º a 2090.º do mesmo Código e que se prendem com o cabeça-de-casal poder sozinho cobrar as dívidas ativas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora, ou quando o pagamento seja feito espontaneamente (art. 2089º do Código Civil) – o que manifestamente, e face à factualidade provada, não ocorre no caso concreto;
5. Mal se compreendendo, assim que a Meritíssima Juiz a quo alicerce a sua fundamentação no entendimento de que a mera administração consiste na estrita conservação dos bens, não afetando o capital administrado (e apontando como exemplo o depósito numa outra Instituição com melhor remuneração).
6. Assim, e não se enquadrando a pretendida transferência em qualquer das exceções legalmente consagradas a mesma traduz-se necessariamente num ato dispositivo;
7. Para o qual a lei exige – e na sentença, naturalmente nem se questiona – a intervenção dos demais herdeiros – art. 2091º do Código Civil.
8. No mesmo sentido aponta o artigo 86.º n.º 1, al. e) do Código do Notariado ao prever que a habilitação de herdeiros notarial “tem os mesmos efeitos da habilitação judicial e é título bastante para que se possam fazer em comum, a favor de todos os herdeiros e do cônjuge meeiro o[s] seguinte[s] ato[s]: (…) Levantamentos de dinheiro ou de outros valores”.
9. Ademais, notamos que a administração da herança compete ao cabeça-de-casal enquanto a mesma se encontra indivisa, ou seja, até à respetiva liquidação e partilha, com cuja verificação cessa o cabecelato (artigo 2079.º do CC). Ora, a CAIXA ... não tem como aferir com segurança, sem a colaboração de todos os herdeiros, se a partilha da herança foi ou não realizada, sendo certo que não entregará de modo liberatório a quem tenha exercido a função de cabeça de casal, após a verificação da liquidação e partilha.
10. Assim, e em suma, carece o aqui A., na qualidade de cabeça-de-casal, de legitimidade para o pedido formulado, e seja sem a intervenção dos demais herdeiros ou nos termos de partilha judicial ou extrajudicial que seja apresentada.
11. Devendo, como tal, a decisão proferida ser revogada.
12. Decidindo-se em contrário violou-se, além do mais, o disposto nos arts. 2087º a 2091º do Código Civil e art. 86º do Código do Notariado.
Termos em que, julgando-se totalmente procedente o presente recurso e revogando-se a decisão proferida, nos termos acima expostos, se cumprirá a lei e far-se-á INTEIRA JUSTIÇA!

Não foram oferecidas contra alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se a movimentação/levantamento de quantias depositadas em instituição bancária por cabeça de casal de herança aberta por óbito do titular daquelas, constitui um ato de mera administração ou de disposição, para o qual a lei exige a intervenção dos demais herdeiros.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

“Atendendo ao conteúdo da contestação e documentos juntos não impugnados pelas partes, encontram-se provados nos autos os seguintes factos:

1. No dia 5 de julho de 2019 faleceu M. F., no estado de casada com o aqui Autor, em primeiras núpcias de ambos, sob o regime da comunhão geral.
2. O Autor e os seus dois filhos, J. A. e J. F., foram habilitados como herdeiros, sendo o Autor cabeça de casal da herança.
3. À data da morte, a referida M. F. era titular de, pelo menos, duas contas bancárias abertas na Ré – Agência Largo ..., uma à “Ordem com o n.º ............900, e uma a prazo com o n.º ............961, com os saldos de 163,66 € e 11.382,65.
4. O Autor apresentou à Ré, em 06 de março de 2020, o pedido de transferência dos aludidos valores em depósito para uma conta por si titulada, assinado pelo aqui Autor herdeiro e cabeça-de-casal, instruído com os documentos Assento de Óbito, habilitação e os relacionados com o cumprimento das obrigações fiscais, conforme documento 8 junto com a PI e que aqui se dá como reproduzido.
5. Com data de 2020-03-17 o aqui Autor recebeu comunicação da Ré Caixa ... com o assunto: “Processo de habilitação de Herdeiros Nr. 01320001345 em nome de M. F.”, onde se refere que, “Relativamente ao processo de habilitação em epígrafe, comunicamos a V. Exa. que se encontram reunidas condições para a Caixa ..., S.A., proceder à entrega dos saldos objeto de habilitação. Assim, convidamos V. Exa. a contactar a agência onde o processo em apreço foi criado por vossa iniciativa, a fim de ser informado das particularidades que envolvem a mobilização dos saldos das contas objeto de habilitação e da forma como se operacionalizará a referida entrega, bem como obter qualquer esclarecimento adicional acerca dos produtos que compõem o acervo hereditário à guarda desta Caixa.”
6. O aqui Autor, em consequência, no dia 06 de abril de 2020, dirigiu-se à acima identificada Agência da Ré a fim de proceder ao levantamento e/ou movimentação dos saldos, tendo sido informado que tinha que ser assinado por todos os herdeiros.
7. A 29 de abril de 2020 o Autor, através do seu mandatário, por e-mail, dirigiu carta ao Presidente da Administração, nos termos do documento 10 da PI que aqui se reproduz.
8. Em resposta a insistência, remetida por e-mail de 29 de junho, a Ré respondeu a 01 de julho de 2020, que “o processo foi remetido para o nosso serviço de habilitação de herdeiros”.
9. A 21 de agosto de 2020, por e-mail junto e que se dá como reproduzido, a Ré respondeu ao Autor no sentido que, “1. A concatenação dos vários artigos legais aplicáveis em matéria sucessória, nomeadamente artigos 2079º, 2088º, 2090º e 2091º do Código Civil aponta no sentido de que ao cabeça de casal, para além dos definidos especialmente, competem poderes de administração ordinária, isto é, poderes para a prática de atos e negócios jurídicos, de conservação e frutificação normal dos bens administrados. 2. Não se incluindo no elenco de poderes especialmente definidos nem podendo ser qualificado como ato de mera administração, o levantamento dos depósitos bancários em nome do de cujus só pode ser efetuado, na hipótese da herança se encontrar indivisa, mediante intervenção conjunta de todos os herdeiros …”; 3. “a Caixa só está legalmente autorizada a entregar as verbas objeto de habilitação a todos os herdeiros, em conjunto …”.

Na sentença sob recurso considerou-se que “o ato de movimentação ou levantamento de depósitos bancários não constitui seguramente ato de disposição ou de oneração de bens da herança, mas sim ato de mera administração”, pelo que poderá ser levado a cabo pelo cabeça-de-casal.
Ao contrário, entende a apelante que o levantamento de depósitos bancários tem de ser efetuado em conjunto pelos herdeiros.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 2079.º do Código Civil “A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal”, a ele cabendo, para além de tarefas processuais determinadas no processo de inventário (nos casos em que haja lugar ao mesmo), “funções de gestão económica dos bens que integram a massa hereditária” – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, pág. 136 – sendo certo que aquele pode ser removido se não administrar o património hereditário com prudência e zelo (artigo 2086.º, n.º 1, alínea b) do CC), para além da obrigação de prestar contas que, em princípio, incide sobre todos os administradores de bens alheios e está, especificamente prevista, para o cabeça-de-casal, no artigo 2093.º do Código Civil.
Sobre os bens sujeitos à administração, regulam os artigos 2087.º e 2088.º do CC, estando concretamente previsto que o cabeça-de-casal tenha que pedir a terceiro a entrega de bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder.
Para além do disposto no artigo 2091.º do Código Civil, que estabelece a regra de que, para além do declarado nos artigos anteriores, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, não define a lei o conteúdo da administração a que se refere aquele artigo 2079.º já citado e que competirá ao cabeça-de-casal.
Ora, tal como na sentença recorrida, entendemos que a movimentação de contas bancárias tituladas pelo falecido, constitui um ato de mera administração, não envolvendo em si mesmo qualquer ato de disposição, no sentido comummente atribuído a estes relativo à afetação/alteração da sua substância – ver, a este propósito, a definição, confronto entre atos de mera administração e de disposição, efetuada por Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª edição atualizada, págs. 404 a 409, fazendo expressa referência à ideia de risco e concluindo que os atos de mera administração são os correspondentes a uma gestão comedida e prudente, destinada a manter o património e aproveitando as suas virtualidades normais, longe de um comportamento de risco.
Tendo sido confiado ao cabeça-de-casal um património para administrar, deve este poder movimentar os depósitos bancários do autor da herança, designadamente, e até, para poder prover a despesas que tenha que assumir, pagamentos de contribuições ou outras despesas inerentes à administração da herança ou, até, para continuar o giro comercial, industrial ou agrícola do falecido ou efetuar obras necessárias e indispensáveis à segurança e conservação dos bens do autor da herança – neste sentido, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. I, 4.ª edição, Almedina, págs. 322 a 330.
Assim, o Banco não pode recusar ao cabeça-de-casal a movimentação dos depósitos bancários do autor da herança.
Pode e deve, apenas, exigir o comprovativo da qualidade de herdeiro, através da junção da certidão de óbito e da habilitação de herdeiros.
Estão, ainda, as instituições de crédito obrigadas a não autorizar o levantamento de quaisquer depósitos sem que os herdeiros demonstrem, pelos meios legalmente fixados, que se encontra pago o imposto do selo relativo à transmissão desses depósitos, ou, caso se verifique a isenção deste imposto, que se encontra cumprida a obrigação de declaração da transmissão junto do serviço de finanças competente (artigo 63.º - A do Código do Imposto do Selo) - https://clientebancario.bportugal.pt/pt-pt/titularidade-e-movimentacao
Ora, como decorre do ponto 4 dos factos provados, o autor instruiu o pedido de levantamento dos valores em depósito com os referidos documentos – assento de óbito, habilitação de herdeiros e cumprimento das obrigações fiscais – pelo que a ré não podia impedir o acesso do cabeça-de-casal às contas tituladas pela autora da herança.
Deve, ainda, salientar-se que, para proteção dos demais herdeiros, qualquer movimentação de contas de um titular falecido, após encerramento das mesmas por comunicação desse falecimento, fica sempre acautelada pelos registos do Banco.
Em qualquer caso, como bem salienta Lopes Cardoso, in obra citada, pág. 328, ao Banco é indiferente o que venha a processar-se entre os que à herança concorrem – boa ou má aplicação que o cabeça-de-casal porventura faça dos capitais que levantou, por isso que, pagando-lhe contra a prova dos apontados factos (habilitação de herdeiros e cumprimento de obrigações fiscais), é manifesto que pagou bem e não pode exigir-se-lhe repetição.
Este é, também, o sentido da Recomendação 137/A/94 da Provedoria de Justiça, de 7 de setembro de 1994, dirigida à Caixa ... (não acatada, como resulta da existência deste processo) onde, além do mais, se esclarece que excede claramente o âmbito da relação de depósito a verificação, pelo Banco, do fim último da movimentação de uma conta.
Já os herdeiros têm ao seu dispor a prestação de contas a que o cabeça-de-casal está sujeito, nos termos do artigo 2093.º do Código Civil, para aquilatar da boa ou má administração levada a cabo, estando ainda previstas sanções para a sonegação de bens (artigo 2096.º do CC).
Improcede, assim, a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

***

Guimarães, 23 de junho de 2021

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho