POSSE
MERA DETENÇÃO
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
USUCAPIÃO
Sumário

I - Se o possuidor iniciou o seu domínio material sobre uma fracção de um prédio na sequência de um negócio por via do qual isso lhe foi simplesmente autorizado, uma posse útil para habilitar a aquisição dessa fracção por usucapião só nasce a partir de actos que traduzam uma inversão do título da posse, circunstância que ocorrerá através de um ou mais actos de oposição daquele que possuía em nome de outrem, contra este, isto é, por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía.
II - A usucapião não poderá ocorrer se o possuidor nem demonstra ter pago a totalidade do preço acordado para a compra da fracção, nem demonstra a ocorrência de outras circunstâncias subsumíveis ao conceito de inversão do título da posse.

Texto Integral

PROC. N.º 5685/15.0T8GMR-J.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 3

REL. N.º 613
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro

Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

B…, por apenso ao processo principal de insolvência da C…, Lda, veio intentar acção que denominou de restituição e separação de bens, sob a forma de processo comum (146.º, n.º 1 e 2), contra os réus:
1) MASSA INSOLVENTE de C…, Lda,
2) CREDORES DA MASSA INSOLVENTE de C…,
3) Insolvente C…, Lda,
4) D… e mulher E… e
5) F….
formulando os seguintes pedidos:
a) Ser declarado e reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio correspondente à fracção n.º 717-CJ da CRP de Felgueiras (uma garagem), por o ter adquirido por usucapião e, em consequência, ser ordenada a sua separação e restituição;
SUBSIDIARIAMENTE, ser declarado e reconhecido o direito de propriedade do casal formado pela autora e seu ex-marido sobre o aludido prédio, por o terem adquirido por usucapião e em consequência ser ordenada a sua separação e restituição;
b) Serem os RR. condenados a reconhecerem o direito de propriedade da autora sobre o identificado prédio e a absterem-se da prática de quaisquer actos que atentem contra o mesmo, nomeadamente absterem-se de quaisquer condutas ou acções que impeçam, restrinjam ou prejudiquem o pleno exercício desse direito;
c) Ser declarado que o referido prédio foi indevidamente incluído nos bens que integravam a massa insolvente e indevidamente vendido aos quartos réus, sendo declarada a nulidade desse ato de alienação e ordenado o cancelamento da Ap. 2463 de 2017/06/05 e Ap. 1312 de 2018/07/26, respectivamente do registo predial do referido prédio, com as legais consequências;
d) Ser declarada a nulidade da compra e venda celebrada entre os quartos e a quinta ré e ordenado o cancelamento da Ap. 417 de 2019/07/16 do registo predial do referido prédio, com as legais consequências;
e) Ser declarada a ineficácia perante a Autora das aludidas vendas da fracção CJ, feitas aos quartos réus e quinta ré
f) Em caso de improcedência dos pedidos das alíneas c) e d), serem declarados tais actos anulados, com as legais consequências;
g) Serem os Réus condenados solidariamente a pagar à Autora uma indemnização no valor de 1.700,00€ nos termos e fundamentos supra, até efectivo e integral restituição da mesma, ou, caso assim não se entenda, a pagarem uma quantia apurada de acordo com a equidade.
Fundamentando a sua pretensão, a autora alegou que a fracção autónoma n.º 717-CJ foi indevidamente apreendida no processo de insolvência da sociedade C… e indevidamente alienada pelo AI, pois que lhe pertence, já que a adquiriu por usucapião. Por isso, a apreensão do referido bem pelo AI, e todos os actos ulteriores de alienação estão feridos de invalidade, sendo ineficazes em relação à autora. Caso se considere que a acessão na posse depende de título formal válido, então será de concluir que a fracção CJ foi adquirida pelo casal formado pela Autora e pelo seu ex-marido, na constância do casamento, através de posse iniciada no seu âmbito, sendo, como tal, é um bem comum. Deduz nessa medida o pedido subsidiário de reconhecimento de propriedade sobre aquele bem comum.
Invoca ainda a autora para sustentar o seu pedido pecuniário que sofreu danos pela privação do uso da garagem, na razão mensal de 100,00€, correspondente ao valor de renda praticado na cidade de Felgueiras por prédio àquele semelhante.
Por despacho de 15.06.2020, na consideração de diversos pressupostos, entre os quais o de a fracção em causa já não se encontrar apreendida, entendeu o Tribunal ocorrer erro na forma do processo, determinando que o mesmo prosseguisse sob a forma de processo comum.
Citados, vieram contestar a Massa Insolvente de C…, Lda, os quartos réus D… e mulher E… e a quinta ré F…, todos pugnando pela improcedência da acção.
Alegaram que a autora nunca foi verdadeiramente possuidora daquela fracção (garagem), dado que dela era mera detentora, detenção essa decorrente de um contrato-promessa. Assentando originariamente o direito da A. numa situação de mera detenção do imóvel e não estando demonstrados os pressupostos da figura da inversão do titulo de posse, nos termos do art. 1265º do CC, concluem ser de improceder o pedido de aquisição originária do correspondente direito de propriedade e, consequentemente, os demais pedidos formulados na PI.
Acrescentaram os quartos réus que a autora, a considerar-se que teve a posse, a perdeu no momento em que a fracção foi apreendida para a massa insolvente da C…, ou, pelo menos, em finais de 2018.
A quinta ré salientou ser a dona da fracção em causa, que lhe adveio quer por aquisição derivada, quer por usucapião. Invocou a presunção de propriedade da fracção, nos termos do artº 7º do Código do Registo Predial e a sua qualidade de terceiro de boa fé, nos termos do disposto no artº 291º do Código Civil.
Defenderam-se, ainda, os réus por impugnação.
A autora apresentou resposta às contestações, alegando a força de caso julgado de uma sentença proferida nuns embargos de terceiro deduzidos perante a justiça tributária, em que foi embargada a Massa Insolvente e onde foi reconhecida a sua posse, bem como arguiu não terem decorrido nem se encontrarem completos os prazos previstos nem no 1295.º, nem no art.º 1296.º do C. Civil, capazes de legitimar a quinta ré à aquisição do direito de propriedade sobre a fracção. Mais referiu que o registo não impede o reconhecimento da propriedade com fundamento na usucapião e que, tendo a ré concluído o negócio no dia 16 de Julho de 2019, a quinta ré não tem qualquer protecção pelo art. 291.º CC.
Quanto à alegada perda da sua posse sobre a fracção, afirmou que isso não a impede de invocar a posse que existiu de 1993 até 2018, por tempo suficiente para a usucapião.
O processo foi conduzido até à audiência de julgamento, no termo da qual foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo todos os RR.
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É contra esta decisão que a A. oferece o presente recurso, defendendo a revogação da decisão recorrida e a procedência do pedido. Concluiu o seu recurso formulando as seguintes conclusões:
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As RR. Massa Insolvente e F… apresentaram resposta ao recurso, pronunciando-se pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo, a requerimento da apelante e sem qualquer contestação pela recorrida.
Foi recebido nesta Relação, cabendo decidi-lo.

2- FUNDAMENTAÇÃO

Como é sabido, sem prejuízo de questões susceptíveis de conhecimento oficioso, o objecto do recurso resulta delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias aí não incluídas - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC.
Assim se identificam as questões a apreciar:
- alteração da decisão da matéria de facto quanto ao item 14 dos factos provados e a alguma factualidade dada por não provada, que a apelante descreve sob als. a) a g), grosso modo referente a circunstâncias de aquisição, pagamento, utilização da fracção em causa, pela autora e, antes, por esta e seu ex-marido.
- em resultado da matéria de facto adquirida, após a sua reapreciação, verificação da aquisição da propriedade da fracção, por usucapião, pela apelante;
- mesmo na hipótese de não ser alterada a matéria de facto, a sua suficiência para sustentar a aquisição da propriedade da fracção, pela apelante, por ter ocorrido inversão do título da posse.
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Na solução das questões descritas, importa ter presente a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, que se passa a transcrever:
1. Nos autos principais de insolvência, fora declarada a insolvência da empresa C…, Lda no dia 11.01.2016, e nomeado administrador de insolvência G….
2. No âmbito daquele processo de insolvência, foi aprendido, além do mais, a fracção autónoma designada pela letra CJ, sito na cave, destinado a garagem, sendo a décima terceira a contar do lado sul, com a área de 17,50 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º 717/19890727-CJ e inscrito na matriz sob o artigo 5166-CJ, a qual integra o prédio urbano sito na Avenida …, da União de Freguesias …, do concelho de Felgueiras.
3. Aquela fracção CJ foi adquirida pela sociedade insolvente por escritura pública de compra e venda lavrada no Cartório Notarial de Felgueiras no dia 30.12.1993 ao sócio e gerente da insolvente, H…, tendo sido inscrita a propriedade da fracção CJ a favor da sociedade insolvente “C…, Lda” pela Ap. 14 de 1994/04/07.
4. Por escritura pública de compra e venda (cfr. fls. 27 a 30), cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido) outorgada no Cartório Notarial I…, sito no Porto, no dia 26.07.2018, pelo preço de 2.600,00€, foi a referida fracção autónoma CJ alienada ao quarto réu D…, pelo Administrador de Insolvência (doravante AI) Dr. G…, na qualidade de administrador de insolvência nomeado no processo de insolvência de “C…, Lda”.
5. Nessa sequência, fora a propriedade da fracção CJ inscrita no registo a favor dos quartos réus D… e E… pela Ap. 1312 de 2018/07/26.
6. Os aqui quartos réus D… e E…, por sua vez, por título de compra e venda (cfr. fls. 31 a 33, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido) lavrado no dia 16 de Julho de 2019, nos serviços da Casa Pronta da Conservatória do Registo Predial de Felgueiras, procederam à venda do indicado imóvel à quinta Ré, F…, pelo preço de € 3.500,00.
7. Nessa sequência, fora a propriedade da fracção CJ inscrita no registo a favor da quinta ré F… pela Ap. 417 de 2019/07/16.
8. Por escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca (cfr. fls. 34 a 37, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido), lavrada no dia 6.1.1993 no Cartório Notarial de Felgueiras, a Autora e aquele que à data era seu marido, J…, adquiriram a H… um prédio urbano consistente na fracção autónoma designada pela letra “BS”, destinada a habitação, a qual integra o prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, da União de Freguesias …, do concelho de Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º 717 e inscrito na matriz sob o artigo 5166-BS, correspondente ao quinto andar recuado.
9. Prédio esse que ao longo da sua convivência marital constituiu a casa de morada de família da Autora.
10. Na altura da aquisição da dita fracção, a Autora e aquele seu ex-marido escolheram e apalavraram a aquisição junto do vendedor de um lugar de garagem que à dita fracção corresponderia, consistente na fracção CJ, a qual imediatamente passaram a usar e a ocupar com os mais diversos objectos e materiais, não tendo de imediato celebrado a escritura de compra e venda por há data não terem dinheiro para pagar a garagem.
11. No dia 24 de Setembro de 1997 entre a Autora e o seu – à data –, marido e a empresa C…, Lda, aqui insolvente, devidamente representada pelos seus sócios gerentes H… e K…, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda (cfr. fls. 61 e 62, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido), por via do qual, os primeiros declararam prometer comprar e a citada empresa declarou prometer vender a aludida fracção CJ, pelo preço de 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos).
12. Na cláusula segunda daquele contrato-promessa ficara estipulado o seguinte:
“Como condições de pagamento estabelece-se que o montante total da venda correspondente a 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos) será pago através de uma letra aceite pelos promitentes compradores a 90 dias, ficando estes com a responsabilidade de pagar as despesas bancárias.”
13. A Autora contraiu casamento católico com J…, no dia 15/06/1985, sem convenção antenupcial, no regime da comunhão de adquiridos, o qual foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Felgueiras,
14. A Autora, e o seu então cônjuge até pelo menos ao seu divórcio, desde o ano de 1993 até finais de 2018, usaram e fruíram da garagem (fracção CJ), vedando a garagem e procedendo a diversos trabalhos de construção civil, incluindo a pintura (em data não concretamente apurada) e suportando as quotas de condomínio” (redacção alterada, como determinado infra).
15. Estacionando os seus carros e bicicletas na garagem (fracção CJ), ali armazenando os seus pertences, afectando-a igualmente a arrumos; procedendo à sua limpeza e arrumação.
16. Tendo vedado a garagem com chapa e procedido à colocação de um portão.
17. Estando presente nas assembleias de condóminos, e ali representando a fracção CJ, votando todas e quaisquer deliberações.
18. Sendo a autora detentora das chaves dos portões do prédio que permitem o acesso à mesma, e das chaves da mesma.
19. Correu termos o processo n.º 186/07.3BEBRG pela Unidade Orgânica 3 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, autos de embargos de terceiro instaurados pela ora autora e seu ex-cônjuge (ali embargantes) contra a ali executada sociedade “C…” e a exequente Autoridade Tributária, reagindo contra a penhora daquela fracção CJ feita pela Autoridade Tributária e na qual era executada /devedora a empresa C….
20. Tais embargos foram instaurados em 26.01.2007, tendo sido proferida sentença a 26.06.2009 constante a fls. 64 a 66 (cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido), tendo sido julgados procedentes os embargos de terceiro deduzidos pela aqui autora e seu ex-cônjuge.
21. A autora sempre usou a garagem, à vista e com o conhecimento de toda a gente até finais de 2018.
22. Àquela utilização da garagem por parte da autora (e seu ex-cônjuge) opôs-se a sociedade insolvente, em 1996, peticionando o reconhecimento do direito de propriedade sobre a fracção CJ e a restituição da fracção e opuseram-se os quartos réus após a celebração da escritura da fracção CJ, exigindo a entrega da garagem atenta a aquisição no processo de insolvência por parte dos quartos réus.
23. Perante tal situação, embora não reconhecendo direito à garagem pelos quartos réus, a Autora dali retirou alguns pertences, com receio de que viessem a contra si peticionar eventuais indemnizações.
24. A partir de finais de 2018, a garagem passou a estar ocupada pelos quartos réus, após arrombamento da porta e mudança de fechadura realizada pelo responsável da venda, a mando do Sr. AI.
25. Posteriormente, a 17.06.2019, a autora requereu apoio judiciário com nomeação de Patrono para instauração da presente acção, o qual veio a ser deferido em 29.08.2019 e vindo a ser nomeado o actual patrono a 10.02.2020.
26. Desde finais do ano de 2018, a autora não mais voltou a usar a garagem (fracção CJ).
27. Desde então (finais de 2018) e até terem vendido a fracção CJ à quinta ré, a garagem passou a ser usada pelos quartos réus, aos olhos de toda a gente, sem qualquer interrupção de tempo, e com exclusão de outrem, na convicção de exercício de um direito próprio de propriedade, com a convicção de que não lesavam o direito ou interesse de quem quer que seja, pagando as prestações do condomínio e os impostos e taxas legais.
28. A quinta ré procedeu ao pagamento do preço da fracção CJ fixado na escritura de 16.07.2019. Nessa sequência fora-lhe entregue a garagem, passando a ré a usar a garagem, ali estacionando o seu veículo, guardando os seus pertences, e fazendo o uso que lhe convém, pagando as contribuições e imposto sobre ele incidentes,
29. O que tem feito à vista e com o conhecimento de todos, na firme convicção de que está, e sempre esteve, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre aquela fracção CJ.
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Factos Não provados:
- A celebração da escritura de compra e venda dessa fracção CJ pela autora foi sendo sucessivamente protelada pela sociedade insolvente e seu legal representante,
- O preço da fracção CJ prometida comprar pela ora autora e seu então cônjuge à sociedade “C…” fora pago através de uma letra aceite pelos promitentes-compradores, a qual foi sucessivamente reformada, até ao montante de 450.000$00, valor que em inícios de 1998, acabou por ser integralmente pago, em numerário.
- Apesar das diversas insistências dos compradores (autora e seu então cônjuge), a formalização do negócio prometido foi sendo injustificadamente protelada pela promitente vendedora, alegando primeiramente a falta de disponibilidade e depois a existência de penhoras incidentes sobre o imóvel, as quais, segundo o alegado pelos legais representantes da vendedora, «iriam ser a breve trecho regularizadas», o que contudo nunca veio a suceder, garantindo sempre que a fracção era, para todos os efeitos, propriedade da autora e ex-marido e que não haveria qualquer problema.
- Autora e seu então ex-cônjuge subscreveram seguro de responsabilidade civil referente à fracção CJ.
- Ao usar e fazer uso da garagem (fracção CJ) nos termos descritos nos factos provados, a Autora, por si e seus antepossuidores e o seu então cônjuge, actuaram na convicção de serem os legítimos proprietários da fracção;
- Desde 1993, a autora e/ou o seu ex-cônjuge vêm pagando as contribuições e impostos ao Estado que incidem sobre a fracção CJ;
- A autora e o seu então cônjuge ao ocuparem a garagem desde 1993 nos termos acima descritos, fizeram-no na firme convicção de que estavam no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre aquela fracção.
- O valor de renda praticado na cidade de Felgueiras por garagem e fracção semelhante à fracção CJ ascende ao montante mensal de € 100,00.
- Após o divórcio, o prédio n.º717-BS foi transmitido à Autora, por partilha.
- Quanto à garagem (fracção CJ), fora acordado verbalmente entre Autora e seu ex-cônjuge que a dita fracção ficaria na posse exclusiva daquela.
- Só não foi feita a escritura juntamente com a aquisição da fracção habitacional BS, pelo facto do alienante protelar sucessivamente esse acto escritural.
- A escritura do contrato definitivo da fracção CJ só não foi feita aquando da celebração do contrato-promessa pelo facto do alienante (ora insolvente) alegar que sobre a fracção impendiam ónus e encargos que impediram a realização imediata da mesma.
- A autora nunca apresentara oposição à ocupação da garagem por parte dos quartos réus e quinta ré.
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A autora, ora apelante, pretende a alteração do juízo probatório do tribunal a quo, em relação a factos que especifica, propondo o juízo probatório alternativo e apontando com a necessária individualização os meios de prova que, na sua perspectiva, o justificam. Dá, assim, cumprimento ao ónus processual estabelecido nos nºs 1 e 2 do art. 640º do CPC, pelo que importa apreciar o seu recurso, também nessa parte.
Começa, então, a apelante por pretender que, em relação ao item 14 dos factos provados [“A Autora, e o seu então cônjuge até pelo menos ao seu divórcio, desde o ano de 1993 até finais de 2018, usaram e fruíram da garagem (fracção CJ), vedando a garagem e procedendo a uma pintura (em data não concretamente apurada) e suportando as quotas de condomínio], se complemente a factualidade descrita com a menção de outros trabalhos, além dessa pintura, ficando ali a constar, além do mais “… vedando a garagem e procedendo a diversos trabalhos de construção civil, incluindo a pintura…”. Esta pretensão sustenta-se nos depoimentos das testemunhas L… e de J….
Não obstante a irrelevância da alteração pretendida, pois que o exercício de poderes de facto da autora sobre a garagem em causa se mostra mais do que suficientemente caracterizado no rol dos factos provados (cfr. itens 10, 14, 15, 16, 18, 21) certo é que o depoimento de L…, de per si, permite sustentar o requerido pela apelante. Referiu esta testemunha ter sido ele própria a executar diversos trabalhos na referida garagem, incluindo a sua pintura por mais do que uma vez, tal como a sua vedação, colocação de luz, etc. O próprio tribunal conferiu credibilidade a este depoimento, sendo que o mesmo é coincidente, nesta parte, como o de J…, não obstante a falta de credibilidade generalizada deste. Por isso, e apesar de esta alteração consubstanciar pouco mais do que um preciosismo, não deixará de se reconhecer razão à apelante, nesta questão, determinando-se a alteração do item 14 dos factos provados em conformidade com o pretendido. Esse item passará, assim a ter a seguinte redacção: “14. A Autora, e o seu então cônjuge até pelo menos ao seu divórcio, desde o ano de 1993 até finais de 2018, usaram e fruíram da garagem (fracção CJ), vedando a garagem e procedendo a diversos trabalhos de construção civil, incluindo a pintura (em data não concretamente apurada) e suportando as quotas de condomínio”. Tal alteração surge já assinalada graficamente no lugar próprio.
Sucessivamente, pretende a apelante que se dê por provada a matéria apreciada negativamente e que distribuiu sob as seguintes alíneas:
a) O preço da fracção CJ prometida comprar pela ora autora e seu então cônjuge à sociedade “C…” fora pago através de uma letra aceite pelos promitentes-compradores, a qual foi sucessivamente reformada, até ao montante de 450.000$00, valor que em inícios de 1998, acabou por ser integralmente pago, em numerário;
b) Apesar das diversas insistências dos compradores (autora e seu então cônjuge), a formalização do negócio prometido foi sendo injustificadamente protelada pela promitente vendedora, alegando primeiramente a falta de disponibilidade e depois a existência de penhoras incidentes sobre o imóvel, as quais, segundo o alegado pelos legais representantes da vendedora, «iriam ser a breve trecho regularizadas», o que contudo nunca veio a suceder, garantindo sempre que a fracção era, para todos os efeitos, propriedade da autora e ex-marido e que não haveria qualquer problema;
c) Ao usar e fazer uso da garagem (fracção CJ) nos termos descritos nos factos provados, a Autora, por si e seus antepossuidores e o seu então cônjuge, actuaram na convicção de serem os legítimos proprietários da fracção;
d) A autora e o seu então cônjuge ao ocuparem a garagem desde 1993 nos termos acima descritos, fizeram-no na firme convicção de que estavam no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre aquela fracção;
e) A escritura do contrato definitivo da fracção CJ só não foi feita aquando da celebração do contrato-promessa pelo facto do alienante (ora insolvente) alegar que sobre a fracção impendiam ónus e encargos que impediram a realização imediata da mesma;
f) Após o divórcio, o prédio n.º717-BS foi transmitido à Autora, por partilha;
g) Quanto à garagem (fracção CJ), fora acordado verbalmente entre Autora e seu ex-cônjuge que a dita fracção ficaria na posse exclusiva daquela.
Podemos reduzir estas referências aos seguintes elementos:
1 – A autora e seu ex-marido pagaram o preço da fracção através de uma letra sucessivamente “reformada”, até ao valor de 450 contos, pagos em 1998 e em dinheiro, à insolvente C….
2 – A C… foi adiando a celebração formal da venda, invocando penhoras sobre a garagem e garantindo que tudo se resolveria e que a garagem era da A e seu ex-marido.
3 – A. e seu ex-marido sempre agiram sobre a garagem, desde 1993, na convicção de serem os seus exclusivos donos.
4- Em 1997, quando A. e seu ex-marido celebraram contrato-promessa com a C… relativo à venda da garagem, a correspondente escritura pública não foi feita por esta afirmar existirem ónus e encargos sobre a mesma, que o impediam.
5- Após o divórcio, a fracção correspondente a um apartamento foi transmitida à autora, por partilha, e ela e o ex-marido acordaram verbalmente que a garagem também ficaria na sua posse.
Para inverter o juízo probatório sobre a matéria em causa, a apelante invoca essencialmente as suas próprias declarações de parte, o depoimento testemunhal do seu ex-marido e actual companheiro, J…, o de H…, que foi gerente da insolvente C…, M…, que foi empregada da autora e N…, da leiloeira que interveio na venda da fracção, por conta da Massa Insolvente da C….
Para além disso, invoca a seu favor a circunstância de ter obtido ganho de causa nuns embargos de terceiro, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, perante a circunstância de, em processo de execução fiscal contra a C…, a garagem em questão ter sido penhorada. Aí logrou ver reconhecida a sua posse sobre essa mesma garagem, com a consequente procedência dos embargos.
Acontece que, na sentença recorrida, em termos que não são postos em causa sequer no presente recurso, já foi afirmada a irrelevância desse processo de embargos, cuja sentença não adquire força de caso julgado no âmbito da discussão dos presentes autos, cujos pressupostos não adquirem autoridade de caso julgado que aqui seja eficaz e cuja instrução probatória não assume qualquer valor para a discussão estabelecida nestes autos (cfr. art. 421º, nº 1 do CPC), maxime devido à não identidade das partes naquele e neste processo. Mal se percebe, pois, que a apelante, sem mais, continue a invocar tal decisão nestes autos, para aqui sustentar a sua argumentação quanto à efectividade da sua posse, integrada pelos seus dois elementos, corpus e animus, sobre a garagem em discussão.
Assim, será por referência a outros meios de prova, apontando a apelante as suas próprias declarações de parte e os depoimentos das testemunhas referidas, ou à significativa ausência de outros instrumentos probatórios, que caberá indagar da existência e eventuais caracteres da posse sobre a garagem referida. E isto sem que se esqueça que, constituindo uma tal posse a causa de pedir da presente acção, é sobre a autora, ora apelante, que incide o ónus da respectiva demonstração, nos termos do art. 342º, nº 1 do C. Civil.
Em qualquer caso, e como apelante e apelados bem entendem, a controvérsia não se verifica em relação ao corpus de uma tal posse, que aquela invocou exercer sobre a garagem. Com efeito, mostra-se completamente adquirido que, desde 1993 e até finais de 2018, a autora sempre ocupou a garagem com as suas coisas, fez obras, vedou-a, trocou fechadura e manteve a chave e o acesso exclusivo ao seu interior, exercendo um efectivo domínio material sobre essa mesma fracção.
Assim, o que está em causa - e interessa ter presente, mesmo nesta fase de sindicância do juízo probatório do tribunal recorrido, pois será determinante para a ponderação da prova produzida, enquanto concretização do respectivo objecto – é a indicação sobre a existência de um animus paralelo e correspondente àquele corpus, nas especiais circunstâncias do caso, que condicionam o surgimento ou relevância desse animus, como veremos.
Cumpre, assim, indagar sobre se a prova produzida é apta a proporcionar a conclusão de que a autora actuou em relação à garagem com a intenção de agir como titular do correspondente direito de propriedade, ou seja, na afirmação de um direito próprio, pois que a isso se reconduz o conceito de animus. Sendo certo que na indagação sobre a presença deste requisito da posse se buscam elementos de ordem subjectiva, insusceptíveis de prova directa, a sua demonstração tem de resultar do conhecimento de outros, cuja verificação permitirá presumir (por presunção judicial) a ocorrência desses elementos. A conclusão pela verificação do animus haverá, então, de resultar de um processo lógico de indução, que permita, a partir de factos exteriores demonstrados, levar à conclusão sobre a verificação de um facto psicológico, subjectivo, que lhes é inerente.
No caso em apreço, porém, a actividade instrutória com que a autora se encontra onerada é ainda mais complexa, como bem assinalou a sentença recorrida. É que, estando adquirido que a autora iniciou o seu domínio material sobre a garagem na sequência de um negócio por via do qual isso lhe foi simplesmente autorizado, em 1993; que essa autorização foi depois posta em causa pelo dono da garagem, (cfr. item 22º dos factos provados: acção proposta pela sociedade insolvente, que entretanto adquirira a propriedade da garagem, para que a mesma lhe fosse entregue, por a A. não ter direito a mantê-la); que essa autorização foi renovada à sombra de um contrato-promessa celebrado em 24/11/1997 (item 11º dos factos provados), só pode concluir-se que a sua posse se iniciou e manteve, não em nome próprio, mas em nome de outrem, sendo assim inapta para fundar uma ulterior aquisição por usucapião.
Nestas circunstâncias, a conclusão pela verificação do animus, deduzida por presunção a partir de factos exteriores conhecidos, sempre será insuficiente para se vir a concluir pela verificação de uma posse útil (apta a sustentar a aquisição por usucapião, nos termos do art. 1287º e ss., do C. Civil), pois que, nos termos dos arts. 1263º, al. d) e 1265º do Código Civil, uma tal posse só nasce a partir de actos que traduzam uma inversão do título da posse, circunstância que ocorrerá através de um ou mais actos de oposição daquele que possuía em nome de outrem, contra este, isto é, por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía.
Importando este regime para o caso em apreço, e tal como entendeu o tribunal recorrido, tendo a autora (e o seu marido, ao tempo), passado a ocupar a garagem como se apurou que ocupou (conclusão pela verificação do requisito material da posse, i. é, do corpus possessório), a partir de 1993, e sem prejuízo da intenção da autora de agir em relação a ela como se fosse sua proprietária (requisito subjectivo, i.é, animus possessório), só poderá concluir-se que a mesma (por si só ou juntamente com o seu ex-marido, pois que isso é indiferente para o caso) adquiriu a posse da garagem a partir de um qualquer quadro de circunstâncias que seja passível de subsunção ao conceito de inversão de título da posse. E, como vimos, estas circunstâncias traduzir-se-ão em factos que revelem que, a partir de determinado momento, através de um ou mais actos de oposição da autora à dona da garagem – a insolvente C… e o seu representante H… – aquela passou a opor-lhes o seu direito de propriedade sobre a garagem, negando assim a sobrevivência de um incompatível direito de propriedade da C… sobre essa mesma fracção.
Isto mesmo vem exemplarmente referido no Ac. do STJ, de 19/2/2019 (proc. nº 1565/15.8T8VFR.P1.S2, em www.dgsi.pt), onde se sumariou: “(…) V -O contrato promessa de compra e venda não é susceptível, só por si, de transmitir a posse ao promitente comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, numa situação de mero detentor ou possuidor precário. VI - A inversão do título da posse tem de traduzir-se, para se eficaz, em circunstâncias excepcionais que permitam considerar que na situação o promitente comprador ultrapassou a mera detenção do imóvel, que alteram a normal situação de detenção, decorrente da simples tradição, convertendo-a em verdadeira e própria posse. VII - No caso em apreço, verificam-se as circunstâncias excepcionais referidas em VI, perante o seguinte quadro factual: (i) o preço convencionado foi pago integralmente, por exigência dos promitentes vendedores; (ii) foi acordada a ocupação imediata da parcela de terreno por parte do promitente comprador; (iii) há mais de vinte anos que o promitente comprador executou um muro na parte sobrante do prédio e aí colocou um portão, como acordado.”
No mesmo sentido se expressa o Ac. do TRE, de 17-11-2016 (proc. nº 3689/15.2T8STB-B.E1): “(…) III - Os que exercem a posse em nome alheio só podem adquirir o direito de propriedade se ocorrer inversão do título de posse (“interversio possessionis”) – art. 1263º d) do Código Civil – ou seja, se, a partir de certo momento, passarem a exercer o domínio, contra quem actuava como dono, com a intenção, agora, de que o oponente actua, inequivocamente, como titular daquele direito. IV - Para que a inversão por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía aconteça, importa que o detentor torne, directamente, conhecida da pessoa em cujo nome possuía, quer judicial, quer extra-judicialmente, a sua intenção de actuar como titular do direito, sendo uma oposição categórica, traduzida em actos positivos, materiais ou jurídicos, mas inequívocos, reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem, e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem”. V - Tal como a posse relevante para usucapião (a par de outros requisitos, deve ser pública), também a oposição exercida pelo detentor precário tem de ser ostensiva em relação àquele em nome de quem possuía, sendo que não deixa de ser pública, quando não é propriamente conhecida de toda a gente, é-o acima de tudo, quando é conhecida do interessado directo ou indirecto – “trata-se de uma relação mais com o próprio interessado do que com o público em geral”.
É, então, no âmbito da procura de um quadro de circunstâncias que traduza a necessária inversão do título da posse, com o significado que acaba de se descrever, que cumpre analisar a prova invocada pela apelante, bem como o eventual relevo da factualidade relativamente á qual pretende a alteração do juízo probatório.
Neste contexto, logo se vê que se torna inútil indagar do animus da autora (e seu ex-marido) relativamente ao domínio exercido sobre a garagem, desde 1993 até ao momento da celebração do contrato promessa, em 1997, pois que é evidente que, pelo menos até então, independentemente da intenção subjacente à utilização da garagem como se sua proprietária fosse e independentemente da percepção de terceiros quanto a isso, a respectiva utilização vinha sendo feita por mera tolerância da insolvente C…. É isso que se mostra provado no item 10º dos factos provados e foi isso que ficou claro com a acção proposta em 1996, para recuperação da fracção, (item 22º) em termos ultrapassados mediante a celebração, em 1997, de um contrato-promessa tendente à sua ulterior aquisição.
Por conseguinte, de entre o leque de factos não provados, aqueles que a autora não poderia deixar de demonstrar, seriam os seguintes:
- na sequência do contrato-promessa, o preço da garagem foi integralmente pago;
- a escritura de venda não foi celebrada, apesar da insistência da autora e ex-marido, sob as várias desculpas enunciadas pela sociedade C….
- pelo menos a partir do pagamento integral do preço, a autora e seu ex-marido opuseram à C… o seu direito de propriedade, passando a actuar sobre a garagem na convicção e com a intenção de sobre ela exercerem um integral e próprio direito de propriedade;
- após o divórcio, o ex-marido da autora transmitiu para esta a parte do seu direito sobre a referida garagem.
Sobre a matéria em questão, e depois de revisitados e analisados todos os meios de prova invocados pela apelante, o que desde logo sobressai é o completo desconhecimento de todas as testemunhas indicadas no recurso, sobre a matéria em questão, com excepção de J…, ex-marido da autora, e de H…, que foi gerente da insolvente e com quem a autora e o ex-marido negociaram a compra da garagem.
Com efeito, M…, que foi empregada da autora, apenas mostrou saber o que esta lhe contou (15´20´´ do seu depoimento), depois de admitir que, em rigor, não sabe se a autora pagou ou não a garagem. De resto, situou tal compra quer em 1993, aquando da aquisição do apartamento no mesmo prédio, e logo depois em data posterior em 3 ou 4 anos. Trata-se, pois, de um depoimento imprestável para os fins necessários, por desconhecimento quer das circunstâncias anteriores, quer, sobretudo, ulteriores a 1998, referentes ao negócio, sem prejuízo de ter sido testemunha, em 2006, nos embargos opostos pela autora à execução fiscal contra a insolvente C…. onde tal fracção foi penhorada. O que é certo é que do seu depoimento não decorre qualquer alteração notada na utilização e domínio da garagem, por parte da autora, designadamente em oposição a um incompatível direito de propriedade da insolvente C…, sobre essa mesma fracção. Nenhum facto ou episódio relatou que evidenciasse que, a partir de qualquer momento, necessariamente ulterior ao contrato-promessa, a autora tenha afirmado um poder novo, oposto ao da C…, sobre a garagem.
O mesmo se diga do depoimento de L… e de N…, que apenas souberam revelar a utilização da garagem desenvolvida pela autora, a forma como sobre esta actuava como se sua dona fosse, mas sem conhecimento dos demais elementos referidos supra, designadamente no âmbito das diferentes etapas do relacionamento da autora com a C…, relativamente a este assunto.
E, portanto, reduz-se a prova relevante às declarações da própria autora B…, ao depoimento do seu ex-marido e actual companheiro J… e às de H…, inicial dono da garagem, que a vendeu à C… de que era o próprio sócio-gerente, depois de ter autorizado a sua ocupação pela autora sob a intenção de que esta futuramente a comprasse, e que, depois, em 1997, outorgou a promessa da respectiva venda (a fls. 61 v. e 62) enquanto representante da C…, depois de ter intentado acção para a reivindicar da autora e seu marido, que continuavam a ocupá-la sem a terem comprado.
A tais meios de prova, acrescentam-se alguns documentos, designadamente a certidão de registo predial respeitante à garagem em discussão, de onde resulta a inscrição de uma hipoteca, a favor da P…, em 22/9/1997, para garantia do montante máximo de 7.974,53€, e uma primeira penhora, a requerimento do exequente Q…, S.A., em 2 /7/2003.
Na ponderação dos meios de prova referidos, podemos adiantar que coincidimos com a avaliação do tribunal a quo sobre a parcialidade, interesse e falta de credibilidade das declarações da autora e seu ex-marido, com depoimentos vocacionados para a sustentação da sua tese, mas que surgem divergentes em relação ao depoimento de H…, bem mais credíveis por claramente desinteressadas.
Assim, designadamente, quanto ao pagamento integral do preço acordado para a garagem. É incontroverso que, em plena acção cível, através da qual a C… pretendia reaver da autora a garagem que esta ocupava, por ter sido combinado que a havia de comprar, mas sem que tal negócio tenha sido desenvolvido, a A. e seu ex-marido acordaram com H…, em representação da C…, a celebração de um contrato-promessa tendente à respectiva transmissão. Curiosamente, esse negócio é feito com a A. dois dias depois de ter sido registada a hipoteca da mesma garagem a favor da P…, embora para garantia de um crédito de reduzido valor.
Nos termos daquele contrato, o preço haveria de ser pago mediante sucessivos pagamentos parciais (“reformas”) do valor de uma letra, sacada a 90 dias, segundo as possibilidades dos compradores, suportando estes as inerentes despesas. Isso é referido por todos. A letra foi reformada até ficarem a faltar 450 contos, ou 440 contos na versão de H…. Esse valor, segundo autora e seu ex-marido, foi então pago em dinheiro, logo em 1998. Já H…, titubeando enquanto dizia que a letra foi reformada à custa da própria C…, asseverou inequivocamente que aqueles 440 contos nunca foram pagos. E acrescentou que, no âmbito dos embargos à execução fiscal (que correram em 2007) acabou por testemunhar, a pedido da autora, que esse último valor também lhe fora pago, mentindo, para assegurar que a procedência dos embargos e, assim, que a autora poderia continuar a ficar com a garagem. Mas combinando, então, que lhe haveriam de ser pagos os 440 contos em falta, tendo até instruído a autora para os pagar ao seu filho.
Desta conjugação de meios de prova sobressai a incerteza sobre o pagamento daquele montante, de quase um terço do preço da garagem. Com efeito, perante a negação de H…, não são suficientes as afirmações contrárias e interessadas da autora e seu ex-marido, para sustentar a convicção sobre a realidade desse pagamento. Ao que acresce que pouco se compreende que, a ter havido um tal pagamento, no âmbito de um negócio originado por uma acção judicial, a autora não tivesse exigido um documento de quitação relativamente aos valores pagos, maxime relativamente ao último valor de 450 contos, que diz ter pago em dinheiro. De resto, um tal documento já não apareceu nos embargos à execução fiscal, tendo aí H… mentido, por forma a não prejudicar a autora, que ficaria sem hipótese de adquirir a garagem se a execução fiscal prosseguisse, mas, segundo diz de forma credível, sempre sob a condição de receber o resto do preço, o que jamais veio a acontecer.
Ora, na ausência da demonstração sobre o integral pagamento do preço acordado para a garagem, prejudicado fica o reconhecimento de que a autora e seu ex-marido, sem esse pagamento, tenham passado a considerar-se, sem mais, donos da fracção. E, mais do que isso, que tenham oposto à C…, por qualquer forma, um tal direito seu. Aliás, mal se compreenderia, ainda, que a autora se aprestasse a pagar a totalidade do preço da garagem perante a informação – que refere que H… lhe dava – de que não lhe podia fazer a venda da garagem por esta estar onerada e sob penhoras.
Com efeito, a autora afirmou que o Sr. H… (necessariamente enquanto representante da C…, já que para a esfera desta transferira a propriedade da garagem) sempre lhe disse que não formalizava o contrato de venda da garagem por sobre esta incidirem ónus e penhoras. Mas depois também afirmou que achou que nem era preciso fazer qualquer escritura, por a situação ter ficado resolvida por via do sucesso obtido nos embargos à execução fiscal. Isto é contraditório nos seus próprios termos, pelo que se não pode acreditar em tais declarações, sendo certo, por outro lado, que em 1997 a garagem só estava onerada por uma hipoteca que garantia um crédito de valor pouco significativo e que a primeira penhora só foi registada em 2/7/2003. Isto também impede que se possa ter por verdadeira a sua tese, segundo a qual logo em 1998, depois de ter pago tudo, o contrato de venda não foi celebrado por sucessivas evasivas da C….
Neste contexto, igualmente não pode acreditar-se na anunciada convicção da autora de que, após o sucesso dos embargos, cuja sentença só foi proferida em 26/6/2009 (item 20), ficou convencida de que estava tudo resolvido e já nem era preciso fazer escritura de venda, quando antes afirmara que a escritura só não se fizera, depois de grandes insistências suas, por a C… não ter condições para a fazer.
Inexiste, pois, fundamento para sustentar um juízo positivo sobre a matéria descrita nas als. a), b) e e), referidas nas alegações da apelante.
Em qualquer caso, o que de forma alguma se evidenciou foi qualquer acto ou circunstância que pudesse identificar-se como inversão do título da posse, como por exemplo, uma afirmação dirigida à C… (ou ao seu gerente H…) de que nada lhe era devido, de que já tinham a garagem como sua, que estava paga e dela não abririam mão. Pelo contrário, segundo o referido por H…, ainda ficou pendente do pagamento do resto do preço.
Por isso, sob este enquadramento, de nenhum interesse se revestiria, sendo irrelevante para a decisão a proferir, a matéria constante das als. c) e d), elencadas pela apelante, tal como ali simplesmente se encontra descrita.
Por fim, em relação à matéria descrita nas als. f) e g) da alegação da recorrente, também dada por não provada na sentença em crise, só pode concluir-se que a falta de credibilidade das declarações da autora e do seu ex-marido, absolutamente vocacionadas para a demonstração da sua própria tese, mas desacompanhadas de qualquer documento que, atenta a natureza do negócio, seria sempre exigível, obsta a que se dê por provada a partilha de bens entre ambos (autora e seu ex-marido), por via da qual tenha sido transmitido a esta qualquer direito dele sobre a referida garagem, incluindo quanto à sua exclusiva utilização. Sem prejuízo, não pode deixar de se afirmar a total irrelevância desta matéria, para a solução do litígio.
Por todo o exposto, e sendo oportuno assinalar a forma proficiente como o tribunal a quo analisou a prova produzida, incluindo os segmentos das declarações e depoimentos invocados neste recurso, e revistos esses mesmos meios de prova e os demais referidos, só pode confirmar-se o decidido, rejeitando-se a hipótese de se dar por provada a referida matéria que, acima e seguindo o método do recurso, se havia elencado sob as als. a) a g).
Nestes termos, salva a alteração introduzida no texto do item 14 dos factos provados, mantém-se em tudo mais a decisão recorrida, quanto à matéria de facto.
*
Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora verificar se os factos, conforme resultaram adquiridos, permite concluir pela aquisição originária, pela autora, do direito de propriedade sobre a garagem em questão.
Esta discussão não pode, no entanto, prescindir do que supra já se expôs, sobre a necessidade de, no caso em apreço, a posse da autora e seu ex-marido, para efeitos de usucapião, só poder nascer a partir de um acto subsumível ao conceito de inversão do título da posse. Com efeito, nos termos do art. 1263º, al. d) do C. Civil, (como supra já se afirmou) quando o exercício de poderes materiais sobre uma coisa é facultado por concessão do respectivo dono, como aconteceu no caso em apreço, desde 1993 e, também, na sequência do contrato-promessa de 1997, a posse apta a facultar a aquisição por usucapião só nasce por inversão do título da posse.
Assim, todos os actos de domínio, mesmo que acompanhados da intenção da autora e seu ex-marido de actuarem sobre a garagem como se fossem seus proprietários, são irrelevantes, pois que para a dona da garagem, a empresa C…, esses actos sempre estiveram legitimados pelo seu consentimento. De resto, nenhum efeito decorreu, para a titularidade desse direito, em relação à C…; a circunstância de a garagem ter sido alvo de sucessivas penhoras.
Por outro lado, e contrariamente ao afirmado pela apelante, a circunstância de não se ter demonstrado o pagamento à C… de quase um terço do preço acordado para a garagem (facto constitutivo do direito da autora e cuja prova lhe cabia, nos termos do art. 342º, nº 1 do C.Civil, e que agora se refere atento o constante da conclusão 31º do respectivo recurso) e de jamais se ter identificado um acto, designadamente após a pendência e solução dos embargos de executado, em face do qual se possa concluir pela oposição de um direito próprio, por parte da autora, àquela empresa dona da fracção, obsta a que se considerem reunidos pressupostos para que se possa concluir que a manutenção do domínio material sobre a mesma, mesmo com a intenção de actuação como se de proprietária se tratasse, possam constituir a base para a aquisição da propriedade da fracção, por usucapião. Note-se, por exemplo, que o elenco de factos invocados pela autora para sustentar isso mesmo (cfr. conc. 32º) não compreende nenhum que seja dirigido à própria C…, mas meros actos públicos de exercício de poderes de facto sobre a garagem, inaptos de per si, para representarem o necessário acto de oposição de um direito próprio à dona em nome de quem, anteriormente, esses actos foram praticados.
Por fim, e tal como se refe na decisão recorrida, mesmo a admitir-se, para meros efeitos de raciocínio, que a inversão do título da posse foi inerente à prestação do depoimento testemunhal de H… nos embargos à execução fiscal, jamais teria decorrido o prazo necessário para a aquisição do direito invocado pela autora, por usucapião, por não ter decorrido desde então e até 2018 sequer o prazo de 15 anos previsto no art. 1296º do Código Civil, sendo certo que, no caso, sempre se imporia o decurso do prazo de 20 anos, por tal posse ser notoriamente não titulada e presumida de má fé, nos termos do art. 1260º, nº 2 do C. Civil, de resto como admitido pela própria apelante (cfr. conc. 34º do recurso).
Por todo o exposto, resta confirmar a decisão recorrida, na improcedência de todas as razões da apelação.
*
3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a presente apelação, na confirmação da decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Notifique.

Porto, 22/06/2021
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro