RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
REJEIÇÃO
Sumário

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



RELATÓRIO

AA veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação ….. de 10/11/2020, proferido no processo nº 7362/19…. ….ª Secção alegando que está em oposição com acórdão do Tribunal da Relação Porto, proferido no processo nº 101/13.5JAAVR.Pl, em 12/10/2016, publicado em www.dgsi.pt, invocando o disposto no art. 437º, do CPP, concluindo nos seguintes termos:

«3. O acórdão recorrido entendeu que: "a autoria singular que, na linha da posição que temos vindo a citar e a que aderimos, não traduz alteração que devesse ser previamente comunicada, razão por que não se verifica a invocada nulidade," decidindo: "Julgar desde já inverificada a nulidade prevista na alínea b) do nº1 do artigo 379.º C.P.P. invocada pelo arguido AA e, nessa parte, não provido o seu recurso;"

4. Enquanto que o identificado acórdão-fundamento interpretou a mesma questão - "O que se verificou foi, pois, uma alteração da qualificação jurídica dos (mesmos) factos relativos ao tipo de participação na sua execução (acusada como coautora e condenada como autora mediata). Ora, essa diferente qualificação jurídica dos factos agravou a condição jurídico-penal da arguida/recorrente".

5. Originando por isso um conflito de jurisprudência, porquanto, por um lado, o acórdão recorrido entende, na esteira do comentário do Juiz Conselheiro Oliveira Mendes e Professor Paulo Pinto de Albuquerque "não haver necessidade de comunicação da alteração não substancial dos factos e da alteração da qualificação jurídica dos factos no caso de condenação como autor de um arguido acusado em coautoria" enquanto que o acórdão-fundamento conhece da mesma questão de direito, entendendo em sentido contrário, que se impunha a comunicação que seja jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa, que assim será "o caso em que a alteração pode influir na determinação da medida da pena” pelo que "Impunha-se, pois, que fosse efetuada a comunicação prevista no n.° 1 do artigo 358.° do Cód. Proc. Penal. Não o tendo sido, o acórdão recorrido ficou afetado de nulidade (artigo 379.°, n.° 1, al. b), do mesmo compêndio normativo), que terá de ser suprida na primeira instância."

6. Com efeito decide que "Ocorre alteração não substancial dos factos, relevante para a decisão a impor a comunicação do art° 358° CPP, a qualificação jurídica traduzida no tipo de participação da arguida na execução do crime: de co- autoria para autoria mediata.”

7. Ambos os acórdãos já transitaram em julgado, sendo certo que o recorrente se considera notificado da decisão do douto acórdão do Tribunal da Relação … em 16/11/2020.

8. Donde o recorrente tem legitimidade e está em condições de requerer como requer, que se considere interposto o competente recurso para fixação de jurisprudência, sem efeito suspensivo, mas sem prejuízo do disposto no art° 445° do C.P.P. seguindo-se os ulteriores termos, adiantando-se desde já que deve ser fixada jurisprudência no sentido do acórdão fundamento, que apoia a comunicação à defesa da alteração não substancial dos factos e da sua qualificação jurídica.

Pelo que, deve ser fixada jurisprudência de acordo com o acórdão fundamento no sentido seguinte:

Ocorre alteração não substancial dos factos, relevante para a decisão a impor a comunicação do art° 358° CPP, a qualificação jurídica traduzida no tipo de participação do arguido na execução do crime: de co-autoria para autoria».

2. A Exmª Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação ofereceu Resposta, no sentido da rejeição do recurso, nos seguintes termos:

«1 - AA dirige requerimento ao Supremo Tribunal de Justiça pretendendo, ao abrigo do disposto no n° 2 do art° 437° do Código Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação ….. proferido nos autos de recurso penal em epígrafe.

2 -Segundo o recorrente o identificado acórdão encontra-se em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-10-2020, processo n° 101/13.5JAAVR.P1

3 - De harmonia com o estatuído no artigo 437° do Código de Processo Penal é admissível recurso extraordinário para fixação de jurisprudência quando, no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão de direito «um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça» (n°2)

«Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida» (n°3)

Só pode invocar-se, como fundamento do recurso, acórdão anterior transitado em julgado Justificando o recorrente «a oposição que origina o conflito de jurisprudência» (id, artigo 438°, n°2)

4 - O STJ tem vindo a entender uniformemente, no domínio do CPC, entendimento que tem mantido no âmbito do CPP que: «É indispensável para se verificar oposição de julgados: a) que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham, tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; b) que as decisões em oposição sejam expressas; c) que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos. A expressão "soluções opostas "pressupõe que nos dois acórdãos é idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos seus fundamentos» (Ac. do STJ, de 89-10-13, AJ, n°2).

5 - Aos requisitos resultantes directamente da lei juntou esta jurisprudência outros dois requisitos: identidade dos factos contemplados nas duas decisões e decisão expressa e não só oposição entre as razões de direito (cfr., por todos, os Acs de 69-02-21, BMJ, n°184, pag.249 e de 63-02-19 BMJ, n°124, pag.633) - cfr.Simas Santos, Leal Henriques e David Borges de Pinho, CPP, anotado,2°v. pag.657.

6 - Ora, como resulta da leitura dos acórdãos (fundamento e recorrido) inexiste identidade nas duas decisões proferidas pois que no acórdão recorrido trata-se da questão da autoria e co-autoria e no acórdão do Tribunal da Relação do Porto trata-se da co-autoria e autoria mediata no âmbito de diferentes crimes afastando-se, assim, qualquer identidade de factos.

Termos em que se afigura de rejeitar o recurso, nos termos do artigo 441° n°1 do CPP».

3. A Exmª Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu Parecer, no sentido da rejeição do recurso, nos seguintes termos: (transcrição)

«1 - AA interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação …., proferido a 10/11/2020, no processo identificado em epígrafe, na parte em que considerou que a autoria singular não traduz alteração que devesse ser previamente comunicada ao arguido nos termos do disposto no art. 358, nº 3, do CPP e, em consequência, julgou não verificada a nulidade prevista no art. 379, nº 1, al. b), do CPP.

Afirma que esta decisão está em oposição com o decidido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12/10/2016, proferido no processo 101/13.5JAAVR.P1, que considerou ocorrer “alteração não substancial dos factos, relevante para a decisão a impor a comunicação do art° 358° CPP, a qualificação jurídica traduzida no tipo de participação da arguida na execução do crime: de co- autoria para autoria mediata.”

Conclui que se está perante um conflito de jurisprudência porque os acórdãos em causa, ambos transitados em julgado, “relativamente à mesma questão de direito assentaram em soluções opostas”.

2 - A Magistrada do Mº Pº no Tribunal da Relação ….. apresentou resposta ao recurso, na qual se pronuncia no sentido de que o acórdão recorrido não está em oposição com o acórdão indicado como fundamento, desde logo porque “inexiste identidade nas duas decisões proferidas pois que no acórdão recorrido trata-se da questão da autoria e coautoria e no acórdão do Tribunal da Relação do Porto trata-se da coautoria e autoria mediata no âmbito de diferentes crimes afastando-se, assim, qualquer identidade de factos”, o que se traduz na falta de um requisito substancial para a admissão do recurso, devendo, por isso, ser rejeitado.

3 - Como decorre do disposto nos artigos 439º, nº 1, 441º, nº 1 e 442º, n.º 1, todos do CPP, a pronúncia neste momento processual deve incidir apenas sobre os pressupostos processuais comuns aos recursos ordinários – tais como a competência, legitimidade, tempestividade, regime e efeito – e sobre os pressupostos próprios deste recurso extraordinário – a efectiva oposição de soluções sobre a mesma questão de direito, em acórdão anterior.

4 - O art. 437º, do CPP, dispõe que: “1- Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar. 2- É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.”

Por sua vez, o art. 438, nº 1, do mesmo diploma, estabelece que o recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

5 - Assim, quanto aos pressupostos processuais comuns, afigura-se-nos que não se suscitam quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso, quer no que respeita à legitimidade do recorrente quer quanto à tempestividade do recurso, sendo que, nos termos do art.º 438º, n.º 3 do CPP, não tem efeito suspensivo e sobe nos termos indicados no art.º 439º n.º 2, do citado código.

Todavia o mesmo não ocorre quanto ao pressuposto próprio do recurso extraordinário, isto é, quanto ao pressuposto substantivo – a efectiva oposição de julgados, tal como entende a Magistrada do Mº Pº no Tribunal recorrido.

6 - O recorrente argumenta que o acórdão de que recorre e o que indica como fundamento estão em oposição porque sobre a mesma temática entenderam de forma diversa.

Assim, estando os arguidos, num e noutro processo, acusados como co-autores, o Tribunal, após a audiência de julgamento, entendeu condená-los como autores, no caso do acórdão recorrido como autor imediato e no caso do acórdão fundamento como autor mediato. Não tendo, num e noutro caso, sido dado cumprimento ao disposto no art. 358, nº 3, do CPP, os arguidos interpuseram recurso arguindo a nulidade prevista no art. 379, nº 1, al. b), do CPP, decidindo-se no acórdão recorrido que não havia lugar à comunicação prevista no art. 358, nº 3, do CPP e por isso julgou não se verificar a nulidade invocada, enquanto no acórdão fundamento, ao invés, se considerou que o Tribunal de 1ª instância deveria ter procedido a essa comunicação e não o tendo feito o acórdão condenatório estava ferido de nulidade.

Realça o recorrente que no acórdão fundamento se consignou para sustentar aquela conclusão, que: “O que se verificou foi, pois, uma alteração da qualificação jurídica dos (mesmos) factos relativos ao tipo de participação na sua execução (acusada como co-autora e condenada como autora mediata). Ora, essa diferente qualificação jurídica dos factos agravou a condição jurídico-penal da arguida/recorrente”.

E perante esse entendimento, conclui o recorrente que “deve ser fixada jurisprudência no sentido do acórdão fundamento, que apoia a comunicação à defesa da alteração não substancial dos factos e da sua qualificação jurídica”.

7 - O acórdão recorrido na apreciação da questão da nulidade invocada consignou o seguinte:

“O arguido AA foi acusado da co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-C, anexa a esse diploma, tendo sido a final condenado como autor material do aludido crime, porquanto o tribunal deu como não provada a matéria atinente à co-autoria. Invoca o arguido a seu favor, além de jurisprudência das Relações, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 11/2013. Estabelece o artigo 358.º do C.P. Penal: “Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia 1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.” A condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º, determina a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. b), do C.P.P. De acordo com o regime do artigo 358.º, à mera alteração da qualificação jurídica é aplicável o regime da alteração não substancial dos factos, havendo que dar oportunidade ao arguido para salvaguardar os seus direitos de defesa e lhe ser proporcionado o exercício do direito ao contraditório - no sentido, no que ao caso interessa, de que nenhuma decisão deve ser proferida sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efectiva possibilidade de ser contestada ou valorada pelo sujeito processual contra o qual é dirigida -, o que se impõe mesmo na fase de recurso, como decorre do artigo 424.º, n.ºs 1 e 3, do C.P.P. Quer isto dizer que a defesa do arguido deve contemplar todas as expectativas admissíveis, tanto relativamente aos factos a apreciar, como à qualificação jurídica dos factos, cujo direito de a discutir e dela discordar deverá ser assegurado, através do exercício pleno do contraditório. Lê-se em Código de Processo Penal Comentado por Conselheiros do S.T.J., 2016, 2.ª edição revista (comentário do Juiz Conselheiro Oliveira Mendes), p. 1084: «(…) atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido – artigo 32.º, n.º1, da Constituição da República – o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica dos factos e a conceder-lhe prazo para a preparação da defesa. Por isso, se considera que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou “menos agravado”, quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou “menos agravado”, ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado – a jurisprudência do Supremo Tribunal tem-se orientado, de forma pacífica, neste preciso sentido, como se vê, entre outros, dos acórdãos de 02.07.17, 03.11.12, 04.03.10, 06.04.06, 06.05.10, 06.06.14 e 07.10.31, proferidos nos Processos n.ºs 3158/02, 1216/03, 4024/03, 658/0, 1290/06, 1415/06 e 3271/07. O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave do que o da acusação ou da pronúncia em consequência da redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação – neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 91.04.03, publicado na CJ, XVI, II, 17 e o acórdão do Tribunal Constitucional de 94.04.17, proferido no Processo n.º 254/95. Tal acontece, ainda, face a alteração decorrente da requalificação da participação do agente de co-autoria para autoria (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.09, publicado na CJ (STJ), XIII, III, 205), bem como perante alteração resultante da requalificação da culpa do agente de dolo directo para dolo eventual (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 72/05).»

Concluindo, depois: “Assim, independentemente do juízo que se faça sobre a valoração da prova, a alteração em causa verificou-se depois de decorrida a fase da produção de prova e resultou de o tribunal ter considerado não provados os factos integrantes da co-autoria, restando, por redução da matéria de facto, a autoria singular que, na linha da posição que temos vindo a citar e a que aderimos, não traduz alteração que devesse ser previamente comunicada, razão por que não se verifica a invocada nulidade.”

Por sua vez, o acórdão fundamento consignou o seguinte:

“Para o efeito que aqui interessa, a alteração não substancial terá de ser jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa [8].

Assim será, quer no caso em que a alteração pode influir na determinação da medida da pena [9], quer quando da modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo e seja também distinto o juízo de valoração social [10], quer ainda quando a modificação tenha reflexos ao nível da tipicidade.

No caso, não houve alteração dos factos da acusação. O que sucedeu foi que o Ministério Público, na acusação que deduziu, ao enquadrar jurídico-penalmente os factos que aí imputou aos co-arguidos B…, C…, D… e E…, considerou que consubstanciavam a co-autoria (material) de um homicídio qualificado na forma tentada, mas o tribunal entendeu de modo diferente e condenou a arguida B… como autora (mediata) desse crime.

O que se verificou foi, pois, uma alteração da qualificação jurídica dos (mesmos) factos relativos ao tipo de participação na sua execução (acusada como co-autora e condenada como autora mediata).

Ora, essa diferente qualificação jurídica dos factos agravou a condição jurídico-penal da arguida/recorrente. Na sua estrutura subjectiva, a co-autoria material exige uma decisão conjunta de realizar o facto, sendo certo que o acordo pode ser meramente tácito, embora se exija sempre, pelo menos, a consciência de colaboração bilateral.

Por seu turno, a componente objectiva da co-autoria exige a execução do facto em comum. Não é necessário que cada um dos intervenientes realize, por si só, todos os elementos do tipo, mas a sua contribuição para o facto deve ser “uma peça da sua execução” (H.H. Jeschek, “Tratado de Derecho Penal”, 942). Dizendo de outro modo, cada participante deve fornecer um contributo objectivo, deve ter intervenção no exercício do domínio funcional do facto.

Na 1.ª instância, o tribunal absolveu o arguido D… por ter considerado que não se verificavam os elementos da co-autoria, sobretudo, a execução do facto em comum.

Não é demais relembrar que os arguidos estavam acusados da co-autoria material de um crime de homicídio na forma tentada e para se configurar uma tentativa é imprescindível que haja actos de execução do crime que os comparticipantes decidiram cometer.”

E prossegue mais à frente:

“Enquanto o co-autor toma parte directa na execução, por acordo ou juntamente com outro(s), na autoria (singular) mediata, embora também haja pluralidade de intervenientes na prática do crime, o autor mediato instrumentaliza outra pessoa (o chamado “homem da frente”), que utiliza na execução do facto, ou seja, “pratica o facto por intermédio de outrem”.

Pelo acórdão n.º 11/2009, de 18.06.2009, o STJ uniformizou jurisprudência no sentido de que “É autor de crime de homicídio na forma tentada previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.os 1 e 2, al. c), 23.º, 26.º e 131.º, todos do Código Penal, quem decidiu e planeou a morte de uma pessoa, contactando outrem para a sua concretização, que manifestou aceitar, mediante pagamento de determinada quantia, vindo em consequência o mandante a entregar-lhe parte dessa quantia e a dar-lhe indicações relacionadas com a prática do facto, na convicção e expectativa dessa efectivação, ainda que esse outro não viesse a praticar qualquer acto de execução do facto” e foi ao abrigo da jurisprudência assim fixada que a arguida B… foi condenada como autora mediata de tentativa de homicídio qualificado.

Por aqui se vê como a alteração (não substancial) foi (é) jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa e a arguida B… foi, desprevenidamente, confrontada com essa alteração. Acresce que é distinto o juízo de valoração social da autoria mediata de um crime de homicídio tentado relativamente à co-autoria do mesmo crime, com reflexo na gravidade do ilícito e, logo, na medida da pena.”

E, em consonância com o exposto, o acórdão fundamento concluiu que se impunha “que fosse efectuada a comunicação prevista no n.º 1 do artigo 358.º do Cód. Proc. Penal” e que não “o tendo sido, o acórdão recorrido ficou afectado de nulidade (artigo 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo compêndio normativo), que terá de ser suprida na primeira instância.”

8 - Da leitura da fundamentação em que assentou cada uma das decisões, que atrás transcrevemos na parte mais relevante, facilmente se conclui que embora a questão jurídica a decidir seja a mesma – verificação ou não da nulidade prevista na al. b), do art. 349, do CPP, face à não efectivação da comunicação prevista no nº 3 do art. 358, do CPP – a situação fáctica subjacente é muito diversa e influi de forma determinante na resposta a dar quanto à obrigação de proceder àquela comunicação.

Assim, perante a concreta situação fáctica em análise, no acórdão recorrido considerou-se que a alteração da forma de participação nos factos do arguido, operada pelo Tribunal de 1ª instância, de co-autor para autor imediato, não agravava a sua “condição jurídico-penal”, enquanto que no acórdão fundamento se considerou que naquele caso a alteração da forma de participação nos factos da arguida, de co-autora para autora mediata, agravava essa condição e era “jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa”, porque é “distinto o juízo de valoração social da autoria mediata de um crime de homicídio tentado relativamente à co-autoria do mesmo crime, com reflexo na gravidade do ilícito e, logo, na medida da pena.”

Na verdade, em ambos os acórdãos se entende que a obrigatoriedade de proceder à comunicação prevista no nº 3, do citado art. 358, depende do juízo sobre a relevância jurídico-penal da alteração efectuada, juízo que está necessariamente dependente da situação fáctica subjacente, e a decisão final em cada um deles foi diversa porque muito diversa a situação fáctica em causa.

Há ainda que salientar, como o faz o acórdão fundamento, que a participação criminosa como autor mediato, tem contornos ao nível dos actos praticados distintos da comparticipação ou da autoria (singular) imediata que têm de ser ponderados ao nível da ilicitude e, consequentemente, da pena. Assim, também a concreta questão jurídica colocada em cada um dos acórdãos era distinta.

Não está em causa, pois, uma diferente decisão sobre a interpretação do disposto no art. 358, nº 3, do CPP, dado que em ambos os acórdãos se entendeu que a exigência da comunicação ao arguido aí prevista dependia da alteração efectuada ser considerada jurídico-penalmente relevante e poder pôr em causa os direitos de defesa do arguido, dependendo este juízo de valor da concreta situação fáctica subjacente e da concreta alteração efectuada.

Como ensina J. A. Reis, citado por Simas Santos e Leal Henriques em “Recursos Penais”, 8ª edição, 2011, pg.195, “Dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas” e, no caso em apreço, não estamos perante “a mesma questão”.

9 - A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no mesmo sentido.

Assim, sumariou-se no acórdão de 2/10/2008, proferido no proc.08P2484, disponível em www.dgsi.pt, que o “recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, como é jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, exige a verificação de oposição relevante de acórdãos que impõe que: (i) - as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para mesma questão fundamental de direito; (ii) - que as decisões em oposição sejam expressas; (iii) - que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas.

2. A expressão «soluções opostas», pressupõe que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos, se nas decisões em confronto se consideraram idênticos factores, mas é diferente a situação de facto de cada caso, não se pode afirmar a existência de oposição de acórdãos para os efeitos do n.º 1 do art. 437.º do CPP”

Do mesmo modo no acórdão deste Supremo Tribunal de 23/01/2020, proc. 357/12.0TXPRT-G.P1-A.S1, em que se consignou o seguinte:

“…o Supremo Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento de que a existência de decisões antagónicas pressupõe, para além de julgados expressos, a identidade de situações de facto base das decisões de direito antitéticas ou conflituantes”;

“… a oposição de julgados pressupõe decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, proferidas no domínio da mesma legislação, sendo que a decisão da questão de direito não pode ser desligada do substracto factual sobre a qual incide”.

E conclui: “… a viabilidade do recurso de fixação de jurisprudência pressupõe que estejam em causa soluções de direito dadas a situações de facto idênticas”.

10 - No caso dos autos, como vimos, os contextos fácticos sobre que incidiu o juízo sobre a obrigatoriedade de proceder à comunicação prevista no art. 358, nº 3 do CPP, são diversos e o acórdão recorrido e o acórdão fundamento não preconizam entendimentos opostos sobre os pressupostos subjacentes à aplicação daquele normativo, mas tendo na base situações de facto diferentes concluíram diversamente sobre o preenchimento desses pressupostos.

Em conformidade com o exposto, consideramos não estar preenchido o pressuposto substantivo de oposição de julgados, previsto no artigo 437º, nº 1, do CPP, pelo que somos de parecer que o recurso deve ser rejeitado, nos termos do disposto nos artigos 440, n.ºs 3 e 4 e 441, n.º 1, do Código de Processo Penal».

4. Com dispensa de Vistos, foram os autos à Conferência.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

A matéria de facto relevante para a decisão do presente recurso é a seguinte:

1. No acórdão do Tribunal da Relação …. proferido em 10/11/2020, no processo nº 7362/19……., da ….. Secção, - acórdão recorrido - foi decidido o seguinte, na parte que aqui releva:

“O arguido AA foi acusado da coautoria de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-C, anexa a esse diploma, tendo sido a final condenado como autor material do aludido crime, porquanto o tribunal deu como não provada a matéria atinente à coautoria. Invoca o arguido a seu favor, além de jurisprudência das Relações, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 11/2013. Estabelece o artigo 358.º do C.P. Penal: Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.” A condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º, determina a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n. º1, al. b), do C.P.P. De acordo com o regime do artigo 358.º, à mera alteração da qualificação jurídica é aplicável o regime da alteração não substancial dos factos, havendo que dar oportunidade ao arguido para salvaguardar os seus direitos de defesa e lhe ser proporcionado o exercício do direito ao contraditório - no sentido, no que ao caso interessa, de que nenhuma decisão deve ser proferida sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efectiva possibilidade de ser contestada ou valorada pelo sujeito processual contra o qual é dirigida -, o que se impõe mesmo na fase de recurso, como decorre do artigo 424.º, n.ºs 1 e 3, do C.P.P. Quer isto dizer que a defesa do arguido deve contemplar todas as expectativas admissíveis, tanto relativamente aos factos a apreciar, como à qualificação jurídica dos factos, cujo direito de a discutir e dela discordar deverá ser assegurado, através do exercício pleno do contraditório. Lê-se em Código de Processo Penal Comentado por Conselheiros do S.T.J., 2016, 2.ª edição revista (comentário do Juiz Conselheiro Oliveira Mendes), p. 1084: «(…) atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido – artigo 32.º, n.º1, da Constituição da República – o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica dos factos e a conceder-lhe prazo para a preparação da defesa. Por isso, se considera que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou “menos agravado”, quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou “menos agravado”, ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado – a jurisprudência do Supremo Tribunal tem-se orientado, de forma pacífica, neste preciso sentido, como se vê, entre outros, dos acórdãos de 02.07.17, 03.11.12, 04.03.10, 06.04.06, 06.05.10, 06.06.14 e 07.10.31, proferidos nos Processos n.ºs 3158/02, 1216/03, 4024/03, 658/0, 1290/06, 1415/06 e 3271/07. O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave do que o da acusação ou da pronúncia em consequência da redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação – neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 91.04.03, publicado na CJ, XVI, II, 17 e o acórdão do Tribunal Constitucional de 94.04.17, proferido no Processo n.º 254/95. Tal acontece, ainda, face a alteração decorrente da requalificação da participação do agente de coautoria para autoria (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.09, publicado na CJ (STJ), XIII, III, 205), bem como perante alteração resultante da requalificação da culpa do agente de dolo direto para dolo eventual (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 72/05).»

“Assim, independentemente do juízo que se faça sobre a valoração da prova, a alteração em causa verificou-se depois de decorrida a fase da produção de prova e resultou de o tribunal ter considerado não provados os factos integrantes da coautoria, restando, por redução da matéria de facto, a autoria singular que, na linha da posição que temos vindo a citar e a que aderimos, não traduz alteração que devesse ser previamente comunicada, razão por que não se verifica a invocada nulidade.”

2. No acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 12/10/2016, no processo nº 101/13.5JAAVR.Pl,[1] acórdão fundamento – foi decidido o seguinte, na parte que aqui releva:

«Para o efeito que aqui interessa, a alteração não substancial terá de ser jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa[2]

Assim será, quer no caso em que a alteração pode influir na determinação da medida da pena[3], quer quando da modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo e seja também distinto o juízo de valoração social[4]., quer ainda quando a modificação tenha reflexos ao nível da tipicidade.

No caso, não houve alteração dos factos da acusação. O que sucedeu foi que o Ministério Público, na acusação que deduziu, ao enquadrar jurídico-penalmente os factos que aí imputou aos coarguidos B…, C…, D… e E…, considerou que consubstanciavam a coautoria (material) de um homicídio qualificado na forma tentada, mas o tribunal entendeu de modo diferente e condenou a arguida B… como autora (mediata) desse crime.

O que se verificou foi, pois, uma alteração da qualificação jurídica dos (mesmos) factos relativos ao tipo de participação na sua execução (acusada como coautora e condenada como autora mediata).

Ora, essa diferente qualificação jurídica dos factos agravou a condição jurídico-penal da arguida/recorrente. Na sua estrutura subjectiva, a co-autoria material exige uma decisão conjunta de realizar o facto, sendo certo que o acordo pode ser meramente tácito, embora se exija sempre, pelo menos, a consciência de colaboração bilateral.

Por seu turno, a componente objectiva da coautoria exige a execução do facto em comum. Não é necessário que cada um dos intervenientes realize, por si só, todos os elementos do tipo, mas a sua contribuição para o facto deve ser “uma peça da sua execução” (H.H. Jeschek, “Tratado de Derecho Penal”, 942). Dizendo de outro modo, cada participante deve fornecer um contributo objectivo, deve ter intervenção no exercício do domínio funcional do facto.

Na 1.ª instância, o tribunal absolveu o arguido D… por ter considerado que não se verificavam os elementos da coautoria, sobretudo, a execução do facto em comum.

Não é demais relembrar que os arguidos estavam acusados da coautoria material de um crime de homicídio na forma tentada e para se configurar uma tentativa é imprescindível que haja atos de execução do crime que os comparticipantes decidiram cometer.”

(…)

“Enquanto o coautor toma parte direta na execução, por acordo ou juntamente com outro(s), na autoria (singular) mediata, embora também haja pluralidade de intervenientes na prática do crime, o autor mediato instrumentaliza outra pessoa (o chamado “homem da frente”), que utiliza na execução do facto, ou seja, “pratica o facto por intermédio de outrem”.

Pelo acórdão n.º 11/2009, de 18.06.2009, o STJ uniformizou jurisprudência no sentido de que “É autor de crime de homicídio na forma tentada previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, nºs 1 e 2, al. c), 23.º, 26.º e 131.º, todos do Código Penal, quem decidiu e planeou a morte de uma pessoa, contactando outrem para a sua concretização, que manifestou aceitar, mediante pagamento de determinada quantia, vindo em consequência o mandante a entregar-lhe parte dessa quantia e a dar-lhe indicações relacionadas com a prática do facto, na convicção e expectativa dessa efetivação, ainda que esse outro não viesse a praticar qualquer ato de execução do facto” e foi ao abrigo da jurisprudência assim fixada que a arguida B… foi condenada como autora mediata de tentativa de homicídio qualificado.

Por aqui se vê como a alteração (não substancial) foi (é) jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa e a arguida B… foi, desprevenidamente, confrontada com essa alteração. Acresce que é distinto o juízo de valoração social da autoria mediata de um crime de homicídio tentado relativamente à coautoria do mesmo crime, com reflexo na gravidade do ilícito e, logo, na medida da pena.”

Concluiu o acórdão fundamento que se impunha “que fosse efetuada a comunicação prevista no n.º 1 do artigo 358.º do Cód. Proc. Penal” e que não “o tendo sido, o acórdão recorrido ficou afetado de nulidade (artigo 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo compêndio normativo), que terá de ser suprida na primeira instância.”


***


II. O DIREITO

O art. 437º, do CPP, sob a epígrafe Fundamento do Recurso”, consagra o seguinte:

«1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar».

«2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 – O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.”

Relativamente à interposição, o art. 438.º do mesmo Código estabelece:

1 – O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 – No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência. 

3 - …”.

Como tem sido entendimento deste Supremo Tribunal, «Destes preceitos extrai-se, tal como vem afirmando insistente e uniformemente a jurisprudência[5], que a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da verificação de um conjunto de pressupostos - uns de natureza formal e outros de natureza substancial.

São de natureza formal:

- A interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido; 

- A identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento) e, se este estiver publicado, o lugar da publicação;

- O trânsito em julgado de ambos os acórdãos;

- A justificação da oposição entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido que motiva o conflito de jurisprudência; e

- A legitimidade do recorrente, restrita ao MP, ao arguido, ao assistente e às partes civis.

Constituem pressupostos de ordem substancial:

- A verificação de identidade da legislação à sombra da qual os acórdãos foram proferidos;

- As asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar “soluções opostas” para a mesma questão fundamental de direito;

- A questão decidida em termos contraditórios tenha sido objeto de decisões expressas; e

- Haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos em conflito, pois só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas.

Este último pressuposto, embora não esteja previsto expressamente na lei, resulta da necessidade de tal identidade para aferir da oposição sobre a mesma questão de direito.

Por isso, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito, como foi referido no acórdão deste Tribunal, processo n.º 4042/06 – 3.ª Secção, de que nos dá notícia o acórdão do mesmo Tribunal e Secção, de 20/10/2011, proferido no processo n.º 1455/09.3TABRR.L1-A.S1[6].

O mesmo pressuposto da identidade fáctica tem vindo a ser exigido, de forma unânime, pela jurisprudência deste Supremo Tribunal[7].

Importa, pois, que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes para poder desencadear a aplicação das mesmas normas e relevar na definição da oposição das soluções encontradas.

A exigência de uma identidade das situações de facto nos dois acórdãos em conflito decorre de só com ela ser possível estabelecer uma comparação que permita concluir que, relativamente à mesma questão de direito, existem “soluções opostas”, como pressupõe o n.º 1 do citado art.º 437.º.

Além disso, a questão decidida em termos contraditórios deve ter sido objeto de decisões expressas.

Como se lê no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal, de 10 de Fevereiro de 2010, no processo n.º 583/02.0TALRS.C.L1.A.S1[8], “[a] oposição relevante de acórdãos só se verifica quando, nos acórdãos em confronto, existam soluções de direito antagónicas e, não apenas, contraposição de fundamentos ou de afirmações, soluções de direito expressas e não implícitas, soluções jurídicas tomadas a título principal e não secundário», sendo que   «[a]s soluções de direito devem reportar-se a uma mesma questão fundamental de direito, no quadro da mesma legislação aplicável e de uma mesma identidade de situações de facto”.

Acresce que “[s]endo o recurso de fixação de jurisprudência um recurso extraordinário e, por isso, excecional, é entendimento comum deste Supremo Tribunal (v. desde logo o Ac. de 23 de Janeiro de 2003, processo n. 1775/02-5ª), que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras de tal recurso, deve fazer-se com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) por essa excecionalidade”[9].


No caso subjudice o recorrente veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação …. de 10/11/2020, proferido no processo nº 7362/19….. ….ª Secção alegando que está em oposição com acórdão do Tribunal da Relação Porto, proferido no processo nº 101/13.5JAAVR.Pl, em 12/10/2016.

O presente recurso foi interposto em tempo, pelo arguido que tem legitimidade, para o efeito. (art. 446º nº 1 e 2 do CPP).

O recorrente justificou a oposição entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido que, no seu entender, motiva o conflito de jurisprudência.

Assim sendo, mostram-se preenchidos os pressupostos de natureza formal de admissibilidade do recurso.

Relativamente aos pressupostos de ordem substancial, os mesmos não se verificam.

Com efeito, as decisões proferidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, não partiram da mesma situação de facto, à sombra da qual os acórdãos foram proferidos.


Apesar de ambos os acórdãos versarem sobre o quadro legal da aplicação do art. 358º, nº 3, do CPP, no entanto, a situação de facto, como supra referimos, não é manifestamente a mesma.

O artigo 358.º, do CPP, sob a epígrafe Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, determina o seguinte:

«1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

Por seu turno o artigo 379.º, do CPP, sob a epígrafe «Nulidade da sentença», no nº1, na alínea b), consagra o seguinte:

«1 - É nula a sentença:

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º

Ora, no caso subjudice, no acórdão fundamento o que estava em causa era a alteração da forma de participação nos factos da arguida, de coautora para autora mediata, o que agravava a condição jurídico-penal da arguida, e consequentemente era “jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa”, porque é “distinto o juízo de valoração social da autoria mediata de um crime de homicídio tentado relativamente à coautoria do mesmo crime, com reflexo na gravidade do ilícito e na medida da pena, pelo que se impunha a comunicação prevista no nº 3, do art. 358º, do CPP, sob pena de não o fazendo ocorrer a nulidade prevista no art. 379º, nº1 al. b), do CPP, tal como foi decidido no acórdão fundamento.

No acórdão recorrido, ao invés, a situação de facto é manifestamente diferente, uma vez que a alteração da forma de participação nos factos do arguido, operada pelo Tribunal de 1ª instância, de coautor para autor imediato, não agravava a sua “condição jurídico-penal”, já que a alteração em causa verificou-se depois de decorrida a fase da produção de prova e resultou de o tribunal ter considerado não provados os factos integrantes da coautoria, restando, por redução da matéria de facto, a autoria singular que, tal como consta do acórdão recorrido, não traduz alteração que devesse ser previamente comunicada, concluindo o Tribunal que não se verifica a nulidade prevista no citado art. 379º, al. b), do CPP.

Não obstante quer no acórdão recorrido, quer no acórdão fundamento, estar em causa, a aplicação do art. 358º, nº3, do CPP, contudo, conforme salienta a Exmª PGA não está em causa, uma diferente decisão sobre a interpretação do disposto no art. 358, nº 3, do CPP, dado que em ambos os acórdãos se entendeu que a exigência da comunicação ao arguido aí prevista dependia da alteração efetuada ser considerada jurídico-penalmente relevante e poder pôr em causa os direitos de defesa do arguido, dependendo este juízo de valor da concreta situação fáctica subjacente e da concreta alteração efetuada.


Do exposto, se concluiu que estamos perante situações de facto diferentes, que chegaram a conclusões diferenciadas, não se verificando a necessária oposição.

Neste sentido, uma vez que as situações de facto são diferentes, os acórdãos pretensamente colidentes não se encontram em oposição, inexistindo decisões opostas sobre a mesma questão jurídica.

“Para haver idêntica situação de facto e decisões jurídicas opostas mister se tornava, que a situação de facto fosse consensual, considerada identicamente a mesma como bastante na descrição em ambos os acórdãos, para gerar a solução jurídica mas que vieram a gerar soluções jurídicas diferentes”[10].

A discrepância das situações de facto inviabiliza a similitude da consequência jurídica. Inexistindo identidade de situações de facto, conclui-se pela não oposição de julgados.

E, concluindo-se pela não oposição de julgados, o recurso é rejeitado, nos termos da 1.ª parte do n.º 1 do art.º 441.º do CPP.



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III. DECISÃO:

Termos em que acordam os juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso.

Custas pela requerente fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) Uc’s.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


***


Lisboa, 09 de junho de 2020


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Nuno Gonçalves

________

[1] Disponível in dgsi.pt
[2] Assim, não será relevante a alteração que consiste na exclusão, pura e simples, de factos que configuram uma circunstância qualificativa ou agravativa, resultando da alteração a imputação de um crime simples em vez do crime qualificado inicialmente imputado.
Ao nível do STJ, a jurisprudência é unânime em considerar que, nestes casos, não há lugar ao cumprimento do disposto no n.º 1 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal e não vemos razão válida para discordar desta orientação jurisprudencial.
Não há alteração alguma de factos quando na sentença são descritos os mesmos factos da acusação ou da pronúncia, mas com uma formulação distinta, ou quando se explicitam ou concretizam factos (já narrados sinteticamente na acusação ou na pronúncia) que não sejam relevantes para a tipificação ou para a verificação de qualquer agravante qualificativa. Discutível (se há ou não alteração não substancial dos factos que imponha a comunicação prevista no art.º 358.º, n.º 1) é a situação em que o tribunal, apenas, dá como provados factos constitutivos do dolo eventual, quando o arguido vinha acusado de ter agido com dolo directo.
[3] Será o caso apreciado no acórdão do TRP, de 25.05.2011 (www.dgsi.pt) em que o arguido estava acusado de “deter” produto estupefaciente e foi dado como provado que ele “detinha para venda”. Trata-se de uma alteração não substancial de factos e entendeu-se (bem) que, apesar de não ter qualquer reflexo na qualificação jurídica, essa alteração era relevante porquanto influi na gravidade do ilícito e, logo, no grau de culpa, com inevitáveis reflexos na medida da pena – por isso impunha-se o cumprimento do disposto no nº 1 do art.º 358.º do Cód. Proc. Penal.
[4] [10] Será o caso sobre que se debruçou o Tribunal da Relação do Porto no acórdão de 06.05.2009 (Des. Isabel Pais Martins): arguidos acusados por furto qualificado (por introdução em casa de habitação) e condenados por violação de domicílio – provaram-se menos factos (não se provou que os arguidos se tivessem apoderado de quaisquer bens do interior da casa, ou sequer que fosse essa a sua intenção) do que os descritos na acusação. Caso idêntico é o julgado pelo acórdão do TRL, de 06.03.2006 (Relatora: Des. Conceição Gomes) em que o arguido estava acusado da prática de um crime de roubo simples e o tribunal não deu como provada a matéria relativa à violência contra a vítima. Entendeu-se que o tribunal não podia condenar o arguido por furto simples sem antes dar cumprimento ao disposto no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Proc. Penal
[5] Cfr. AC do STJ 12/12/18 no processo nº 906/14.0PFLRS-A.L1-A.S1, Relator Fernando Samões, e jurisprudência ali citada, «Nomeadamente, os acórdãos do STJ de 9/10/2013, no processo 272/03.9TASX, e de 20/11/2013, no processo 432/06.0JDLSB-Q.S1, da 3.ª Secção; de 13/7/2009, no processo 1381/04.2TAOER.L1-B.S1 e de 22/9/2016, no processo 43/10.6ZRPRT.P1-D.S1, da 5.ª Secção; de 20/12/2017, no processo n.º 125/15.8T9PFR.P1-A.S3, de 21/6/2017, no processo n.º 2644/09.6TABRG.G1-B.S1 e de 22/3/2017, no processo n.º 6275/08.0TDLSB.L3-B.S1, estes também da 3.ª Secção e disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Disponível em www.dgsi.pt.
[7] Cfr., entre outros, os acórdãos de 11/1/2017, processo n.º 895/14.DPGLSB.L1-A.S1, 22/3/2017, 6275/08.0TDLSB.L3-B.S1, 21/6/2017, processo n.º 2644/09.6TABRG.G1-B.S1 e de 20/12/2017, processo n.º 125/15.8T9PFR.P1-A.S3, todos disponíveis no mesmo sítio da internet.
[8] Relatado pelo Exmo. Conselheiro Santos Cabral, cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt.
[9] Cfr. citado acórdão de 20/10/2011.
[10] Cfr. Acórdão do STJ, de 21/6/2017, processo n.º 2644/09.6TABRG.G1-B.S1, in www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça.