VALOR DA CAUSA
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DE ARRENDATÁRIO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
HABITAÇÃO SOCIAL
Sumário

A acção especial de atribuição de casa de morada de família é o meio processual correcto e adequado para se obter a transmissão da posição de arrendatário, nos termos do art.º 1105º do Código Civil, em contrato de arrendamento celebrado com uma Câmara Municipal, ao abrigo do regime do arrendamento apoiado a que respeita a Lei 81/2014, de 19/12.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Cesaltina S. intentou acção especial de atribuição de casa de morada de família contra Hortêncio F., alegando que:
- Viveu com o R. em união de facto de Fevereiro de 1993 a 22/8/2019, data em que o R. casou com Celica F., e tendo então A. e R. deixado de dormir juntos, de tomar as refeições juntos e de se assumir como marido e mulher;
- Em 13/8/2008 o R. havia celebrado com a Câmara Municipal de Loures contrato de arrendamento, através do qual lhe foi dado de arrendamento o imóvel no qual passou a habitar o agregado familiar constituído por A. e R. e por dois netos do R., tendo o arrendamento sido destinado a tal habitação permanente e exclusiva do referido agregado familiar;
- Após o termo da união de facto a A. e o R. continuaram a habitar no referido imóvel, mas o R. passou a esconder o correio endereçado à A., a pressioná-la para sair do imóvel e a proibi-la de aí entrar;
- Quando o R. começou a ameaçar a vida e a integridade física da A., esta apresentou queixa crime contra o R. e saiu do referido imóvel, passando a habitar com familiares, que a receberam por mera tolerância;
- A A. tem mais necessidade de habitar no imóvel que o R., não só face aos rendimentos e despesas que apresenta, mas também porque a cônjuge do R. arrendou um imóvel, dispondo assim o mesmo de outra casa onde pode estabelecer a sua residência.
Conclui pedindo que se declare a dissolução da união de facto entre A. e R. e que se atribua exclusivamente à A. a posição de arrendatária relativamente ao imóvel identificado, a que corresponde a casa de morada de família, comunicando-se tal atribuição à Câmara Municipal de Loures, na qualidade de senhoria.
Com a sua P.I. a A. juntou como documento 1 um “contrato de arrendamento”, onde figura como “senhorio” a Câmara Municipal de Loures e figura como “arrendatário” o R., celebrado em 13/8/2008 e onde consta que aquela “dá de arrendamento” ao R., para habitação exclusiva e permanente deste e do seu agregado familiar (cuja composição se encontra descrita no Anexo I e onde se inclui a A.), a fracção autónoma correspondente ao 2º andar A do lote (…), mais constando que o arrendamento é pelo prazo de 5 anos, com início em 1/10/2008 e termo em 30/9/2013, nos termos do art.º 1095º e seguintes do Código Civil, considerando-se automaticamente prorrogado por períodos iguais e sucessivos e nas mesmas condições, enquanto não for denunciado, que a renda mensal é de € 138,70, calculada de acordo com o disposto no D.L. 166/93, de 7/5, actualizável nos termos previstos no mesmo diploma, e pagável nos primeiros oito dias de cada mês, e bem ainda (para além do mais) que “o contrato fica submetido à legislação especial de enquadramento de habitação social e renda apoiada – designadamente os Decretos-Lei nº 163/93 de 7 de Maio com a última redacção em vigor, nº 166/93, de 7 de Maio – e supletivamente na legislação referente ao arrendamento urbano e na lei geral”.
O R. foi citado e constituiu mandatário.
Foi realizada tentativa de conciliação, que resultou infrutífera, ali tendo as partes declarado não quererem “abdicar da casa”, mais declarando a A. que saiu de casa em 29/9/2020 porque o R. a ameaçou, encontrando-se a viver em casa da filha, num quarto juntamente com o seu neto, não tendo para onde ir, e tendo sido na Câmara Municipal que a informaram que tinha de se manter na casa, quando aí se dirigiu para pedir uma casa. Quanto ao R., declarou que vive sozinho em casa e que ainda não deu conhecimento desse facto à Câmara Municipal.
O R. foi ainda notificado para apresentar contestação, não o tendo feito.
Seguidamente foi proferida sentença onde a acção foi julgada improcedente, com a absolvição do R. do pedido, mais sendo fixada à causa o valor de € 4.161,00.
A A. recorre desta decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
I - A aqui recorrente vem ocupar o tempo deste Venerando Tribunal, por considerar que não lhe foi feita justiça, não se exerceu a sempre difícil função de julgar, enfim, não se fez Direito!
II - Desde logo, não se consegue alcançar de que forma o art.º 298.º n.º 1 do CPC é aplicável por analogia aos presentes autos, quando há um preceito que prevê explicitamente o valor a atribuir às acções para atribuição da casa de morada de família, Cf. art.º 303º n.º 2 do CPC.
III - Por conseguinte, a sentença aqui em crise, não poderá subsistir quanto à fixação do valor da causa.
IV - Assim sendo deverá ser substituída por outra que, tendo em conta o preceituado no n.º 2 do art.º 303º do CPC, fixe o valor à causa em 30 000,01 Euros.
V - Pelo que, estão reunidos todos os pressupostos de admissibilidade do presente recurso.
VI - Acresce que, a douta sentença recorrido é nula por omissão de pronúncia, na medida em que não se pronunciou sobre quanto à alínea a. do pedido formulado pela requerente na sua petição inicial.
VII - Em consequência, deve a douta sentença recorrido ser declarada nula, por violação do art.º 615º n.º 1 al. d) 1.ª parte do CPC,
VIII - e ser ordenado o reenvio do processo ao tribunal a quo, para que se pronuncie e decida sobre da alínea a. da petição inicial.
IX - Sem prescindir, impugna a recorrente a matéria de direito constante da douta sentença, de 1.ª instância,
X - na parte em que o douto tribunal absteve-se de apreciar o pedido formulado pela A. quanto à atribuição da casa de morada de família por entender que a presente acção não é o meio próprio, por se tratar de procedimento administrativo uma vez que se trata de habitação social.
XI - Na realidade, o Tribunal a quo não podia ter deixado de apreciar o pedido formulado pela requerente pelo que, violou assim o disposto nos arts.º 3º al. a) e 4º da Lei n.º 7/2001, arts.º 1793º, 1105º do Código Civil, art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, e art. 122º n.º 1 al. b) da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ).
XII - Com efeito, não pode, nem deve, ser a Câmara Municipal a substituir-se ao papel do tribunal e dirimir as questões litigiosas dos membros de uma família – no caso, da união de facto.
XIII - Razões suficientes e bastantes para que a recorrente, venha colocar em crise a matéria de direito, pugnando-se pela substituição da decisão proferida nos autos de modo a que seja conhecido o pedido formulado pela requerente no que concerne à atribuição do arrendamento da casa de morada de família, e a final, se condene se o requerido nos termos peticionados pela requerente.
Não foi apresentada alegação de resposta pelo R.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, tal como se encontram delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se com:
a) A determinação do valor da causa;
b) A nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia;
c) A aptidão do meio processual utilizado pela A. para fazer valer a sua pretensão.
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A materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
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Do valor da causa
O valor da causa foi fixado pelo tribunal recorrido em € 4.161,00, por se ter aplicado o disposto no art.º 298º, nº 1, do Código de Processo Civil, “por analogia”.
Todavia, e como resulta do disposto no art.º 10 do Código Civil, o recurso à analogia só se justifica quando ocorra uma lacuna da lei.
Estando em causa a fixação do valor da causa, importa atentar no disposto nos art.º 296º a 304º do Código de Processo Civil, sendo que tais preceitos legais disciplinam os diversos critérios de determinação do valor da causa, designadamente consoante o fim da acção ou incidente a que respeitam.
Assim, e de acordo com o disposto no art.º 303º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, o valor das acções para atribuição da casa de morada de família corresponde ao valor da alçada da Relação (€ 30.000,00, segundo o art.º 44º, nº 1, da LOSJ), acrescido de € 0,01.
Ou seja, não se verifica qualquer lacuna na definição do critério que preside à fixação do valor da causa na presente acção, em que é pedida a atribuição da casa de morada de família, pelo que não se justifica o recurso à analogia para a aplicação do critério que emerge do nº 1 do art.º 298º do Código de Processo Civil (aplicável à fixação do valor da causa nas acções de despejo).
Pelo que é de revogar a decisão recorrida, quando fixou à causa o valor processual de € 4.161,00, devendo a mesma ser substituída por esta outra em que se fixa à causa o valor processual de € 30.000,01, e assim procedendo as conclusões do recurso da A., nesta parte.
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Da omissão de pronúncia
Segundo a al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, uma decisão judicial é nula quando deixar de ser conhecida questão que aí devia ser apreciada.
Sobre a questão da nulidade da decisão judicial por omissão de pronúncia, refere Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume II): “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art 660º/2), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”.
Com efeito, decorre do art.º 608º do Código de Processo Civil que na sentença o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Ou seja, o tribunal só está obrigado a conhecer (para além daquelas que são de conhecimento oficioso) de todas e cada uma das questões suscitadas pela causa de pedir e pelas excepções invocadas, na medida em que o conhecimento de cada uma delas não esteja dependente do conhecimento de outra.
No caso concreto dos autos a A. pretende que se reconheça o seu direito à atribuição da casa de morada de família, nos termos conjugados do disposto no art.º 4º da Lei 7/2001, de 11/5, e no art.º 1105º do Código Civil. já que viveu em união de facto com o R. e ocorreu a ruptura da mesma, o que igualmente pretende que se declare.
Na decisão recorrida afirmou-se que “não sendo legalmente admissível a atribuição da casa que a autora habita, enquanto casa de morada de família, inútil se torna apurar se efectivamente existia união de facto entre a autora e o réu e declarar a mesma dissolvida”.
Ou seja, porque se decidiu que não é possível a aplicação do disposto no art.º 4º da Lei 7/2001, de 11/5, e no art.º 1105º do Código Civil, ficou necessariamente prejudicado (por inútil) o conhecimento da situação de união de facto e sua ruptura.
É certo que, caso se venha a decidir que é “legalmente admissível a atribuição da casa que a autora habita, enquanto casa de morada de família”, necessário se torna apurar da situação de união de facto alegada, bem como da sua ruptura.
Todavia, isso não faz afirmar a omissão de pronúncia determinante da nulidade da decisão recorrida, mas antes o erro quanto ao decidido pelo tribunal recorrido, no que respeita à inutilidade do conhecimento daquela circunstância incidental.
Em consequência, improce­de a arguição de nulidade em questão.
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Da aptidão do meio processual utilizado pela A.
Na sentença recorrida concluiu-se que a acção especial de atribuição de casa de morada de família não é o meio próprio para a A. obter a atribuição da posição do R. no contrato que este celebrou com a Câmara Municipal de Loures, e de onde decorre o direito ao gozo temporário do 2º andar, letra A, do lote (…), por se entender que a utilização de tal imóvel habitacional não decorre da existência de um contrato de arrendamento que haja concedido ao R. a posição de arrendatário, mas antes de um outro título, correspondente a um despacho administrativo, que efectuou tal atribuição a título precário, não se configurando a relação entre o R. e a Câmara Municipal de Loures como uma relação contratual típica de arrendamento, mas antes como uma relação de natureza administrativa, insusceptível de alteração por decisão judicial.
A A. contrapõe que o que está em causa é a protecção da casa de morada de família, sendo de aplicar o disposto nos art.º 1105º e 1793º do Código Civil, o que implica que não pode o tribunal recorrido abster-se de decidir se à requerente deve ser transmitida a posição de arrendatária quanto ao imóvel habitacional a que corresponde a casa de morada de família, sob pena de ficar por concretizar a garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, na medida em que se devolve ao senhorio esse poder decisório.
Importa desde já atentar que a fundamentação utilizada pelo tribunal recorrido para recusar apreciar e afirmar o direito invocado pela A. segue de perto o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 14/6/2018 (relatado por Carla Mendes e disponível em www.dgsi.pt), onde ficou afirmado, a propósito de caso em tudo idêntico ao dos presentes autos, que:
Dos factos apurados resulta que o contrato de arrendamento foi celebrado entre o Município de Loures e as partes – habitação social no âmbito do Programa Especial de Realojamento.
A habitação social destinada a pessoas com parcos recursos económicos é algo que, há muito, vem sendo implementada pelo Estado.
(…)
Na esteira da consagração constitucional do direito à habitação foram sucessivamente incrementadas medidas de cariz social por parte das entidades públicas tendo a Lei 46/85 de 20/9 (art. 9), com referência a edifícios do Estado, de organismos autónomos, de autarquias locais e IPSS, previsto a possibilidade de serem objecto de contratos de arrendamento habitacional no regime de renda apoiada, continuando a aplicar-se à actualização das rendas a lei em vigor até que fixação de um regime de arrendamento da habitação social.
Esta Lei foi substituída pelo art. 82 RAU (DL 321-B/90 de 15/10).
O DL 166/93 de 10/5 veio fixar e regular a actualização das rendas de acordo com os rendimentos do agregado familiar.
Por seu turno, o NRAU (Lei 6/2006 de 27/2) reconheceu a figura do arrendamento no regime de renda apoiada contemplando no seu art. 61 a manutenção do preceituado no art. 82 RAU.
Destes diplomas constata-se que a relação de arrendamento social não tem origem contratual integrando-se na actividade administrativa do Estado.
O Estado (autarquia local) surge nestas relações munida das suas prerrogativas de jus imperii, numa posição face ao arrendatário social, especialmente na possibilidade de despejo administrativo e de transferência do agregado familiar em caso de sub-ocupação (DL 166/93 de 10/5) – cfr. “Arrendamentos Sociais do CIJE, Fac- Dt. Univ. Porto, ed. Almedina, 2005 e Acs. RL de 06/30/2011, relator Abrantes Geraldes e de 5/12/11, relator Ezagui Martins, respectivamente, in www.dgsi.pt.
Assim, apenas supletivamente se poderá recorrer ao regime geral de locação e ao regime do arrendamento urbano que, pela sua índole seja compatível com tais arrendamentos.
No caso em apreço, o contrato de arrendamento celebrado, em 10/5/2001, entre o Município de Loures e as partes é de cariz social, sujeito ao regime de renda apoiada (DL 166/93 de 10/5 alterado pelo DL 271/03 de 28/10 – Programa Especial de Realojamento e Lisboa e Porto).
Dos diplomas mencionados, tal como referido supra, estes arrendamentos de renda apoiada presidem interesses de ordem pública de natureza social e, sendo assim, as questões relacionadas com os mesmos devem ser dirimidas no âmbito do procedimento administrativo, sem embargo de recurso aos tribunais administrativos.
Assim, o pedido de atribuição da casa de morada de família, terá de ser apreciado junto do Município de Loures ou, em última análise, com recurso aos tribunais administrativos”.
Todavia, e como bem realça a A. na sua alegação, no acórdão de 27/9/2018 (relatado por Cristina Neves e disponível em www.dgsi.pt) este Tribunal da Relação de Lisboa considerou (em caso com contornos idênticos ao dos presentes autos) que a circunstância de se estar perante o arrendamento de habitação social em nada obstava à transmissão da posição do arrendatário para a esfera jurídica da aí requerente, tendo presente que o que está em causa é a protecção do “espaço físico onde a família habita diariamente” e que “é indispensável à realização individual de cada um bem como da própria família”, e mais considerando que na concretização desse direito fundamental “a lei sacrificou deliberadamente o interesse do senhorio ao interesse da protecção da casa de morada da família”.
Do mesmo modo, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 13/5/2021 (relatado por Maria Amélia Ameixoeira e disponível em www.dgsi.pt), relativo a um caso em que a casa de morada de família correspondia a um imóvel municipal dado de arrendamento em regime de renda apoiada, tal circunstância não foi impeditiva de se conhecer do pedido de atribuição dessa casa de morada de família, através da atribuição do arrendamento em questão à aí requerente.
Também no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31/1/2019 (relatado por Maria Amália Santos e disponível em www.dgsi.pt) se reconheceu a aplicabilidade do regime de protecção da casa de morada de família que correspondia a um imóvel dado de arrendamento em regime de renda apoiada, pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P.
Igualmente no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/9/2016 (relatado por Judite Pires e disponível em www.dgsi.pt) se reconheceu a aplicabilidade do regime de protecção da casa de morada de família que correspondia a uma habitação municipal concedida a título precário pela autarquia.
E já anteriormente, também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/5/2013 (relatado por Fonseca Ramos e disponível em www.dgsi.pt) se havia reconhecido a aplicabilidade do regime de protecção da casa de morada de família que correspondia a uma habitação municipal cedida pela autarquia.
A questão em aberto prende-se, então, com a possibilidade de aplicação do regime de protecção da casa de morada de família que emerge do art.º 1105º do Código Civil aos casos em que se está perante um arrendamento de habitação social, sujeito ao regime de renda apoiada.
Assim, e se não sofre contestação que o contrato de arrendamento habitacional no regime de renda apoiada (designado por contrato de arrendamento apoiado, na terminologia do art.º 17º da Lei 81/2014, de 19/12, republicada pela Lei 32/2016, de 24/8) se rege pelo disposto no diploma em questão, pelos regulamentos nele previstos e pelo Código Civil, tendo a natureza de contrato administrativo e estando sujeito, no que seja aplicável, ao respectivo regime jurídico (tudo por força dos nº 1 e 2 do referido art.º 17º), toda a regulamentação do diploma em questão é omissa quanto ao destino do local arrendado em caso de divórcio (ou de ruptura da união de facto), designadamente no que respeita à transmissão do arrendamento para o cônjuge (ou unido de facto) não arrendatário, tendo em conta a necessidade do mesmo, os interesses dos filhos e outros factores relevantes (como as necessidades de outros membros do agregado familiar dependentes dos cônjuges ou unidos de facto, ainda que não sejam filhos dos mesmos).
Por outro lado, e como resulta do nº 1 do art.º 1º da referida Lei 81/2014, de 19/12, o regime do arrendamento apoiado tem por fim a disponibilização de habitações do Estado (entendido este no seu sentido mais amplo), com fixação de contrapartidas monetárias (as rendas) calculadas em função dos rendimentos dos agregados familiares a que se destinam. Ou seja, tal regime concorre para a prossecução do princípio constitucional da protecção da família, na sua dimensão espacial.
Assim, pode-se afirmar que o arrendamento apoiado incide sempre sobre a casa de morada de família, entendida a mesma como o “espaço físico onde a família habita diariamente”, sendo que a protecção que é concedida a tal centro de vida familiar, através desse regime assistencial, não prescinde (e antes exige) do recurso às regras do arrendamento urbano, no que respeita à regulamentação dessa protecção, quando está em causa a ruptura familiar (pelo divórcio ou pela ruptura da união de facto).
Nesse mesmo sentido se pronunciou já o Tribunal da Relação do Porto, no seu acórdão de 19/12/2012 (relatado por Carlos Portela e disponível em www.dgsi.pt), nos seguintes termos (que aqui se reproduzem com maior extensão, pela pertinência e actualidade evidenciadas):
É fundamental não esquecer que os apelidados contratos de habitação social visam proporcionar aos cidadãos de mais modestos rendimentos uma prestação social no caso concreto uma casa para morar.
Ora, tal atribuição é condicionada por factores vários entre os quais prevalecem os rendimentos do agregado social que se candidata ao arrendamento.
Daí que o regime jurídico da fruição dessas casas muito embora seja o do arrendamento habitacional tem regras próprias que visam assegurar a finalidade para que foi criado.
(…)
Ora uma das dúvidas que se pode suscitar é a de saber se tal tipo de contrato, pese embora a sua particular natureza e finalidade, se pode considerar um contrato “intuitu personae”, ao ponto de num conceito estrito, se considerar que o que releva para a decisão de conceder o arrendamento é apenas a pessoa do candidato que alega precariedade económica?
E a resposta a tal pergunta irá ser encontrada seguindo a opinião vertida no Acórdão desta Relação de 25.10.2004, processo nº0455457, em www.dgsi.pt/jtrp, que passaremos doravante a seguir de muito perto.
Assim, não se questiona que todos os contratos de arrendamento não deixam de ter uma componente pessoal, quantas vezes a pessoa do inquilino e as suas condições são determinantes para o locador arrendar.
Mas na habitação social está em causa uma prestação constitucional programática do Estado (central ou local), – a de proporcionar aos mais carenciados habitação condigna – de modo a que vida social decorra com um mínimo de conforto e dignidade pessoal, visando uma sadia vivência familiar.
Por isso, a lei a regula de forma minuciosa as condições de “atribuição” de contratos de habitação social.
As entidades locadoras desse tipo de habitações sejam elas o Estado, as autarquias locais, ou institutos públicos, não podem actuar arbitrariamente estando vinculados a critérios legais.
Assim, no já antes referido DL.166/93, de 7.5, que visou reformular e uniformizar os regimes de renda a que estão sujeitos estes imóveis, consagrando a aplicação de um preço técnico da renda, o [regime de renda apoiada previsto no art. 82º do RAU] define no seu art.3º, nº1, a) “agregado familiar” como “o conjunto de pessoas constituído pelo arrendatário, pelo cônjuge ou pessoa com quem aquele viva há mais de cinco anos em condições análogas, pelos parentes ou afins na linha recta ou até ao 3° grau da linha colateral, bem como pelas pessoas relativamente às quais, por força de lei ou de negocio jurídico que não respeite directamente à habitação, haja obrigação de convivência ou de alimentos e ainda outras pessoas a quem a entidade locadora autorize a coabitação com o arrendatário”.
Já o art.20º do DL 49.304 de 28.5 manda aplicar, subsidiariamente, a este tipo de contratos a lei geral, e o seu art. 21º al. a) ao falar em actualização da renda, utiliza o conceito de agregado familiar, admitindo no seu art. 25º, nº3, a transmissão do contrato por morte.
Temos assim, que visando a lei proporcionar aos arrendatários e ao seu agregado familiar o direito de habitar em casas de habitação social e estabelecendo que se aplica a legislação em vigor, desde que compatível com a natureza destes contratos, cremos que seria incongruente que, quer no caso de morte, quer no caso de divórcio, se não tivesse em conta o regime do RAU.
Ora como sagazmente se refere no supra citado aresto, a resolução da questão suscitada é mais premente em casos que podem ser apelidados como limite, nos quais a necessidade de assegurar a manutenção do arrendamento é social e familiarmente premente, [seja no caso de morte do arrendatário, seja no caso de divórcio], já que está então em causa, não já a posição do arrendatário que é titular do contrato, mas a do seu agregado familiar que abrange o cônjuge, os filhos e até se pode ter como aplicável aos casos de união de facto.
Assim e como também ali se afirma, nenhum motivo relevante há para discriminar este tipo de arrendamento em relação aos arrendamentos vinculísticos, já que não são de todo incompatíveis os fins de cada um deles.
Isto e também porque na interpretação das normas relativas à aplicabilidade ou não do RAU, importa ter presente que estão em causa princípios e direitos fundamentais de protecção da família, e do direito à habitação, consagrados por exemplo nos artigos 65°, nº1 e 67°, nº1, da Constituição da República Portuguesa.
E citando o aludido acórdão, temos a seguinte argumentação:
“Se é verdade que o regime do arrendamento, mormente, quanto ao montante da renda devida e até o da manutenção do contrato depende dos rendimentos do agregado familiar do inquilino, isso não torna os seus componentes arrendatários, mas seria injusto considerar que outrem, que não o arrendatário, não pode ser encabeçado no arrendamento nos casos previstos, em paridade, no RAU, escamoteando que os seus rendimentos também pesaram e contribuíram para a determinação da renda e a “atribuição” do arrendamento.
Daí que tenha relevância particular a figura do arrendatário, mas que não podem ser desconsideradas, por exemplo, as condições dos membros do agregado familiar, tal como os contempla a lei especial.
E se é certo que o Estado é o destinatário directo das normas constitucionais referidas, elas visam prestações destinadas a proteger os cidadãos carenciados economicamente, pelo que o Estado não cumpriria o seu dever, ante a diríamos, mera contemplação platónica de comandos que lhe são dirigidos, permanecendo indiferente às necessidades daqueles que maior protecção social reclamam, sob pena de violação do princípio da igualdade – art. 13º da Lei Fundamental.
Cumpre o objectivo de proporcionar aos mais desfavorecidos alojamento, a permanência em casas de habitação social do Estado, ou das autarquias, daqueles a quem, em paridade com o regime do RAU, poderiam ver transmitidos o direito de permanecer na casa, tanto mais que tais entidades locadoras sempre poderão controlar, no futuro, se preenchem os requisitos legais, para continuarem, a poder usufruir de tal direito.”
Pelo exposto, também nós concluímos que o regime do art. 84º do RAU [a que corresponde o actual art.º 1105º do Código Civil], acerca do destino da casa de morada de família, após o divórcio, é compatível com o regime especial do arrendamento de habitação social”.
Na transposição da fundamentação acima exposta para o caso concreto, a consideração da aplicabilidade do regime do arrendamento urbano ao arrendamento apoiado, no que respeita ao regime de protecção da casa de morada de família, encontra ainda apoio no teor do contrato administrativo outorgado entre a autarquia e o R., em 13/8/2008. Com efeito, torna-se evidente que todas as questões que se prendem com a concessão da habitação ao R. e seu agregado familiar e com a forma de determinação da renda (com respeito pelas condições económicas desse agregado familiar) ficaram aí contempladas, em termos que se afastam do encontro de vontades que enforma o surgimento da relação de arrendamento urbano. Mas, do mesmo modo, ficou aí prevista (tal como no diploma que actualmente regula os arrendamentos apoiados) a aplicação supletiva das regras do arrendamento urbano.
Ou seja, face aos fundamentos acima apresentados, é possível afirmar, em contrário do afirmado pelo tribunal recorrido (e por este Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 14/6/2018 acima referido), que o pedido de atribuição da casa de morada de família que corresponde à habitação social arrendada pela Câmara Municipal de Loures ao R., segundo o regime de renda apoiada, pode e deve ser objecto de conhecimento pelo tribunal recorrido, por ser aplicável a tal arrendamento apoiado o disposto no art.º 1105º do Código Civil.
Já a solução contrária conduziria a uma limitação inadmissível do direito da A. à protecção da casa de morada de família, ao ser-lhe vedada a sua tutela jurisdicional (uma vez que o seu conhecimento competiria exclusivamente à Câmara Municipal), do mesmo passo que colocaria em causa o exercício da função jurisdicional, por deixar o tribunal de poder garantir o exercício efectivo dos comandos constitucionais de protecção à família e do direito à habitação, nesta dimensão da protecção da casa de morada de família em caso de ruptura da união de facto.
O que é o mesmo que afirmar que o meio processual utilizado pela A. se mostra correcto e adequado ao fim visado pela mesma, já que é admissível declarar judicialmente a transmissão da posição de arrendatário do R. para a A., no caso de se verificarem os pressupostos de facto e de direito integrantes da atribuição da casa de morada de família, por essa via, e, não obstante, se estar perante um arrendamento apoiado.
Todavia, para se conhecer de tal pedido de atribuição da casa de morada de família torna-se necessário valorar, não só a factualidade alegada pela A. relativa às necessidades da mesma e demais circunstâncias conducentes ao seu direito à casa de morada de família, mas ainda (se bem que a título incidental) as circunstâncias de facto respeitantes à união de facto invocada pela A., bem como as respeitantes à ruptura da mesma.
No entanto, porque a decisão recorrida foi proferida no pressuposto da desnecessidade de valoração da totalidade da factualidade alegada pela A., está este tribunal impedido de se substituir ao tribunal recorrido, nos termos permitidos pelo art.º 665º, nº 2, do Código de Processo Civil, já que os autos não facultam os elementos factuais necessários ao conhecimento da pretensão da A.
Assim, a procedência das conclusões do recurso da A. conduz, tão só, à revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que determine o prosseguimento da acção nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 990º, nº 3, do Código de Processo Civil, designadamente com a realização das necessárias diligências probatórias, uma vez que não pode ser conhecido, desde já, o pedido formulado pela A., por ausência de elementos para tanto.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por esta outra que fixa à causa o valor de € 30.000,01 e que determina o prosseguimento da acção nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 990º, nº 3, do Código de Processo Civil, designadamente com a realização das necessárias diligências probatórias.
Custas pelo vencido a final.

1 de Julho de 2021
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Lúcia Sousa