COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
CASO JULGADO
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
REJEIÇÃO DO RECURSO
Sumário

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO

1. AA, identificado nos autos inconformado com o acórdão do Tribunal da Relação ….. de 27.01.2021, que julgou “não provido o recurso interposto e, consequentemente, confirmar na íntegra a decisão recorrida”, veio interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1. O presente Recurso é interposto do Acórdão  ….. Secção do Tribunal da Relação …., de 27.01.2021, exclusivamente na parte em que, negando provimento ao recurso anteriormente interposto pelo Recorrente, decide confirmar a decisão recorrida, “embora por razões diferentes daquelas que constam do despacho recorrido”, determinando a manutenção da apreensão do correio eletrónico de que o Recorrente é titular, ao abrigo do disposto no artigo 16.º da Lei do Cibercrime.

RECORRIBILIDADE DA DECISÃO RECORRIDA

2. Conforme vem sendo jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a violação do caso julgado, como fundamento do recurso, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), in fine, do CPC, constitui um motivo específico de admissibilidade de recurso a par de todos os demais pressupostos, típicos e comuns, de recorribilidade, diretamente regulados no CPP.

3. O Acórdão Recorrido violou o caso julgado formado por Acórdãos do mesmo Tribunal da Relação …, anteriormente proferidos nestes mesmos autos – os Acórdãos de 20.12.2017 e de 07.03.2018, respetivamente proferidos no âmbito dos apensos de recurso 184/12….-A…. e 184/12…-B…….

4. De facto, a …... Secção do Tribunal da Relação ….., em duas ocasiões, proferiu Acórdãos, transitados em julgado, decidindo, em suma, que a circunstância de as mensagens de correio eletrónico apreendidas no processo se encontrarem abertas não arreda a aplicação do artigo 17.º da Lei do Cibercrime e, assim, contrariamente ao sustentado no Acórdão Recorrido, é ao Juiz de Instrução Criminal – e não ao Ministério Público – que compete ordenar a sua apreensão e eventual junção aos autos – nos termos previstos nessa disposição legal e na solução, correspondentemente aplicável, do artigo 179.º, n.º 3, do CPP.

5. Violado que foi, pelo Acórdão Recorrido, o caso julgado formado pelos Acórdãos de 20.12.2017 e 07.03.2018, é, assim, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, aplicável ex vi do artigo 4.º do CPP, admissível a interposição do presente recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça.

6. É materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança – nos quais radicam os fundamentos da autoridade do caso julgado –, assentes na noção de Estado de Direito Democrático, assim como por violação do princípio da igualdade e do direito ao recurso, a norma, eventualmente extraída do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal – ou de qualquer outra disposição legal –, segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, quando o fundamento do recurso é a violação do caso julgado.

7. Existindo, no processo, decisões que gozem da força própria do caso julgado, em particular, quando das mesmas decorram soluções mais favoráveis ao Arguido, a Constituição impõe – por força dos invocados princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança, mas também do direito ao recurso – o direito de recorrer das mesmas, ainda que proferidas por um Tribunal Superior, assente que seja o recurso na violação do caso julgado e, assim, tendo como escopo a sua reposição.

8. Se se permitisse a coexistência do Acórdão Recorrido de 27.01.2021 com a força e a vinculação do caso julgado dos Acórdãos do Tribunal da Relação …. de 20.12.2017 e de 07.03.2018, estar-se-ia a reconhecer ao Estado a possibilidade de tratar, no mesmo processo, e sem fundamento, de modo materialmente desigual, Arguidos colocados em situações materialmente iguais.

9. Por força da adoção, no Acórdão Recorrido, de uma solução jurídica diametralmente oposta à que goza da autoridade do caso julgado, o Recorrente vê o seu direito fundamental à inviolabilidade da correspondência preterido, por ter o Estado, em decisão jurisdicional posterior, alterado a sua posição sobre a mesma questão de direito.

10. Recusada a aplicação da norma inconstitucional questionada deverá, consequentemente, ser reconhecido o direito ao Recorrente de sindicar, por via de Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o Acórdão de 27.01.2021, com fundamento na violação do caso julgado formado pelos Acórdãos de 20.12.2017 e de 07.03.2018, da mesma …... Secção do Tribunal da Relação …...

11. As inconstitucionalidades assinaladas são invocadas nos termos e para os efeitos do artigo 72.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, estando os Tribunais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 204.º, da CRP, impedidos de aplicar normas “que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.

FUNDAMENTO DE RECURSO: A VIOLAÇÃO DO CASO JULGADO

12. Da conjugação dos princípios do caso julgado, da segurança jurídica e da tutela da confiança, decorre o direito de os cidadãos – e os Arguidos em particular – de não poderem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar.

13. De facto, o princípio do Estado de direito impõe uma vinculação do Estado em todas as suas manifestações, e portanto também dos Tribunais, ao Direito criado ou determinado anteriormente, de modo definitivo.

14. A vinculação do caso julgado impõe-se no que respeita ao dispositivo das decisões transitadas, mas também no que respeita à respetiva fundamentação, quando a própria fundamentação – e o raciocínio nela expendido – concorre para a compreensão e efetiva estruturação da decisão, conforme sucedeu com a prolação, nos presentes autos, dos Acórdãos …... Secção do Tribunal da Relação ….., de 20.12.2017 e 07.03.2018.

15. A …..ª Secção do Tribunal da Relação ….., nos dois Acórdãos que, a este propósito, proferiu, julgou integralmente improcedentes os argumentos esgrimidos pelo Ministério Público e tomou posição clara sobre a questão que, desde então, goza, nos presentes autos, da autoridade do caso julgado formal: nos termos do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, carece de autorização ou ordem do Juiz de Instrução Criminal, a apreensão de correio eletrónico, ainda que aberto.

16. O Acórdão Recorrido é, por isso, um ato do Estado violador da confiança legítima que o Recorrente titulava na consolidação de uma determinada solução jurídica (respeitante à qualificação jurídica do correio eletrónico, para efeitos de aplicação dos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º do CPP); um ato do Estado que surpreende (de modo constitucionalmente inadmissível) o Recorrente; um ato do Estado que, sem fundamento ou substrato bastante, priva o Recorrente, de modo desigual, da tutela constitucional da inviolabilidade da correspondência que é assegurada, em situações idênticas, a outros Arguidos constituídos nos presentes autos; e, um ato do Tribunal Recorrido que rompe, sem fundamento ou substrato bastante, a orientação e definição processual concretamente adotada, por Decisões anteriormente proferidas e transitadas em julgado, a respeito da qualificação jurídica do correio eletrónico aberto, para efeitos de aplicação (alternativa) dos artigos 16.º e 17.º da Lei do Cibercrime.

17. É, assim, a Decisão Recorrida, também por isso, inválida, ao violar diretamente o princípio da confiança jurídica e as legítimas expectativas das quais o Recorrente é titular, tendo, desse modo, o Tribunal a quo violado o disposto nos artigos 620.º, n.º 1 e 625.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 4.º do CPP.

18. A sanção pela violação do caso julgado formal é considerar o Acórdão Recorrido – exclusivamente na parte da qual foi interposto recurso, limitado nos termos do artigo 403.º, n.º 1, do CPP – sem qualquer eficácia jurídica.

19. Em obediência ao disposto nos artigos 620.º, n.º 1 e 625.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 4.º do CPP, deverão V. Exas., Colendos (as) Senhores(as) Juízes(as) Conselheiros(as) do Supremo Tribunal de Justiça, revogar a Acórdão Recorrido, substituindo-o por outro que, em obediência à autoridade do caso julgado decorrente dos Acórdãos proferidos nos presentes autos pelo Tribunal da Relação …., a 20.12.2017 e a 07.03.2018, aplique o regime previsto no artigo 17.º da Lei do Cibercrime ao correio eletrónico aberto apreendido e, nessa linha, considere a ilegalidade da apreensão de emails do Recorrente por força da ausência de autorização judicial prévia e declare como meio de prova de utilização e valoração proibida, nos termos do artigo 126.º, n.º 3, do CPP, todas as mensagens de correio eletrónico de que o Recorrente é titular e que se encontram apreendidas à ordem dos presentes autos, só assim se retirando do presente recurso as “consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida” (artigo 403.º, n.º 3, do CPP)».

1.2. No Tribunal da Relação …. o Ministério Público pronunciou-se pela rejeição do recurso, nos seguintes termos:

«Em douta motivação do recurso subscrita pelos Exmos. Advogados do Recorrente AA (cf. fls. 550/57l v.) pretende-se com o presente recurso sindicar o douto acórdão exarado nestes autos em 27.01.2021 (cf. fls. 516/544) que decidiu " julgar não provido o recurso interposto e consequentemente confirma a decisão recorrida embora por razões diferentes daquelas que constam do despacho recorrido", determinando a manutenção da apreensão do correio electrónico, ao abrigo do disposto do artigo 16.° da Lei do Cibercrime.

Sustenta o Recorrente na sua essência que "o acórdão recorrido violou o caso julgado formal formado pelos Acórdãos do mesmo Tribunal da Relação ….., anteriormente proferidos - os Acórdãos de 20.12.2017 e de 07.03.2018, respectivamente proferidos no âmbito dos apensos de recurso 184/12……-A….. e 184/12…..-B…...", estribando tal pretensão nos termos do disposto no artigo 629.°, n.° 2, alínea c) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.° do Código de Processo Penal, na consideração de que a decisão recorrida é "inválida ao violar o princípio da confiança jurídica e as legítimas expectativas das quais o Recorrente é titular".

Da irrecorribilidade:

Dispõe o artigo 400.° n.° 1, alínea c) do C. P. P. "que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo".

Constituem pois excepções à regra geral da irrecorribilidade questões que não julgam o mérito da causa e que materializam questões incidentais ou interlocutórias.

Sustenta o Recorrente que o acórdão recorrido violou o caso julgado formado pelos dois acórdãos supra referidos, pelo que com tal exclusivo fundamento, considera que é admissível o presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Refutando integralmente os termos do recurso, iremos discorrer, primeiro a título prejudicial, sobre a irrecorribilidade do acórdão em causa para o Supremo Tribunal de Justiça, depois, sobre se em todo o caso estamos ou não, em rigor, perante uma situação de caso julgado formal, e finalmente sobre a solução jurídica que no acórdão recorrido foi adoptada, ou seja, o Tribunal concluiu que "estamos perante mensagens já abertas, pelo que não tinha o J.I.C. de sancionar a sua junção ou delas tomar conhecimento competindo ao Ministério Público decidir-se pela sua junção ou não".

1. Inequivocamente, a nosso ver, a irrecorribilidade do acórdão proferido nesta Relação, do recurso que incidiu sobre a decisão da 1ª Instância decorre da relevantíssima e decisiva circunstância seguinte:

Se o ora Recorrente entendia que as decisões proferidas nos apensos A e B deste processo 184/12 faziam caso julgado relativamente à questão central de que recorreu deveria tal ter invocado para que tal matéria fosse objecto de apreciação, sustentando que a decisão da 1.ª Instância de que se recorria teria desrespeitado o caso julgado proferida por via de recurso para a Relação naqueles citados apensos.

Ora, não o tendo feito, este Tribunal da Relação cujo acórdão agora se pretende por em crise, não se pronunciou sobre a questão, nem tinha que se pronunciar, iá que apenas tinha o dever de o fazer oficiosamente se considerasse que ocorria desrespeito do caso julgado.

O ora Recorrente, ao suscitar agora a questão que não levantou anteriormente, mais não pretende que ultrapassar indevidamente a regra que consagra as excepções ao direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do citado artigo 400.° do Código de Processo Penal, pois que se o tivesses feito nunca a questão poderia ser suscitada perante o Supremo Tribunal de Justiça.

E sendo que na linha argumentativa do Recorrente se o Tribunal da Relação já em dois acórdãos tinha decidido no mesmo sentido sobre o mesmo tema jurídico, acórdãos que agora invoca e que já conhecia desde final de 2017 e Março de 2018, respectivamente, então forçosamente teria que invocar a alegada violação do caso julgado no recurso que interpôs para a Relação e motivou o acórdão de que agora (indevidamente) se recorre.

Com tal atitude omissiva pretende o Recorrente contornar aquela norma, pois que privou o Tribunal da Relação de se pronunciar, tudo com o fito de "ganhar" uma jurisdição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Para mais, após terem tido conhecimento do teor daquele acórdão de 2017 e depois do de 2018, participou o Exmo. Advogado do arguido AA em três diligências judiciais de selecção de e-mails, presença que não pode deixar de significar a aceitação da validade da junção aos autos dos ditos e- mails.

Em resumo, aquele procedimento de vir agora pretender que o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncie sobre uma questão que deliberada e conscientemente não colocou nem ao Tribunal de 1.ª Instância nem ao Tribunal da Relação, podemos claramente classificá-lo como correspondendo a um abuso de direito, por violação do princípio da boa fé processual — venire contra factum próprio.

2. Em qualquer caso nunca estamos perante uma situação de caso julgado formal (o Tribunal pronunciar-se uma segunda vez sobre questão anteriormente decidida) por várias ordens de razões:

i) Trata-se de decisões proferidas em processos apensos em que não há identidade de sujeitos nem identidade das situações de facto subjacentes às questões de direito!

ii) embora co-arguidos no mesmo processo são diferentes os Recorrentes, sendo que que os respectivos recursos determinam a organização de um processo apenso, em separado, com distribuição própria e com Tribunal diferente que o vai decidir;

iii) Não se tratando aqui portanto de caso em que o mesmo Juiz altera o sentido de decisão anterior por ele proferida ou por colega no âmbito exacto da mesma questão e do mesmo processo em sentido estrito!

iiii) Nem sequer se pode concluir portanto que as decisões em questão tenham decidido de forma divergente quanto ao sentido e interpretação das normas aplicáveis a situação fáctica exactamente igual.

De todo o modo, digamos sobre a questão de fundo.

3. Considerando que a expressão correspondência significa uma mensagem transmitida de um remetente para um destinatário, desde o momento em que aquele a emite até ao momento em que este a recebe, altura em que dela toma conhecimento;

Se a mensagem já se encontra na esfera de conhecimento do destinatário, então perdeu as características que a faziam pertinente à tutela da correspondência.

Segundo o Professor Manuel da Costa Andrade in Bruscamente, no Verão Passado - A reforma do Código de Processo Penal, " depois de recebido, lido e guardado no computador do destinatário, um e-mail deixa de pertencer à área de tutela das telecomunicações, passando a valer como um normal escrito e sujeitando-se ao regime correspondente ao que estão sujeitos os documentos que o visado cria e arquiva no seu computador ".

A Jurisprudência da Relação de forma repetida tem valorizado a ideia central de que a mensagem mantida em suporte digital, depois de recebida e lida, tem a mesma protecção da carta em papel, que tendo sido recebida e lida, foi guardada em arquivo pessoal (acórdão da Relação de Guimarães, de 12.10.2009, relatado pelo Exmo. Desembargador Tomé Branco, acórdão da Relação de Lisboa, de 02.03.2011, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Raposo e acórdão da Relação do Porto, de 20.01.2016, relatado pelo Exmo. Desembargador Artur Oliveira).

Para mais, surgindo o Ministério Público na estrutura processual penal portuguesa, como o dominus da fase de inquérito a quem incumbe a decisão de acusar ou arquivar, está inequívoca e justamente subjacente ao modelo consagrado o princípio do acusatório e o da autonomia do Ministério Público (artigos 32.°, 5 e 219.u da Constituição da República ), não se descortinando fundamento de ordem interpretativa ou sistemática para que e-mails apreendidos nos termos do artigo 17.° da lei do cibercrime (lei 109/2009) sejam objecto de mais garantias do que as relativas à apreensão directa de telecomunicações, por aplicação estrita do regime do artigo 179º do Código de Processo Penal, remissão que apenas deve ser entendida como garante do sigilo profissional, designadamente de Advogado.

Pelo exposto devem V. Exas. rejeitar o presente recurso que incide sobre o douto acórdão desta Relação proferido no dia 27.01.2021, por ser irrecorrível, designadamente à luz do conteúdo normativo do artigo 400.° do Código de Processo Penal, a bem da salvaguarda do princípio da confiança, do princípio da boa-fé, bem assim do princípio acusatório, do constitucionalmente consagrado princípio da autonomia do Mistério Público, tudo enfim, A Bem da Justiça».

3. O Exmº Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu Parecer, no sentido que o recurso deve ser rejeitado, nos seguintes termos: (transcrição)

«I - Por acórdão[1] tirado em 27 de aneiro de 2021, na …. Secção Criminal do Tribunal da Relação ….., no recurso interposto no inquérito nº 184/12….. a correr seus termos no Departamento Central de Investigação e Acção Penal /DCIAP, foi acordado:

“(…) em julgar não provido o recurso interposto e, consequentemente, confirmar na íntegra a decisão recorrida”.

O objecto de tal decisão é o despacho judicial proferido em 22 de Setembro de 2020 no TCIC, em que foi apreciado o requerimento apresentado em 24.08.2020 pelo arguido AA impetrando que fosse declarada a «nulidade do despacho dos MP de fls. 1370-1371 e 1379 e ss, assim como do despacho proferido a 14.08.2020 mediante o qual foi ordenada a junção aos presentes autos, para serem utilizadas e valoradas enquanto meios de prova, as mensagens de correio electrónico apreendidas ao requerente, assim como de quaisquer outros posteriores a este (e posteriores à apresentação e conhecimento do presente requerimento) que igualmente determinem nos termos do art.º 179º, n º 3 do CPP ex vi art.º 17º da Lei do Cibercrime, a junção aos autos das demais mensagens de correio electrónico, apreendidas ao recorrente por violação das disposições conjugadas do art.º 32º, n º 8 da CRP, 126º, n º 3 e 179, do CPP e 17º da Lei do Cibercrime e que fossem julgados meio de prova de utilização e valoração proibida todas as mensagens de correio electrónico de que o requerente é titular e estejam apreendidas à ordem os presentes autos». Não tendo sido deferidas tais pretensões, o arguido AA, dele interpôs recurso para a Relação …..

Recurso Penal

II - O MP na 2ª instância pronunciou-se, em suma, como melhor se colhe da leitura da resposta no sentido de que o acórdão em apreço não é suscetível de recurso, porquanto:

A. A tal obsta o art.º 400º, n º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, sendo, ao demais, certo,

B. Que o recorrente, conhecendo perfeitamente o decidido nos dois acórdãos da Relação ..…., que invoca, não suscitou no seu recurso para aquela a questão da ofensa de caso julgado, pelo que o acórdão não tinha sobre ela de se pronunciar, conduta processual direccionada a contornar a inadmissibilidade de eventual recurso para o STJ, agora expressis verbis sob tal égide; em todo o caso;

C. Não estamos perante contexto processual que permita afirmar a existência do pressuposto identidade de sujeitos, sendo diversos os respectivos recorrentes e diferenciados os processos.

Conclui, destarte no sentido da inadmissibilidade do recurso.

III - Dúvidas não restam que face à alínea c), do n º 1 do art.º 400º do Código de Processo Penal ab initio não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão sub judicio.

Todavia, é consabido que a ofensa de caso julgado tem sido considerada como fundamento autónomo de recurso para o STJ, como a sua jurisprudência evidencia, por razões que se prendem com a certeza e segurança jurídicas, valores com assento constitucional. In casu como decorre da motivação, o recorrente defende a admissibilidade do recurso, invocando-se, para tanto, ofensa de caso julgado-CPC 629º, n º 2, alínea a), ex vi art.º 4º do CPP.

O instituto do caso julgado ao contrário do que sucedia com o CPP29, não se mostra previsto no Código de Processo Penal, pese embora o escopo claramente assumido pelo legislador em 1987, de autonomizar plenamente o processo penal, maxime na área dos recursos. Neste conspecto, impõe-se, por via do princípio da preclusão a aferição se no caso sub judicio estamos ou não perante situação que permita concluir estarem reunidos os requisitos necessários à existência do invocado caso julgado -formal- e, se assim se vier a concluir, se o acórdão recorrido, violou o mesmo.

IV - O invocado art.º 629º, n º 2, alínea a), do Código de Processo Civil (decisões que admitem recurso), dispõe:

2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras da competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado. (negrito introduzido).

Por sua vez, estatui o art.º 620º, n º 1, do Código de Processo Civil (caso julgado formal), estabelece:

1 - As sentenças e os despachos que recaem unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.

Nestes termos, o caso julgado formal só se pode verificar quando a sentença ou despacho se reporta a uma concreta relação processual, sendo vinculativo no processo.

O caso julgado formal prende-se com questões adjectivas e tem valor ou eficácia intra processual, ao passo que o caso julgado material, implica a existência de decisões que apreciem de meritis dizendo o direito da relação material controvertida.

Importa, deste modo, chamar à colação o art.º 581º do Código de Processo Civil (requisitos da litispendência e do caso julgado):

1 - Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (….)

A existência de caso julgado implica, assim, a verificação de uma tríplice identidade:

Identidade de sujeitos;

Identidade de pedidos;

Identidade de causa de pedir e de pedido.

Feita esta breve incursão pelas normas adjectivas cíveis que permitem clarificar a situação sub judicio sem deixar de atentar, que na integração de lacunas nos termos do art.º 4º do Código de Processo Penal, ter-se-ão que «observar as normas de processo civil que se harmonizem com o processo penal»., estamos perante o enquadramento processual que permite responder à primeira questão acima enunciada.

V - Revertendo ao caso concreto:

No inquérito nº 184/12……., a correr termos no DCIAP, existem dois Apensos, classificados como A e B cuja existência radica (tanto quanto logramos apurar, informalmente, junto do DCIAP, conquanto a certidão enviada não é esclarecedora) no facto de, dada a magnitude do inquérito supra-referido, ter sido necessário, a partir do conhecimento da eventual prática de outros crimes, criar tais apensos, enquanto procedimentos autónomos para averiguação daqueles, os quais, a verificar-se a dedução de acusação, serão remetidos de per si para julgamento, isto é, à margem do inquérito principal, em cujo objecto não se inscrevem.

Ora como se alcança da motivação, o alegado caso julgado formal que o acórdão recorrido teria posto em causa, tem justamente a ver com dois acórdãos do Tribunal da Relação …, um no âmbito do aludido Apenso A – tirado em 20.12.2017[2] e o outro do Apenso B- tirado em 07.3.2018[3].

O referido Apenso A estamos perante recurso pertinente a busca e apreensão nas instalações da consultora “B.......”, figurando como arguidos BB e CC.

Já no Apenso B, estamos perante busca e apreensão nas instalações da “R......., SA”, sendo sujeitos processuais/arguidos, DD (recorrente), BB e CC.

Por sua vez, o acórdão recorrido, tirado no âmbito do inquérito principal, reporta-se a busca e apreensão em instalações da E......., sendo recorrente como acima se consignou, o arguido AA.

Temos assim que os acórdãos foram tirados em diferentes inquéritos, inexistindo, desde logo, identidade de sujeitos processuais.

Daqui decorre, que não se estando no domínio da mesma causa/ procedimento, nunca se poderá invocar a existência de caso julgado formal. De resto, também a falta de identidade dos sujeitos, a tanto, sempre obstaria.

VI - Neste conspecto, entendemos que, ao contrário do defendido pelo recorrente, os acórdãos invocados não formam caso julgado formal, pelo que se impõe concluir pela inadmissibilidade do recurso.

Somos assim de parecer, que o presente recurso, por inadmissível, deverá ser rejeitado-ut Código de Processo Penal 420º, n º 1, alínea b)».

4. Foi cumprido o art. 417º, do CPP.

5. O recorrente ofereceu Resposta mantendo a posição assumida na motivação de recurso.

6. Com dispensa de vistos foram os autos à Conferência.


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III. FUNDAMENTAÇÃO

1. Resultam dos autos as seguintes ocorrências processuais

1.1. Por despacho de judicial proferido em 22 de setembro de 2020 no TCIC, foi apreciado o requerimento apresentado em 24 de agosto de 2020 pelo arguido AA pedindo que fosse declarada a «nulidade do despacho dos MP de fls. 1370-1371 e 1379 e ss, assim como do despacho proferido a 14.08.2020 mediante o qual foi ordenada a junção aos presentes autos, para serem utilizadas e valoradas enquanto meios de prova, as mensagens de correio eletrónico apreendidas ao requerente, assim como de quaisquer outros posteriores a este (e posteriores à apresentação e conhecimento do presente requerimento) que igualmente determinem nos termos do art.º 179º, n º 3 do CPP ex vi art.º 17º da Lei do Cibercrime, a junção aos autos das demais mensagens de correio eletrónico, apreendidas ao recorrente por violação das disposições conjugadas do art.º 32º, n º 8 da CRP, 126º, n º 3 e 179, do CPP e 17º da Lei do Cibercrime e que fossem julgados meio de prova de utilização e valoração proibida todas as mensagens de correio eletrónico de que o requerente é titular e estejam apreendidas à ordem os presentes autos».

1.2. Tais pretensões foram indeferidas, motivo pelo qual o arguido AA, inconformado interpôs recurso do despacho 22 de setembro de 2020, para o Tribunal da Relação …...

1.3. Por acórdão do Tribunal da Relação …... de 27 de janeiro de 2021, foi negado provimento ao recurso interposto e, consequentemente, confirmado na íntegra a decisão recorrida, muito embora com fundamentos diferentes.

1.4. Inconformado com o acórdão veio o arguido interpor recurso para este Supremo Tribunal, invocando que o acórdão recorrido violou o caso julgado formado por Acórdãos do mesmo Tribunal da Relação ….., anteriormente proferidos nestes mesmos autos – os Acórdãos de 20.12.2017 e de 07.03.2018, respetivamente proferidos no âmbito dos apensos de recurso 184/12….-A….. e 184/12……-B……, na medida em que a ….. Secção do Tribunal da Relação …., em duas ocasiões, proferiu Acórdãos, transitados em julgado, decidindo, em suma, que a circunstância de as mensagens de correio eletrónico apreendidas no processo se encontrarem abertas não arreda a aplicação do artigo 17.º da Lei do Cibercrime e, assim, contrariamente ao sustentado no Acórdão Recorrido, é ao Juiz de Instrução Criminal – e não ao Ministério Público – que compete ordenar a sua apreensão e eventual junção aos autos – nos termos previstos nessa disposição legal e na solução, correspondentemente aplicável, do artigo 179.º, n.º 3, do CPP.

Concluindo que, violado que foi, pelo Acórdão Recorrido, o caso julgado formado pelos Acórdãos de 20.12.2017 e 07.03.2018, é, assim, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, aplicável ex vi do artigo 4.º do CPP, admissível a interposição do presente recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça.


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O DIREITO

Questão Prévia:

O objeto do presente recurso prende-se com a seguinte questão:

O acórdão recorrido violou o caso julgado formado por Acórdãos do mesmo Tribunal da Relação ….., anteriormente proferidos nestes mesmos autos – os Acórdãos de 20.12.2017 e de 07.03.2018, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, respetivamente proferidos no âmbito dos apensos de recurso 184/12…….-A…… e 184/12…….-B……, na medida em que a …..ª Secção do Tribunal da Relação ……, em duas ocasiões, proferiu Acórdãos, transitados em julgado, decidindo, em suma, que a circunstância de as mensagens de correio eletrónico apreendidas no processo se encontrarem abertas não arreda a aplicação do artigo 17.º da Lei do Cibercrime e, assim, contrariamente ao sustentado no Acórdão Recorrido, é ao Juiz de Instrução Criminal – e não ao Ministério Público – que compete ordenar a sua apreensão e eventual junção aos autos – nos termos previstos nessa disposição legal e na solução, correspondentemente aplicável, do artigo 179.º, n.º 3, do CPP.


Vejamos:

De harmonia com o disposto no art. 400º, nº 1, alínea c), do Código do Processo Penal, não é admissível recurso dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo.

A decisão que conhece, a final, do objeto do processo é a que, apreciando uma acusação ou uma pronúncia, profere uma condenação ou uma absolvição.

Ou seja, «do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso».

Ora, conforme tem sido entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça, não tem, pois, esse sentido e alcance o acórdão da Relação, que apreciou e indeferiu a arguição de nulidades.[4]

Como se afirma no AC do STJ de 10-09-2014, processo nº 223/10.4SMPRT.P1.S1, Relator Sousa Fonte:

«Nos termos do artº 432º, nº 1, alínea b), do CPP, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artº 400º que, por sua vez, na alínea c) do seu nº 1, na versão saída da Reforma de 2007, deixada incólume, neste particular, pelas Reformas e alterações posteriormente introduzidas no mesmo Código pelo DL 34/2008, de 26 de Fevereiro e pelas Leis 52/2008, de 28 de Agosto, 115/2009, de 12 de Outubro, 26/2010, de 30 de Agosto e 20/2013, de 21/2, decreta a irrecorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo.

A Lei 48/2007, de 29 de Agosto ampliou, é verdade, as situações de irrecorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações. Como, por exemplo, diz o Acórdão de 31.01.2012, Pº nº 171/05.0TADPL.L2.S1, desta Secção, «o traço distintivo entre a redação atual e a anterior à entrada em vigor da Lei 48/07, de 29-08, reside na circunstância de anteriormente serem suscetíveis de recurso todas as decisões que pusessem termo à causa, sendo que atualmente só são suscetíveis de recurso as decisões que põem termo à causa quando se pronunciem e conheçam do seu mérito». Ou, como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional de 06.03.2012, Pº nº 859/2011, DR. 2ª Série, de 11.04.2012, «… após a reforma de 2007 [o preceito em causa] deixou de enunciar como critério de insindicabilidade dos acórdãos das relações o que assentava no respetivo efeito (não pôr termo ao processo), substituindo-o por um critério objetivo que assenta no respetivo conteúdo decisório (não conhecer, a final, do objeto do processo)». (…)

«São assim irrecorríveis, desde então, todas as decisões da relação que, «pondo, ou não, fim ao processo, fiquem aquém do conhecimento final do objeto da acusação e ou da pronúncia» (cfr. A., ob. e loc. cit.), trate-se ou não de decisões interlocutórias e independentemente da forma como o respetivo recurso é aí processado e julgado, isto é, quer se trate de um recurso autónomo quer se trate de impugnação inserida no recurso da decisão final que conheça do objeto do processo.

A circunstância de a decisão sobre determinada questão interlocutória não ter sido objeto de recurso autónomo mas, antes, englobada no recurso interposto da sentença/acórdão não lhe confere recorribilidade a reboque de as restantes, ou algumas das restantes, poderem ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Em suma, tal circunstância não tem a virtualidade de alterar o regime daquela alínea c), já que a lei não estabelece aí qualquer distinção, determinando a irrecorribilidade, tout court, de todas as decisões proferidas em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo.

Este entendimento, além de respeitar a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição – como no caso foi efetivamente respeitada, porque exercida –, está em perfeita consonância com o regime traçado pela Reforma de 1998 e prosseguido pela de 2007 para os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça as quais quiseram obstar, de forma clara, ao segundo grau de recurso, terceiro grau de jurisdição, relativo a questões interlocutórias ou que não tenham conhecido, a final, do objeto do processo, sendo certo, por outro lado, que a situação não tem qualquer paralelo com a prevista na alínea e) do artº 432º do CPP – solução diversa, esta sim, imposta indiscutivelmente pela referida imposição constitucional.

Neste sentido, decidiram, entre outros, os Acórdãos de 20.12.06, Pº 3043/06-3ª; de 14.11.2007, Pº 3750/07-3ª; de 10.07.2008, Pº 2142/08-3ª; de 10.09.2008, Pº 1959/08-3ª; de 25.09.2008, Pº 809/08-5ª; de 13.10.2010, Pº nº 200/06.0JAAVR.C1.S1-3º; de 09.06.2011, Pº nº 4095/07.8TPPRT.P1.S1; de 22.02.2012, Pº nº 1239/03.2GCALM.L1.S1-3ª; de 18.04.2012, Pº nº 660/10.4TDPRT.P1.S1-3ª; de 12.09.2012, Pº nº 269/08.2JABNV.L1.S1; de 05.12.2012, Pº nº 704/10.0PVLSB.L1.S1».

No caso subjudice, o recurso interposto pelo arguido para o Tribunal da Relação …… da decisão da 1ª Instância tem por objeto o despacho 22 de setembro de 2020 no TCIC, que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido AA, em 24 de agosto de 2020, no sentido de ver declarado "a nulidade dos Despachos do Ministério Público de fls. 1370-1371 e 1379 ss., assim como do Despacho proferido a 14.08.2020, pelo qual foi ordenada a junção aos presentes autos, para serem utilizadas e valoradas enquanto meio de prova, das mensagens de correio eletrónico apreendidas ao Requerente, assim como de quaisquer outros posteriores a este (e posteriores à apresentação e conhecimento do presente Requerimento) que igualmente determinem, nos termos do artigo 179.3, n.3 3, do CPP, ex vi do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, a junção aos autos das demais mensagens de correio eletrónico apreendidas ao Requerente, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, 126º, n.º 3 e 179.º do Código de Processo Penal e 17.º da Lei do Cibercrime" e que fossem "julgadas meio de prova de utilização e valoração proibida, todas as mensagens de correio eletrónico de que o Requerente é titular e que se encontram apreendidas à ordem dos presentes autos”.

O Tribunal da Relação, por sua vez, conheceu das invocadas nulidades suscitadas no recurso, no acórdão agora sob impugnação.

O acórdão recorrido, que decidiu sobre tais questões processuais, de natureza interlocutória, foi proferido pelo Tribunal da Relação …. funcionando como instância de recurso, e não conheceu do objeto do processo, pelo que não é passível de recurso para este Supremo Tribunal.

Alega o recorrente que foi violado o caso julgado, nos termos do art. 629º, nº 2, al. d), do CPC, aplicável ex vi do art. 4º, do CPP, motivo pelo qual o recurso deve ser admitido.

De harmonia com o disposto no art. 432º, do CPP,

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º”

A decisão que está em causa, como se viu, é um acórdão do Tribunal da Relação ...…, que decidiu sobre questões processuais, de natureza interlocutória, e por isso não admissível nos termos do art. 400º, nº 1, alínea c), do Código do Processo Penal, motivo pelo qual tem que ser rejeitado.

Importa, pois, analisar se o acórdão do Tribunal da Relação …. é suscetível de recurso, por ter sido violado o caso julgado, como defende o recorrente, nos termos do art. 629º, nº 2, al. d), do CPC.

Sobre esta questão pronunciou-se o AC do STJ de 27 de janeiro de 2021, processo nº 266/07.5TATNV.E1.S1, relator Nuno Gonçalves, que se transcreve na parte que aqui releva:

«Como este mesmo Tribunal e secção – e com o mesmo relator - sustentou[5] e aqui se repete, a autonomização dogmática e metodológica do regime dos recursos processo penal, em matéria criminal, em relação à lei adjetiva do processo civil, foi uma das preocupações do legislador do vigente CPP, informado pelo ideário de estabelecer um sistema integrado - e completo - de soluções potenciadoras da “economia processual numa óptica de celeridade e de eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico”, de modo a obviar “ao reconhecido pendor para o abuso dos recursos”. “Complementarmente, procurou simplificar-se todo o sistema, abolindo-se concretamente a existência, por regra, de um duplo grau de recurso” – cfr. preambulo do CPP de 1987.

Posteriormente, retocando a arquitetura do edifício assim erigido, o legislador, – na Proposta de Lei n.º 109/X que se converteu na Lei n.º 48/2007 - insistiu em “restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal”.

Expressando que “para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal”.

Na doutrina, Leal Henriques e Simas Santos não podiam ser mais claros neste aspeto, entendendo que “com o Código de Processo Penal de 1987, o regime dos recursos em processo penal sofreu uma autêntica revolução que obedeceu a uma ideia concreta: ruptura praticamente total com o sistema de recursos em processo civil que lhe servia de amparo, mercê da criação de um estatuto autónomo e próprio que independentizasse, de uma vez por todas, o esquema processual até então vigente”.

“Traçou, assim, o legislador a ossatura do regime dos recursos em processo penal que, em traços grossos e breves: como alicerce, o rompimento com a subordinação da matéria ao esteio do processo civil”.

“Esta filosofia de base manteve-se nas alterações introduzidas no texto que não puseram em causa o princípio original de autonomia dos recursos penais”[6].

Também M. Maia Gonçalves entendeu que “não há qualquer lacuna do sistema legal dado o texto deste art. 400.º, não funciona em processo penal o normativo do art. 678º n.º 2 do CPC relativo aos recursos para o STJ baseados em ofensa do caso julgado ou das regras de competência internacional e em razão da matéria ou da hierarquia”[7].

No parecer do Supremo Tribunal de Justiça intitulado “Recursos em Processo Penal Proposta de Lei n.º 109/X 4.7.07”, escreveu-se: “Com o Código de 1987, o regime dos recursos em processo penal sofreu uma autêntica revolução que obedeceu a uma ideia concreta: ruptura praticamente total com o sistema de recursos em processo civil, mercê da criação de um estatuto autónomo e próprio”. A arquitetura dos recursos foi alicerçada no “rompimento com a subordinação ao esteio do processo civil”. 

A jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal entende uniformemente que o regime dos recursos quanto à questão penal está regulado completa e autonomamente no CPP. Na motivação do AUJ n.º 9/2005, expendeu-se que “O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respectivos prazos de interposição, está construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.

O regime de recursos em processo penal, tributário e dependente do recurso em processo civil no Código de Processo Penal de 1929 (CPP/29), autonomizou-se com o Código de Processo Penal de 1987 (CPP/87), constituindo actualmente um regime próprio e privativo do processo penal, tanto nas modalidades de recursos como no modo e prazos de interposição, cognição do tribunal de recurso, composição do tribunal e forma de julgamento.

No CPP/29, o recurso em processo penal seguia a forma do processo civil, sendo processado e julgado como o agravo de petição em matéria cível (artigo 649.º do CPP/29); não existia, então, como regra, regulamentação própria e autónoma, privativa do processo penal.

A autonomização do modelo de recursos constituiu mesmo um dos momentos de reordenamento do processo penal no CPP/87. A lei de autorização legislativa (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro), que concedeu autorização para a aprovação de um novo Código de Processo Penal, definiu expressamente como objectivo a construção de um modelo, que se pretendia completo, desde a concepção das fases do processo até aos termos processuais da reapreciação das decisões na concretização da exigência - que é de natureza processual penal no plano dos direitos fundamentais - de um duplo grau de jurisdição. A lei consagrou imposições determinantes no que respeitava ao regime de recursos, apontando para uma perspectiva autónoma e para uma regulação completa.

Os pontos 70 a 75 do n.º 2 do artigo 2.º da lei de autorização (sentido e extensão), referidos especificamente às orientações fundamentais em matéria de recursos, impunham, decisivamente, a construção de um modelo com autonomia, desligado da tradição da referência aos recursos em processo civil.

Por seu lado, a nota preambular do CPP/87, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, qualifica o regime de recursos como «inovador», estabelecido na perspectiva da obtenção de um amplo efeito («potenciar a economia processual numa óptica de celeridade e eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico»), assim autonomizado como modelo próprio para realizar finalidades específicas do processo penal.

A intenção e a autonomia do modelo mantêm-se após a reformulação do regime de recursos na reforma de 1998 (Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto), a formulação reguladora das diversas modulações nos recursos (tribunal singular, tribunal colectivo e tribunal do júri; matéria de facto e matéria de direito; tribunais da relação e Supremo Tribunal de Justiça; oralidade e audiência no tribunal de recurso) continua a constituir um sistema com regras próprias e específicas do processo penal (cf. a exposição de motivos da proposta de lei n.º 157/VII, nºs 15 e 16).

A autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recursos de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, às diversas hipóteses que prevê”[8].

No Ac. de 15-11-2006, deste Supremo Tribunal sustenta-se: “o legislador do CPP87 conferiu ao sistema dos recursos em processo penal «uma tendencial autonomia relativamente ao processo civil”. “Por isso se deve entender que o CPP esgota a disciplina da matéria da admissibilidade do recurso, sem hipótese, pois, de apelo às regras do CPC, por não se verificar aí (não ser susceptível de se verificar) qualquer lacuna”[9].

Adianta-se que a autonomia do regime dos recursos em processo penal não consente a admissibilidade do “regime processual civil da revista excecional, previsto no art. 671.º, n.º 3 d 672.º, do CPC). A arquitetura dos recursos no processo penal não foi influenciada – e podia tê-lo sido – com qualquer das alterações introduzidas no processo civil - mormente a partir do Dec. Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que introduziu a «revista excecional», (art. 721º - A CPC) reforma essa coesa, faça-se notar, da processual penal introduzida pela Lei nº 48/2007.[10].

Como sinaliza o Digno Procurador-Geral Adjunto, na jurisprudência deste Supremo Tribunal encontram-se decisões opostas – em épocas diferentes - sobre a aplicação ao processo penal da norma do art.º 629º (“Decisões que admitem recurso”) n.º 2 al.ª a) do CPC.

Nos acórdãos que cita, ambos do distante ano de 2001 - um é de 8 de fevereiro, o outro de 8 de março - sustenta-se que:

“1 - Deverá ser sempre admitido para o STJ o recurso de decisão da Relação, quando o respetivo fundamento for a ofensa ou violação do caso julgado, por aplicação subsidiária das regras do processo civil (art. 678º, n.º 2 do CPC) por força do art. 4.º do CPP87 e por aplicação dos princípios próprios do processo penal.

2 - Os interesses protegidos pelas normas que permitem o recurso em caso de violação de caso julgado são de ordem pública, totalmente transponíveis para o processo penal, onde se impõem por maioria de razão, tanto mais que aqui se busca, com especial força, a verdade material (cfr. n.º 1 do art. 340.º do CPP) que não consente a manutenção de decisões judiciais transitadas em julgado contraditórias, antes de esgotada a possibilidade da sua redução por via do recurso.

3 - Sendo o fundamento do recurso a ofensa de caso julgado, é necessário que essa ofensa se impute à decisão recorrida. Tendo esta reconhecido que a decisão de um tribunal inferior ofendeu caso julgado, já não é pode o n.º 2 do art. 678.º do CPC abrir a via do recurso ordinário para outro tribunal.

4 - Assim que a admissibilidade deste fundamento autónomo de recurso limita-se a assegurar o duplo grau de jurisdição. A possibilidade de ser interposto recurso para o STJ com este fundamento está limitada aos casos em que a decisão que alegadamente viola caso julgado é de um Tribunal da Relação.

Também no acórdão[11] citado pelas recorrentes se afirmou sufragar “a posição de quantos entenderam que o disposto no art. 678.º, nº 2 al. a) do CPC, hoje, art. 629.º, nº 2, al. a) do CPC (na redação da Lei 41/2013 de 26 de Junho, entrada em vigor a 1/9/2013), é aplicável subsidiariamente no processo penal, por força do art. 4.º do CPP.”

Motivando a interpretação ali adotada, explicita-se: “transpondo para a disciplina processual penal esta mesma ideia, dir-se-á que é exatamente quando a irrecorribilidade se impuser por força do disposto no art. 400.º, nº 1 do CPP, que cobra razão de ser a aplicação subsidiária do art. 629.º, nº 2, al. a), do CPC.

As decisões mais recentes vão precisamente em sentido contrário.

Assim mesmo, no acórdão inicialmente citado – com o mesmo relator -, sustentou-se “que as exceções ao princípio geral da recorribilidade das decisões em processo penal estão expressamente prevista no CPP, não existindo qualquer lacuna, nem, consequentemente, margem para convocar a aplicabilidade da norma do artigo 629.° n.º 2, do Código de Processo Civil”.

No acórdão de 16/06/2020 entendeu-se não ser “convocável em recurso da matéria penal a aplicação supletiva do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC. O regime de recursos em processo penal é hoje, e, em princípio, auto-suficiente, não havendo lacuna que permita, a coberto do artigo 4.º, do CPP, que seja lançada mão do disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC relativamente ao recurso em matéria penal para o STJ com base em ofensa ao caso julgado. Sendo que a jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal assim tem decidido[12].

No acórdão de 06-05-2020, - da 3ª secção criminal - entendeu-se que “no domínio do processo penal, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça da parte da sentença relativa à matéria criminal está essencialmente dependente da medida concreta da pena aplicada ao arguido”.

“Não tem aplicação em processo penal a recorribilidade com base em incompetência material ou violação de caso julgado. - art. 629.º, n. º 2, al. a), do CPC.[13]

No acórdão de 4.12.2019 – também da 3ª secção criminal – sustentou-se que “relativamente à matéria penal, ao objecto penal tramitado no processo penal, observa-se a inaplicabilidade das normas processuais civis relativamente aos recursos aí interpostos e, muito em particular, aos recursos interpostos perante o STJ. Neste ponto, o regime jurídico-processual dos recursos e respectivas espécies, consagrado no CPP pauta-se pela suficiência (princípio da auto-suficiência), é taxativo, exaustivo e completo. (…)”[14].

Conforme se defendeu na decisão sumária de 19.06.2019 – 5ª secção: “no processo civil são determinantes o valor da acção e o grau de sucumbência. No processo penal o que é relevante é a natureza e a medida das penas. Para além disso, diferentemente do que ocorre no processo civil, em processo penal vigora a regra geral da recorribilidade (art.º 399.º do CPP) estando garantido, por imposição constitucional, o duplo grau de jurisdição.

Ou seja, as razões de ordem pública a que alude o Prof. Alberto dos Reis não se colocam nos mesmos termos no domínio do processo penal, onde as garantias decorrem de diferentes padrões constitucional e legalmente firmados em nome da defesa do direito à liberdade.

Garantido um segundo grau de jurisdição ficam cumpridas as exigências constitucionais e legais, seja qual for o fundamento do recurso, só se admitindo novo recurso para o STJ nos casos de aplicação de penas de maior gravidade (em regra penas de prisão superiores a cinco anos ou superiores a oito anos no caso de se verificar a chamada dupla conforme – artigos 400.º, n.º 1 e 432.º do CPP). (…)” outros se acrescentara.[15]

Na decisão sumaria de 17/11/2015, sustenta-se:

“A lacuna teleológica será latente ou oculta quando a lei contém uma regra aplicável a certa categoria de casos mas por modo tal que, olhando ao próprio sentido ou finalidade i da lei se verifica que essa categoria abrange uma subcategoria cuja particularidade ou especialidade valorativamente relevante não foi considerada. A lacuna traduzir-se-ia aqui na ausência de uma disposição excepcional ou de uma disposição especial para essa subcategoria de casos. j I Ora, o regime de recursos em processo penal, com o CPP de 1987,'deixou de ser tributário e dependente do regime de recursos em processo civil, como antes - no CPP de 1929 - acontecia, tendo sido construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador quis própria do processo penal. Como se escreveu no acórdão de uniformização de jurisprudência nº 9/2005, de 11/10/2005, «a autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recurso de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, às diversas hipótese que prevê». «Nesta compreensão, tal como a relatora já sustentou na decisão sumária de 08/10/2015, no processo n.º 147/13.3TELSB-C.L1.S1, a falta de previsão de exceções às regras de inadmissibilidade de recurso de acórdão da relação quando o fundamento do recurso seja uma das situações previstas na alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º do CPP não constitui uma lacuna porque o regime de (in)admissibilidade de recurso em processo penal, na sua completude, é diverso e autónomo do regime de (in)admissibilidade de recurso, em processo civil.

(…)

Não sendo esta uma questão nova, como a jurisprudência evidencia e tendo o legislador alterado profundamente a recorribilidade das decisões proferidas no processo criminal através da Lei n.º 48/2007 de 29 de agosto, certamente que se tivesse querido que o regime daquela norma do CPC se aplicasse ao recurso em matéria penal, sem dúvida que teria introduzido preceito idêntico ao n.º 3 do artigo 400º do CPP, aditado exatamente para remeter, expressamente, para a lei adjetiva civil a admissibilidade do recurso da decisão que julgou o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal. E não aditou então como também o não fez na posterior alteração operada pela Lei n.º 20/2013 de 21 de fevereiro. Dúvidas não podem subsistir de que se tivesse querido que o recurso em matéria penal pudesse fundar-se em alguma das situações elencadas no art.º 629º n.º 2 do CPC, seguramente que não deixaria de o ter dito na motivação daquela proposta legislativa e de o consagrar normativamente, como estabeleceu para o recurso em matéria cível.

Concomitantemente, estatuindo o corpo da norma em apreço que “2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:” e inexistindo, em matéria penal valor da causa e da sucumbência, não se compreende, como poderia, segundo as regras da hermenêutica jurídica, compatibilizar-se com o recurso em matéria penal.

Nem se objete que onde a norma diz “valor da causa” se leria “medida da pena” – que é um dos pressupostos nucleares (o outro delimita os poderes de cognição à questão de direito) da admissibilidade do recurso em matéria penal perante o STJ. Tal leitura, coerentemente, tinha de estender-se às demais alíneas e, desde logo a primeira parte da al.ª b) daquele n.º 2. E, assim, haveria de concluir-se que poderia recorrer-se de quaisquer “decisões respeitantes «à medida da pena»” independentemente o seu quantum concreto. O que, evidentemente, abrogava totalmente o quadro que define o regime dos recursos em matéria penal, arquitetado e firmado pelo legislador nas normas dos artigos 400º e 432º do CPP».

No mesmo sentido, se pronunciou o AC do STJ de 07 de janeiro de 2016, processo nº 204/13.6YUSTR.L1-A.S1- 5ª Secção, relatora Isabel Pais Martins, também citado no AC do STJ de 266/07.5TATNV.E1.S1, a propósito de não ser admissível recurso em processo penal, com fundamento no caso julgado, e no qual se refere:

«Nos termos daquele artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC:

«”2 – Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

«”a) Com fundamento em violação das regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia ou que ofendam o caso julgado.”

«3.1. A aplicação dessa norma implica e pressupõe que se reconheça que a falta de previsão, no processo penal, dos casos excepcionais de recorribilidade previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º constitui uma lacuna.

«O problema das lacunas não é apenas ou fundamentalmente o problema do seu preenchimento mas prioritariamente o problema da sua determinação ou descoberta[1]. Neste ponto, cfr. declaração de voto da relatora, v. g., no acórdão de 14/03/2013 (processo n.º 610/04.7TAPVZ.P1.S1) e doutrina para que remete.

«Uma lacuna é sempre uma incompletude, uma falha ou falta contrária ao plano do direito vigente.

«Sendo liminarmente de afastar a existência de lacuna da lei ou de regulamentação ou de lacuna resultante de contradição normativa uma vez que nem o artigo 400.º do CPP nem o artigo 75.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações carecem de integração nem entram em contradição com qualquer outra norma do ordenamento processual penal, a questão fica delimitada à existência de uma lacuna teleológica.

«A lacuna teleológica será latente ou oculta quando a lei contém uma regra aplicável a certa categoria de casos mas por modo tal que, olhando ao próprio sentido ou finalidade da lei se verifica que essa categoria abrange uma subcategoria cuja particularidade ou especialidade valorativamente relevante não foi considerada. A lacuna traduzir-se-ia aqui na ausência de uma disposição excepcional ou de uma disposição especial para essa subcategoria de casos.

Ora, o regime de recursos em processo penal, com o CPP de 1987, deixou de ser tributário e dependente do regime de recursos em processo civil, como antes – no CPP de 1929 – acontecia, tendo sido construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador quis própria do processo penal.

«Como se escreveu no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 9/2005, de 11/10/2005 Publicado no Diário da República, I-A Série, de 06/12/2005[2], “a autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recurso de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, às diversas hipótese que prevê”.

«Nesta compreensão, tal como a relatora já sustentou na decisão sumária de 08/10/2015, no processo n.º 147/13.3TELSB-C.L1.S1, a falta de previsão de excepções às regras de inadmissibilidade de recurso de acórdão da relação quando o fundamento do recurso seja uma das situações previstas na alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º do CPP não constitui uma lacuna porque o regime de (in)admissibilidade de recurso em processo penal, na sua completude, é diverso e autónomo do regime de (in)admissibilidade de recurso, em processo civil.

«3.2. Embora se detetem divergências, na matéria, adere-se, por conseguinte, à corrente jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça que entende que, em caso de irrecorribilidade da decisão, segundo as regras básicas e universais em matéria de admissibilidade de recurso em processo penal [artigos 399.º e 400.º do CPP] – e acrescentamos, agora, nós, também segundo a regra do artigo 75.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-ordenações –, a norma do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil não tem aplicação subsidiária».

E acrescenta:

«Neste sentido, v. g., o acórdão de 15-11-2006 Proc. n.º 3180/06, extraindo-se do respectivo sumário o seguinte:

«”(…)

«”VI - O legislador do CPP87 conferiu ao sistema dos recursos em processo penal «uma tendencial autonomia relativamente ao processo civil. Salvo pormenores de regulamentação que devem procurar-se, por via analógica, no Código de Processo Civil (…), os recursos penais passaram a obedecer a princípios próprios, possuem uma estrutura normativa autónoma e desenvolvem-se segundo critérios a que não é alheia uma opção muito clara sobre a necessidade de valorizar a atitude prudencial do juiz. O Código rompe abertamente com a tradição que, há quase um século, geminou os recursos penais e cíveis» (Cunha Rodrigues, Recursos, Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 384). E, confirmando este princípio, o STJ, na fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2002 (DR Série I-A, de 21-05-2002), afirmou unanimemente que as regras básicas e universais em matéria de admissibilidade do recurso são as dos arts. 399.º e 400.º do CPP.

«”VII - Por isso se deve entender que o CPP esgota a disciplina da matéria da admissibilidade do recurso, sem hipótese, pois, de apelo às regras do CPC, por não se verificar aí (não ser susceptível de se verificar) qualquer lacuna.

«”VIII - Tem sido esta a orientação maioritária do STJ; mas, mesmo quando tem entendido de forma diferente, tem sublinhado que a violação do caso julgado só constitui fundamento autónomo de recurso em processo penal quando o exigir a garantia do duplo grau de jurisdição - só que, nesse caso, o fundamento do recurso será a necessidade de salvaguardar o duplo grau de jurisdição e não propriamente a violação do caso julgado.

«”(…)”.

«O mesmo entendimento[3] é defendido por Manuel Lopes Maia Gonçalves (Código de Processo Penal, Anotado, 17.ª Edição, 2009, Almedina, página 913): “(…) até porque não há qualquer lacuna no processo penal dado o texto deste art. 400 e atenta ainda a orientação geral do Código, não funciona em processo penal o normativo do art. 678.º do CPP relativo aos recursos para o STJ baseados em ofensa do caso julgado ou das regras de competência internacional e em razão da matéria ou da hierarquia».


Na esteira da jurisprudência citada, sufragamos o entendimento que ao recurso em matéria penal não tem aplicação o regime estabelecido no art. 629º n.º 2 do CPC.


Por outro lado, como salienta o Ministério Público junto do Tribunal da Relação …..., «Se o ora Recorrente entendia que as decisões proferidas nos apensos A e B deste processo 184/12 faziam caso julgado relativamente à questão central de que recorreu deveria tal ter invocado para que tal matéria fosse objecto de apreciação, sustentando que a decisão da 1.ª Instância de que se recorria teria desrespeitado o caso julgado proferida por via de recurso para a Relação naqueles citados apensos.

Ora, não o tendo feito, este Tribunal da Relação cujo acórdão agora se pretende por em crise, não se pronunciou sobre a questão, nem tinha que se pronunciar, iá que apenas tinha o dever de o fazer oficiosamente se considerasse que ocorria desrespeito do caso julgado.

O ora Recorrente, ao suscitar agora a questão que não levantou anteriormente, mais não pretende que ultrapassar indevidamente a regra que consagra as excepções ao direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do citado artigo 400.° do Código de Processo Penal, pois que se o tivesses feito nunca a questão poderia ser suscitada perante o Supremo Tribunal de Justiça.

E sendo que na linha argumentativa do Recorrente se o Tribunal da Relação já em dois acórdãos tinha decidido no mesmo sentido sobre o mesmo tema jurídico, acórdãos que agora invoca e que já conhecia desde final de 2017 e Março de 2018, respectivamente, então forçosamente teria que invocar a alegada violação do caso julgado no recurso que interpôs para a Relação e motivou o acórdão de que agora (indevidamente) se recorre.

Com tal atitude omissiva pretende o Recorrente contornar aquela norma, pois que privou o Tribunal da Relação de se pronunciar, tudo com o fito de "ganhar" uma jurisdição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Para mais, após terem tido conhecimento do teor daquele acórdão de 2017 e depois do de 2018, participou o Exmo. Advogado do arguido AA em três diligências judiciais de selecção de e-mails, presença que não pode deixar de significar a aceitação da validade da junção aos autos dos ditos e- mails.

Em resumo, aquele procedimento de vir agora pretender que o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncie sobre uma questão que deliberada e conscientemente não colocou nem ao Tribunal de 1.ª Instância nem ao Tribunal da Relação, podemos claramente classificá-lo como correspondendo a um abuso de direito, por violação do princípio da boa-fé processual — venire contra factum próprio».


Pelo exposto, o recurso interposto pelo arguido, com fundamento na ofensa do caso julgado, nos termos do art. 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, também é inadmissível.

Não sendo admissível, o recurso interposto terá de ser rejeitado – arts. 432º, nº 1-b), 400º, nº 1-c), 414º, nº 2 e 420º, nº 1-b), todos do CPP, pois, o facto de ter sido admitido, não vincula o Supremo Tribunal de Justiça (art. 414º, nº 3 do CPP).



***


IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal.

Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 6 (seis UC’s).

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


***


Lisboa, 02 de junho de 2021


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Nuno Gonçalves

__________

[1] Acórdão, de resto, disponível em www.dgsi.pt
[2] Cuja publicação se desconhece
[3] Disponível em www.dgsi.pt, relatora Desembargadora Conceição Gonçalves
[4] AC do STJ de 02 de março de 2017, processo nº 126/15.6PBSTB.E1.S1, Relator Manuel Braz.
[5] Acórdão de 7.10.2020, proc.263/15.7T9ALR.E2.S1.
[6] O NOVO CÓDIGO E OS NOVOS RECURSOS, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, I, pág. 767, Coimbra Editora, 2001.
[7] Código de Processo Penal anotado, pág. 579.
[8] In Diário da República n.º 233/2005, Série I-A de 2005-12-06.
[9] Proc. n° 3180/06.
[10] Ac. de 6/10/2016, proc. 535/13.5JACBR.C1.S1, in www.dgsi.pt.[11] Ac. de 12/09/2013, Proc. 29/07.8GEIDN.C1.S1, in www.dgsi.pt
[12] Proc. 28/06.7TELSB.L2. S1, in www.dgsi.pt
[13] Proc. 4/12.0IFLSB.G2. S1 – 3.ª secção
[14] Proc. 354/13.9IDAVR.P2.S1 - 3.ª Secção
[15] Proc. 484/15.2TELSB.P1. S1- 5.ª Secção