COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
TRIBUNAIS JUDICIAIS
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
FORNECIMENTO DE ÁGUA
COBRANÇA COERCIVA
Sumário


SUMÁRIO (da responsabilidade da Relatora - art. 663.º, n.º 7 do CPC)

I. A competência material do tribunal para o conhecimento da acção afere-se comparando-a (tal como foi configurada pelo autor) com os índices legais de repartição da dita competência material pelos vários tribunais existentes na ordem judiciária

II. A delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de se fazer com base na distinção tradicional entre «actos de gestão pública e actos de gestão privada», assentando agora essencialmente num critério material, fundado na natureza das relações jurídicas em causa («relação jurídica administrativa»), e não na dos respectivos titulares
III. Após a entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro (que aditou uma al. e), ao n.º 4, do art. 4.º, do ETAF), os tribunais administrativos e fiscais não têm competência para as acções que se destinem a apreciar litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais - como sejam o fornecimento de água e a prestação de serviços de saneamento -, incluindo a respectiva cobrança coerciva.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. Águas ..., S.A. (aqui Recorrente), com sede na Rua …, …, em ..., propôs um procedimento de injunção, contra R. F. (aqui Recorrido), residente na Avenida …, em Delães, pedindo que:

· o Requerido fosse notificado para lhe pagar a quantia de € 317,00 (sendo € 157,31 a título de capital, € 5,92 a título de juros de mora vencidos - calculados à taxa de € 8,00% ao ano, contados desde 08 de Março de 2019 até 14 de Novembro de 2019, data de instauração do procedimento de injunção -, e € 85,00 a título de despesas administrativas tidas com a instauração dos autos), acrescida e juros de mora vincendos, calculados à taxa de 8,00% ao ano, contados desde 15 de Novembro de 2019 até integral pagamento.

Alegou para o efeito, e em síntese, que, tendo celebrado, em 11 de Fevereiro de 2014, com o Requerido (R. F.), o contrato de fornecimento de água e saneamento n.º ………36, lhe forneceu efectivamente tais bem e serviço.
Mais alegou que o mesmo não lhe pagou o respectivo preço, encontrando-se por isso em dívida cinco facturas, vencidas de 08 de Março de 2019 a 19 de Julho de 2019, cujos montantes parcelares discriminou.

1.1.2. Pessoalmente notificado, o Requerido (R. F.) deduziu oposição, pedindo que se reconhecesse o infundado da pretensão da Requerente (Águas ..., S.A.).
Alegou para o efeito, em síntese, encontrarem-se prescritos todos os créditos alegados por ela, uma vez que já teriam decorrido seis meses sobre cada um dos fornecimentos de água feitos.

1.1.3. Convertidos os autos em acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, veio a Autora (Águas ..., S.A.) responder à excepção de prescrição deduzida, pedindo que a mesma fosse considerada improcedente relativamente à última factura por si reclamada.
Alegou para o efeito, em síntese, que não obstante ter efectivamente ocorrido a prescrição dos demais créditos invocadas, outro tanto não sucederia quanto à factura emitida em 28 de Junho de 2019 (pertinente ao período de facturação de 12 de Maio a 26 de Junho de 2019), vencida a 19 de Julho de 2019, já que os autos de injunção teriam sido intentados antes de terem decorrido seis meses sobre a prestação do serviço.

1.1.4. Foi proferido despacho, convidando as partes a pronunciarem-se sobre a eventual incompetência absoluta do Tribunal a quo, em razão da matéria, para o conhecimento da causa, por aquela poder pertencer aos tribunais tributários, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
- CONTRADITÓRIO -
Antevendo-se a hipótese do presente Tribunal ser absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecimento da causa, nos termos dos artigos 1.º, n.ºs 1, 4.º, al. o), do ETAF, visto competir aos tribunais tributários o conhecimento de ação em que uma empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água pretende cobrar uns consumos de água e tarifas de disponibilidade por estarem em causa tarifas, taxas ou encargos resultantes de exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, relação jurídica que é regulada por normas de direito público tributário, concede-se às partes o prazo de 10 (dez) dias para, querendo, se pronunciarem acerca da questão (…)».

1.1.5. Apenas a Autora se pronunciou, pedindo que se considerasse o Tribunal a quo materialmente competente para conhecer do pedido, nele prosseguindo os autos os seus trâmites normais.
Alegou para o efeito, em síntese, que tendo ela própria natureza de empresa privada (com capital 100% privado), e não obstante ser concessionária de um serviço público, a competência material para conhecer da obrigação pecuniária decorrente de contratos que celebrasse com utentes (para prestação de serviços públicos essenciais) seria do Tribunal comum.
Ter-se-ia, assim, que distinguir o contrato de concessão de exploração e gestão de serviços públicos municipais de água e saneamento, celebrado por ela própria e o Município de ..., e o contrato que esteve na origem da facturação, celebrado entre ela própria e o Réu (contrato de consumo, na modalidade de prestação de serviços, de natureza privada).

1.1.6. Foi proferido despacho, julgando verificada a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal a quo, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Pelo exposto, julgo verificada a exceção dilatória de incompetência material e, declarando o presente tribunal incompetente, em razão da matéria, para a apreciação da presente ação, absolvo o réu da instância.

*
Custas pela autora (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC), fixando-se à ação o valor de 248,23 € (art.º 297.º, n.º 1 e 306.º, n.º 2, do CPC).
*
Registe e notifique, advertindo-se as partes para o artigo 99.º, nº 2, do CPC.
(…)»
*
1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos

Inconformada com esta decisão, a Autora (Águas ..., S.A.) interpôs recurso de apelação, pedindo que fosse revogada a decisão recorrida, e se considerasse o Tribunal a quo materialmente competente para julgar os autos.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):

A) O presente recurso versa questões de direito, na medida em que as normas que servem de fundamento jurídico à douta Sentença Judicial, proferida pelo digníssimo Tribunal “a quo”, deveriam ter sido interpretadas e aplicadas de forma distinta – designadamente aferir a competência material dos tribunais.

B) A Autora celebrou em 31 de outubro de 2001, com a Câmara Municipal de ..., um Contrato de Concessão de Exploração e Gestão dos Serviços Públicos Municipais de Água e Saneamento de ....

C) De acordo com o referido Contrato de Concessão e com as disposições legais previstas no Decreto-Lei n.º 379/93, de 5 de novembro, a Autora obrigou-se a explorar e gerir os sistemas municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes.

D) Pelo que estamos perante a prestação de um serviço público essencial, prestado em regime de concessão por uma empresa privada, de capitais 100% privados.

E) Decorre do disposto nos art.º e 85.º, 93.º e 94.º do Regulamento de Distribuição de Água e Drenagem de Águas Residuais no Município de ..., n.º 792/2016 de 10 de agosto, os serviços prestados estão sujeitos aos pagamentos que constam do Tarifário/Preçário, o qual constitui o anexo I ao referido Regulamento, sendo de aplicação geral e obrigatória no Município de ....

F) O disposto na Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei n.º 42/98, de 6 de agosto, atualmente revogada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, os Municípios têm a faculdade de exigir aos seus utentes o pagamento de preços pelos serviços que presta.

G) Estabelecendo o art.º 13.º, n.º 2, do referido Decreto-Lei n.º 379/93, de 5 de novembro, que a Concessionária, precedendo aprovação pelo Concedente, “tem direito a fixar, liquidar e cobrar uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime de utilização e está autorizada a recorrer ao regime legal de expropriação…

H) A Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro (Lei da Água) também impõe, no art.º 82.º, que no regime das tarifas a aplicar esteja assegurada a recuperação do investimento inicial e de eventuais novos investimentos de expansão, modernização e substituição, visando ainda uma adequada remuneração dos capitais próprios da Concessionária, nos termos do respetivo Contrato de Concessão, e o cumprimento dos critérios definidos na Lei e nas orientações do Instituto Regulador.

I) O contrato celebrado entre a concessionária e o cliente consiste num contrato de prestação de serviços e concretamente de consumo, conforme se afere da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (que postula a defesa dos consumidores).

J) Ora a cobrança coerciva dos “preços” dos serviços prestados pela Concessionária aos clientes que o solicitarem (não se tratando de preços decorrentes de obrigações legalmente impostas, tal como sucede nas tarifas decorrentes das obrigatoriedades de ligação dos prédios abrangidos pelas redes públicas de água e saneamento!), que se consubstanciam em tarifas fixas (tarifas de disponibilidade) e variáveis, é da incumbência junto dos Tribunais Comuns, conforme tem sido prática e atualmente consagrado no nosso ordenamento jurídico, de acordo com o disposto no Art.º 4.º, n.º 4, al. e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, introduzida pela Lei n.º 114/2019 de 12 de setembro, em que se encontra expressamente excluída da competência dos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal.
Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de outubro de 2020 (proc. N.º 40700/19).
*
1.2.2. Contra-alegações

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, uma única questão encontra-se submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· Questão Única - É o Tribunal a quo materialmente incompetente para conhecer da matéria dos autos (cobrança da contrapartida pecuniária do fornecimento de água e de taxas de disponibilidade) ou, pelo contrário, assiste-lhe essa competência (devendo, por isso, apreciar o respectivo mérito) ?
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Organização dos tribunais em função da matéria
4.1.1. Princípio de especialização

Lê-se no art. 209.º, n.º 1, da CRP, que, para além «do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) o Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) o Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais».
Mais se lê, no n.º 2 do mesmo preceito, que podem «existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz».
Lê-se ainda, no art. 37.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (1) (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) que, na «ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território».
Assim, no plano interno, o poder jurisdicional divide-se por diversas ordens e categorias de tribunais - que se situam no mesmo plano horizontal -, de acordo com a natureza da matéria das causas.
A competência de um tribunal será então, em sentido abstracto ou quantitativo, a medida da sua jurisdição, ou seja, a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída, (a determinação das causas que lhe cabem); e será, em sentido concreto ou qualitativo, a susceptibilidade de exercício, pelo tribunal, da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 1976, págs. 88 e 89).
Implicitamente, aceita-se que subjacente à competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão, complexidade e especificidade das normas que os integram (conforme Manuel de Andrade, ibidem (2)). Logo, a distribuição de competência por vários tribunais especializados, assenta no pressuposto da maior idoneidade de cada um deles para a apreciação da matérias que lhe está atribuída, de forma a que as causas sejam julgadas por magistrados com a preparação específica adequada (Alberto dos Reis, Comentário ao Processo Civil, Coimbra Editora, Volume I, pág. 107). Trata-se, pois, da habilitação funcional do tribunal relativamente a certa matéria.
*
4.1.2. Forma de determinação (da competência em razão da matéria)

A competência material, consubstanciando um pressuposto processual, atende à matéria da causa, ou seja, ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial pleiteada.
Logo, «afere-se pelo pedido do autor, sendo uma questão a resolver, unicamente, de acordo com os termos da sua pretensão, compreendidos, aí, os respectivos fundamentos», isto é, a respectiva causa de pedir (Professor Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, Coimbra Editora, pág. 111 (3)).
Por outras palavras, «o pressuposto processual da competência material, fixado com referência à data da propositura da acção, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objectiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjectiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor» (Ac. do STJ, de 22.10.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 678/11.0TBABT.E1.S1, com bold apócrifo).
Compreende-se, por isso, a consagração do princípio do perpetuatio fori, lendo-se no art. 38.º, n.º 1, da LOSJ, que a «competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei».
*
4.1.3. Competência dos tribunais administrativos

Lê-se no art. 212.º, n.º 3, da CRP, que compete «aos tribunais administrativos (…) o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas».
Reiterando-o, lê-se: no art. 144.º, n.º 1, da LOSJ, que «aos Tribunais administrativos (…) compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas»; e no art. 1.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (4) (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, posterior e sucessivamente alterada), lia-se inicialmente que estes «são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Logo, e desde a redacção inicial do art. 1.º, do ETAF, a delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de se fazer com base na distinção tradicional entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, baseando-se então essencialmente num critério material, assente na natureza das relações jurídicas em causa e não na dos respectivos titulares (5).
A mesma ideia é reafirmada no art. 4.º, n.º 1, do ETAF (que procede a uma enumeração, não taxativa, de litígios cometidos à jurisdição administrativa), onde nomeadamente se lê que compete «aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas»: à tutela «de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais» (al. a)); às relações «jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores» (al. o)).
Compreende-se, por isso, que se afirme que o «conceito de relação jurídica administrativa erigido pela CRP (também com expressão no artº 1º/1 do ETAF) deve ser entendido como o elemento chave de distinção na repartição de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos, sendo que, na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de relação jurídica administrativa, deve entender-se que tem o sentido tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a relação jurídica pública, em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» (Ac. do TCAN, de 30.05.2018, Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão, Processo n.º 00298/17.5BEPNF, com bold apócrifo) (6).
Há ainda quem enfatize que a relação jurídica administrativa será «aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração» (Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Volume III, págs. 439-440).
«Assim, no fundo, há que averiguar se a invocada relação jurídica é uma relação de direito privado ou de direito público, pois é essa averiguação que irá determinar qual o tribunal competente para o julgamento da causa».
Ora, um dos critérios mais utilizados nesta distinção (entre o direito privado e o direito público) é o designado por «teoria dos sujeitos», de Carlos Alberto da Mota Pinto, «nos termos do qual, o direito privado regula as relações jurídicas estabelecidas entre particulares ou entre particulares e o Estado ou outros entes público, mas intervindo estes despidos de «imperium» ou poder soberano. Se a relação jurídica disciplinada pela norma não se apresenta com estas características, estamos perante uma norma de direito público, onde, pelo menos um dos sujeitos da relação disciplinada é um ente titular de autoridade e que intervém nessa veste, sendo, pois, detentor do poder de emitir comandos que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade dos destinatários» (Ac. da RL, de 20.01.2015, Pimentel Marcos, Processo n.º 375014/09.5YIPRT).
Logo, integrará necessariamente uma relação administrativa a actuação de uma autarquia local, desenvolvida na prossecução dos fins públicos que lhe estão cometidos, ao abrigo de disposições de Direito Administrativo; e tal juízo mantém-se independentemente de a mesma actuação interpretar e aplicar correctamente, ou não, o Direito a que está sujeita (sendo essa sindicância questão posterior à determinação da respectiva sede de apreciação) (7).

Reconhecendo, porém, que nem sempre seria fácil a aplicação deste critério, o art. 4.º, do ETAF, discriminou desde logo, nas quinze alíneas do seu n.º 1, e no seu n.º 2, questões que, expressamente, deveriam ser apreciadas pela jurisdição administrativa e fiscal; e discriminou, nas três alíneas do seu n.º 3 e nas quatro iniciais alíneas do seu número 4, actos, decisões, acções e litígios que, expressamente, dela estariam excluídos.
Lê-se, assim, no art. 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, que compete «aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas» à «interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes».

Contudo, e mais recentemente, com a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, que procedeu à décima segunda alteração do ETAF (8), procurou-se uma maior clarificação das situações potencialmente abrangidas, e excluídas, da jurisdição administrativa e fiscal.
Assim, aditou-se ao art. 1.º, n.º 1, do ETAF, a expressão final «nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto» (lendo-se assim, e agora, nos mesmos artigo e número que os «tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto»); e aditou-se uma nova alínea, e), ao seu art. 4.º, n.º 4, lendo-se em conformidade que estão «excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal» a «apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva».
Dir-se-á, a propósito, que na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII (que esteve na origem da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro) se explica que foi a «necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade», que «determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo» (9).

Por fim, lê-se no art. 5.º, n.º 1, do ETAF, que a «competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente».
*
4.1.4. Competência dos tribunais judiciais

Lê-se no art. 211.º, n.º 1, da CRP, que os «tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».
Reiterando-o, lê-se: no art. 64.º, do CPC, que são «da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional»; e no art. 40.º, n.º 1, da LOSJ, que «os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
Logo, os tribunais judiciais têm uma competência em razão da matéria residual, isto é, cabe-lhes julgar as causas que não sejam atribuídas a outros tribunais (por isso também se dizendo tribunais comuns) (10).
Mais se lê, no art. 40.º, n.º 2, da LOSJ, que «a competência, em razão da matéria, entre tribunais judiciais de primeira instância» é repartida entre as «juízos de competência especializada dos tribunais de comarca» ou os «tribunais de competência territorial alargada» (v.g. tribunal da propriedade intelectual, tribunal de concorrência, regulação e supervisão, tribunal marítimo, tribunal de execução de penas, tribunal central de instrução criminal, juízos cíveis, juízos criminais, juízos de instrução criminal, juízos de família e menores, juízos do trabalho, juízos do comércio e juízos de execução); e, quando a matéria da causa não se integrar em qualquer um daqueles tribunais de competência territorial alargada ou especializados, aquela será da competência dos juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica, que assumem uma competência residual (conforme art. 130.º, n.º 1, al. a), da LOSJ).

Por fim, recorda-se que se lê no art. 38.º, n.º 1, da LOSJ, que a «competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei».
*
4.1.5. Contrato de fornecimento de água e de tratamento de águas residuais (vulgo, saneamento)

É apodíctico que o fornecimento de água à população e o respectivo saneamento constituem matéria de indiscutível interesse público.

Reconhecendo-o, o legislador começou por vedar a «empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza o acesso» as actividades de «captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, através de redes fixas» e de «saneamento básico» (art. 4.º, als. c) e d), da Lei n.º 46/77, de 8 de Julho - lei de delimitação de sectores -, com bold apócrifo).
Posteriormente, em 1993, veio admitir que tais actividades pudessem contar com a participação de capitais privados, eventualmente em regime de concessão, mas ainda assim em sociedades dominadas por capitais públicos (através do Decreto-Lei n.º 372/93, de 29 de Outubro, que alterou a Lei n.º 46/77, de 8 de Julho).
Por fim, em 1997, admitiu a captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de efluentes, em ambos os casos através de redes fixas, por entidades privadas, mas apenas em regime de concessão (através da Lei n.º 88-A/97, de 25 de Julho, que regulou o acesso da iniciativa económica privada a determinadas actividades económicas).

Ora, quer nos termos da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro (que estabelece o quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais), quer nos termos da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro (que estabelece o regime jurídico das autarquias locais), que lhe sucedeu, cabe exclusivamente aos Municípios assegurar a provisão de serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos (sem prejuízo da possibilidade de criação de sistemas multimunicipais, de titularidade estatal).
Têm, porém, a faculdade de exigir dos seus utentes o pagamento de contrapartidas pelos serviços que prestam (conforme Lei das Finanças Locais, inicialmente Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto, e actualmente Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro), já que só desse modo - repercutindo sobre o consumidor os respectivos custos - se assegura a sustentabilidade da exploração dos sistemas, dado os vultuosos investimentos e custos de manutenção, respectivos.
Contudo, o fornecimento público de água e a prestação de serviços de saneamento poderão ser feitos pelos Municípios segundo múltiplos modelos: de forma directa (através das suas próprias unidades orgânicas, isto é, de serviços municipais ou municipalizados); por meio de empresarialização dos sistemas municipais prestadores desses serviços; pela exploração através de associações de utentes; ou pela entrega da gestão ao sector privado (através de concessão).

O principal diploma que rege esta matéria é o Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto (regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos), que visa: definir «um regime comum, uniforme e harmonizado aplicável a todos os serviços municipais, independentemente do modelo de gestão adoptado, sendo igualmente densificadas as normas específicas a cada modelo de gestão»; «assegurar uma correcta protecção e informação do utilizador destes serviços, evitando possíveis abusos decorrentes dos direitos de exclusivo, por um lado, no que se refere à garantia e ao controlo da qualidade dos serviços públicos prestados e, por outro, no que respeita à supervisão e controlo dos preços praticados, que se revela essencial por se estar perante situações de monopólio»; «assegurar, quando aplicável, condições de igualdade e transparência no acesso à actividade e no respectivo exercício, bem como nas relações contratuais»; e articular o regime nele consagrado com «o Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, que fornece um regime geral para a contratação pública e para a disciplina substantiva dos contratos administrativos, e o regime jurídico do sector empresarial local, aprovado pelo Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro, que define o quadro aplicável à constituição e funcionamento das empresas municipais, intermunicipais e metropolitanas», seja concretizando alguns aspectos desses regimes, seja introduzindo especificidades noutros (preâmbulo respectivo).
Reconhecendo-se que «a exploração e gestão dos sistemas municipais, tal como referidas no n.º 1 do artigo anterior, consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, estando sujeitas a obrigações específicas de serviço público» (art. 3.º, do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto), estabelece-se um regime próprio de orientação e fiscalização por parte da autoridade pública (a quem cabe, precisamente, prosseguir o dito interesse geral); e o mesmo é norteado por normas imperativas, de direito público.
Enunciam-se, assim, os poderes, deveres e direitos da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, das entidades titulares dos serviços, das entidades gestoras dos serviços e dos utilizadores dos serviços, a que se segue um corpo de normas contra-ordenacionais (arts. 72.º e 73.º), visando o cumprimento das regras antecedentes.
Particularizando (o regime do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto): a definição dos preços dos serviços (onde se incluem tarifas fixas - de disponibilidade -, e tarifas variáveis - em função da quantidade dos consumos) não depende do livre jogo das regras do mercado, sendo antes rigidamente fixados, com base no disposto nos regulamentos tarifários, controlados pela Entidade Reguladora (arts. 11.º-A e 11.º-B), ou assentam, conforme os casos, nos valores base fixados nos contratos de gestão delegada (arts. 23.º e 24.º) ou de concessão (arts. 40.º, 43.º, 45.º); os níveis mínimos de qualidade dos serviços a serem percepcionados pelos utilizadores são definidos por regulamento emitido pela entidade reguladora, a qual também fixa as compensações que forem devidas em caso de incumprimento (art. 12.º); as regras de prestação do serviço aos utilizadores constam do regulamento de serviço, aprovado pela entidade titular, o qual deverá conter, no mínimo, os elementos constantes de portaria a aprovar pelo membro do Governo responsável pela área do ambiente (art. 62.º, n.º 1) (11); é definido o conteúdo dos contratos de fornecimento e de recolha (art. 63.º); prevê-se a existência e o regime dos instrumentos de medição (art. 66.º) e o regime atinente às medições e à facturação (art. 67.º); e regulam-se ainda as reclamações dos utilizadores (art. 68.º), a ligação dos imóveis edificados aos sistemas de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais (art. 69.º), a inspecção aos sistemas prediais (art. 70.º), e os deveres destinados a salvaguardar a integridade dos sistemas prediais e públicos (art. 71.º).
Logo, quando o Município, entidade concedente dos serviços concessionados, transfira para uma concessionária (por necessário concurso público internacional) a titularidade do direito à gestão e exploração do sistema público de fornecimento de água e de prestação de serviços de saneamento, sujeita-a aos seus poderes de tutela e superintendência; e aqui destaca-se em especial o seu poder de aprovar o Regulamento daqueles serviços, bem como os respectivos Tarifários ou Preçários (que contemplam componentes fixas e variáveis), que resultam dos modelos económico-financeiros globais anexos aos contratos de concessão e dele fazem parte integrante (12).
A concomitante transferência, para a concessionária, do direito de arrecadar as receitas provenientes dessas actividades (13) fica assim fortemente limitada no seu conteúdo, já que terá de aplicar rigidamente o tarifário pré-definido, podendo apenas proceder às actualizações previstas no contrato de concessão.
Está-se perante uma delegação de poderes, que é limitada pelo alcance dos poderes de superintendência e controlo do delegante, que continua «dono do serviço» (conforme Diogo Freitas do Amaral, no seu Curso de Direito Administrativo, Almedina).
*
Foi precisamente enfatizando a natureza colectiva do bem fornecimento de água para consumo público em rede fixa e da prestação do serviço de saneamento, e o consequente interesse público da regulação da sua exploração (traduzido na imperativa regulamentação referida, com a inegável natureza de direito público-administrativo), que, tradicional e maioritariamente, a jurisprudência foi considerando ser a jurisdição administrativa (em detrimento da jurisdição dos tribunais judiciais) a competente para conhecer de causas atinentes à cobrança de dívidas dos utilizadores, por entidades exploradoras desse serviço público (reconhecendo, precisamente, a forte condicionante pública nos contratos celebrados com utentes/consumidores).
Atendia essencialmente, para o efeito, «ao critério formal da fonte da obrigação, que é a lei, ao regime económico, que é de monopólio, à indispensabilidade do serviço e à sua natureza comutativa», e a ter «a tarifa ou preço do serviço de abastecimento de água/saneamento (…) natureza de taxa, constituindo receita tributária», à semelhança de todas aquelas «que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objetivamente conexas» (Ac. do TCAN, de 28.06.2013, Carlos Luís Medeiros de Carvalho, Processo n.º 02708/11.6BEPRT) (14).

Contudo, outra jurisprudência (se bem que minoritária) não deixou de afirmar que (não obstante as limitações impostas pelo direito público-administrativo já referido), o contrato celebrado entre o fornecedor do bem água e prestador do serviço saneamento (nomeadamente, quando fosse uma empresa concessionária) e o utente/consumidor dos mesmos seria um contrato de consumo de serviço público essencial (art. 1.º, n.º 2, al. a), da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, que estabelece o regime legal dos serviços públicos) (15), de natureza privada (conforme resultaria da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores); e, por isso, os conflitos resultantes do seu incumprimento e respectiva cobrança coerciva (inicialmente através de injunção e, subsequentemente, com carácter judicial) caberiam à jurisdição dos tribunais comuns.
Ponderava nomeadamente, para o efeito, que o «contrato de fornecimento de água ao domicílio que liga o prestador do serviço e o consumidor/utilizador final não é atingido por uma regulação de direito público»; e, por isso, a «execução coerciva de dívida por incumprimento dos contratos de fornecimento em causa seguem regimes diferentes consoante a natureza pública ou privada do fornecedor do serviço (concessionado), uma vez que, em relação a estes últimos, no caso de incumprimento do utente, a nota de cobrança emitida estando desprovida de força executiva, não constitui um título, nos termos e para o efeito do processo de execução fiscal» (Ac. do Tribunal de Conflitos, de 21.01.2014, Fernanda Maçãs, Processo n.º 044/2013) (16).
*
4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, verifica-se que a Autora (Águas ..., S.A.), empresa privada, celebrou, em 31 de Outubro de 2001, com a Câmara Municipal de ..., um «Contrato de Concessão de Exploração e Gestão dos Serviços Públicos Municipais de Água e Saneamento de ...» (conforme documento n.º 1, junto com a petição inicial, e que aqui se dá por integralmente reproduzido).
Mercê do mesmo (e do previsto no Decreto-Lei n.º 379/93, de 5 de Novembro), a Autora obrigou-se a explorar e a gerir os sistemas municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, e de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, isto é, a prestar um serviço público essencial, em regime de concessão.
Mais se verifica que, como contrapartida do cumprimento da sua obrigação, face ao utente com quem haja celebrado um contrato de consumo de tais bem e serviços essenciais, tem a Autora direito a cobrar uma quantia pecuniária pela água fornecida/disponibilizada e pelo serviço de saneamento prestado (conforme arts. 85.º, 93.º e 94.º, do Regulamento de Distribuição de Água e Drenagem de Águas Residuais no Município de ..., n.º 792/2016 de 10 de Agosto). A dita contrapartida pecuniária é a que corresponde ao Tarifário/Preçário que constitui o Anexo I ao referido Regulamento, sendo de aplicação geral e obrigatória no Município de ..., conforme art. 3.º do mesmo Regulamento.
Por fim, verifica-se que, tendo a Autora celebrado com o Réu (R. F.) um contrato de fornecimento de tais bens e serviços, veio reclamar em juízo do mesmo, em 14 de Novembro de 2019, o pagamento da respectiva contrapartida, quer pertinente à quantidade efectivamente fornecida e prestada, quer pertinente às meras e respectivas tarifas de disponibilidade.

Ora, e independentemente da posição que se pudesse assumir sobre a natureza das relações constituídas entre a concessionária e o utente do serviço público de fornecimento de água e saneamento, nomeadamente sobre a natureza do respectivo contrato, é hoje claro que se encontram excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os litígios relativos à cobrança coerciva de tarifas de disponibilidade por serviços de abastecimento água e de recolha diária de resíduos, ou por água efectivamente fornecida e recolha diária efectivamente prestada (conforme art. 4.º, n.º 4, al. e), do ETAF).
Tendo tal norma entrado em vigor no dia 12 de Novembro de 2019, abrange no seu âmbito os presentes autos, que, por isso, estão obrigatoriamente cometidos à jurisdição dos tribunais comuns (17).
*
Importa, pois, decidir em conformidade, pela procedência do recurso de apelação interposto pela Autora (Águas ..., S.A.).
*
V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedentes o recurso de apelação interposto por Águas ..., S.A., e, em consequência, em:

· Revogar a decisão recorrida, declarando o Tribunal a quo materialmente competente para apreciar e decidir os autos e ordenando a sua devolução ao mesmo (para que tramite os seus ulteriores e normais termos).
*
Custas conforme vier a ser decidido a final (art. 527.º, n.º 1, do CPC).
*
Guimarães, 01 de Julho de 2021.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;

1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;

2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.



1. Doravante, no texto, LOSJ.
2. No mesmo sentido, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Almedina, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 207; e Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 95.
3. No mesmo sentido, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 1979, págs. 91-95, onde afirma que a competência se afere pelo «quid disputatum» - «quid decidendum», em antítese com o que será mais tarde o «quid decisum». Ainda Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 104. Numa jurisprudência uniforme, Ac. do STJ, de 19.10.2004, Neves Ribeiro, Processo n.º 04B3001, ou Ac. da RP, de 31.03.2011, Amaral Ferreira, Processo n.º 147/09.8TBVPA.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem.
4. Doravante, no texto, ETAF.
5. Neste sentido, Ac. do STJ, de 31.12.2006, Nuno Cameira, Processo n.º 06A2917.
6. No mesmo sentido, Ac. do TC, de 17.05.2018, José Raínho, Processo n.º 02/18, onde se lê que «o critério material que enforma a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa reporta-se ao conceito de relação jurídica administrativa enunciado no mencionado art.º 212.°, n.º 3, da CRP, isto é, ao conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público. (O conceito de relação jurídica administrativa consta, também, da aI. o) do n.º 1 do art.º 4.°, que se assume como uma norma residual, que abrange os litígios jurídico-administrativos não enunciados no mesmo n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.)».
7. De forma conforme, Ac. do Tribunal de Conflitos, de 08.12.2010, Processo nº 020/10, onde se lê que, sendo «o conceito de relação jurídica administrativa (…) decisivo para determinar a competência entre os Tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais», «importará analisar em que termos foi desenhada a causa de pedir e qual foi o pedido formulado, pois será essa análise que indicará se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa», sendo «certo que para esse efeito é irrelevante o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão, por se tratar de questão atinente ao seu mérito».
8. Conforme decorre do art. 6.º da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, a mesma entrou em vigor em 12 de Novembro de 2019 (isto é, 60 dias após a sua publicação).
9. Um dos conflitos de jurisdição que indiscutivelmente foi conhecido e considerado pela Lei n.º 114/19, de 12 de Setembro, foi o pertinente à determinação da competência em razão da matéria para julgar litígios pertinentes à cobrança das contrapartidas devidas pelo fornecimento de água e pela prestação do serviço de saneamento (dividindo-se a jurisprudência entre a sua atribuição à jurisdição administrativa e fiscal - de forma maioritária -, ou à jurisdição dos tribunais comuns - de forma francamente minoritária).
10. Neste sentido, Ac. da RL, de 19.11.2020, Jorge Leal, Processo n.º 52139/19.2YIPRT.L, onde se lê que a «competência material dos Tribunais Judiciais é determinada, não só pelo critério da atribuição positiva, mas também pelo critério de competência residual, isto é, também lhe cabe apreciar todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
11. Esta portaria é actualmente a Portaria n.º 34/2011, de 13 de Janeiro, do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território
12. Dir-se-á, porém, que a fixação das taxas, tarifas e/ou preços deve assegurar o equilíbrio económico-financeiro das entidades gestoras (arts. 3.º, n.º 2, e 292.º, n.º 2, do Decreto Regulamentar n.º 23/95 de 23 de Agosto); e assegurar, no período da concessão, a amortização do investimento a cargo da concessionária (art. 15.º, do Decreto-Lei n.º 379/93, de 5 de Novembro, art. 5.º do Decreto-Lei n.º 147/95, de 21 de Junho, e art. 16.º da Lei das Finanças Locais). A Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro (Lei da Água) também impõe, no seu art. 82.º, que no regime das tarifas a aplicar esteja assegurada a recuperação do investimento inicial e de eventuais novos investimentos de expansão, modernização e substituição, visando ainda uma adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária, nos termos do respectivo contrato de concessão, e o cumprimento dos critérios definidos na Lei e nas orientações do Instituto Regulador.
13. Lê-se no art. 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 379/93, de 5 de Novembro (que permite o acesso de capitais privados às actividades económicas de captação, tratamento e rejeição de efluentes e recolha e tratamento de resíduos sólidos), que a «concessionária, precedendo aprovação pelo concedente, tem direito a fixar, liquidar e cobrar uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime de utilização».
14. No mesmo sentido (sem preocupação de exaustividade): Ac. do Tribunal dos Conflitos, de 26.09.2006, João Belchior, Processo n.º 014/06; Ac. do Tribunal de Conflitos, de 09.11.2010, Alberto Augusto Oliveira, Processo n.º 017/10 (estando precisamente em causa «o reconhecimento da inadmissibilidade da cobrança de consumos mínimos, denominados como tarifa de disponibilidade, por parte de empresa concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e de saneamento»); Ac. do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, de 10.04.2013, Valente Torrão, Processo n.° 015/12; Ac. do Tribunal de Conflitos, de 25.06.2013, Rosendo José, Processo n.º 033/13; Ac. do Tribunal dos Conflitos, de 26.09.2013, Gonçalves Rocha, Processo n.º 30/13; Ac. do Tribunal de Conflitos, de 05.11.2013, Rui Botelho, Processo n.º 039/13; Ac. do Tribunal de Conflitos, de 18.12.2013, Paulo Sá, Processo n.º 038/13; Ac. do Tribunal de Conflitos, de 18.12.2013, Santos Cabral, Processo n.º 053/13; Ac. do Tribunal de Conflitos, de 29.01.2014, Costa Reis, Processo n.º 045/13; Ac. do Tribunal de Conflitos, de 19.06.2014, Alberto Augusto Oliveira, Processo n.º 022/14; Ac. do Tribunal de Conflitos, de 13.11.2014, Fernando Bento, Processo n.º 043/14; Ac. do Tribunal de Conflitos, de 29.01.2015, Távora Víctor, Processo n.º 026/14; Ac. do Tribunal de Conflitos, de 19.01.2017, Nuno Gomes da Silva, Processo n.º 014/16 (onde se enuncia longamente a anterior jurisprudência conforme); e Ac. do Tribunal de Conflitos, de 07.11.2019, Maria do Ceú Neves, Processo n.º 21/19. Na doutrina, defendendo a natureza pública do contrato em causa, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2011, Almedina, pág. 164.
15. Não definindo a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, o que seja o «serviço público essencial» (limitando-se a apresentar o seu elenco taxativo, no seu art. 1.º, n.º 2), considera-se que a «essencialidade» se deve ao seu carácter básico, fundamental e indispensável no quotidiano dos cidadãos, visível através da existência de uma prestação duradoura de execução continuada a cargo do prestador de serviços e de prestações periódicas renováveis sucessivamente a cargo do utente. Neste sentido, Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2014, Almedina, pág. 256, e Os Contratos de Consumo – Reflexão Sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, 2012, Almedina, pág. 330.
16. No mesmo sentido (sem preocupação de exaustividade): Ac. da RP, de 04.05.2015, Carlos Querido, Processo n.º 302768/11.0YIPRT.P1, onde se lê que o «conceito de “relação jurídica administrativa” a que se referem o n.º 3 do artigo 212.º da CRP e o artigo 1.º do ETAF, não se basta com o facto de a Administração ser um dos sujeitos, sendo necessário que o litígio em causa seja regulado por normas de direito administrativo», o que não sucede com o «contrato (de consumo) através do qual uma entidade (pública ou privada) se obriga perante um utente na prestação do serviço (público) de fornecimento de água», que se rege «por normas substantivas de direito privado»; Ac. da RL, de 10.10.2019, Ana de Azeredo Coelho, Processo n.º 124980/18.4YIPRT.L1 (proferido pouco tempo antes da entrada em vigor da alteração introduzida ao art. 4, n.º 4, do ETAF - aditamento da nova al. e) -, pela Lei n.º 114/19, de 12 de Setembro), onde se lê que «a relação contratual estabelecida entre uma concessionária de serviço de fornecimento de água e drenagem de águas residuais e uma entidade privada não tem a natureza de contrato administrativo, não está sujeita às regras da contratação pública, nem tem por objeto questões relativas a relações jurídicas administrativas e fiscais, pelo que não se enquadra na previsão doa artigo 4.º do ETAF, na redação do DL 214-G/2015, estando sujeita à jurisdição dos tribunais comuns»; Ac. da RL, de 08.10.2020, Teresa Sandiães, Processo n.º 40700/19.0YIPRT.L1-8 e Ac. da RC, de 19.10.2020, Emídio Santos, Processo n.º 12679/19.5YIPRT.C1 (ambos já proferidos depois da entrada em vigor da Lei n.º 114/19, de 12 de Setembro). Dir-se-á ainda que o Guia Técnico n.º 20, da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (in http://www.ersar.pt/pt/site-consumidor/site-reclamacoes/Documents/Guia_Tecnico_20.pdf), refere igualmente que, verificado o incumprimento do cliente, a nota de cobrança emitida pela concessionária encontra-se desprovida de força executiva (contrariamente ao que expectavelmente sucederia, caso tivesse natureza fiscal ou tributária, em que daria lugar à instauração de um imediato processo de execução fiscal), sendo o processo de injunção o meio correcto para o efeito. Na doutrina, defendendo a natureza privada do contrato em causa, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, 2012, Almedina, pág. 333; Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2014, Almedina, pág. 256, e Os Contratos de Consumo – Reflexão Sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, 2012, Almedina, pág. 329; Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, 2005, Almedina, pág. 36; Joana Neto dos Anjos, Litígios entre as concessionárias do serviço público de abastecimento de água e os consumidores (questão da jurisdição competente), Centro de Estudos de Direito Público e Regulação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Setembro de 2014, pág. 25; ou Pedro Costa Gonçalves, A Concessão de Serviços Públicos, 1999, Almedina, págs. 317-318, onde defende que as relações constituídas entre a concessionária e o utente do serviço público de fornecimento de água e saneamento têm natureza privada, porquanto fundadas num contrato de direito privado, ainda que também regido por normas legais (v.g. Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, aplicável aos serviços públicos essenciais, e Decreto-Lei n.º 207/94, de 6 de Agosto, que aprova o regime de concepção, instalação e exploração dos sistemas públicos e prediais de distribuição de água e drenagem de águas residuais) e regulamentares (constantes de autónomos regulamentos de exploração dos serviços ou das próprias cláusulas do contrato de concessão).
17. Defendendo, porém, que o art. 4.º, nº 4, al. e), do ETAF é ainda aplicável a acções instauradas antes da sua entrada em vigor, Ac. da RL, de 08.10.2020, Teresa Sandiães, Processo n.º 40700/19.0YIPRT.L1-8, onde se lê que tal «norma é aplicável a ação instaurada antes da sua entrada em vigor - como a presente - tendo em conta o disposto no artº 38º, nº 2 da L.O.S.J. (conjugado com os artºs 211, nº 1 e 212º da C.R.P.), sendo um caso de modificação de direito relevante, em que o legislador teve a intenção manifesta de pôr termo a inúmeros conflitos de competência, excluindo da jurisdição administrativa e fiscal a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais e, “concomitantemente, tornar clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.” Já Alberto dos Reis ensinava: “propôs-se uma ação no tribunal comum, incompetente para ela, em razão da matéria, nesse momento; veio uma lei nova sujeitar ao foro comum as ações da natureza daquela de que se trata. Sendo este o estado de direito no momento em que a exceção de incompetência tem de ser julgada, quid juris? A exceção não pode proceder. Veja-se o que sucederia se o tribunal comum fosse julgado incompetente. Absolvido o réu da instância, o autor teria de propor outra ação; e havia de propô-la necessariamente no tribunal comum, pois era esse o tribunal competente segundo a lei em vigor à data da proposição da nova ação. Seria absurdo que se declarasse incompetente o tribunal comum para, a seguir, o autor ter de propor nova ação perante o tribunal comum” (“Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. I, pág.117)». No mesmo sentido, Ac. da RC, de 19.10.2020, Emídio Santos, Processo n.º 12679/19.5YIPRT.C1. Contudo, em sentido contrário, Ac. da RL, de 19.11.2020, Jorge Leal, Processo n.º 52139/19.2YIPRT.L1-2, onde se lê que, até «à entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, de 12.9, que aditou ao n.º 4 do art.º 4.º do ETAF uma alínea e), que determinou a exclusão do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal da “apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”, é da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de uma ação de cobrança de créditos emergentes da contagem de um contador (contador totalitário) instalado no âmbito de um contrato de fornecimento de água para consumo humano através da rede pública».