CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
USO EXCLUSIVO
MÚTUO BANCÁRIO
COMPENSAÇÃO
Sumário

I.–Homologado no processo de divórcio por mútuo consentimento um acordo através do qual o direito ao uso e ocupação da casa morada de família ficou atribuído ao cabeça de casal, obrigando-se este ao pagamento das prestações em dívida ao Banco pelo empréstimo concedido na aquisição e obras sobre o imóvel em causa, haverá que considerar tal acordo de vontades no âmbito da partilha e na consideração de existência ou não de compensação operada nessa altura entre os ex-cônjuges.

II.– A contribuição para os encargos da vida familiar constitui um domínio privilegiado dos acordos entre os cônjuges sobre a orientação da vida em comum, só na ausência de acordo é que vigora plenamente a prescrição da contribuição proporcional.

III.– O pagamento de dívidas com a aquisição da casa de morada de família constitui um encargo relativo à vida familiar, cessando esta optaram os elementos do ex-casal em beneficiar um com a utilização exclusiva de tal habitação, porém, estabeleceram como contrapartida que deixaria de existir a contribuição proporcional do outro, mas sim e apenas a contribuição exclusiva de quem passaria a beneficiar da casa de morada de família.

IV.– Tal pressupõe a renúncia à compensação pelo pagamento de tais encargos, renúncia essa que não se revela excessiva, pois já não tem como subjacente a vida em comum e a eventual contribuição para os encargos da vida familiar de forma desequilibrada, mas sim e apenas a economia do cônjuge recorrente que, ao contrário da recorrida, manteve a sua habitação na casa de morada de família, suprindo tal acordo as suas necessidades com a habitação, ao contrário da recorrida que necessariamente teve de fazer face a tal necessidade por outra via.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–Relatório:


N…, veio intentar contra P…, acção de inventário para partilha de bens do dissolvido casal.

Alegou que Requerente e requerido contraíram casamento, sem convenção antenupcial, sob o regime da comunhão de adquiridos, em 26 de outubro de 1996, tendo fixado o lar conjugal na Rua da …, L..., 9...-6... - Ponta Delgada.

Em 29 de Abril de 2015 foi dissolvido o casamento por decisão proferida pela Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada. Os inventariados são proprietários em comum de bens – e passivo -relativamente aos quais não existe acordo na partilha.

Nomeado o requerido cabeça de casal veio o mesmo apresentar a relação de bens nos seguintes termos:
Activo -Imóvel verba 1:Prédio Urbano, sito na Rua …, freguesia de L..., concelho de Ponta Delgada, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na conservatória do registo predial de Ponta Delgada com o número …, com o valor patrimonial de 27.162,01 €.(doc.1 e 2)
Passivo
Verba Primeira:
Dívida ao Banco Comercial Português, SA, na data de 02/11/2020, no valor total de 68.375,19 €, contraída para aquisição de habitação e garantida por hipoteca sobre o imóvel identificado na verba primeira do activo.
Verba segunda:
Dívida ao Banco Comercial Português, SA, na data de 02/11/2020, no valor total de 25.907,89 €, contraída para obras na habitação e garantida por hipoteca sobre o imóvel identificado na verba primeira do activo.

Mais requereu que:« Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1689.°, n.° 3 do Código Civil, refere o ora cabeça de casal que:
1)-desde o mês de Abril de 2015 até hoje, Novembro de 2020, este assumiu, sozinho, o pagamento das prestações bancárias decorrentes dos dois empréstimos contraídos junto do Banco Comercial Português, SA e identificados nas verbas números 1 e 2 do passivo, por ambas as partes deste processo, para aquisição e reparação do imóvel referido na verba n.° 1 da relação de bens apresentada. O valor total das prestações suportadas, a título individual, pelo cabeça-de-casal foi de 19.307,36 €, pelo que, este possui um crédito sobre a requerente no valor de metade daquela importância, à qual acrescerá ainda mensalmente metade do valor mensal das prestações bancárias até que se proceda à partilha do bem comum, devendo este ser pago pela meação desta no património comum.
2)-entre os meses de Abril de 2015 até hoje, Novembro de 2020, este assumiu, sozinho, o pagamento dos seguros de vida associados aos dois empréstimos contraídos junto do Banco Comercial Português, SA e identificados nas verbas números 1 e 2 do passivo. O valor total dos prémios pagos, a título individual, pelo cabeça-de-casal foi de 2.880,27 €, pelo que, este possui um crédito sobre a requerente no valor de metade daquela importância, à qual acrescerá ainda mensalmente metade do valor mensal dos prémios daqueles seguros até que se proceda à partilha do bem comum, devendo este ser pago pela meação desta no património comum.
3)-entre os meses de Abril de 2015 até hoje, Novembro de 2020, este assumiu, sozinho, o pagamento do seguro Múltiplos Riscos - Habitação associado aos dois empréstimos contraídos junto do Banco Comercial Português, SA e identificados nas verbas números 1 e 2 do passivo. O valor total dos prémios pagos, a título individual, pelo cabeça-de-casal foi de 995,78 €, pelo que, este possui um crédito sobre a requerente no valor de metade daquela importância, à qual acrescerá ainda mensalmente metade do valor desses prémios até que se proceda à partilha do bem comum, devendo esta ser pago pela meação desta no património comum.
4)-Entre os dias 16 a 18 de Maio de 2017, o cabeça de casal assumiu, sozinho, o pagamento duma dívida fiscal da responsabilidade da requerente. O valor total da dívida paga, a título individual, pela cabeça-de-casal foi de 429,41 €, pelo que, este possui um crédito sobre a requerente naquele mesmo valor, devendo este ser pago pela meação desta no património comum. Juntou 249 documentos.

A requerente de forma espontânea veio Reclamar da Relação de Bens e Impugnar os Créditos e as Dívidas, requerendo a alteração do valor da verba nº 1, dizendo que o imóvel pertença comum do casal tem um valor de cerca de 150.000€ valor que resulta do facto de naquele espaço se encontrar edificado um apartamento ainda que não averbado matricialmente. Quanto ao passivo impugna o mesmo, pois refere que existiu um acordo sobre a casa morada de família, datado de 26 de março de 2015, homologado no processo de divórcio por mútuo consentimento, através do qual o direito ao uso e ocupação da casa morada de família ficou atribuído ao cabeça de casal, obrigando-se este ao pagamento das prestações em dívida ao Banco Millennium – BCP, pelo empréstimo concedido na aquisição e obras sobre o imóvel que, à data do divórcio, somava a quantia de 117.000,00 € (cento e dezassete mil euros) acrescido de demais despesas inerentes ao crédito. Conclui assim, quer pela alteração do valor do bem imóvel, bem como a eliminação dos créditos relacionados nas alíneas 1 a 4, inclusive.

Na sequência foi proferido o despacho que na parte relevante, decidiu que:
«A)– Da reclamação contra a relação de bens(…)
b)- Quanto à reclamação contra a relação de dívidas, a improcedência manifesta da reclamação qua tale é algo de ainda mais óbvio, e em primeiro lugar porque nem sequer está prevista na lei, que apenas contempla a possibilidade de reclamação contra a relação de dívidas (art. 1104.º, n.º 1, al. d), do CPC…
Em segundo lugar, e sendo certo que nem em rigor se trata de dívidas do património comum para com terceiros e como tal de algo a partilhar e nessa qualidade relacionáveis, de resto nem como tal tendo sido relacionadas (são isso sim alegados créditos do cabeça-de-casal contra a requerente e como tal foram expressa e explicitamente indicadas em paralelo com a relação, para serem oportunamente tidas em conta na partilha e ao abrigo do art. 1689.º, n.º 3, do CPC), o que em face dessa invocação delas à requerente cabe é outra coisa bem diversa da reclamação: é a possibilidade de reconhecê-las ou não, total ou parcialmente, com o correlativo de que não sendo reconhecidas, ou na parte em que o não forem, o juiz dever apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados; e sendo reconhecidas ou verificadas judicialmente, serão depois tidas em conta na partilha, pelo modo previsto pelo art. 1689.º, n.º 3, do CC; não o sendo, então as partes discuti-las-ão nos meios comuns.
Sublinho que este mecanismo de reconhecimento/verificação dos créditos entre cônjuges resulta de ter de para isso seguir-se o previsto para o reconhecimento/verificação das dívidas do património comum propriamente ditas, uma vez que como antes o novíssimo regime do inventário, constante das normas trazidas ao CPC pelo DL 117/2019, de 13/09, continua a não prever procedimento específico e aquele é o que mais se lhe adequa – mas dessa aplicação do dito regime não decorre transmutação como que alquímica das dívidas de um ex-cônjuge para com o outro em dívidas comuns dos ex-cônjuges para com terceiros, como está bom de ver.
E em todo o caso e enfim, ainda que em sentido próprio de dívidas comuns a partilhar se tratasse, nunca teria lugar um inexistente e desnecessário mecanismo de reclamação contra a relação de dívidas, aqui estando a razão última da improcedência manifesta de também esta reclamação.
4.- Neste contexto, a notificação ainda do cabeça-de-casal para que querendo respondesse às ditas reclamações, não teria outro valor senão o de protelar o andamento do processo, inócua como seria tal faculdade de resposta a uma reclamação necessariamente improcedente. É por isso enfim que sem mais passo a conhecer dessa improcedência, sem prejuízo de adiante e também desde já me pronunciar sobre os alegados créditos do cabeça-de-casal contra a requerente.
5.- A esta luz, e nos termos do art. 1105.º, n.º 3, do CPC, julgo desde já e sem mais improcedente a reclamação da requerente contra a relação de bens e contra a relação de dívidas, que por isso mantenho nos seus precisos termos.
Quanto à avaliação do imóvel pretendida (e caso entretanto não seja prescindida), decidirei antes de agendar conferência de interessados.
Notifique, com cópias deste despacho.
B) Do não reconhecimento/verificação de dívidas entre os ex-cônjuges
1.- Como acima amplamente referi, a mais de muito bem ter como tal relacionado dívidas (duas) do património comum para com terceiro (o mesmo banco), o cabeça-de-casal aproveitou o ensejo para em termos muito claros e insusceptíveis de serem confundidas com outras dívidas comuns, reclamar, contra a requerente e a fim de que oportunamente fossem tidas em consideração na partilha, ao abrigo do art. 1689.º, n.º 3, do CC, quatro dívidas dela para consigo mesmo, das quais três, independentemente das específicas diversidades de origem, todas radicam no mesmo: ter ele só, depois do divórcio e até aqui, assumido para com terceiros (bancos e seguradora) custos que a ambos oneravam e relevantes das prestações e encargos, designadamente seguros, inerentes ao pagamento dos créditos bancários contraídos para aquisição e beneficiação do imóvel que constitui o activo; e quanto à quarta por ter assumido (pago) uma dívida fiscal da responsabilidade da requerente.
2.- Também como acima incidental mas amplamente referi, o mecanismo a empregar para tratar tais questões das dívidas entre ex-cônjuges há-de ser, com as necessárias adaptações, o mesmo previsto para as dívidas comuns, como constante do art. 1106.º, n.º 1 e 3, do CPC, e a esta luz e não havendo lugar a mais articulados (o cabeça-de-casal invocou-as, a requerente não as reconheceu, e é tudo), importa com efeito apreciar.
3.- Começando por aquela última, temos que a requerente, que nenhuma reconhece, se limita a dizer, com isso, que tendo ficado no contexto do divórcio previsto que o cabeça-de-casal ficaria com o uso do imóvel (que era a casa de morada de família) até à correspondente partilha, em contrapartida assumindo ele só o pagamento das prestações, então também os impostos são da única responsabilidade dele – conclusão que todavia tomo por destituída de sustento e mesmo verdadeiramente apodíctica, não vendo em que pudesse estribar-se.
Bem pelo contrário, cabe sublinhar que a mais de isso não ter ficado previsto no dito acordo (homologado) quanto ao uso da casa de morada de família, sempre e independentemente de qual dos dois a ficou mediante ele a usar, e mesmo que nenhum fosse, a dívida fiscal a ambos haveria de onerar, seguindo o imóvel que se mantém comum.
Nesta parte por conseguinte, ainda que a requerente não a reconheça, resultaria a viabilidade de apreciação pelo juiz em face dos documentos que com segurança a sustentassem (art. 1106.º, n.º 3, do CPC), mas o facto é que de entre os muitos com efeito apresentados pelo cabeça-de-casal, nenhum vejo que a isso especificamente se reporte, isto é, não tenho meio de fazer a dita verificação e, assim, a consequência é que essa alegada dívida da requerente para com ele não seja neste inventário considerada, restando-lhe, se assim o entender, os meios comuns.
4.- E passando agora às demais, que a requerente também não reconhece, fazendo uso dos mesmos critérios resulta igualmente óbvio que não deve o tribunal verificá-lo, e aqui porque, a despeito de com inteira segurança poder a partir dos documentos constantes dos autos e juntos pelo cabeça-de-casal comprovar os múltiplos pagamentos que fez ele por conta da dívida para com terceiro e que é comum aos dois (em prestações, seguros associados ao crédito e outros encargos deles decorrentes), posso com não menor e até maior segurança concluir, a partir do texto do acordo relativo ao uso da casa de morada de família e homologado (cfr. fls. 4 verso e 5), que o cabeça-de-casal nesse contexto se vinculou a assumir ele só tais encargos, obviamente não podendo agora, em sede de partilha, querer vir em contrário dessa assunção repercutir na meação da requerente parte deles.
De resto, essa é que é a ratio económica usual de tais acordos: assegurar que aquele que fica só a usar a casa que é de ambos, a partir do divórcio e até á partilhas, é também quem nesse período e por si só assegura os pagamentos correspondentes, sem o que aquele que a não fica a usar se ver a final onerado com pagamento, à sua custa, do encargo relativo a algo que não usou e pelo contrário em exclusivo ficou para o uso do outro.
Por outras palavras, tirar da meação da requerente no património comum metade do que, por ter ficado a usar ele só a casa comum e de acordo com aquilo a que se vinculou, pagou também só o cabeça-de-casal, no período subsequente ao divórcio (e, portanto, já com os efeitos patrimoniais entre eles plenamente produzidos – art. 1789.º, n.º 1, do CC) e até à partilha, representaria, a mais de contradição com a obrigação por ele assumida, um verdadeiro locupletamento à custa daquela.
E enfim, nem se diga que textualmente o acordo relativo ao uso da casa de morada de família só refere as prestações ao banco, e não os seguros e mais encargos conexos ao empréstimo bancário! Uma tal argumentação literal desconsideraria a já dita economia do acordo, o seu sentido útil, mostrando-se em absoluto inaceitável.
Breve, também as três primeiras dívidas que o cabeça-de-casal alega contra a requerente e que esta não reconhece são coisa que o juiz não está em condições de verificar, pelo contrário, e como tal não deverão ser consideradas na partilha nos termos do art. 1689.º, n.º 3, do CC.
5.- Em face do exposto, não verifico as ditas dívidas que o cabeça-de-casal alega ter a requerente para consigo, no caso da referida em quarto lugar remetendo as partes para os meios comuns.».

Inconformado com o segmento decisório que não julgou verificadas as dívidas reclamadas em 1 a 3, veio o requerido recorrer, apresentado as seguintes conclusões:
«1.–O presente recurso vem interposto do douto despacho proferido em 19/01/2021, que decidiu não reconhecer, verificar e considerar na partilha as dívidas relacionadas pelo Recorrente, da Recorrida para consigo (Verba Segunda, Alínea A), n.°s 1, 2 e 3 do passivo da relação de bens), ou seja, os chamados "créditos de compensação".
2.– Não pode o Recorrente concordar com tal entendimento.
3.–Ora, Recorrente e Recorrida contraíram entre si casamento, sem convenção antenupcial, em 26 de Outubro de 1996.
4.–Na constância do casamento foram contraídos dois empréstimos bancários, garantidos por hipoteca, junto do Banco Comercial Português, S.A., para aquisição do prédio urbano, sito à Rua.., freguesia de L..., concelho de Ponta Delgada, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.° …, bem como, para realização de obras, obrigando-se Recorrente e Recorrida, na qualidade de mutuários, ao pagamento das respetivas prestações.
5.–Por decisão transitada em julgado em 29 de Abril de 2015, proferida no Processo de Divórcio por Mútuo Consentimento n.° 1375/2015 da Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada, foi decretado entre Recorrente e Recorrida o divórcio, por mútuo consentimento.
6.–Ora, no acordo sobre a casa de morada de família ficou acordado que seria o Recorrente a assumir o pagamento das prestações dos empréstimos concedidos a ambos os cônjuges.

7.–Para evitar o incumprimento perante o credor hipotecário, o Recorrente assumiu sozinho, entre Abril de 2015 e Novembro de 2020 (data da apresentação da relação de bens nos presentes autos):
a)-A totalidade das prestações bancárias decorrentes dos dois empréstimos contraídos junto do Banco Comercial Português, S.A. para aquisição e reparação do imóvel referido na verba n.°1 da relação de bens, no montante total de 19.307,36€;
b)-A totalidade dos seguros de vida associados aos dois empréstimos contraídos junto do Banco Comercial Português, S.A., no montante total de 2.880,27€ (dois mil oitocentos e oitenta euros e vinte e sete cêntimos);
c)- A totalidade do seguro Múltiplos Riscos - Habitação associado aos dois empréstimos contraídos junto do Banco Comercial Português, S.A., no montante total de 995,78€ (novecentos e noventa e cinco euros e setenta e oito cêntimos).

8.–É verdade que, do referido acordo constata-se que o Recorrente assumiu pagar as prestações dos empréstimos concedidos a ambos os cônjuges.
9.–No entanto, as dívidas em questão e relacionadas são comuns e solidárias, cujo pagamento é da responsabilidade de ambos os cônjuges do Recorrente e da Recorrida.
10.–Além disso, em parte alguma do acordo, ou em qualquer outro momento, o Recorrente decidiu ou mostrou alguma intenção de vir a prescindir de receber metade do montante pago da dívida solidária da responsabilidade de ambos os cônjuges.
11.–Ou seja, o Recorrente nunca renunciou ao seu direito em ser compensado pelo valor que pagou a mais das dívidas que eram de ambos.
12.–Ora, desde a data de divórcio até hoje, foi o Recorrente quem pagou as referidas prestações sozinho e com bens próprios.
13.–Por assim ser, cabe à ora Recorrida compensar o crédito que o Recorrente tem sobre si por ter pago a mais que a sua parte.
14.–O Recorrente no referido acordo que firmou com a Recorrida não declarou renunciar ao seu direito em ser compensado pelo valor que pagou a mais das dívidas que eram comuns a ambos, nos termos do artigo 527.° do Código Civil.
15.–Não restam dúvidas que os efeitos do divórcio produzem-se em regra, a partir do trânsito em julgado da sentença (artigo 1789.°, n.° 1, la parte do Código Civil), no entanto, retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.
16.–Com o divórcio cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges (artigo 1688.° do Código Civil) e cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, pode-se proceder à partilha dos bens comuns, por acordo, ou em processo de inventário.
17.–Quanto à partilha e quanto às dívidas comuns a terceiros ou dos cônjuges entre si, há que ter em conta o que se dispõe no artigo 1689.°, n.° 3 do Código Civil.
18.–As dívidas dos cônjuges um ao outro apenas podem ser pagas no momento da partilha (artigo 1697.°, n.° 1 do Código Civil).
19.–Do exposto, resulta que a lei faz retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da propositura da acção de divórcio ou à data da cessação da coabitação entre ambos, embora neste último caso, a requerimento e desde que alegada e provada a data da cessação da coabitação (artigo 1789.°, n.°s 1 e 2 do Código Civil), ou seja, a composição da comunhão deve considerar-se fixada no dia da propositura da acção e não no dia do trânsito em julgado da decisão, sendo feita a partilha subsequente como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da entrada em juízo da acção ou na data em que cessou a coabitação.
20.–Por outro lado, cada um dos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum, no qual participam por metade, posição que a lei tutela (artigo 1730.° do Código Civil), ou seja, cada um dos cônjuges tem direito à meação, um verdadeiro direito de quota que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar, recebendo cada cônjuge na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo ao património comum tudo o que lhe deve (artigo 1689.°, n.° 1 do Código Civil).
21.–Ora, a extinção do casamento importa a cessação da generalidade das relações patrimoniais entre os cônjuges, a extinção da comunhão entre eles e a sua substituição por uma situação de indivisão a que se põe fim com a liquidação do património conjugal
comum e com a sua partilha.
22.–Na partilha, após a separação dos bens próprios, segue-se outra operação que se traduz na liquidação do património comum, destinada a apurar o valor do activo líquido, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges.
23.–Relativamente às compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal, o artigo 1697.° do Código Civil, prevê o caso de um dos cônjuges se tornar credor do outro quando por dívidas da responsabilidade comum tenham respondido bens de um só deles ou quando as dívidas de um só deles foram pagas com bens comuns.
24.–Tratam-se dos chamados créditos de compensação a favor do cônjuge que pagou a mais que a sua parte sobre o outro, mas cuja exigibilidade a lei adia para a partilha.
25.–Ora, tendo a dívida hipotecária sido contraída pelo então casal formado pelo Recorrente e Recorrido e de que era credor o Banco Comercial Português, S.A. é indiscutível que a mesma é da responsabilidade solidária do casal, nos termos do artigo 1691.°, n.° 1, alínea a) do Código Civil.
26.–Dispõe o artigo 1695.°, n.° 1 do Código Civil que "Pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges".
27.–No caso dos autos os empréstimos foram contraídos pelo Recorrente e pela Recorrido, pelo que é da responsabilidade de ambos devendo ser pagos nos termos do n.° 1 deste último artigo.
28.–Assim, dúvidas não existem de que a contracção de um empréstimo bancário por ambos os cônjuges, no decurso do casamento, determina a existência de uma dívida comum (artigo 1691.°, n.° 1, alínea a), do Código Civil), daí que a obrigação de reembolso de tal empréstimo à instituição bancária mutuante responsabilize ambos os cônjuges, como ambos são responsáveis quer pelo pagamento do IMI do referido imóvel quer com o seguro hipotecário.
29.–Relativamente aos pagamentos efectuados por um dos cônjuges, após a cessação das relações patrimoniais que decorrem do casamento, de dívidas que foram contraídas no decurso do mesmo, que vinculavam ambos os cônjuges, ou que resultaram de despesas relativas a bens que integram o património conjugal a partilhar, mas pagas depois do termo de tais relações, é pacífico que o mesmo tem direito a ser reembolsá-lo de metade do montante global de tais pagamentos e despesas (conforme artigo 1730.° e 1697.°, n° 1 do Código Civil).
30.–E também é pacífico que tendo o Recorrente alegado que pagou quer as prestações do crédito hipotecário, quer o respectivo seguro do imóvel com dinheiro próprio, quando tais dívidas eram da responsabilidade de ambos os cônjuges, também ele tem direito a ser reembolsado de metade do que pagou.
31.–Acresce que, em função do que se consagra no artigo 524.° Código Civil (direito de regresso), "o direito de regresso tem por conteúdo, em relação a cada um dos condevedores, a parte da sua responsabilidade no crédito. Normalmente, são iguais essas quotas; excepcionalmente, podem ser diferentes, quer por força da lei, quer por força do negócio jurídico (cfr. n.° 2 do art. 512.°), e pode até a responsabilidade recair exclusivamente sobre algum ou alguns deles (cfr., como exemplo, o n.° 2 do art. 507.°), (conforme entende Pires Lima/Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume 1, 1967, páginas 366 e 367).
32.–No mesmo sentido, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.° 1975/17.6T8VLG.Pl, datado de 17/06/2019, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.° 3275/06.8TBPVZ.P1, datado de 16/03/2010 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.° 1467/04.3TCLRS.L1-8, datado de 29/03/2012, todos disponíveis in www.dgsi.pt .
33.–Assim, não obstante ser o Recorrente quem, desde o divórcio, ocorrido em 2015, e até ao presente, está a ocupar, em exclusivo, a casa de morada de família do casal que constituiu com a Recorrida, a quem esteve ligado por matrimónio celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos, esta não deixa de ser responsável pelo pagamento de metade das dívidas respeitantes ao imóvel, relacionadas com a amortização do mútuo bancário por ambos celebrado com vista à sua aquisição e obras e com o seguro do imóvel (neste sentido decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.°2225/18.3T8LRS.L1-7, datado de 26/03/2019, disponível in www.dgsi.pt).
34.–Deste modo, as dívidas relacionados pelo Recorrente na relação de bens (Verba Segunda, Alínea A), n.°s 1, 2 e 3 do passivo), que resultaram do facto de este ter pago a totalidade da dívida solidária da responsabilidade de ambos os cônjuges, quando era apenas responsável na proporção de metade, devem ser reconhecidas, verificadas e consideradas na partilha porquanto são também responsabilidade da Recorrida, uma vez que foram geradas por bens que integravam o património comum, após a data da propositura da acção de divórcio e foram pagos exclusivamente pelo Recorrente.
35.–Face ao exposto, andou mal o Tribunal a quo, devendo para o efeito, ser aquele despacho revogado e substituído por outro que reconheça e verifique as dívidas da Recorrida para com o Recorrente relacionados na relação de bens na Verba Segunda, Alínea A), n.°s 1, 2 e 3 do passivo - os chamados "créditos de compensação".
Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o douto despacho recorrido revogado e substituído por douto Acórdão que, acolhendo as razões invocadas, reconheça, verifique e considere na partilha os "crédito de compensação" resultantes do pagamento da totalidade das responsabilidades bancárias e do seguro pelo Recorrente, quando este era apenas responsável na proporção de metade (relacionados na relação de bens na Verba Segunda, Alínea A), n.°s 1, 2 e 3 do passivo), devendo o processo seguir os ulteriores termos, ASSIM SE FAZENDO INTEIRA JUSTIÇA.».

Não foram apresentadas contra alegações.

Apresentados os autos neste Tribunal foi o recurso admitido.

Colhidos os vistos cumpre decidir.
***

Questões a decidir:

O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
A natureza do recurso como meio de impugnação de uma decisão judicial, determina a limitação quanto ao seu objecto decorrente do facto de apenas poder incidir sobre questões que tenham anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal de recurso com questões novas.
Com efeito, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, salvo as de conhecimento oficioso o que não é manifestamente o caso.
Como refere Abrantes Geraldes ( in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed. Pág. 119 e ss) « a diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os Tribunais Superiores apenas devam ser confrontados com questões que as partes tenham discutido nos momentos próprios». A invocação de questões novas além de desvirtuarem a finalidade dos recursos, também determinam a supressão de um grau de jurisdição, pois convoca o Tribunal apreciar pela primeira vez tal questão, o que está ausente do princípio que preside aos recursos em processo civil.

Deste modo, as questões que importa apreciar são as seguintes:
- Saber se é de considerar no inventário a compensação ao cabeça de casal dos valores pagos pelo mesmo a título de amortização do mútuo celebrado por ambos relativo à casa de morada de família.
-Saber se esta compensação deve ser considerada ainda que tenha ficado acordado no processo de divórcio que ficaria o cabeça de casal com o uso exclusivo da casa de morada e família, tendo ficado acordado que o mesmo suportaria as despesas com a mesma.
***

II.–FUNDAMENTAÇÃO:

Os elementos fácticos relevantes para a decisão são os referidos no relatório que antecede, nas quais se destacam os seguintes:
- Recorrente e Recorrida contraíram entre si casamento, sem convenção antenupcial, em 26 de Outubro de 1996.
- Na constância do casamento foram contraídos dois empréstimos bancários, garantidos por hipoteca, junto do Banco Comercial Português, S.A., para aquisição do prédio urbano, sito à Rua …, freguesia de L..., concelho de Ponta Delgada, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.° …, bem como, para realização de obras, obrigando-se Recorrente e Recorrida, na qualidade de mutuários, ao pagamento das respetivas prestações.
- O registo de aquisição de tal imóvel, bem como as hipotecas que incidem sobre o mesmo na sequência dos mútuos celebrados datam de 12/02/2007 ( cf. certidão junta aos autos principais)
- Tal imóvel constituía a casa de morada de família.
- Por decisão transitada em julgado em 29 de Abril de 2015, proferida no Processo de Divórcio por Mútuo Consentimento n.° 1375/2015 da Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada, foi decretado entre Recorrente e Recorrida o divórcio, por mútuo consentimento.
- No âmbito do divórcio por mútuo consentimento, foi pela requerente e requerido celebrado um acordo sobre a casa morada de família, datado de 26 de março de 2015, homologado no processo de divórcio por mútuo consentimento, através do qual o direito ao uso e ocupação da casa morada de família ficou atribuído ao cabeça de casal, obrigando-se este ao pagamento das prestações em dívida ao Banco Millennium – BCP, pelo empréstimo concedido na aquisição e obras sobre o imóvel em causa ( cf. doc. 1 junto com o requerimento inicial e que constitui um dos acordos juntos para efeito do divórcio por mútuo consentimento).

- No inventário o cabeça de casal reclamou as seguintes dívidas ao próprio e da alegada responsabilidade ( na proporção de metade ) da ex-cônjuge/requerente:
1)–desde o mês de Abril de 2015 até hoje, Novembro de 2020, este assumiu, sozinho, o pagamento das prestações bancárias decorrentes dos dois empréstimos contraídos junto do Banco Comercial Português, SA e identificados nas verbas números 1 e 2 do passivo, por ambas as partes deste processo, para aquisição e reparação do imóvel referido na verba n.° 1 da relação de bens apresentada. O valor total das prestações suportadas, a título individual, pelo cabeça-de-casal foi de 19.307,36 €, pelo que, este possui um crédito sobre a requerente no valor de metade daquela importância, à qual acrescerá ainda mensalmente metade do valor mensal das prestações bancárias até que se proceda à partilha do bem comum, devendo este ser pago pela meação desta no património comum.
2)–Entre os meses de Abril de 2015 até hoje, Novembro de 2020, este assumiu, sozinho, o pagamento dos seguros de vida associados aos dois empréstimos contraídos junto do Banco Comercial Português, SA e identificados nas verbas números 1 e 2 do passivo. O valor total dos prémios pagos, a título individual, pelo cabeça-de-casal foi de 2.880,27 €, pelo que, este possui um crédito sobre a requerente no valor de metade daquela importância, à qual acrescerá ainda mensalmente metade do valor mensal dos prémios daqueles seguros até que se proceda à partilha do bem comum, devendo este ser pago pela meação desta no património comum.
3)–Entre os meses de Abril de 2015 até hoje, Novembro de 2020, este assumiu, sozinho, o pagamento do seguro Múltiplos Riscos - Habitação associado aos dois empréstimos contraídos junto do Banco Comercial Português, SA e identificados nas verbas números 1 e 2 do passivo. O valor total dos prémios pagos, a título individual, pelo cabeça-de-casal foi de 995,78 €, pelo que, este possui um crédito sobre a requerente no valor de metade daquela importância, à qual acrescerá ainda mensalmente metade do valor desses prémios até que se proceda à partilha do bem comum, devendo esta ser pago pela meação desta no património comum.
***

III.–O DIREITO:

A questão essencial colocada em sede de recurso é saber se pode existir compensação do cabeça de casal por parte da ex-cônjuge dos valores pelo mesmo pago relativamente a amortização de empréstimo com aquisição e obras, bem como as despesas, tudo reportado a um bem comum – o imóvel adquirido e que constituía a casa de morada de família.

O Tribunal recorrido tomando desde logo por base o acordo estabelecido pelos cônjuges aquando do divórcio por mútuo consentimento relativamente ao uso exclusivo da casa de morada de família, bem adquirido por ambos na constância do matrimónio, mas para cuja aquisição e obras no imóvel foram pela requerente e requerido celebrados contratos de mútuo, considerou que tal acordo determinava o pagamento dos encargos com os mútuos e encargos como sendo da exclusiva responsabilidade do requerido/cabeça de casal. Defendeu-se assim, a impossibilidade de verificação de tais dívidas em sede de inventário para separação de meações, por inexistir nesse caso o direito a compensação.

Assim, o Tribunal recorrido entende que não são de verificar tais alegadas dívidas, pois a «(…) a partir do texto do acordo relativo ao uso da casa de morada de família e homologado (cfr. fls. 4 verso e 5), que o cabeça-de-casal nesse contexto se vinculou a assumir ele só tais encargos, obviamente não podendo agora, em sede de partilha, querer vir em contrário dessa assunção repercutir na meação da requerente parte deles.
De resto, essa é que é a ratio económica usual de tais acordos: assegurar que aquele que fica só a usar a casa que é de ambos, a partir do divórcio e até á partilhas, é também quem nesse período e por si só assegura os pagamentos correspondentes, sem o que aquele que a não fica a usar se ver a final onerado com pagamento, à sua custa, do encargo relativo a algo que não usou e pelo contrário em exclusivo ficou para o uso do outro.
Por outras palavras, tirar da meação da requerente no património comum metade do que, por ter ficado a usar ele só a casa comum e de acordo com aquilo a que se vinculou, pagou também só o cabeça-de-casal, no período subsequente ao divórcio (e portanto já com os efeitos patrimoniais entre eles plenamente produzidos – art. 1789.º, n.º 1, do CC) e até à partilha, representaria, a mais de contradição com a obrigação por ele assumida, um verdadeiro locupletamento à custa daquela.
E enfim, nem se diga que textualmente o acordo relativo ao uso da casa de morada de família só refere as prestações ao banco, e não os seguros e mais encargos conexos ao empréstimo bancário! Uma tal argumentação literal desconsideraria a já dita economia do acordo, o seu sentido útil, mostrando-se em absoluto inaceitável.».

É sobre tal raciocínio que se insurge o recorrente sustentando que no acordo o Recorrente apenas assumiu pagar as prestações dos empréstimos concedidos a ambos os cônjuges, no entanto, sendo as dívidas em questão e relacionadas comuns e solidárias, em parte alguma do acordo, ou em qualquer outro momento, o Recorrente decidiu ou mostrou alguma intenção de vir a prescindir de receber metade do montante pago da dívida solidária da responsabilidade de ambos os cônjuges.

Defende assim, que é na partilha que se processa quer a liquidação do património comum, bem como apurar o valor do activo líquido, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges. Pelo que relativamente às compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal, haverá que considerar os artigos 1695º e 1697° ambos do Código Civil, sendo que in casu o recorrente procedeu ao pagamento das dívidas da responsabilidade comum com bens próprios, pelo que tais créditos de compensação a favor do cônjuge que pagou a mais deve ser considerado na partilha. Invoca ainda o direito de regresso previsto no artº 524º do CC.

Socorre-se igualmente de decisões que no seu entendimento sufragam a mesma orientação, como sendo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.° 1975/17.6T8VLG.Pl, datado de 17/06/2019, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.° 3275/06.8TBPVZ.P1, datado de 16/03/2010 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.° 1467/04.3TCLRS.L1-8, datado de 29/03/2012, todos disponíveis in www.dgsi.pt. Mas essencialmente o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.°2225/18.3T8LRS.L1-7, datado de 26/03/2019, disponível in www.dgsi.pt, concluindo que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que reconheça e verifique as dívidas da Recorrida para com o Recorrente relacionados na relação de bens na Verba Segunda, Alínea A), n.°s 1, 2 e 3 do passivo - os chamados "créditos de compensação".

Apreciando.

Nos termos do artº 1689.º, n.ºs 1 e 3, do C.C. «Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.» e «Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor».

Como princípio geral consta ainda no artº 1697.º, n.º 1, do C.C que quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.

Sobre tal preceito importa ter presente o estudo de Cristina Manuela Araújo Dias ( in “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões”, Coimbra Editora, 2009, págs 774 a 777): «o art. 1697.º pretende regular as compensações e, em rigor, não deveria dispor como faz: não há um crédito entre os cônjuges (daí não fazer sentido falar em “credor”), mas compensação do património comum ao património do cônjuge que pagou dívidas comuns com bens próprios, ainda que tal crédito passe pelo aumento da sua meação no património comum e por uma diminuição da meação do outro cônjuge como se este fosse o devedor, atendendo ao disposto no art. 1689.º, n.º 3. Também aí o termo “créditos entre os cônjuges” não nos parece acertado ou, pelo menos, aplicado no seu estado rigoroso, parecendo abranger tanto esses créditos como as compensações propriamente ditas. Porém, se o articularmos com o n.º 1 do art. 1697.º compreende-se a a solução legal: se esse n.º 1 se refere a um crédito a favor de um documento cônjuges, o n.º 3 do art. 1689.º necessariamente terá de regular precisamente esse crédito, não lhe chamando compensação. Para mais, o n.º 3 do art. 1689.º, relativo à partilha, deve abordar não apenas a questão das compensações do património comum ao próprio de um dos cônjuges (e repara-se que o n.º 1, in fine, regula as compensações devidas ao património comum), mas também os eventuais créditos entre os cônjuges que ainda não tenham sido exigidos. Aliás, o mais provável será que, não obstante poderem ser exigidos a todo o tempo, nos termos gerais do Direito dos Obrigações, tal só ocorrerá no momento da dissolução e partilha do regime de bens.(…) No regime de comunhão, o que temos são compensações stricto sensu», que se diferem para o momento da partilha dada a natureza do património comum. (...)».

Segundo a mesma Autora, «o n.º 1 do art. 1697.º regula as compensações devidas pela comunhão a favor a favor de um dos cônjuges, quando este respondeu por dívidas comuns. O direito de crédito aí atribuído a um dos cônjuges tanto existe nos casos em que o cônjuge respondeu com os bens próprios, como obrigado solidário (nos termos do art. 1695.º, n.º 1), como nos casos em que tenha respondido como obrigado conjunto (art. 1695.º, n.º 2), uma vez que mesmo neste último caso, ele poderá ter querido satisfazer uma parte da dívida global superior à que lhe competia (...). Pretende-se que o cônjuge que pagou mais do que devia tenha sempre o direito a ser compensado daquilo que pagou a mais» ( in ob. Cit.).

Além da interpretação levada a cabo sobre os preceitos 1697.º, n.º 1, 1.ª parte, e 1689.º, n.º 3, deve ainda atender-se ao disposto no artº 1730.°, que estabelece  que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão.

Tem-se ainda entendido que o artº 1697º do CPC refere quer as compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal em sentido lato, de entre as quais se destacam as compensações stricto sensu, que apenas ocorrem nos regimes de comunhão, e os créditos entre cônjuges, que podem verificar-se em qualquer regime de bens. Pelo facto de no regime de separação apenas podermos ter créditos entre cônjuges, não há qualquer diferimento para o momento da partilha, sendo aqueles imediatamente exigíveis.

Assim, manifestamente a dissolução do casamento e da comunhão implica o fim do regime patrimonial e o surgimento de um estado de indivisão que apenas cessará com a partilha dos bens comuns. Acresce que como operação prévia à partilha deve proceder-se à liquidação do regime matrimonial e, como dispõe o artº 1697º é neste momento que se devem integrar as compensações entre os patrimónios próprios e o comum. Pois, a operação sucessiva à retirada dos bens próprios e prévia à partilha dos bens comuns, a liquidação visa determinar e avaliar a massa a partilhar. É o activo que se partilha, mas, sempre que possível, o activo líquido, deduzindo-se o passivo- as dívidas da comunhão.

Donde, é na fase da liquidação da comunhão que cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve. Pelo que o cônjuge devedor deverá compensar nesse momento o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum. Uma vez apurada a existência de compensação a efectuar à comunhão, procede-se ao seu pagamento através da imputação do seu valor actualizado na meação do cônjuge devedor, que assim receberá menos nos bens comuns, ou, na falta destes, mediante bens próprios do cônjuge devedor de forma a completar a massa comum.

Deve, portanto, admitir-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro. Caso contrário verificar-se-ia um enriquecimento injusto da comunhão à custa do património de um dos cônjuges ou de um dos cônjuges à custa do património comum.

É na interpretação do acordo sobre a casa de morada de família homologado aquando do divórcio que reside a divergência entre as partes e é nessa interpretação que reside a questão sobre se é ou não devida a compensação do cônjuge a quem foi atribuído o uso exclusivo de tal habitação e que arcou com as despesas com a aquisição da mesma.

Como é sabido, nos termos do disposto no artigo 1793º, n.º1 do C. Civil, “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada cônjuge e o interesse dos filhos do casal”.

No caso concreto tendo a cessação do matrimónio entre o recorrente e recorrida sido operada pelo divórcio por mútuo consentimento exige a lei que as partes estejam de acordo, além do mais, relativamente ao destino da casa de morada de família.

Com efeito, resulta dos factos que Recorrente e Recorrida contraíram entre si casamento, sem convenção antenupcial, em 26 de Outubro de 1996.

Na constância do casamento foram contraídos dois empréstimos bancários, garantidos por hipoteca, junto do Banco Comercial Português, S.A., para aquisição do prédio urbano, sito à Rua ... ..., n.°..., freguesia de L..., concelho de Ponta Delgada, inscrito na matriz predial sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.° ..., bem como, para realização de obras, obrigando-se Recorrente e Recorrida, na qualidade de mutuários, ao pagamento das respectivas prestações. O registo de aquisição de tal imóvel, bem como as hipotecas que incidem sobre o mesmo na sequência dos mútuos celebrados datam de 12/02/2007 ( cf. certidão junta aos autos principais)

Tal imóvel constituía a casa de morada de família.

Por decisão transitada em julgado em 29 de Abril de 2015, proferida no Processo de Divórcio por Mútuo Consentimento n.° 1375/2015 na Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada, foi decretado entre Recorrente e Recorrida o divórcio, por mútuo consentimento.

No âmbito do divórcio por mútuo consentimento, foi pela requerente e requerido celebrado um acordo sobre a casa morada de família, datado de 26 de março de 2015, homologado no processo de divórcio por mútuo consentimento, através do qual o direito ao uso e ocupação da casa morada de família ficou atribuído ao cabeça de casal, obrigando-se este ao pagamento das prestações em dívida ao Banco Millennium – BCP, pelo empréstimo concedido na aquisição e obras sobre o imóvel em causa.

Assim, atenta a referida homologação de divórcio, homologando os acordos obtidos entre requerente e requerido, forçoso é concluir que até à partilha o cônjuge marido se vinculou a suportar, por si só, as amortizações do empréstimo.

Ao contrário do defendido pelo recorrente nada no acordo resulta que o mesmo visava obter compensação posterior do valor pago, pois o que resulta é que face ao uso e ocupação exclusiva pelo mesmo, ao invés de se estabelecer uma retribuição (ou renda) à ex-mulher (igualmente proprietária mas que deixou de usufruir de tal bem) ficaria apenas o ex-marido onerado com tais prestações devidas, até à partilha.

Logo, pretender obter a compensação (em metade) do valor pago seria operar um desequilíbrio entre os cônjuges, pois além de ter ficado privado do uso e fruição do imóvel, não vê tal cedência compensada, pois nos casos em que se atribui a utilização e ocupação da casa de morada e família a um dos elementos do ex-casal poderá existir um pagamento ao outro a título compensatório.  

No caso concreto pretende o recorrente afirmar que tal não consta do acordo, o que não se revela adequado, pois, tratando-se, como é o caso, de um negócio formal (acordo apresentado na acção de divórcio), se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, ele não pode ser deduzido pelo declaratário e não deve por isso ser-lhe imposto. Tem portanto o sentido da declaração de ter um mínimo de correspondência no texto do documento.

É que, a interpretação das declarações negociais deve fazer-se de acordo com as normas constantes dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, segundo as quais, as declarações devem valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deve entendê-la, desde que no documento esse sentido encontre um mínimo de correspondência.

Consagra-se, pois, na nossa lei civil a chamada teoria da impressão do destinatário. Mas, não se pronuncia o Código Civil sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação. Como elucida Mota Pinto ( in “Teoria Geral do Direito Civil” pág. 450), também aqui se deve operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição de declaratário efectivo, teria tomado em conta. Ora, como alude Heinrich Ewald Horster ( in “Parte Geral do Código Civil Português Teoria Geral do Direito Civil, pág.  510) a  normalidade  do declaratário,   que   a   lei  toma  como padrão, exprime-se não só na capacidade de entender o texto ou o conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.

Ponderando o que resulta do texto do acordo das partes, à luz do critério da impressão do destinatário a que alude o artigo 236.º do Código Civil, sempre se teria de concluir pela assunção, por parte do recorrente, pela responsabilidade pelo pagamento de tais despesas, admitindo-se que, como contrapartida pela ocupação da casa de morada de família, não se pode dele inferir que essas despesas seriam meramente a adiantar pelo requerido.

Não pode, por conseguinte, pretender o requerido impor agora à requerente a comparticipação em despesas, as quais, ele próprio, se vinculou a pagar, pois tal não tem qualquer correspondência com o texto literal do acordo, figurando sim como contrapartida do uso e ocupação exclusiva pelo mesmo da habitação.

Com efeito, não há dúvidas que as dívidas em causa se inserem na previsibilidade do artº 1691º a) do CC, considerando que tal dívida foi contraída para a aquisição e obras da casa de morada de família constituiria um encargo típico da vida familiar, ou seja, o encargo com a habitação do casal. Este encargo quanto à sua classificação tem como subjacente o princípio da contribuição proporcional tal como se encontra previsto no artº 1676º do CC. Ora, quanto a esta regra, no direito português não existe a possibilidade expressa de se afastar por vontade dos cônjuges a contribuição proporcional e, logo, o pagamento também proporcional das dívidas comuns. Porém, na nossa doutrina Duarte Pinheiro considera que o critério da contribuição proporcional não tem carácter imperativo ( in “ O Direito da Família contemporâneo “ pág. 472; ver ainda Paula Távora Vítor in “Crédito Compensatório e Alimentos Pós-divórcio”, pág. 68 e ss), pois sendo a contribuição para os encargos da vida familiar um domínio privilegiado dos acordos entre os cônjuges sobre a orientação da vida em comum, só na ausência de acordo é que vigoraria plenamente a prescrição da contribuição proporcional. Logo, infere-se que mesmo perante uma situação ainda de vida em comum pode existir a renúncia à compensação por contribuição excessiva.

No caso dos autos a assunção do pagamento das dívidas com a aquisição da casa de morada de família constitui um encargo relativo à vida familiar, cessando esta optaram os elementos do ex-casal em beneficiar um com a utilização exclusiva de tal habitação, porém, estabelecendo como contrapartida que deixaria de existir a contribuição proporcional do outro, mas sim e apenas a contribuição exclusiva de quem passaria a beneficiar da casa de morada de família. Logo, o que ocorre é que tal renúncia além de resultar do acordo não é excessiva, pois já não tem como subjacente a vida em comum e a eventual contribuição para os encargos da vida familiar de forma desequilibrada, mas sim e apenas a economia do cônjuge recorrente que, ao contrário da recorrida, manteve a sua habitação na casa de morada de família, suprindo tal acordo as suas necessidades com a habitação, ao contrário da recorrida que necessariamente teve de fazer face a tal necessidade por outra via. 
 
Com efeito, admitindo-se a possibilidade da vontade das partes afastar o princípio da contribuição proporcional, mais nos parece ser de defender que tal contribuição pode ser afastada quando deixa de existir vida em comum e a dívida contraída visava fazer face a uma necessidade inerente à vida familiar. Pelo que passando tal necessidade a existir, mas relativamente a cada um dos ex-cônjuges individualmente considerados, suprindo um dos cônjuges a mesma com o acordo de utilização da habitação e pagamento das despesas em exclusivo, tal só pode pretender que enjeita a compensação desta assunção exclusiva de uma dívida comum, pois para o seu benefício ( acordado) foi logo estabelecida a contrapartida (acordada), a vigorar entre os mesmos.

Em situação similar importa trazer à colação o decidido no Ac desta Relação proferido no proc. nº 683/07.0TMLSB-B.L1-2 (in www.dgsi.pt/jtrl) sumariando-se que:
«1.-É na fase da liquidação da comunhão que cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve. O cônjuge devedor deverá compensar nesse momento o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum.
2.-Deve admitir-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro.
3.-Mas, se no divórcio por mútuo consentimento, as partes acordaram atribuir, até à venda ou partilha, a casa de morada de família ao cônjuge marido, suportando este a amortização do empréstimo, seguro, taxas de esgotos, IMI e condomínio, tem de se entender, segundo a chamada teoria da impressão do destinatário, que aquele cônjuge se responsabilizou, durante o período aí mencionado, pelo pagamento de tais despesas, não podendo proceder à sua inclusão na prestação de contas espontânea por este requerida, com vista à obtenção do pagamento, pelo outro cônjuge, de metade dessas mesmas despesas.»

Logo, é indiscutível que até à realização da partilha de bens comuns, a decisão de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos ex-cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao ex-membro do casal privado do uso daquele bem ou, alternativamente, a definição do modo de repartição dos custos relacionados com o pagamento do empréstimo e outros acessórios. (neste sentido Acórdão da Relação de Évora de 30/01/2020- proferido no proc. nº7160/18.2S8STB.E, in www.dgsi.pt/jtre).

O recorrente no agasalho da sua posição convoca, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 17/06/2019, no qual se decidiu que: «Não obstante a lei faça retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da propositura da acção de divórcio ou à data da cessação da coabitação entre ambos (cfr. 1789.º, nºs 1 e 2 do CCivil) vindo-se a provar que um empréstimo bancário foi contraído tanto pelo Autor como pela Ré, enquanto casados, sendo, portanto, uma dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges [cfr. o cit. art. 1691º, nº 1, al. a), do CCivil] mas que foi apenas o Autor quem, antes da data divórcio e até determinada data, suportou o pagamento da totalidade das prestações do mesmo empréstimo do seguro hipotecário e IMI com bens próprios, tem de concluir-se ser o Autor titular, sobre a Ré, dum crédito correspondente àquilo que pagou a mais do que devia, nos termos do artigo 1697.º, nº 1 do Cód. Civil.».

Percorrida a fundamentação de tal aresto não se faz na mesma a interpretação do acordo sobre o uso e ocupação exclusiva da casa de morada de família, questão que está subjacente à decisão tomada nestes autos e que figuramos acertada.

No tocante ao Acórdão desta Relação datado de 26/03/2019, a que alude o recorrente, a montante e como pressuposto da decisão estava uma situação de inexistência de acordo quanto à utilização da casa de morada de família, imputando-se a situação à inércia da ex-cônjuge quer opondo-se ao uso exclusivo que o ex-marido vinha fazendo; ou ser a própria a usá-la, afirmando-se que sempre poderia, em todos os anos que mediou o divórcio e o pedido de inventário ter-se socorrido do mecanismo previsto nos arts. 1047.º, n.º 7 do C.P.C./95-96, e 931.º, n.º 7, do C.P.C./13, e requerido ao tribunal a fixação de um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família e à eventual compensação devida pela ocupação que o réu dela vem fazendo. Concluindo-se neste caso que:« Não o tendo feito, a apelante aceitou, deu o seu acordo, ainda que tácito, à utilização que o apelado vem fazendo da casa de morada da família, sendo que nada há nos autos que revele ter existido um qualquer acordo entre ambos relativamente a quaisquer contrapartidas a suportar pelo apelado, pelo uso que vem fazendo da fração. No caso concreto, o enriquecimento ilegítimo por parte do apelado à custa do património da apelante pressupunha, desde logo, que esta alegasse, e não alegou, factos suscetíveis de, uma vez provados, demostrarem que o apelado vem utilizando a casa de morada da família de modo injustificado ou indevido.».

No caso em apreço não estamos perante a ausência de acordo quer quanto à utilização, quer quanto ao pagamento dos encargos devidos com a aquisição e obras da casa de morada de família, pois neste caso quer a ocupação quer tal pagamento foram objecto de um acordo entre os ex-cônjuges nos termos sobreditos. Admitir que não obstante a ocupação e uso exclusivo pelo ex-marido e assunção pelo mesmo da dívida comum, tal importaria o pagamento em metade pela ex-mulher das despesas em causa iria sim provocar um desequilíbrio e estaria desconforme com o acordado. Aliás, sempre importa ter presente que tal acordo sempre vinculava os elementos do ex-casal, logo, pretender, como pretende o recorrente, entender que tal só visava estabelecer quem pagaria o valor do mútuo é irrelevante para a entidade financeira com quem os ex-cônjuges contraíram tais encargos. Pois o acordo apenas visava estabelecer as regras entre os cônjuges e não com a entidade credora de tais créditos, para esta ambos os cônjuges seriam e manter-se-iam devedores solidários. Donde, o efeito útil de tal acordo apenas pode ser obtido na interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo, ou seja, destinava-se a definir as obrigações entre os cônjuges, pelo que o uso exclusivo da casa de morada de família por um dos cônjuges até à partilha, teria como contrapartida o pagamento exclusivo pelo mesmo das despesas com tal habitação, e foi esse o sentido que se visou ao assumir o cônjuge tal pagamento.

Logo, o que ficou acordado era o uso e ocupação exclusiva do recorrente e na sequência deste seria o Recorrente a assumir o pagamento das prestações dos empréstimos concedidos a ambos os cônjuges. Convoca o recorrente a circunstância que tal visava evitar o incumprimento perante o credor hipotecário, daí que tenha assumido individualmente o pagamento devido, entre Abril de 2015 e Novembro de 2020 (data da apresentação da relação de bens nos presentes autos).

Manifestamente não lhe assiste razão, como referimos, perante a entidade mutuária ambos os ex-cônjuges figuravam como devedores, não lhe sendo oponível o acordo celebrado. Logo, o eventual incumprimento repercutir-se-ia em ambos. Acresce que caso o recorrente entendesse que o acordo de uso exclusivo e pagamento apenas por si das despesas não o favoreciam, a inércia na interposição da acção de inventário ao mesmo é também imputável. Na verdade, ao contrário da decisão subjacente ao Acórdão desta Relação e supra aludido convocando pelo recorrente no seu recurso, em que a inércia foi um dos factores ponderados, neste caso a ausência de iniciativa do recorrente na interposição do inventário, nomeadamente por forma a não manter o pagamento exclusivo e a definição quanto à propriedade do bem como ou a sua libertação da responsabilidade quanto à dívida, ao mesmo pode também ser imputado.

Na verdade a aquisição de tal imóvel ocorreu em 2007, cerca de dez anos após o casamento, entre esta aquisição e a cessação dos efeitos matrimoniais com o divórcio, que ocorreu em 2015, decorreram cerca de oito anos, período de tempo em que tais encargos foram suportados pelo casal. O acordo de uso e ocupação exclusiva do imóvel bem como de pagamento dos encargos ocorreu em Abril de 2015, porém, foi só a impulso da recorrida que foi intentada a acção de inventário para partilha dos bens comuns, em 2020, mantendo-se nesse período a recorrida arredada da utilização do imóvel (bem comum), mas também afastada das respectivas despesas, pois estas nos termos acordados ficaram a cargo de quem utilizava e fruía do mesmo. A situação não evidencia desconforto do recorrente, pois no período que mediou entre 2015 e 2020 nada fez para alterar tal situação.

Do exposto, nada nos permite afastar o decidido pelo Tribunal recorrido dado que a decisão não nos merece qualquer censura, sendo a mais ajustada ao caso concreto, improcedendo, assim, o recurso.
***

IV.–DECISÃO:

Por todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo apelante e, consequentemente confirma-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo apelante.
Registe e notifique.



Lisboa, 24 de Junho de 2021



Gabriela Fátima Marques
Adeodato Brotas
Vera Antunes