CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PROMESSA UNILATERAL
OPÇÃO DE COMPRA
CONTRATO MISTO
CONTRATO-PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
PRAZO INCERTO
BEM IMÓVEL
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Sumário


Quando se conclui que uma das partes está, por força de contrato-promessa, constituída na obrigação de celebrar certo contrato e não cumpre esta obrigação, tem a contraparte o direito de obter decisão judicial que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida nem exista convenção em contrário (cfr. artigo 830.º, n.º 1, do CC).

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. Caprichoso, Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., instaurou a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra AA e BB, pedindo que o Tribunal emita decisão judicial que substitua a declaração negocial dos réus, por forma a que a autora adquira e registe a seu favor imóvel objecto da presente acção que identifica, mais pedindo a condenação dos réus a restituir todos os montantes que receberam a título de renda devida nos termos do contrato de arrendamento celebrado com a autora quanto ao mesmo imóvel, no montante vencido de € 10.000,00 (dez mil euros) e ainda as rendas vincendas, desde a data da propositura da presente acção até ao trânsito em julgado da sentença, acrescido de juros de mora à taxa de juro comercial, desde a data de citação até integral pagamento.

Alegou, em síntese, ter celebrado com os réus contrato de arrendamento comercial quanto ao mencionado imóvel, para aí instalar os seus serviços e escritórios, sendo que, pelo mesmo contrato, os réus obrigaram-se ainda perante a autora a vender-Ihe o dito imóvel pelo preço de € 280.000,00, podendo exercer tal direito a partir de 30.07.2018 e até ao dia 30.01.2019.

A autora enviou uma carta aos réus, em 23.07.2018, comunicando a sua intenção de compra e agendando o dia 2.08.2018, pelas 12.00 horas que a realização da escritura, ao que os réus responderam reconhecendo o direito de opção e informando que a escritura de compra e venda apenas seria outorgada em função da disponibilidade dos intervenientes para o efeito.

Como a autora insistisse com a marcação da escritura, os réus responderam que a venda a que se obrigaram apenas deveria ocorrer na primeira semana de Setembro de 2024, assim incumprindo o contrato celebrado e impondo à autora a manutenção do pagamento da renda, com o que se colocaram em incumprimento.

Citados, os réus contestaram alegando, em síntese, que a autora omitiu a celebração de um anterior contrato, quase idêntico, mas sem inclusão da cláusula da opção de compra, imputando à autora litigância de má-fé.

Ademais, alegam que o contrato é nulo por as assinaturas não se encontrarem reconhecidas presencialmente, em violação do disposto no artigo 410.º, n.º 3, do Código Civil. De todo o modo – defenderam –, a acção não pode proceder por não se encontrar fixado prazo para a celebração da escritura de compra e venda, o que constitui o cerne da divergência das partes, estando a execução específica dependente da prévia fixação desse prazo.

Mais alegaram que se limitaram a assinar os dois contratos de arrendamento que a autora lhes apresentou e que a decisão de assinar o contrato de arrendamento com a duração de 9 anos, sem opção de compra, foi o elemento fulcral para a conclusão do negócio.

A autora respondeu à matéria das excepções, pronunciando-se pela sua improcedência, mantendo o constante da inicial e pedindo a condenação dos réus como litigantes de má-fé.

Os réus vieram responder ao pedido de condenação como litigantes de má-fé.


3. Procedeu-se à audiência de julgamento com observância do formalismo legal.

Finda esta, mostrando-se consignada em depósito, no prazo fixado pelo Tribunal, a prestação devida pela autora a favor dos réus, corresponde ao preço devido pela compra (cfr. fls. 103 e s.), foi proferida sentença que julgou procedente a acção e improcedentes as imputações de litigância de má-fé e com o seguinte dispositivo:

a) Determina-se a transmissão da propriedade do prédio urbano sito na Rua ……., ……, composto de edifício de rés-do-chão, para oficina de carpintaria e 1.º andar para escritório, com logradouro, freguesia de …….. (……..), concelho de ……….., descrita na ….. Conservatória do Registo Predial de …….. sob o número …..46, inscrito na matriz predial urbana sob artigo …..41 da união das freguesias de ………. (………. e …….., ………. e ………..), para a A., Caprichoso Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., substituindo deste modo a declaração de vontade dos RR., AA e BB, mostrando-se depositada, pela A., a quantia de € 280.000,00 (duzentos e oitenta mil euros), correspondente ao preço acordado pelas partes.

b) Condena-se os RR. a restituir à A. as rendas vencidas e pagas, devidas pelo contrato de arrendamento relativo ao imóvel supra referido, no montante de € 10.000,00 (dez mil euros) e as vencidas e vincendas desde a data da propositura da presente ação e até ao trânsito em julgado da sentença, acrescidas de juros de mora à taxa comercial vencidos desde 18 de Dezembro de 2018, até efetivo e integral pagamento.

c) Absolvo A. e RR. do pedido de condenação como litigantes de má-fé”.


4. Desta sentença interpuseram os réus o recurso para o Tribunal da Relação de … .


5. Em 24.09.2020 proferiu este Tribunal um Acórdão em que se decidiu julgar procedente o recurso dos réus e improcedente a acção, revogando-se, em conformidade, a sentença.


6. Deste Acórdão, e não se conseguindo com ele conformar, interpõe agora recurso de revista a autora.

No final das suas alegações procede à respectiva síntese– uma síntese em sentido próprio, o que é cada vez mais raro e deve ser positivamente destacado – formulando as seguintes conclusões:

A. O contrato de arrendamento com opção de compra versado nestes autos comtempla prazo dentro do qual, uma vez exercido o seu direito de opção, a escritura definitiva de compra e venda deveria ser celebrada;

B. Um contrato dotado de cláusula que preveja “tem a segunda outorgante opção de compra do prédio pelo preço de 280.000,00 (duzentos e oitenta mil euros), se exercida entre 30 de julho de 2018 até 30 de janeiro de 2019” é suscetível de ser executado especificamente sem necessidade de prévia fixação judicial de prazo para conclusão do contrato;

C. Isto porque mesmo que se entenda que o prazo previsto na conclusão anterior não valha também para fixar o período dentro do qual o contrato optado deve ser cumprido sempre este último estava na livre disponibilidade de qualquer das partes, como resulta do artigo 777.º n.º 1 do código civil;

D. no caso vertente não ocorre qualquer circunstância suscetível de preencher previsão do artigo 777.º n.º 2 do código civil, pelo que é inaplicável ao caso o regime excecional – face ao regime contido no n.º 1 da mesma norma – nele previsto;

E. Ao impor à recorrente a necessidade de, para interpelar os recorridos, para cumprirem o contrato de compra e venda do imóvel a necessidade de, previamente, obter sentença que fixe prazo para este efeito o venerando tribunal “a quo” no douto aresto recorrido violou o referido n.º 1 do artigo 777.º do código civil, aplicando, entende-se que erradamente, o n.º 2 do mesmo artigo;

F. Em suma, a execução especifica intentada deve ser julgada procedente com todas as consequências legais”.


7. Os réus apresentaram contra-alegações, através das quais peticionam a total improcedência do recurso dos autores.


8. Subiu o recurso a este Supremo Tribunal por determinação da Exma. Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação …. .


9. Já no Supremo, veio o autor apresentar requerimentos para junção aos autos de “comprovativo do depósito das rendas devidas na execução do contrato de arrendamento que celebrou com os RR.”, que se admite.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se estão ou não reunidos os pressupostos para a execução específica.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido, na sequência da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto[1]:

a) A A. é uma pessoa coletiva, com fins comerciais, que tem como objeto social mediação imobiliária; administração de imóveis por conta de outrem; gestão de arrendamento; compra e venda de bens imobiliários e revenda dos adquiridos para esse fim; exercício da atividade de construção civil.

b) No exercício da sua atividade, para instalar os seus serviços e escritórios a A. tomou de arrendamento o prédio urbano sito na Rua ……, ……, composto de Edifício de rés-do-chão, para oficina de carpintaria e 1.º andar para escritório, com logradouro, freguesia  ……… (……), concelho  …, descrita na ….. Conservatória do Registo Predial ……. sob o número …….46, inscrito na matriz predial urbana sob artigo …….41 da união das freguesias de …… (…… e …, … e …), o que fez por meio do contrato de arrendamento.

c) Os RR. são proprietários do prédio identificado em b).

d) Por meio de contrato denominado "Contrato de Arrendamento comercial", datado de 18 de Julho de 2015, os RR. deram aquele imóvel de arrendamento à A., contando do, além das mais, a cláusula Terceira com o seguinte teor: "Este contrato efeito pelo prazo de 9 anos com início a 1 de Agosto de 2015. Findo o prazo previsto na alínea anterior o contrato renovar-se-á automaticamente por períodos de 5 anos, se não for de denunciado pela primeira outorgante no prazo de 60 dias e pela segunda no prazo de 60 dias com a obrigatoriedade de ter 6 meses efetivos de contrato. Tem a segunda outorgante opção de compra do prédio pelo preço de 280 000,00 € duzentos e oitenta mil euros), se exercida entre 30 de Julho de 2018 até 30 de janeiro de 2019. O valor da escritura será de 200 000 € (duzentos mil euros), sendo adicionalmente pagos 80 000 €, (oitenta mil euros), relativamente a benfeitorias".

e) Por meio do referido contrato, os RR. obrigaram-se perante a A. a vender-lhe o dito imóvel pelo preço de € 280.000,00 (duzentos e oitenta mil euros), ficando convencionado que esta poderia exercer tal direito de compra entre 30 de Julho de 2018 e até ao dia 30 de Janeiro de 2019.

f) A A., pretendendo adquirir aquele imóvel, enviou aos RR., em 23 de Julho de 2018, uma carta através da qual lhe comunicou a sua intenção de compra, comunicando expressamente que a escritura respeitante "se encontra agendada para o dia 2 de Agosto de 2018, pelas 12 horas, no Cartório Notarial da Sra. Dra. CC...".

g) A esta missiva responderam os RR. afirmando reconhecer o contrato, bem como a opção de compra nele inserida.

h) Na mesma missiva os RR. escreveram, além do mais, "relativamente à data da escritura, a mesma terá de ser acordada entre as partes, em função da disponibilidade dos intervenientes para o efeito".

i) Em 30 de Julho de 2018, a A., por intermédio do seu mandatário, enviou nova missiva aos RR. solicitando que os RR. indicassem, com a maior brevidade possível, a data em que se encontravam disponíveis para realização da escritura.

j) Em resposta à carta de 30 de Julho de 2018, os RR. remeteram nova missiva à A., na qual afirmam registar a opção de compra da A., e "relativamente à data da escritura de compra e venda confirmo a minha total disponibilidade e da minha esposa, AA, para a celebração da mesma na primeira semana de Setembro de 2024, isto é, imediatamente após o final do Contrato de arrendamento definido na Clausula Terceira do mesmo".

k) Na mesma data em que celebraram o contrato de arrendamento referido em d), A. e RR. subscreveram um outro documento intitulado "contrato de arrendamento comercial", idêntico ao referido em d), com exceção da cláusula Terceira, a qual contém o seguinte teor: "Este contrato é feito pelo prazo de 9, (nove) anos, com início a 1 de Agosto de 2015. Findo o prazo previsto na alínea anterior o contrato renovar-se-á automaticamente por períodos de 5 anos, se não for de denunciado pela primeira outorgante no prazo de 60 dias e pela segunda no prazo de 60 dias com a obrigatoriedade de ter 6 meses efetivos de contrato."

I) Em resposta à carta referida em j), a A., por intermédio do seu mandatário, remeteu, no dia 27 de Agosto de 2018, uma carta aos RR., cuja cópia se mostra junta a fls. 37 e cujo teor aqui se dá por integralmente produzido para todos os efeitos legais.

m) Os RR. responderam a essa missiva, por carta de 4 de Setembro de 2018, cuja cópia se mostra junta a fls. 38 a 40 e cujo teor aqui se dá por integralmente produzido para todos os efeitos legais.

n) A A. vem pagando a renda mensal devida ao abrigo do Contrato de Arrendamento.

o) Os RR. adquiriram o imóvel identificado em b) como um investimento que pretendiam fosse remunerado com as rendas resultantes do seu arrendamento, tendo a Recorrida interesse em que os Recorrentes adquirissem o imóvel em causa para depois o tomar de arrendamento para dele fazer o seu novo escritório.

p) A A. manifestou a vontade de vir a adquirir o imóvel arrendado.

q) Todo este negócio, celebrado entre A. e RR., foi desde logo acordado aquando da compra do imóvel pelos RR, aquisição registada em 18 de Junho de 2015.

r) Previamente à aquisição do imóvel pelos RR., estes acordaram com a A. os termos do contrato de arrendamento, o qual incluiria sempre a opção de compra.

s) O negócio foi sempre acompanhado pelo R. marido, o qual é uma pessoa instruída e que investe no imobiliário, tendo acompanhado a redação do contrato.

t) Os documentos foram redigidos e preparados através da A., mas os RR. participaram ativamente na sua elaboração e exigiram verificar os mesmos antes da sua assinatura.

u) A minuta de contrato enviada pela colaboradora da A. ao R. marido, em 8 de Junho de 2015, estabelecia como prazo do contrato de arrendamento 5 anos e opção de compra pelo preço de 265.000,00 euros, se exercida até 30 de Agosto de 2017, e a minuta enviada pela mesma colaboradora ao R. marido, em 9 de Junho de 2015, estabelecia ao arrendamento um prazo de 9 anos e opção de compra pelo preço de 280000,00 euros se exercida entre 30 de Julho de 2018 até 30 de Janeiro de 2018; a diferença entre as minutas resultou de uma alteração da vontade das partes por encontro dos respectivos interesses.

v) Em 30 de Outubro de 2001 foi emitida licença de utilização do imóvel sito na Rua ……., sito em ……., ……., ……, relativa a oficina de carpintaria e alumínio.


Quanto aos factos não provados decidiu o Tribunal recorrido que:

1. Não se provou que as partes celebraram, entre si, dois contratos de arrendamento em tudo iguais, com exceção da cláusula Terceira.

2. Não se provou que a decisão de se assinar o Contrato de Arrendamento com duração de 9 anos, sem opção de compra, foi o elemento fulcral para a conclusão do negócio.

3. Não se provou que foi decisivo para a vontade de contratar pelos RR. a garantia de duração do arrendamento por um período de 9 anos.

4. Não se provou que a vontade e preocupação da A. foi a de ter a garantia de uma duração longa do arrendamento que lhe desse estabilidade e garantia de permanência do locado para desenvolvimento da sua atividade com base naquelas instalações e localização, incluindo perante o seu franchisador Remax.

5. Não se provou que a garantia de duração do arrendamento por 9 anos foi assim um elemento pacifico e aglutinador da vontade de ambas as partes.

6. Não se provou que a A. manifestou a sua vontade de, findo o contrato de arrendamento, poder vir a adquirir o imóvel arrendado.

7. Não se provou que a A. também pretendia que o contrato de arrendamento tivesse a duração de 9 anos.

8. Não se provou que A. e RR. tivessem fixado o preço de 280.000 € com uma antecedência de 9 anos por referência à data de escritura pública.

9. Não se provou que a diferença entre as minutas resultasse de uma alteração da vontade das partes.

10. Não se provou que na negociação entre as partes, estas passaram de uma proposta inicial com um prazo de 5 anos para 9 anos, por se considerar que aquele prazo de 5 anos era manifestamente insuficiente e não materializava devidamente o interesse das partes.


O DIREITO

Aquilo que logo de início divide as duas instâncias e explica a divergência das decisões é que, enquanto o Tribunal de 1.ª instância considerou aplicável ao presente contrato-promessa a regra (geral) do n.º 1 do artigo 777.º do CC, o Tribunal a quo entendeu que se configurava a hipótese (excepcional) prevista no n.º 2 do artigo 777.º do CC, tornando-se, portanto, necessário, para a autora exigir aos réus a celebração do contrato prometido, que o prazo fosse fixado judicialmente.

Na sentença diz-se:

“A respeito do prazo importa atender ao disposto no artigo 777.º do Código Civil, estatui este preceito legal no seu n.º 1:

“Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela.”

Aplicando o disposto neste normativo ao caso sub Judice, aceitando os RR. o alegado pela A., no sentido de nada ter sido acordado quanto ao prazo ou momento em que a escritura seria realizada, decorre da lei que o prazo é estabelecido a favor do credor, no caso a A., uma vez que foi a favor desta que os RR. fizeram a declaração irrevogável de venda. Assim sendo, como é, manifestando a A. a vontade de comprar, poderia, como exigiu o cumprimento imediato da obrigação dos RR., o que poderia fazer a todo o tempo.

Aqui chegados, poderemos sem mais concluir pela improcedência da exceção perentória da improcedência do pedido de execução específica, por necessidade de fixação prévia de prazo para o cumprimento.

Como referimos quer por força da teoria da impressão do declaratário, quer por força do disposto no artigo 777.º n.º 1 do Código Civil, não era necessário que previamente à presente ação a A. tivesse interposto uma ação com vista à fixação de prazo, uma vez que a escritura pública deveria ter sido celebrada aquando da declaração pela A. de exercício do direito de compra, ou, logo que a A. exigisse o cumprimento da obrigação, o que no caso ocorreu no mesmo momento temporal”.

Em contrapartida, no Acórdão afirma-se:

Qualificada a consagração relativa à opção de compra como promessa unilateral de venda, a declaração de opção pela compra corresponde a uma declaração de vinculação a comprar, com a transmutação da promessa unilateral de venda numa promessa bilateral de compra e venda.

Pode aquela norma do artigo 777.º, n.º 1, do Código Civil, aplicar-se em sede de contrato-promessa?

Não o cremos. Pela sua própria natureza, o contrato-promessa implica o contrário da exigência da prestação a todo o tempo, que o mesmo é dizer, logo desde a celebração do contrato. Assim é porque o cumprimento da promessa é a celebração do contrato prometido e a promessa tem na sua génese justamente o diferimento dessa celebração.

O caso é, então, de as partes não terem acordado num prazo, sendo necessário o seu estabelecimento pela própria natureza da prestação. O que convoca a norma do artigo 777.º, n.º 2, do Código Civil. Diz a mesma:

Se, porém, se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na sua determinação, afixação dele é deferida ao tribunal.

Em suma, não podia a Autora exigir a imediata realização da escritura sem previamente ser fixado o prazo para o cumprimento, naturalmente mediante a acção a tal adequada, a prevista no artigo 1026.º do Código de Processo Civil, que adjectiva o regime do artigo 777.º, n.º 2, do Código Civil22.

A interpelação para a realização da escritura não tem assim a virtualidade de constituir os Réus em mora, visto o que dispõe o artigo 805.º, do Código Civil”.

O percurso trilhado pelo Tribunal a quo está bem sintetizado no sumário do Acórdão, onde pode ler-se:

I) O contrato de opção constitui uma proposta contratual irrevogável convencionada, resultante de acordo das partes, enquanto a proposta irrevogável constitui um acto unilateral do proponente.

II) A diferença fundamental entre a promessa unilateral e o contrato de opção encontra-se em, na primeira, a parte se obrigar a emitir a declaração necessária à celebração do contrato definitivo, e, no segundo, essa declaração ser desde logo emitida gerando a sujeição à emissão da declaração negocial da contraparte.

III) Um contrato em que é arrendado um imóvel e estabelecida a possibilidade de o arrendatário optar no futuro pela compra do imóvel arrendado, prevendo a realização futura de uma escritura de compra e venda, é de qualificar como de arrendamento e promessa unilateral de venda.

IV) É misto o contrato no qual se reúnem elementos de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.

V) A determinação da unidade ou pluralidade contratual constitui tarefa de interpretação do clausulado, representando uma competência (exclusivamente) "jurídica" ou "metodologico-jurídica", que não cabe às partes.

VI) Para a determinação da unidade ou pluralidade contratual interessa considerar se existe um programa económico unitário, Interpretação que supõe a consideração do contrato como um todo e de todo o contrato.

VII) Na determinação do regime legal aplicável a um contrato misto, importa atenderá unidade contratual que se entendeu verificada, uma vez que a unidade contratual de tipos diferentes pode afastar a aplicação das normas que a cada um dos contratos se aplicariam se considerados isoladamente.

VIII) A consideração da unidade contratual afasta a aplicação automática das teorias da absorção, combinação ou aplicação analógica, uma vez que nenhumas destas teorias é inteiramente aceitável, sendo decisiva a situação de interesses do caso concreto, que ora exige uma solução no sentido da teoria da absorção, ora da teoria da combinação, ora da da aplicação analógica.

IX) O contrato-promessa, pela sua própria natureza, exclui a exigência imediata de cumprimento por aplicação do disposto no artigo 777.º, n.º 1, do CC, uma vez que a promessa tem na sua génese justa mente o diferimento da celebração do contrato prometido.

X) Não tendo as partes acordado num prazo para a celebração do contrato prometido, é necessário o seu estabelecimento pela própria natureza da prestação, nos termos do artigo 777.º, n.s 2, do Código Civil”.

Adverte-se de imediato que a aplicabilidade do artigo 777.º do CC ao contrato-promessa (n.º 1 ou n.º 2) não é um ponto incontroverso na doutrina e na jurisprudência portuguesas.

Se alguns autores parecem vir em apoio da tese seguida no Acórdão recorrido, outros parecem sustentar a tese contrária.

Diz, por exemplo, Ana Prata que “num contrato-promessa (…) tem de ser estabelecido prazo para a celebração do contrato final, cumprimento do primeiro[2].

Em contrapartida, reputados autores como Pires de Lima e Antunes Varela sustentam que o contrato-promessa não é, pela sua natureza, um contrato incompatível com a exigência da prestação a todo o tempo.

Dizem estes autores, mais precisamente, que “o princípio geral do n.º 1, único relativo às obrigações puras, é o de que o credor pode exigir o cumprimento a todo o tempo, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se da obrigação. Tal, porém, como já se previa no antigo Código, a falta de estipulação dum prazo pode não importar a possibilidade para o credor de exigir, a todo o tempo, o cumprimento da obrigação. Manda aquele diploma atender à natureza do contrato; prevê o n.º 2 deste artigo 777.º do novo Código a necessidade eventual de estabelecer um prazo em atenção à natureza da prestação, às circunstâncias que a determinaram ou aos usos (prazo natural, circunstancial ou usual) (…).

Há casos, porém, em quem na falta de estipulação de um prazo necessário, se faculta a uma das partes a sua fixação sem necessidade de recurso ao tribunal. É o que sucede com a determinação do prazo para o exercício do direito de resolução do contrato (art. 436.º, 2), para a escolha, pelo credor, da prestação objecto da prestação genérica (art. 542.º, 2) e para a realização da prestação, por exigência do credor, estando o devedor em mora (art. 808.º, 1).

No caso do contrato-promessa, logo que estejam criadas as condições necessárias para a celebração do contrato prometido, qualquer dos promitentes pode fixar data, hora e local para a celebração do contrato prometido. Cfr., a propósito, o ac. da Relação de Lisboa, de 12.7-1983 (Col. Jurisp., VIII, n.º 4, pág. 99)[3] [4].

Mas, vendo bem, independentemente da opinião que se acolha quanto à titularidade, pelo credor, deste poder de exigir a realização do contrato prometido a qualquer momento, não parece que, no presente caso, existam dúvidas quanto a que o contrato prometido podia ser celebrado quando a autora, ora recorrente, exercesse a opção pela compra do imóvel.

Isto induz-se das cláusulas contratuais, em particular da que fixa o preço pelo qual será vendido o imóvel objecto do contrato prometido (€ 280.000,00 se a data do exercício da opção de compra do imóvel for entre 30.07.2018 e 30.01.2019).

No mínimo, é possível dizer que estas cláusulas “desmentem” as alegações dos réus, nada nelas fazendo crer, bem pelo contrário, que as partes contavam que a venda se concretizasse apenas no fim do contrato de arrendamento.

Não foi, em suma, por falta de vencimento da obrigação que o contrato prometido deixou de ser celebrado. O contrato prometido deixou de ser celebrado, sim, porque os réus, ora recorridos, vieram, com a sua carta de 4.09.2018, recusar-se a cumprir a obrigação em que estavam constituídos por força do contrato-promessa.

Tudo considerado, o contrato-promessa deve ter-se por definitivamente incumprido por parte dos réus, ora recorridos, assistindo, pois, à autora, ora recorrente, o direito à execução específica do mesmo, nos termos do artigo 830.º do CC, com vista a obter decisão judicial que produza os efeitos da declaração negocial dos faltosos.



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III. DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento à revista, revogando-se o Acórdão recorrido e repristinando-se a decisão do Tribunal de 1.ª instância, nos seguintes termos:

I. Determina-se a transmissão da propriedade do prédio urbano sito na Rua …, …, composto de edifício de rés-do-chão, para oficina de carpintaria e 1.º andar para escritório, com logradouro, freguesia …. (……), concelho ……, descrita na …. Conservatória do Registo Predial de …. sob o número …..46, inscrito na matriz predial urbana sob artigo ……..41 da união das freguesias  …… (…… e …, … e …), para a autora, Caprichoso Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., substituindo deste modo a declaração de vontade dos réus, AA e BB, mostrando-se depositada, pela autora, a quantia de € 280.000,00 (duzentos e oitenta mil euros), correspondente ao preço acordado pelas partes.

II. Condena-se os réus a restituir à autora as rendas pagas por causa do contrato de arrendamento relativo ao imóvel supra referido desde a data da propositura da presente acção e até ao trânsito em julgado do presente Acórdão, acrescidas de juros de mora à taxa comercial até efectivo e integral pagamento.


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Custas pelos recorridos.

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Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano


Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.

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[1] Encontram-se destacados através de itálico os pontos de facto e os segmentos aditados pelo Tribunal recorrido.
[2] Cfr. Ana Prata, in: Ana Prata (Coord.) Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 975. Cfr. ainda, no mesmo sentido, Ana Afonso, in: AAVV, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p. 1064.
[3] Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, Coimbra, Coimbra Editora, 1986 (3.ª edição), pp. 25-26. No mesmo sentido parecem militar as afirmações de Mário Júlio Almeida Costa (Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2006, 10.ª edição, p. 408), e António Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, II – Direito das Obrigações, tomo II, Coimbra, Almedina, 2010, p. 362).
[4] Esta é também, se bem se compreende, a interpretação propugnada, entre outros, nos Acórdãos, bem mais recentes, deste Supremo Tribunal de Justiça de 21.01.2021, Proc. 109/19.7T8MAI.P1.S1.