PROCEDIMENTO CAUTELAR DE ENTREGA JUDICIAL
EMBARGOS DE TERCEIRO
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

I- A competência para preparar e julgar os embargos de terceiro cabe ao tribunal onde corre a ação, declarativa ou executiva, em que tenha sido ordenado o ato ofensivo da posse, e à qual os embargos de terceiro foram apensados, de acordo com o nº 1 do art. 344 do C.P.C. de 2013;
II- O critério de competência imposto pelas regras da apensação escapa à definição de competência relativa prevista no art. 102 do C.P.C.;
III- Tendo os presentes embargos de terceiro sido deduzidos por apenso a procedimento cautelar instaurado ao abrigo do art. 21 do DL nº 149/95, de 24.6, na sequência da entrega judicial de três imóveis aí ordenada, não obstante o valor atribuído à causa de € 228.103,60, é competente para conhecer dos mesmos embargos de terceiro o Juízo Local Cível de Lisboa onde corre o referido procedimento cautelar de entrega judicial.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:
A  [ ..... Services, Lda, ] veio, em 10.7.2020, por apenso aos autos de procedimento cautelar de entrega judicial que fora requerido junto do Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, ao abrigo do art. 21 do DL nº 149/95, de 24.6, por B [ .....Financeira de Crédito, S.A.], contra C [ .....de Negócios, S.A.] , deduzir embargos de terceiro na sequência da ordenada (em 15.6.2020) entrega judicial das frações AB, AC e AD do prédio urbano sito na Av. da ..., 2204, 2208 e 2216 e Rua do ... 101, 103 e 113, freguesia de Mafamude, concelho de Vila Nova de Gaia. Invoca a embargante, para tanto e em síntese, que tendo as embargadas celebrado entre si um contrato de locação financeira respeitante às ditas frações, é a embargante quem ocupa as mesmas desde 31.3.2015, data em que a 2º embargada locatária lhe cedeu a posição contratual no referido contrato como é do conhecimento da 1ª embargada locadora, pagando desde então a embargante as respetivas rendas. Pede a procedência dos embargos com suspensão imediata dos termos do processo principal. Atribui aos embargos de terceiro o valor de € 228.103,60.
Recebidos estes e determinada a suspensão dos termos do referido procedimento cautelar, foi ordenada a notificação das embargadas contestar (fls. 107).
Contestou a 1ª embargada, Caixa Leasing e Factoring-Sociedade Financeira de Crédito, S.A., impugnando a factualidade alegada e afirmando que os autos devem revestir natureza urgente por forma a permitir que o processo principal não perca esse caráter. Diz, além do mais, que a embargante é parte ilegítima e que a cessão da posição contratual invocada não opera perante si, locadora, que a não autorizou e a quem não foi dado qualquer conhecimento dessa cessão. Pede a improcedência dos embargos de terceiro a condenação da embargante como litigante de má-fé.
Em 25.1.2021, foi proferido o seguinte despacho: “Nos termos do artigo 117° da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n° 62/2013, de 26.8), na redacção que lhe foi dada pela Lei n° 40-A de 22-12-2016, compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e o julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50.000,00;
b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a € 50.000,00 as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de outra secção ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência;
d) Exercer as demais competência conferidas por lei.
Por sua vez, nos termos do artigo 130°, n°1, da mesma Lei, os juízos locais cíveis possuem competência na respectiva área territorial quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.
Ora, o processo comum é o processo-regra e os processos especiais são os processos-excepção, sendo que são especiais os processos que a lei designa como tais, definindo-se a contrariu sensu o âmbito de aplicação do processo comum.
Assim, não cabe ao juízo local cível a a preparação e o julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50.000, uma vez que, os embargos de terceiro, integram uma acção declarativa com processo comum, e aos presentes embargos foi atribuído o valor de 228,103,60, a competência para a apreciação e julgamento da mesma está atribuída aos Juízos Centrais Cíveis.
Desta forma, face ao disposto conjugadamente nos artigos 296º, 297.°, 299.°, e 306.°, do Código de Processo Civil, fixo o valor da causa em € 228.103,60
Em consequência, ao abrigo do disposto no artigo 66.° do Código de Processo Civil e do artigo 117.°, n.° 1, alínea a), da Lei n.° 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), considero este juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa incompetente, em razão do valor, para conhecer do mérito da presente acção e determino a remessa dos autos ao Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Custas do incidente pelos Autores, fixando-se a taxa de justiça em uma unidade de conta — artigo 7.° n.° 4, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela II anexa ao mesmo.
Notifique e, apôs trânsito, remeta.(…).”
Inconformada, recorreu a embargante A, culminando as alegações por si apresentadas com as conclusões que a seguir se transcrevem:

1. Os presentes autos correm por apenso.
2. De acordo com o invocado "artigo 117° da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n° 62/2013, de 26.8), na redacção que lhe foi dada pela Lei n° 40 - A de 22-12-2016, compete aos juízos centrais cíveis: ... c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência".
3. Ora, no caso concreto, a competência para apreciar o procedimento em questão depende da competência para apreciar "os autos" ao qual o mesmo foi apenso.
4. Sendo que, no caso concreto, a competência para apreciar os autos a que os presentes embargos foram apensos, é, nos termos do artigo 130°, n°1, da mesma Lei, do juízo local cível.
5. E, logo, do juízo local cível, a competência para apreciar os presentes embargos, dependentes daquela acção, que foi já apreciada e decidida no juízo local cível.
6. Assim, cabe ao juízo local cível a preparação e o julgamento dos presentes embargos de terceiro.
7. Sendo que a decisão recorrida viola o disposto no artigo 66.° do Código de Processo Civil e no artigo 117.°, n.° 1, alínea a), da Lei n.° 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).”
Pede a revogação do decidido, entendendo-se como competente para apreciar o presente apenso o Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Não se mostram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentos de Facto:
A factualidade a ponderar é a que acima consta do relatório.
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III- Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Compulsadas as conclusões acima enunciadas, verificamos que está em causa apreciar se compete ao Juízo Local Cível de Lisboa decidir os presentes embargos de terceiro deduzidos por apenso ao procedimento cautelar que naquele Juízo foi instaurado e julgado, ou se tal competência caberá, atento o respetivo valor (€ 228.103,60), ao Juízo Central Cível do dito Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Analisando.
A Lei nº 62/2013, de 26.8, aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), tendo sido regulamentada pelo DL nº 49/2014, de 27.3 (Regulamento), com o que foi estabelecido um novo modelo de organização e funcionamento dos tribunais judiciais.
Assim, os tribunais judiciais de primeira instância incluem hoje os tribunais de competência territorial alargada([1]) e os tribunais de comarca, estando o território nacional dividido em 23 comarcas (art. 33 e Anexo II da LOSJ).
Por seu turno, os tribunais de comarca desdobram-se em juízos que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade (arts. 79 a 81 da LOSJ).
Podem ser criados, entre outros, os juízos de competência especializada central cível e local cível (art. 81, nº 3, da LOSJ).
Dispõe o art. 117 da LOSJ, na redação conferida pela Lei nº 40-A/2016, de 22.12, que:
“1 - Compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;
b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
2 - Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.
3 - São remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.”
Dispõe ainda o nº 1 do art. 130 da LOSJ que: “Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.”
Assim, competirá aos juízos locais cíveis preparar e julgar os processos cíveis relativos a causas não atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (art. 130, nº 1, al. a), da LOSJ), pelo que, em princípio, se determinada causa não couber na competência destes, caberá na competência do juízo local cível.
Por sua vez, a defesa por embargos de terceiro pressupõe que uma diligência judicialmente ordenada ofenda a posse do terceiro que não é parte na causa ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência (cfr. arts. 1285 do C.C. e 342 e ss. do C.P.C.([2])), o que significa que estamos perante um meio de oposição à penhora ou a outro ato judicial de apreensão ou entrega de bens que visa, por isso mesmo e em última análise, o levantamento da correspondente penhora ou, em geral, do ato ofensivo do direito do embargante.
Os embargos de terceiro encontram-se regulados nos arts. 342 e ss. do C.P.C. como um incidente de intervenção de terceiro numa ação pendente, contendo uma fase introdutória e uma fase contraditória (arts. 345 e 348 do C.P.C.).
Recebidos os embargos, são notificadas as partes primitivas para contestar, seguindo-se os termos do processo comum (art. 348 do C.P.C.).
Os embargos de terceiro são ainda processados por apenso à causa em que tenha sido ordenado o ato ofensivo da posse (art. 344 do C.P.C.).
Assim, e dada a sua natureza de incidente de intervenção de terceiro, o tribunal competente para conhecer dos embargos de terceiro será o tribunal onde corre a ação respetiva, declarativa ou executiva, conforme decorre do art. 91, nº 1, do C.P.C.([3]), e sempre decorreria do nº 2 do art. 206 do mesmo Código([4]).
Como afirma Rui Pinto([5]), a propósito dos embargos de terceiro na execução: “(…) O tribunal competente para conhecer os embargos de terceiro é o tribunal onde está a correr a execução, mesmo que seja um tribunal  de competência especializada ou de competência específica.
Tal decorre da extensão de competência que lhe é dada pelo artigo 91º nº 1, dada a natureza de incidente de intervenção de terceiro na instância dos embargos.(…).”
Tal critério de competência imposto pelas regras da apensação escapa à definição de competência relativa prevista no art. 102 do C.P.C..
Desta forma, e na linha do entendimento seguido no Ac. desta RL de 12.7.2006([6]) – se bem que em diverso quadro normativo – cremos que a regra do processamento por apenso estabelecida no Código de Processo Civil, sem que se mostre estabelecida qualquer ressalva,  prevalece sobre as respeitantes à atribuição de competência em razão do valor da causa, não havendo que atender ao regime do art. 117 da LOSJ.
Veja-se, aliás, que o art. 97 da anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais aprovada pela Lei nº 3/99, de 13.1, que definia a competência das então denominadas varas cíveis, previa expressamente, no seu nº 4, que seriam remetidos às varas cíveis “para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças processuais, nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo.” Reconhecia-se, deste modo, que a competência para, designadamente, preparar os embargos de terceiro caberia ao tribunal onde corresse a ação em que fora ordenado o ato ofensivo da posse, prevendo-se a hipótese de remessa à vara cível apenas no caso de julgamento ter lugar com intervenção do tribunal coletivo.
Tal norma não encontra paralelo no atual art. 117 da LOSJ – desde logo porque, atualmente, no processo de declaração a audiência decorre apenas perante juiz singular (art. 599 do C.P.C. de 2013, por contraponto ao art. 646 do C.P.C. de 1961) – ainda que continue a prever-se, no seu nº 3 (tal como no anterior nº 3 do art. 97 da LOTJ, feitas as devidas adaptações), que serão remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes, nomeadamente no juízo local cível, em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência([7]).
Do que deixamos dito decorre, por isso e a nosso ver, que a competência para preparar e julgar os embargos de terceiro cabe hoje (em definitivo) ao tribunal onde corre a ação, declarativa ou executiva, em que tenha sido ordenado o ato ofensivo da posse, e à qual os embargos de terceiro foram apensados, de acordo com o nº 1 do art. 344 do C.P.C..
Na situação em análise, os embargos de terceiro foram deduzidos por apenso ao procedimento cautelar instaurado ao abrigo do art. 21 do DL nº 149/95, de 24.6, na sequência da entrega judicial de três imóveis ordenada, em 15.6.2020, nestes autos.
Assim, forçoso é concluir que, não obstante o valor atribuído à causa de € 228.103,60, é competente para conhecer dos referidos embargos de terceiro o Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 23, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, onde corre o referido procedimento cautelar de entrega judicial a que se encontram apensos.
Procede, por isso, o recurso.
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IV- Decisão:
Termos em que e face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, julgando o Tribunal a quo competente para conhecer dos presentes embargos de terceiro.
Sem custas.
Notifique.
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Lisboa, 22.6.2021
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
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[1] Estes tribunais têm competência para mais do que uma comarca ou sobre áreas especialmente referidas na lei (art. 83 da LOSJ).
[2] Dispõe o atual art. 342, nº 1, do C.P.C., que: “Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.”
[3] Com efeito, dispõe este normativo que: “O tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.”
[4] Nos termos do nº 2 do art. 206 do C.P.C. “As causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.”
[5] “A Ação Executiva”, 2019, pág. 750.
[6] Proc. 1588/2006-2, em www.dgsi.pt.
[7] Será o caso do valor atribuído à reconvenção implicar a fixação do valor da causa em montante superior a € 50.000,00 (cfr. arts. 93, nº 2, e 299 do C.P.C.).