EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO
CULPA GRAVE
Sumário

- a exoneração do passivo restante permite que o Devedor se liberte de dívidas e se possa reabilitar economicamente, benefício que só é concedido ao Devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado durante o período de cessão;
- essa decisão assenta na apreciação da conduta que foi desenvolvida pelo Devedor ao longo do período de cessão;
- a obrigação de entrega do rendimento objeto de cessão deve ser cumprida logo que esse rendimento seja recebido, de forma imediata, não tendo cabimento o pagamento do valor global decorrido que está, há muito, o período de cessão, com recurso a crédito;
- a lei impõe ao fiduciário um desempenho ativo no sentido de obter do devedor, e daqueles de quem este tenha direito a haver os rendimentos, a parte objeto de cessão, cabendo ao Tribunal acompanhar, pelo menos anualmente, o modo como vem sendo feito o recebimento dos rendimentos objeto de cessão e a subsequente liquidação pelo fiduciário.
(Sumário da Relatora

Texto Integral

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Devedora: (…)
Recorridos / Credores: (…), Portugal, Lda. e outros

Decretada que foi a insolvência da Devedora, esta requereu a exoneração do passivo restante, o que foi liminarmente deferido por decisão de 03/07/2013, “fixando em 2 salários mínimos o sustento minimamente digno da insolvente” – cfr. fls. 319.
O encerramento do processo de insolvência foi determinado por decisão de 03/07/2013 – cfr. fls. 314 e ss.
O período de cessão terminou em julho de 2018.
A 23/03/2017 foi imposta ao fiduciário a medida de suspensão imediata do exercício de funções de Administrador Judicial.
A substituição do Administrador da Insolvência teve lugar por despacho de 25/02/2019.
A 25/03/2019, o Fiduciário apresentou o único relatório anual constante dos autos informando que:
- desde agosto de 2013 a julho de 2018 a Devedora nenhum montante entregou ao fiduciário;
- durante todo esse período, a Devedora permaneceu ao serviço da Associação (…) do Algarve, em Faro, com a categoria profissional de técnica de produção, auferindo o salário mensal ilíquido de € 1.045,54;
- a partir dos recibos mensais de rendimentos e tendo por referência a quantia equivalente a 2 SMN em cada um dos referidos anos, considerando ainda quantias devolvidas pela AT relativas a IRS, deviam ter sido entregues pela Devedora € 37.314,63.
Por decisão judicial foi recusada à Devedora a pretensão de pagamento dessa verba em prestações durante o período de 4 anos, instando-a a pagar em 30 dias, sugerindo o recurso a empréstimo junto de familiar ou amigo.
A Devedora invocou que, no âmbito da sua atividade profissional (Direção de Produção da … do Sul) frequentemente necessita realizar despesas com deslocações no Algarve e no resto do país para contactos com outras entidades no âmbito da sua atividade profissional, utilizando, para o efeito, veículo automóvel de terceiro, recebendo quantias a título de reembolso/subsídio de deslocação que consta em alguns dos seus recibos de vencimento de 2013 (€ 75,00), 2014 (€ 175,00) e 2015 (€ 607,50; € 1.082,20; € 2.551,52 e € 997,75) e que foram todos comunicados ao Fiduciário.
A quantia de € 37.314,63 não foi paga.

II – O Objeto do Recurso
Foi proferida decisão indeferindo a exoneração do passivo restante à Devedora com fundamento no incumprimento do dever de entrega do rendimento disponível para com a massa insolvente em prejuízo dos credores.
Inconformada, a Devedora apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«I- Não obstante o facto da presente ação ter o valor de € 2.000,00 uma vez que o objeto do presente recurso está associado às condições de concessão ou não da exoneração final do passivo restante nos termos legais, tem-se por aplicável o teor do acórdão nº 328/12, de 27/6/2012 do Tribunal Constitucional, em que foi relator o Juiz Conselheiro Vítor Gomes (cfr. Proc. n.º 189/12, 2ª secção), no qual se considerou inconstitucional, o disposto no artigo 15.º do CIRE, interpretado no sentido de que, no recurso de decisões proferidas no incidente de exoneração do passivo restante em processo de insolvência, o valor da causa para efeitos de relação com a alçada do tribunal de que se recorre é determinada pelo ativo do devedor.
II- Pelo que, desde já, aqui se invoca e argui que a aplicação do disposto nos artigos 14.º, n.º 1 e 15.º do CIRE são igualmente inconstitucionais, interpretados no sentido de que, no recurso de decisões proferidas sobre a questão da concessão da exoneração do passivo restante (no âmbito do incidente- embora correndo termos nos próprios autos de processo principal- de exoneração do passivo restante em processo de insolvência) o valor da causa para efeitos de relação com a alçada do tribunal de que se recorre é determinada pelo ativo do devedor que consta da sentença inicial de insolvência, por violação do disposto no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa porquanto não é nada justo que pessoas insolventes, com processos de insolvência com valores baixos sejam prejudicadas, por motivos associados à sua parca condição económica.
III- No dia 03/07/2013, veio a ser proferido, nos autos de processo principal despacho de deferimento liminar da exoneração do passivo restante a favor da aqui Recorrente, tendo sido nomeado o respetivo Fiduciário que, ao longo dos 5 anos da cessão do rendimento disponível, nunca apresentou qualquer relatório a que se refere o artigo 240.º, nº 2, do CIRE, nem nunca solicitou qualquer pagamento à aqui Recorrente, assim como o tribunal “a quo” nunca notificou o dito fiduciário nem para o efeito da apresentação desses 5 relatórios anuais, nem nos termos do disposto no artigo 58.º, nem 61.º, nem 62.º, n.º 2, do CIRE, nem do artigo 417.º, n.º 2, do C.P.C., como é prática judiciária corrente e habitual, assim como os credores nunca apresentaram qualquer requerimento acerca da ausência de qualquer pagamento, nem muito menos requereram qualquer cessação antecipada da exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.
IV- Após o dia 03/07/2013 em que a aqui Recorrente obteve despacho de deferimento liminar da exoneração do passivo restante favorável, a Recorrente remeteu ao Sr Fiduciário, então, em funções, 7 correios eletrónicos, datados de 6/10/2015 (Doc. n.º 1), 26/02/2016 (Doc. n.º 2), 03/10/2016 (Doc. n.º 3), 27/05/2017 (Doc. n.º 4), 02/11/2017 (Doc. n.º 5), 04/06/2018 (Doc. n.º 6) e 29/12/2018 (Doc. n.º 7), nos quais lhe remeteu , informação de alteração de morada, recibos mensais de vencimento, declarações de IRS e notas de liquidação de IRS, conforme teor do seu requerimento de 04/04/2019 com a referência eletrónica n.º 6679605 e dos seus 7 primeiros documentos.
V- No dia 25/02/2019, ao longo dos 5 anos, e após nunca ter apresentado um único relatório anual, nos termos do disposto no artigo 240.º, n.º 2, do CIRE, por despacho de 25/02/2019, foi o Fiduciário substituído pelo atual, tendo, no dia 25/03/2019 apresentado o único (em 5 anos) relatório anual, no qual menciona que a aqui Recorrente não procedeu à entrega do valor previsto para a cessão do rendimento disponível, tendo, no entanto, enquadrado que “A devedora alega que nunca foi sua intenção qualquer incumprimento com esta situação e que também não teve o devido acompanhamento por parte do anterior Administrador de Insolvência, uma vez que ele não a foi alertando sobre as medidas impostas durante todo o período de exoneração”.
VI- No dia 04/04/2019, a Recorrente apresentou um requerimento, acompanhado de 13 documentos, apresentou despesas extraordinárias de saúde e educação, alegou que o ex-marido não pagou a pensão de alimentos devidos à menor, filha de ambos, (…), estudante, e explicou, nos pontos 7 a 9 desse requerimento, que uma parte do seu salário diz respeito ao reembolso de despesas de deslocação decorrentes da sua atividade profissional logo não é, nem poderia ser um “rendimento” a ceder, nos termos do disposto no artigo 292.º, n.º 3, alínea ii), do CIRE e, a final, peticionou, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, nas suas alíneas ii) e iii), parte final, do CIRE, que fosse excluído do valor a ceder por conta do rendimento disponível o total de € 11.728,76, devendo, pois, a Insolvente, em consequência, entregar ao Fiduciário o remanescente de € 25.585,87 ou, em alternativa, o pagamento em prestações do valor em dívida.
VII- Por despacho de 24/9/2019, veio a ser indeferido o pedido de pagamento em prestações e de abatimento do valor a pagar peticionado no requerimento de 04/04/2019 apresentado pela aqui Recorrente.
VIII- No dia 07/01/2021, por douto despacho judicial, foi substituído o segundo fiduciário que tinha sido nomeado em 25/02/2019, tendo sido nomeado um terceiro fiduciário que, no dia 18/01/2021, perante a resposta da aqui Recorrente, na pessoa do seu mandatário, de que não tinha acesso ao crédito bancário, nem lhe tinha sido permitido pelo tribunal o pagamento da dívida, em prestações, propõe, à luz do artigo 244.º do CIRE que seja proferido despacho de recusa da exoneração do passivo restante.
IX- No dia 05/02/2021, o tribunal ordena a notificação de todas as partes processuais sobre o teor da comunicação do 3º Fiduciário, do dia 18/01/2021.
X- No dia 11/03/2021, foi proferido douto despacho judicial final de recusa da exoneração, com a referência eletrónica n.º 119439256, na qual se decidiu o seguinte:
“A Insolvente requereu a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 235.º e seguintes do CIRE, a qual foi liminarmente deferida.
No último relatório foi reportada situação de incumprimento estando em falta o valor de 37.314,63 euros, tendo sido esgotadas as possibilidades de entrega pela devedora que declarou ao fiduciário não ter qualquer possibilidade de entregar este valor. O período da fidúcia terminou em 2018. A devedora não procedeu à entrega do montante em falta. (….). Ora, nos presentes autos, fazendo uma análise global do período de cessão no âmbito da exoneração do passivo restante, verifica-se que a Insolvente incumpriu com o seu dever de entrega do rendimento disponível para com a Massa Insolvente em prejuízo dos credores” (página 5 do despacho recorrido).
XI- A decisão judicial de indeferir a exoneração do passivo restante não foi precedida de notificação expressa e explícita acerca dessa possibilidade, nos termos do disposto nos artigos 243.º, n.º 3, aplicável ex vi do artigo 233.º, n.º 2 e 244.º, n.º 1 e 246.º, n.º 3, todos do CIRE, porquanto inexiste nos autos qualquer notificação remetida pessoalmente à aqui Recorrente ou ao seu mandatário na qual expressamente conste “para no prazo de 10 (dez) dias se pronunciar, querendo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor (n.º 1 do artigo 244.º do CIRE)”, tal como é prática processual corrente.
XII- E, nem se diga, que a notificação às partes, no dia 05/02/2021, do teor do requerimento do 3º Fiduciário nomeado nos autos, datado de 18/01/2021 preenche o cumprimento do disposto nos citados artigos 243.º, n.º 3, aplicável ex vi artigo 233.º, n.º 2 e 244.º, n.º 1 e 246.º, n.º 3, todos do CIRE, pois, por um lado, o teor do requerimento do 3º Fiduciário de 18/01/2021 apenas se limita a constatar que a Recorrente declarou não lhe ser possível pagar, de uma só vez, o valor em causa, e que, segundo este, tal poderia ser motivo de recusa da exoneração do passivo restante e, por outro lado, tal notificação não contém qualquer menção expressa nem explícita a qualquer desses dispositivos legais.
XIII- A decisão judicial de recusar e indeferir a exoneração do passivo restante ao nem sequer se referir à questão da ocorrência de dolo ou negligência grave por parte da Recorrente violou o disposto nos artigos 243.º, n.º 1, alínea a) e 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE, por via aqui do artigo 244.º, n.º 2, do CIRE, segundo os quais “o mero incumprimento da entrega de quantias ao fiduciário, por banda do devedor, sem que se apure que o mesmo tenha sido doloso ou cometido com grave negligência (….) não poderá sem mais conduzir à cessação antecipada da cessão de créditos” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22/10/2020, processo n.º 779/14.2 TBOLH.E1, in www.dgsi.pt e, no mesmo sentido, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/02/218, processo n.º 5038/11.0TCLRS.L1, in www.pgdlisboa.pt).
XIV- A decisão recorrida não se pronunciou sobre os factos referidos nas conclusões III) a VI) supra, sendo que, das mesmas não resulta, no entender da Recorrente nem a ocorrência de uma intenção direta de incumprimento dos seus deveres, nem uma atuação com elevado e anormal grau de imprudência, sobretudo quando ninguém (Tribunal, credores, Fiduciário) a informaram dos valores a entregar anualmente sendo que só foi informada do valor alegadamente em dívida (nunca durante o período de cessão do rendimento disponível, mas) por via de relatório do 2º Fiduciário, de 25/03/2019, o que, segundo o Tribunal da Relação de Guimarães, no seu douto acórdão de 11/10/2018, processo n.º 3695/12.9TBGMR.G1, in www.dgsi.pt , viola “os princípios de cooperação, boa-fé processual e colaboração entre as partes e entre estas e o tribunal” e, dizemos nós, também o artigo 6.º, n.º 1, do CPC, da boa gestão processual, aplicável por via do disposto no artigo 17.º do C.I.R.E., ao permitir que a Recorrente, 1 ano após o fim dos 5 anos de cessão e, não obstante os seus correios eletrónicos mencionados na Conclusão IV supra, venha a ser surpreendida com um valor astronómico por pagar, sozinha, com uma filha a estudar, e sem que o pai pague a pensão de alimentos e sem que os factos e documentos do seu requerimento de 04/04/2020 fossem sequer analisados pelo tribunal “a quo” na sua decisão final de recusa da concessão da exoneração do passivo restante.»
Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se a Devedora incorreu na violação dolosa ou com grave negligência do dever de entrega imediata ao fiduciário, quando por si recebida, da parte dos seus rendimentos objeto de cessão, que lhe é imposto pelo art. 239.º do CIRE, prejudicando, por esse facto, a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: aqueles que constam supra relatados.

B – O Direito
Nos termos do disposto no artigo 235.º do CIRE, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência se não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.
Entre essas disposições consta o artigo 239.º do CIRE, cujo n.º 2 estatui que o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
Segue o n.º 3 determinando que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Trata-se de uma medida inovadora de proteção do devedor pessoa singular, permitindo que se liberte do peso das suas dívidas, podendo recomeçar de novo a sua vida[1]. Destina-se, pois, a promover a reabilitação económica do devedor a que alude o preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de março.
Não descurando, no entanto, os interesses dos credores, tal regime impõe ao devedor a cedência do seu rendimento disponível a um fiduciário nomeado pelo tribunal, que afetará, no final de cada ano, os montantes recebidos ao pagamento dos itens enunciados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, designadamente distribuindo o remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores. A excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excecional.[2]
Decorrido o período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados – cfr. artigos 241.º, n.º 1 e 245.º do CIRE.
Proferido que seja o despacho inicial da exoneração, o devedor fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no artigo 239.º do CIRE. Terminado o período da cessão, cabe ao juiz decidir sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, sendo que a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente – cfr. artigo 244.º/1 e 2, do CIRE.
Aplica-se, assim, o regime inserto no artigo 243.º do CIRE, nos termos do qual a recusa da exoneração ocorre quando venha a verificar-se que o devedor não é digno de beneficiar do referido procedimento, implicando na recusa superveniente da exoneração – artigo 243.º, n.º 1, do CIRE. Cabe, neste caso, apreciar se o devedor dolosamente ou com grave negligência violou alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência – cfr. artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.
Ora, essa decisão assenta na apreciação da conduta que foi desenvolvida pelo Devedor ao longo do período de cessão. Como é evidenciado no Preâmbulo do DL que aprova o CIRE[3], “A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sob ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor de eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”
Decorre do exposto que, findo o período de cessão, cumpre apreciar se o Devedor atuou, ao longo do período de 5 anos, com lisura e retidão no cumprimento dos deveres consagrados no artigo 239.º/4, do CIRE. Se, porventura, se apurar existirem pagamentos em falta, não tem cabimento exortá-lo a assumir novas dívidas para se libertar das relacionadas no processo de insolvência nem há que equacionar o pagamento faseado: o dever é o de entrega imediata ao fiduciário, quando recebida, da parte dos rendimentos objeto de cessão; logo, findo o período de cessão, importa apreciar se, em cada momento em que o Devedor recebeu rendimentos objeto de cessão, os entregou imediatamente ao fiduciário; e se não entregou, mais importa apreciar se atuou dolosamente ou com negligência grave, assim prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE, durante o período da cessão, o devedor fica (…) obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
(…).
O rendimento que constitui objeto de cessão tem que ser apurado mensalmente, tendo por referência o rendimento líquido efetivamente recebido, descontados encargos com a Autoridade Tributária ou com a Segurança Social[4] ou ainda verbas eventualmente auferidas a título de reembolso de despesas, etc.
No caso que temos em mãos, a exoneração do passivo restante foi recusada nos seguintes termos:
«Ora, nos presentes autos, fazendo uma análise global do período de cessão no âmbito da exoneração do passivo restante, verifica-se que a Insolvente incumpriu com o seu dever de entrega do rendimento disponível para com a Massa Insolvente em prejuízo dos credores.
Como se sabe, o decretamento da exoneração do passivo restante impõe um perdão de dívidas, exonerando o devedor dos seus débitos com a perda, para os credores, dos seus correspetivos créditos.
Em face do exposto, indefere-se a Exoneração do Passivo Restante à Insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 245.º do C.I.R.E.»
Analisado, contudo, o mapa apresentado no único relatório apresentado nos autos pelo fiduciário, decorridos que estavam 8 meses sobre o termo do período de cessão, dele não se retira que a devedora tenha incorrido em incumprimento, nem por que montante. É mencionado o valor que se apurou de cada recibo de vencimento (oscilam entre os € 932,17 e os € 2.487,44), sendo apurada a diferença para a quantia equivalente a 2 SMN, mas não temos elementos que evidenciem se o valor apontado como “Recibos Vencimento” se reporta ou não ao rendimento líquido, até por que consta ainda desse relatório que a Devedora auferiu, durante todos os 5 anos, o vencimento mensal ilíquido de € 1.045,54.
Os autos também não documentam que a Devedora, que efetivamente não entregou qualquer rendimento, tenha atuado dolosamente ou com grave negligência.
Sem descurar o facto de que se trata de incidente deduzido por iniciativa do Devedor e que a este beneficia, resultando incumbido de prover a pronta e imediata entrega ao fiduciário da parte dos rendimentos objeto de cessão, certo é que a lei impõe ao fiduciário, que para isso é remunerado (cfr. artigo 240.º/1, do CIRE), tarefas tendentes a definir a parte dos rendimentos que constitui objeto de cessão, ao longo do período de cinco anos, notificando a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los, sendo que é no final de cada ano em que dure a cessão que deve afetar os montantes recebidos aos pagamentos devidos – cfr. artigo 241.º/1, do CIRE. Mais impõe ao Tribunal o acompanhamento, pelo menos com cadência anual, do modo como se vem processando o cumprimento das obrigações legais por parte do Devedor e, bem assim, do modo como se vem processando o cumprimento das obrigações legais por parte do fiduciário, a quem cabe a liquidação, ou seja, a afetação anual dos montantes recebidos aos pagamentos, nos moldes estabelecidos no artigo 241.º/1, do CIRE – cfr. artigos 240.º/2 e 61.º/1, do CIRE.
Alcança-se dos autos que o Fiduciário não exercitou a sua incumbência de obtenção dos rendimentos objeto de cessão da entidade de quem a Devedora tinha direito a recebê-los, não os apurou atempadamente nem informou anualmente o Tribunal da falta de obtenção do rendimento objeto de cessão, que ao longo de 5 anos não cuidou de indagar junto do Fiduciário o motivo do incumprimento, por este, do dever legal consagrado no artigo 240.º/2, do CIRE. Veja-se que, terminando o período de cessão em julho de 2018, o Fiduciário tinha visto suspensa a sua atividade em 23/03/2017; a substituição dele teve lugar por despacho de 25/02/2019; o único relatório anual constante dos autos foi apresentado a 25/03/2019.
Ponderados todos estes elementos de facto inerentes ao modo como foi exercida, neste caso concreto, a atividade judiciária e a administração da insolvência, é de concluir inexistir fundamento para afirmar ser censurável a conduta da Devedora, que não entregou quaisquer rendimentos ao fiduciário.
Assim, ainda que se tivesse apurado (e não se apurou[5]) estar a Devedora em falta com a entrega de quantia monetária (o rendimento líquido que, em cada mês, tivesse excedido o valor equivalente a 2 SMN), certo é que a violação da obrigação de entrega do rendimento objeto de cessão, logo que recebido, não se revestiria de dolo ou de grave negligência.
Inexiste, pois, fundamento para recusar a exoneração do passivo – cfr. artigo 244.º/2, do CIRE.

Concluindo:
(…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, concedendo-se à Devedora a exoneração do passivo restante.
Sem custas, por não serem devidas.
Évora, 30 de junho de 2021
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] V. Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis 2005, p. 167.
[2] Cfr. Ac. TRC de 07/03/2017 (Jorge Manuel Loureiro).
[3] Cfr. ponto 45 da versão atualizada.
[4] Cfr. AC. TRC de 04/02/2020 (Proc. n.º 695/13).
[5] O que por si só afasta a afirmação do prejuízo da satisfação dos créditos sobre a insolvência.