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ACTO MÉDICO
CONSENTIMENTO
INFORMADO
EFEITOS SECUNDÁRIOS
IMPROVAVEIS
INCLUSÃO NA INFORMAÇÃO A PRESTAR
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I - O consentimento informado pressupõe que ao doente tenha sido fornecida informação das razões que subjazem à necessidade, conveniência ou finalidade do acto proposto, da natureza deste, da perigosidade dos meios que irão ser usados, das consequências previsíveis, dos efeitos secundários e dos riscos do acto que não devam considerar-se altamente improváveis, da existência de intervenções alternativas que sejam aptas a gerar resultados equiparados e/ou menos arriscados. II - Porque essa informação tem por objectivo criar condições para uma decisão livre e informada, a mesma deve compreender tudo quanto uma pessoa medianamente interessada e razoável, consideraria, em condições normais, como factor com influência para a sua decisão. III - Recai sobre o médico o ónus de demonstrar que os riscos e efeitos secundários de que o doente não foi informado eram de tal modo improváveis, raros e/ou de escassa gravidade ou fácil tratamento por meios sucedâneos que não tinham de ser incluídos na informação a prestar. IV - Recai sobre o médico o ónus de demonstrar que mesmo que fosse informado dos riscos do acto o doente daria o seu consentimento. V - Toda a afectação da integridade física e psíquica da pessoa não precedida da obtenção do consentimento informado é ilícita e constitui em si mesmo um dano (dano real).
Texto Integral
Recurso de Apelação ECLI:PT:TRP:2021:711.10.2TVPRT.P1
Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, contribuinte fiscal n.º ………, advogado, com domicílio profissional no Porto, intentou a presente acção judicial contra C…, S.A., pessoa colectiva n.º ………, com sede no Porto, D…, contribuinte fiscal n.º ………, com domicílio no Porto, Clínica Oftalmológica E…, S.A., pessoa colectiva n.º ………, com sede no Porto, e F…, contribuinte fiscal n.º ………, com domicílio no Porto, formulando contra estes os seguintes pedidos: a) condenação dos réus no pagamento de compensação por danos patrimoniais correspondente à incapacidade pelo autor sofrida em resultado da conduta dos réus, a liquidar em decisão ulterior; b) condenação dos réus no pagamento de compensação pelos danos não patrimoniais pelo autor sofridos em resultado da conduta dos réus, a liquidar em decisão ulterior; c) condenação dos réus C…, SA, e D… na devolução da quantia pelo autor paga pela intervenção realizada nas instalações do primeiro, bem como dos valores aí despendidos em consultas e exames (no total de €1 087,93); d) condenação dos réus Clínica Oftalmológica E…, SA, e F… na devolução da quantia pelo autor paga pelas intervenções realizadas nas instalações da primeira, bem como dos valores despendidos em consultas e exames (no total de €1.301,00); e) condenação dos réus na publicação da sentença a proferir nos autos, em jornal nacional de referência, durante 4 Domingos, de forma a evitar que potenciais candidatos a realizar intervenção com recurso à técnica “Lasik” possam ser operados sem qualquer informação; f) condenação dos réus no pagamento de todas as despesas a suportar com tratamentos médicos e cirúrgicos (incluindo deslocação e estadia) que, futuramente, com o avanço da ciência, possam ser executados para minimizar a incapacidade visual de que o autor ficou afectado.
Para o efeito, alegou que desde os 6 anos de idade sofre de miopia e tem necessidade de usar óculos de forma permanente, o que se agravou com a idade, razão pela qual, em 2004, em consulta oftalmológica no “Hospital C1…”, então pertença da ré C…, registou 9 dioptrias no olho direito e 8,50 dioptrias no olho esquerdo. Numa unidade da ré C… teve acesso a brochura relativa a uma técnica de correcção cirúrgica da miopia denominada “Lasik”, que lhe traria solução para os seus problemas diários relacionados com o uso de óculos ou lentes de contacto, sem efeito secundário, o que era confirmado em newsletter distribuída pela mesma ré em Outubro de 2006. Em Dezembro de 2004 agendou consulta com o réu D… que era o responsável pela execução de tratamento com recurso a tal tecnologia na ré C…, para aferir da possibilidade de corrigir cirurgicamente a miopia que o afectava, visando cessar em absoluto a utilização de óculos ou lentes de contacto. Na sequência disso, realizou os exames que este entendeu serem necessários para avaliar a situação, recebeu dele algumas indicações pré-operatórias, bem como a informação que a recuperação seria quase imediata e sem dores, e foi alertado para a eventual necessidade de posteriormente, cerca de 3 meses após a primeira intervenção, se corrigir o que não ficasse perfeito na primeira intervenção. O réu transmitiu-lhe que ele iria abandonar de forma definitiva o uso de auxiliares de visão, mas nada lhe transmitido sobre os riscos e possíveis efeitos secundários da intervenção. Na data agendada foi submetido à intervenção programada, no final da qual lhe foi dito que tudo se processara normalmente, devendo regressar no dia seguinte para acompanhamento da evolução da intervenção, o que fez, novamente lhe sendo transmitido que tudo estava a decorrer dentro da normalidade.
Em 27 de Maio de 2005 comunicou ao réu D… que sentia enevoada a visão do olho direito intervencionado, tendo o réu indicado que deveria submeter-se à intervenção ao olho esquerdo, momento em que ele procederia à correcção ao olho direito que se revelasse necessária. O autor opôs-se informando que não permitiria a intervenção ao olho esquerdo enquanto a visão do olho direito não se mostrasse perfeita. Em 4 de Junho de 2005 foi novamente observado pelo réu D…, transmitindo-lhe que a visão no olho intervencionado não registara melhoras, tendo o réu insistido na realização da intervenção ao olho esquerdo e do retoque ao olho direito, acabando por reconhecer não saber se a recuperação do autor estava a decorrer com normalidade porque jamais tinha realizado a operação de forma unilateral.
Em Junho de 2005 recorreu aos serviços da ré Clínica Oftalmológica, onde foi atendido pelo réu F…, a quem explicou o que havia sucedido com o réu D…, tendo sido informado pelo réu F…, após realização de exames, ser apenas necessária a realização de retoque no olho inicialmente intervencionado, garantindo-lhe que obteria visão a 100%. Também aqui não lhe foi dada qualquer informação sobre possíveis efeitos secundários da tecnologia “Lasik” ou da possibilidade de não ser atingido uma visão bilateral a 100%. Contratou com o réu F… e com a ré Clínica Oftalmológica a realização de intervenção laser aos 2 olhos, de forma unilateral, embora ao olho direito devendo ser efectuado apenas um “retoque”, tendo sido submetido em 14 de Setembro de 2005 a intervenção cirúrgica ao olho direito, mas poucas melhoras registou, permanecendo enevoada a visão desse olho. Posteriormente, tendo sido informado pelo réu F… da necessidade de realizar um novo “retoque”, em 19 de Janeiro de 2006 foi submetido a terceira intervenção ao olho direito, mas novamente sem obter o resultado que pretendia, sendo certo que a sucessão de intervenções ao olho direito piorou de forma considerável a qualidade da visão deste.
Alega ainda que os réus D… e F… não mandaram fazer os exames que eram necessários e em função dos quais teriam apurado que as características do autor não o tornavam bom candidato à submissão a intervenção com recurso a tal técnica. E, em resultado da realização das intervenções por eles realizadas, o autor ficou afectado de danos permanentes na sua visão que não teriam ocorrido face ao estado da ciência médica e aos meios disponíveis.
Alega por fim que os médicos não lhe revelaram adequadamente todas as informações sobre os efeitos secundários resultantes da cirurgia realizada. O autor só aceitou submeter-se às diversas intervenções porque não foi informado dos efeitos colaterais irreversíveis e não corrigíveis do Lasik. Se conhecesse todos os efeitos secundários do Lasik, especialmente a falta de estudos a longo prazo e a possibilidade de danos irreversíveis e não corrigíveis, nunca teria sido operado.
O réu C… contestou, fazendo sua a contestação do réu D… e impugnando por desconhecimento a generalidade dos factos alegados pelo autor, concluindo pela improcedência da acção. Na oportunidade, requereu a intervenção principal da Companhia de Seguros G…, SA, para a qual, por contrato de seguro, transferiu a sua responsabilidade civil pro factos similares aos invocados pelo autor.
Os réus Clínica Oftalmológica e F… contestaram, excepcionando a ineptidão da petição inicial e impugnando parte dos factos alegados, concluindo no sentido da improcedência da acção.
Alegam que o réu F… não disse ao autor que «tudo estava bem» nem lhe garantiu a visão a 100% ou a desnecessidade posterior de uso de óculos ou lentes de contacto. Prestaram ao autor todos os esclarecimentos solicitados por este sobre aos efeitos potenciais (principais e secundários) da intervenção, designadamente da possibilidade de não ser atingido o resultado pelo autor pretendido. O réu F… assumido apenas a obrigação de actuar com a diligência e saber necessários com vista a um resultado possível ou provável, e cuja não verificação poderá ter resultado da decisão do autor em cessar o tratamento. A realização de 3 intervenções ao mesmo olho com dioptrias não pode ser considerada tratamento de alto risco. O autor não tinha especificidades nos olhos que desaconselhassem a utilização da técnica “Lasik”, a qual é estudada nos últimos 50 anos e é adequada à resolução do problema do autor. Foram cumpridas todas as boas práticas médicas na data exigíveis, os exames foram os necessários e adequados, o programa terapêutico proposto ao autor e expressamente aceite por ele foi cumprido até ao momento em que o autor deixou de comparecer perante os réus. A miopia residual integra o processo terapêutico, motivo por que o «retoque» é prática corrente. A anisometropia invocada pelo autor decorre apenas da circunstância de não ter sido operado ao olho esquerdo e será solucionado com o uso de lente de contacto ou a realização de cirurgia.
O réu D… contestou, excepcionando a ineptidão da petição inicial. Por impugnação defende-se alegando que em Novembro de 2004 o autor foi a uma consulta de oftalmologia num estabelecimento hospitalar, tendo inquirido a médica que o assistiu da possibilidade de efectuar correcção da miopia que o afectava através de técnica com recurso a laser, tendo recebido dessa médica informação quanto à natureza, vantagens, inconvenientes e possíveis efeitos secundários associados, tendo o autor declarado estar ciente de tudo. Na sequência disso, na consulta com o réu D… que teve lugar a 29 de Dezembro de 2004, o autor evidenciou alto grau de conhecimento sobre a técnica em causa, taxa de sucesso, efeitos secundários e possibilidade de não obtenção do resultado almejado. Foram realizados diversos exames ao autor para avaliar se este era bom candidato à realização da intervenção com utilização da técnica “Lasik, tendo-se apurado não existirem contra-indicações à realização da cirurgia ao olho direito do autor. Em 20 de Junho de 2005, o réu concluiu pela necessidade de realizar o “retoque” para cuja possibilidade o autor havia sido advertido e que aceitou, propondo data para realização de novos exames e agendamento da nova intervenção, mas o autor faltou e não tornou a contactar o réu. Mais impugna por desconhecimento os factos posteriores invocados pelo autor, designadamente a actual situação clínica deste. Conclui pedindo a improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido.
Na oportunidade, requereu a intervenção passiva das sociedades H… (Mútua de Seguros dos Profissionais de Saúde), e I… – Companhia de Seguros, S.A., por terem sido subscritos contratos de seguros através dos quais estas entidades assumiram a responsabilidade de indemnizar terceiros por danos da natureza dos invocados pelo autor.
Foi admitida a intervenção principal provocada das sociedades G…, S.A., H… (Mútua de Seguros dos Profissionais de Saúde), e I… – Companhia de Seguros, S.A., as quais foram citadas e apresentaram contestações próprias.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção totalmente improcedente e absolvendo os réus dos pedidos.
Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1- O recurso é interposto da sentença do Senhor Juiz "a quo", que indeferiu integralmente o pedido pelo autor, nomeadamente que fosse decretada a responsabilidade civil dos réus pelos danos causados na sua visão, melhor relatados nos autos.
2- No presente recurso, limita-se o recorrente a solicitar aos Senhores Desembargadores a reapreciação da matéria de direito (e respectivo cotejo factual) referente ao que na decisão sub judicio foi designado: "defeito no consentimento pelo autor prestado à realização das intervenções cirúrgicas levadas a cabo por cada um dos réus, decorrente de insuficiente informação transmitida por estes"
3- O Senhor Juiz "a quo" entendeu ter existido o consentimento informado do requerente, que este entende, claramente, não ter sido concedido de forma válida, tal qual a lei, a doutrina e a jurisprudência têm entendido.
4- Da matéria de facto provada e com relevância para o recurso e devidamente transcrita no corpo das alegações que se dá inteiramente reproduzida: 25 a 41, 62 a 71, 86 a 89 e 91, […].
5- Da matéria de facto não provada e com relevância para o recurso e também transcrita no corpo das alegações que se dá inteiramente reproduzida: iii), jjj), nnn), ccc), eee) e fff).
6- O Senhor Juiz a quo entendeu que os médicos cumpriram o seu dever de informação e que o A. consentiu o lasik de forma informada, rematando que caberia ao autor a prova da informação relevante.
7- O direito à integridade moral e física e ao livre desenvolvimento da personalidade são expressões concretizadas do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP).
8- O Código Penal português consagrou, no capítulo dos crimes contra a liberdade, o tipo Intervenções ou Tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (art. 156º) e estabeleceu o Dever de Esclarecimento (art. 157º).
9- O conteúdo do dever de informar coloca-se com tão especial acuidade porque a medicina é uma actividade de risco em que o dano sucede com frequência e este é independente de negligência do médico ou da instituição hospitalar.
10- Por outro lado, afirmado que está o primado da dignidade humana, a impor um princípio da autodeterminação e do respeito pela integridade física e moral do paciente, só o consentimento devidamente esclarecido permite transferir para o paciente os referidos riscos que de outro modo deverão ser suportados pelo médico. A finalidade fundamental do esclarecimento deve ser a de permitir que o paciente, com base no seu sistema de valores, possa determinar se deseja ou não consentir na intervenção que lhe é proposta.
11- Em regra, um tratamento não apresenta apenas aspectos positivos e não se revela isento de riscos ou incertezas - Cf. factos provados com os números 87, 88 e 89, onde o Sr. Juiz "a quo" reconhece as maleitas de que padece o recorrente e os efeitos secundários indesejáveis do lasik - nessa medida, a informação deve abranger as vantagens e inconvenientes do tratamento proposto. Ao recorrente só lhe foram vendidas as vantagens, nem sequer foi informado que a sua miopia podia não ser integralmente corrigida!
12- No número 87 dos factos provados são descritos efeitos secundários do lasik: a. hipocorrecção ou hipercorrecção; b. astigmatismo irregular; c. perda de acuidade visual corrigida; d. diminuição da visão nocturna, halos, clarões e starbusts; e. diminuição do contraste visual; f. crescimento epitelial sob o "flap"; g. infecção e ulceração do "flap"; h. infecções oculares; i. síndrome de olhos secos; j. sensibilidade à luz; k. regressão da acuidade visual; l. regressão do resultado com a idade; m. as imperfeições refractivas (miopia, astigmatismo e hipermetropia) que o paciente apresenta podem não ser corrigidas de forma total [artigos 262º a 300º da petição inicial].
13- De nenhum deles os médicos deram conhecimento ao A.. Nenhum é relevante? Não parece....
14- Actualmente, defende-se a obrigação de comunicar os riscos "significativos", isto é, aqueles que o médico sabe ou devia saber que são importantes e pertinentes, para uma pessoa normal colocada nas mesmas circunstâncias do paciente, chamado a consentir com conhecimento de causa no tratamento proposto, impondo um dever de informação mais amplo que a anterior.
15- O risco será considerado significativo, em razão dos seguintes critérios: a) a necessidade terapêutica da intervenção (a do recorrente ao contrário do que refere a sentença, era completamente electiva, pois embora padece-se de miopia (que é uma doença segundo a TNI) ela estava corrigida, sem problemas, por óculos e lentes de contacto. O lasik não era importante para mais nada que não fosse deixar de usar essas correcções; b) em razão da sua frequência (estatística), c) em razão da sua gravidade e d)em razão do comportamento do paciente.
16- Mais, é unanime o risco significativo em razão da necessidade terapêutica da intervenção, ou seja, quanto mais necessária for a intervenção, mais flexível pode ser a informação a propósito dos riscos. A contrario, o dever de esclarecer é mais intenso e mais rigoroso no caso das chamadas intervenções "d'agrément", como sucede nos autos.
17- Os médicos tinham como precondição da causa de justificação do consentimento o ónus da prova de que esclareceram adequadamente o paciente, o que in casu não sucedeu com parca/nenhuma informação da possibilidade de ser necessário um retoque (que não é sequer um efeito secundário, mas uma outra etapa do tratamento - é corrigir a parte que não foi corrigida).
18- Os médicos não conseguiram provar que cumpriram os deveres de esclarecimento e que agiram ao abrigo de uma causa de justificação, pelo que recai sobre eles todo o risco de responsabilidade da intervenção médica, bem como os fracassos do lasik, os efeitos secundários não controláveis e outros danos resultantes da intervenção.
19- A doutrina portuguesa dominante concorda que o ónus da prova da existência de esclarecimento recai sobre o médico ou sobre a instituição de saúde.
20- Entende o Autor que o consentimento funciona como causa de exclusão da ilicitude, pelo que a prova dos factos impeditivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita, isto é, o ónus da prova do consentimento, como causa excluidora da ilicitude, cabe ao médico (art. 342º, n.º 2 CC).
21- O consentimento é uma causa de justificação, e a informação adequada um pressuposto da sua validade, daí resultando que, nos termos do art. 342º, n.º 2, a prova destes factos compete àquele contra quem a invocação é feita, isto é, ao médico.
22- Por outro lado, a doutrina processualista ensina que a prova de factos negativos é diabólica. Tendo em conta o princípio do equilíbrio processual, da impossibilidade da prova do facto negativo, a facilidade relativa da prova para o médico (já que este é um perito e o paciente é um leigo e sobretudo o médico tem o "domínio do facto", visto que pode organizar a consulta e os tempos) e os exemplos do direito estrangeiro, nomeadamente as recentes evoluções nos países latinos, entendo, com Orlando de Carvalho, Figueiredo Dias, Sinde Monteiro, Costa Andrade e Capelo de Sousa que o ónus probandi do cumprimento do dever de informar e do dever de obter o consentimento recaía sobre os réus, que o não cumpriram, porque de nada informaram o recorrente, com receio quiçá de ele não pretender o lasik, para mais que via bem com óculos ou lentes de contacto.
23- A intervenção ou tratamento foi realizada sem prévio consentimento e não obteve êxito ou provocou consequências laterais desvantajosas, pelo foi violado o direito geral de personalidade (art. 70º) do recorrente e sua liberdade de determinação;
24- Em síntese, uma intervenção médica sem consentimento ou com um consentimento viciado com informação insuficiente ou sem a liberdade de decisão exigível configura um ato ilícito, uma ofensa à integridade física e o (paciente) lesado tem legitimidade para exigir uma indemnização pelos danos patrimoniais e uma compensação pelos danos não patrimoniais, incluindo as lesões corporais e a ofensa à sua integridade moral.
25- Reitera-se: é ao médico que incumbe provar qual a informação adequada, não ao paciente que é leigo e não conhece a matéria!
26- Nesta conformidade, no âmbito de um contrato médico de prestação de cuidados de saúde e quando está em causa o consentimento livre e informado, as regras do ónus de prova decorrentes do artigo 342.º do Código Civil, impõe que a pessoa visada com a intervenção ou tratamento médicos, demonstre esse contrato e que tais procedimentos afectaram a sua integridade física/psíquica (n.º 1), cabendo ao médico demonstrar que foi devidamente prestado o consentimento livre e informado (n.º 2) - tem sido neste sentido que ultimamente se tem manifestado a jurisprudência (v.g. Ac. STJ de 16/jun./2015, Cons. Mário Mendes), acessível em www.dgsi.pt assim como os demais, ao quais não se faça referência expressa da sua origem; Ac. TRL de 10/out./2013 (Des. Maria José Mouro); Ac. TRC de 13/out./2015, (Des. Jorge Arcanjo) CJ IV/23; em sentido contrário o já remoto Ac. STJ de 15/out./2009 (Cons. Rodrigues dos Santos).
27- O ónus de prova por parte do médico mantém-se no caso do designado consentimento hipotético - Ac. STJ de 02/jun./2015 (Cons. Clara Sottomayor);
28- Nesta conformidade, não se aceita que no caso em apreço tenha havido um esclarecimento livre e informado, porquanto nada (para além da eventualidade do referido retoque/retratamento) foi informado ao autor.
29- O consentimento só se revelaria válido e eficaz (quer na perspectiva da responsabilidade civil, como da responsabilidade penal) quando o autor tivesse sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a necessidade, natureza e riscos da intervenção, mais precisamente quando lhe tiverem sido fornecidos os elementos suficientes para que a capacidade de decidir se revele consciente e livre.
30- O padrão do conteúdo do direito à informação/dever de informação: uma informação simples, aproximativa, inteligível e leal por forma a permitir-se ao doente uma tomada de decisão que ele considere como aquela que as circunstâncias impõem.
31- Neste sentido e percorrendo as linhas gerais orientadoras vêm-se afirmando, de uma forma sempre evolutiva e adequada a uma realidade que constantemente evolui, como elementos essenciais do dever de informação (e do preenchimento do co-respectivo direito) as linhas essenciais da intervenção ou tratamento a realizar, a sua utilidade, a sua eventual urgência, as consequências previsíveis, os riscos previsíveis frequentes ou graves, as alternativas possíveis (o senhor juiz a quo diz expressamente que não é necessário) e as consequências previsíveis de uma eventual recusa.
32- Em conclusão e no que toca aos riscos que devem ser integrar o direito à informação/obrigação de informação entendemos que os riscos a informar devem ser os riscos tidos como previsíveis e sérios, admitindo ainda que em intervenções de particular grau de risco se comuniquem ao paciente os riscos graves dessa mesma intervenção (morte ou invalidez permanente - in casu a cegueira) ainda que de ocorrência excepcional.
33- Em linha com o entendimento dominante da doutrina e jurisprudência nacional e europeia, o ónus da prova do consentimento e da prestação da informação bem como da sua qualidade, quantidade e essencialidade para o paciente, incide sobre o médico ou a instituição de saúde.
34- Ao recorrente em momento algum lhe foi referida a possibilidade de agravamento da sua situação em resultado do lasik e que a consciência do risco de não melhorar ou mesmo de piorar o que era absolutamente indispensável à tomada de uma decisão informada de se submeter a três intervenções!
35- Os elementos factuais, conduzem a que se deva concluir que o réus médicos não prestaram ao autor elementos de informação tidos como necessários à formação de uma consciência de toda a situação fundamental para o seu consentimento.
36- Não tendo a autor prestado qualquer consentimento, escrito ou verbal, expresso ou tácito, presumido ou hipotético, para a prática do lasik estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual: ilicitude (incumprimento do contrato de prestação de serviços e de regras de conduta decorrentes da ética médica e do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, como a obrigação de obter um consentimento informado); culpa, a qual se presume nos termos do art. 799.º, n.º 1 do CC; nexo de causalidade entre o facto - intervenção médica não consentida - e o dano, no sentido em que aquela é a causa adequada do dano; danos patrimoniais e não patrimoniais amplamente documentados nos autos e reflectidos na matéria de facto.
37- Sem prescindir, o Senhor Juiz "a quo" escreveu que era o autor quem deveria ter provado qual a informação que os médicos lhe deveriam ter transmitido para que o seu consentimento fosse informado, como o que como já foi referido se não concorda.
38- Contudo, se assim fosse e tal como foi decidido por esse Venerando Tribunal Relação por Acórdão de 8/3/2019, 5.ª Secção: I- Da natureza cogente ou objectiva do ónus da prova e dos princípios subjacentes ao actual sistema processual civil resulta para o julgador o poder-dever de ordenar as diligências que considere necessárias à descoberta da verdade material II- A prova da responsabilidade civil do médico, no caso de dificuldades probatórias ou de persistência da dúvida, vislumbra-se como um momento essencial do processo judicativo. Porque assim é, não pode o juiz limitar-se a afirmar que ao lesado ou suposto lesado, porque onerado com a demonstração da ilicitude (e, dependente das situações, também da culpa), cabe conformar-se com as consequências de um possível erro que não demonstra, sem que mobilize todo o conjunto de meios de prova (mormente pericial) que se vislumbre possível em cada situação.
39- Neste contexto, a prova da responsabilidade civil do médico, no caso de dificuldades probatórias ou de persistência da dúvida, vislumbra-se como um momento essencial do processo judicativo.
40- Refere o aresto: "E porque assim é, não podemos sem mais limitarmo-nos a afirmar que ao lesado ou suposto lesado, porque onerado com a demonstração da ilicitude (e, dependente das situações, também da culpa), cabe conformar-se com as consequências de um possível erro que não demonstra, sem que mobilizemos todo o conjunto de meios de prova que se vislumbre possível em cada situação. O ónus da prova tem um papel preponderante no direito civil, mas a demonstração da realidade dos factos que a prova visa não se centra na certeza absoluta. Tão-só na razoabilidade essencial à aplicação do direito, na certeza relativa que se confunde, afinal, com a convicção do julgador [9]. Por isso se encontra subjacente à ideia objectiva [10] de ónus de prova um critério de natureza pública."
41 - Continua: “O art. 8.º do Código Civil (e também o art. 3.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, ao proibir um non liquet impede o julgador de se abster de julgar nomeadamente por dúvida insanável acerca dos factos em litígio. É por força desta natureza cogente dos princípios subjacentes ao onus probandi que o actual sistema processual civil, assente no princípio do dispositivo no que tange à alegação dos factos pelas partes, reconhece ou impõe ao juiz o poder-dever de ordenar as diligências que considere necessárias à descoberta da verdade material (arts. 264.º, n.º 2, 519.º, n.º 1, 532.º, 543.º, n.º 1, 612.º, n.º 1, e 645.º, todos do Código de Processo Civil).”
42- Conclui: “Este poder de iniciativa judicial aliado à consideração de que os factos não têm que ser provados por quem os alegou, já que uma vez demonstrados devem considerar-se na decisão final (princípio da aquisição processual), já valeu ao ónus de prova a desqualificação de imperfeito [12] pois que se se entende por ónus uma obrigação com vista ao resultado de uma actividade (a probatória). Se existe inactividade da parte sobre a qual recai o ónus e, não obstante, os factos se demonstram, não pode falar-se de ónus. No campo que hoje nos convoca - o da negligência médica - a consideração desta dimensão material-objectiva do ónus da prova reveste-se de extrema importância, máxime ali onde se permite ao julgador a promoção das diligências objectivamente necessárias à indagação instrutória, com particular acuidade na determinação da prova pericial ou de outra (veja-se a figura da testemunha-perito [13] ou o papel dos pareceres emanados de órgãos especializados). De igual modo importa nesta área observar critérios de resolução nos casos de non liquet que resultem da falta ou insuficiência de prova (inopia probationum). Nas situações em que se considere que a obrigação é de meios e se opere a regra geral do ónus da prova - cabendo ao lesado a demonstração da culpa do lesante (e também da ilicitude da actuação) - prova que, como se sabe, é difícil para o paciente, considerando a especificidade técnica das matérias em presença, a falta de acesso à documentação clínica, o decurso do tempo, a fragilidade pessoal criada pela situação etc... -, este encargo pode bem ser atenuado."
43 - Assim, se se entender que esse ónus era do autor, o processo deve descer à primeira instância para ser ampliada a matéria de facto e serem questionados os senhores peritos e as testemunhas médicos sobre quais os efeitos secundários comuns do lasik e que eram de evidente explicação ao autor.
Nestes termos, e nos melhores de direito, deverá o presente recurso proceder, sendo revogada a sentença recorrida, que deverá ser substituída por Acórdão que ordene a condenação solidários dos réus tal como expresso na petição inicial da lide, assim se fazendo Justiça.
Os recorridos responderam a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado. Na sua resposta, o recorrido D… sustenta, além do mais que o recurso não deve ser admitido ou, sendo-o, não deve ser conhecido porque a pretensão do recorrente não se ajusta aos pedidos que formulou e que não foram modificados ao longo da lide.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se houve violação do dever de informação para obtenção do consentimento informado e na afirmativa que danos são indemnizáveis e em que medida.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1- A miopia é o nome comum dado ao erro de refracção da luz no olho, acarretando a focagem da imagem antes de atingir a retina.
2- Um míope consegue ver os objectos próximos com nitidez, mas os distantes são visualizados como se estivessem embaçados (desfocados).
3- O "Lasik" (acrónimo da expressão Laser-Assisted in Sito Keratomileusis) é um tipo de cirurgia laser refractiva realizada por oftalmologistas para correcção de patologias da visão, designadamente a miopia, o astigmatismo e a hipermetropia.
4- No pré-operatório é essencial a realização de exames específicos, nomeadamente os seguintes: a. topografia corneana; b. pupilometria; c. paquimetria; e d. tonometria .
5- A operação é efectuada pela criação de um "flap" (lamela; disco superficial) no olho, de forma a permitir a modelação dos tecidos corneais através de um laser de baixa potência.
6- Usando a informação recolhida no pré-operatório, o computador calcula a quantidade e a localização do tecido corneal a ser removido durante a operação.
7- Durante a operação o paciente está acordado, sendo-lhe colocadas nos olhos gotas anestésicas.
8- Então, é aplicado no olho um anel de sucção da córnea, que tem por finalidade imobilizar o olho e permitir a criação do "flap" através de um microquerátomo mecânico.
9- O "flap" fica preso à córnea por uma das suas extremidades e é dela separado, deixando visível e acessível o estroma, ou seja, a secção interna da córnea.
10- Depois, utilizando um laser exímero (193nm), é remodelado o estroma corneal.
11- O laser vaporiza o tecido de forma controlada, através da quebra das ligações intra-moleculares, sem afectar significativamente o estroma adjacente.
12- O tecido vaporizado é ínfimo, reduzido a mícrons de espessura.
13- Após a separação do "flap" e durante a aplicação do laser, a visão do paciente permanece enevoada, podendo apenas ver a luz do laser.
14- Depois da remodelação do estroma da córnea, o "flap" é recolocado sobre a zona tratada, onde permanecerá por adesão natural até a cicatrização estar completa.
15- Após a intervenção, o paciente deve colocar no olho tratado gota antibióticas e anti-inflamatórias, por um período nunca inferior a 3 semanas, mas que poderá variar de acordo com as instruções do médico.
16- É recomendado ao paciente o uso de óculos de sol e o evitar de luzes fortes, e são-lhe fornecidas umas palas críticas, para serem usadas durante o sono, de forma a evitar a afectação da zona tratada.
17- O autor nasceu a .. de Novembro de 1973 …
18- ... E é advogado, estando há vários anos inscrito no Conselho Distrital da Ordem dos Advogados ….
19- O réu "C…, SA", dedica-se à prestação de serviço de saúde, nomeadamente através da exploração, no Porto, do estabelecimento hospitalar denominado "Hospital C2…".
20- O réu D… é médico, especialista em oftalmologia, e, em 2005, prestava colaboração ao réu "C… SA".
21- A ré "Clínica Oftalmológica E…, SA", dedica-se à prestação de serviços de saúde na área da oftalmologia.
22- O réu F… é médico, especialista em oftalmologia, e, em 2005 e 2006, colaborava com a ré "Clínica Oftalmológica E…, SA", com o esclarecimento que sempre foi o Director Clínico daquela.
23- Na infância ao autor foi diagnosticada miopia, pelo que teve necessidade de usar óculos de forma permanente.
24- Com o avançar da idade a miopia do autor aumentou de forma acentuada, associada ao próprio crescimento.
25- Em Novembro de 2004, em consulta oftalmológica de rotina agendada no "Hospital C1…", então pertença do réu "C…, SA", o autor registava 9,00 dioptrias (unidade de medida da potência de uma lente correctiva) no olho direito, e 8,50 dioptrias no olho esquerdo.
26- Durante a espera para uma das diversas consultas que teve no estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "C…, SA", o autor teve acesso a uma brochura sobre a correcção da miopia através de laser ("Lasik").
27- Após analisar o folheto referido em 26-, o autor entendeu que o "Lasik" seria a solução para um dos seus maiores incómodos diários, o uso de óculos ou lentes de contacto, nada constando do folheto sobre qualquer efeito secundário ou complicações.
28- Em Outubro de 2006 o réu "C…, SA", distribuiu “newsletter” que incluía artigo intitulado "Laser de última geração no Hospital Privado C3…", no qual consta: «Esta cirurgia tem como objectivo a correcção de defeitos refractivos como a miopia, a hipermetropia e o astigmatismo, permitindo aos doentes uma visão de qualidade, sem a dependência dos óculos ou das lentes de contacto». E «embora existam outras técnicas cirúrgicas para correcção de defeitos refractivos, também utilizadas no Hospital, a técnica "Lasik" é a preferida na maior parte dos casos pelas vantagens que apresenta; os tratamentos são efectuados em ambulatório e com anestesia local, o procedimento é praticamente indolor, existe a possibilidade de tratamento bilateral simultâneo (os 2 olhos na mesma sessão), e há uma recuperação muito rápida da visão, permitindo que no dia seguinte o doente tenha, de um modo geral, uma acuidade que lhe permite restabelecer a sua vida normal».
29- No documento referido em 28- nada é referido a propósito de complicações ou efeitos secundários, nem se incentiva à recolha de informação detalhada com o médico oftalmologista.
30- Numa consulta que teve no estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "C…, SA", o autor abordou a médica J… a propósito do tratamento com recurso à técnica "Lasik, que transmitiu ao autor que o médico no estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "C…, SA", responsável por esse tipo de tratamento era o réu D…, com quem deveria agendar consulta.
31- Na sequência, o autor agendou para 29 de Dezembro de 2004, no "Hospital Privado C2…", consulta com o réu D…, com vista a aferir da possibilidade de corrigir cirurgicamente a miopia, tendo o autor em vista abandonar em absoluto o uso de óculos ou lentes de contacto.
32- Na consulta referida em 31- o réu D… transmitiu que teria de efectuar exames por forma a definir se era ou não bom candidato para ser submetido a tratamento com recurso à técnica "Lasik".
33- Na sequência, o réu D… teve a oportunidade de realizar todos os exames que entendeu necessários à avaliação das características do autor (designadamente a topografia corneana, paquimetria, pupilometria, tonometria, a avaliação da acuidade visual e determinação da refracção do doente, mas não a aberrometria e a avaliação lacrimal), por forma a decidir da conveniência da realização da cirurgia refractiva.
34- O autor questionou o réu D… quanto à possibilidade de realizar a intervenção cirúrgica de forma unilateral (um olho de cada vez), por forma a permitir-lhe não interromper totalmente a sua actividade profissional, ao que aquele réu declarou não existir qualquer obstáculo e que executaria a intervenção unilateralmente, apesar de ser adepto da cirurgia bilateral simultânea.
35- Na sequência, o réu D… transmitiu ao autor alguns cuidados pré-operatórios que deveria observar (designadamente não utilizar lentes de contacto nos 8 dias anteriores às intervenções), e que a recuperação seria quase imediata, sem dores.
36- Quanto às possíveis complicações resultantes da intervenção, o réu D…. transmitiu ao autor, pelo menos, a eventualidade de ser necessário levar a cabo um "retoque", ou seja, em fase posterior novamente utilizar o laser para correcção de algo que não ficasse perfeito na primeira intervenção.
37- O réu D… transmitiu ainda ao autor que, surgindo a necessidade de levar a cabo um "retoque", este apenas poderia ser realizado cerca de 3 meses após a intervenção originária, de forma a permitir a estabilização do olho e a conhecer- se a extensão da correcção necessária.
38- O D… não transmitiu ao autor qualquer informação quanto a técnicas de tratamento alternativas ao "Lasik", designadamente o "Lasik personalizado" ou a implantação de lente intra-ocular.
39- O autor confiou integralmente e sem reservas na capacidade profissional do réu D… (especialista em oftalmologia), e no prestígio do réu "C…, SA", como instituição de referência na prestação de cuidados de saúde.
40- Posteriormente, o autor foi telefonicamente informado, por uma funcionária administrativa do réu "C…, SA", sob instruções do réu D…, que reunia as condições para a ser submetido a intervenção com utilização da técnica "Lasik", e que, quando entendesse, poderia proceder ao respectivo agendamento.
41- Na sequência, ainda por via telefónica, em Abril de 2005 o autor agendou a intervenção para os dias 23 (olho direito) e 30 (olho esquerdo) de Maio de 2005.
42- A 23 de Maio de 2005, chegado ao estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "C…, SA", o autor efectuou o pagamento da quantia de €2.000,00 como preço pelo tratamento a que ia ser submetido.
43- Todos os contactos do autor com vista à prestação dos serviços referidos em 32- a 34- tiveram lugar directamente com o réu D…, nunca tendo o autor contactado com qualquer responsável social do réu "C…, SA".
44- A 23 de Maio de 2005, no estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "C…, SA", o autor foi submetido a intervenção ao olho direito com recurso à técnica "Lasik", realizada pelo réu D….
45- Após a intervenção, pelo D… foi transmitido ao autor que tudo correra normalmente, e que se deveria deslocar ao hospital, no dia seguinte, para ser acompanhada a evolução da intervenção.
46- A 24 de Maio de 2005, o autor novamente deslocou-se ao estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "C…, SA", tendo sido observado pelo réu D…, que lhe transmitiu que tudo estava a correr com normalidade, devendo regressar no dia 27 de Maio de 2005 para realização da intervenção ao olho esquerdo.
47- A 30 de Maio de 2005, regressado ao estabelecimento hospitalar explorado pelo réu "C…, SA", o autor queixou-se ao réu D… que a sua visão no olho já intervencionado (o direito) apresentava-se ainda bastante enevoada.
48- Na sequência, após examinar o olho direito do autor, o réu D… verificou existirem pregas no "flap" (como se disse em 9-, a parte de tecido da córnea que é cortada e levantada para aplicação do laser).
49- O réu D… transmitiu ao autor que as pregas referidas em 48- não possuíam relevância, e propôs realizar, como agendado, pelo menos, a intervenção ao olho esquerdo …
50-... Ao que o autor se opôs …
51-... Transmitindo ao réu D… que não permitiria a intervenção ao olho esquerdo enquanto a visão do olho direito não se apresentasse perfeita.
52- O réu D… aceitou a posição do autor, agendando o dia 06 de Junho de 2005 para nova observação ao autor.
53- A 06 de Junho de 2005, o autor queixou-se ao réu D… que continuava a apresentar a visão enevoada no olho direito, e sentia que piorara a sua visão nesse olho.
54- Na consulta referida em 53- o réu D… agendou para daí a pelo menos semanas nova data para observar o autor.
55- No dia 06 de Junho de 2005 o autor saiu bastante perturbado das instalações do réu "C…, SA", preocupado com a situação do seu olho direito, apresentando diferença da acuidade visual entre os olhos de tal forma elevada que prejudicava a sua visão bilateral …
56-... O que causou perturbação do descanso e da vida profissional e pessoal do autor.
57- Já em Julho de 2005, através de diversos telefaxes, o autor solicitou ao réu esclarecimentos escritos sobre a situação, nomeadamente se iria recuperar a integral visão do olho direito, quais as razões para a visão enevoada do olho tratado, e sobre os procedimentos que iriam ser seguidos, ao que aquele réu jamais respondeu por escrito.
58- Após o referido em 55- a 57-, o autor consultou outros oftalmologistas para aferir da sua situação, constatando que continuava a apresentar cerca de 2,00 dioptrias e pregas no retalho corneano do olho tratado.
59- A 03 de Agosto de 2005, o autor envia comunicação escrita à administração do réu "C…, SA", descrevendo a sua versão da situação, informando que perdera confiança profissional no réu D…, e solicitando a devolução das quantias que havia pago (€2.000,00, acrescida de €87,93 despendidos com exames e consultas).
60- Em resposta à comunicação referida em 59-, o réu "C…, SA", também por escrito remetido ao autor, datado de 02 de Setembro de 2005, refutou as imputações feitas pelo autor.
61- O réu "C…, SA", acabou por restituir ao autor a quantia de €1.000,00 referente apenas à intervenção não realizada ao olho esquerdo.
62- Em Julho de 2005 o autor agendou consulta nas instalações da ré "Clínica Oftalmológica E…, SA", na altura situadas na rua…, nº …, visando informar-se sobre o actual estado clínico do seu olho direito e sobre as possibilidades de eventual correcção dos problemas que apresentava, com vista a alcançar a aptidão da sua visão sem recurso a óculos ou lentes de contacto ...
63-... Sendo a 19 de Julho de 2005 atendido pelo réu F….
64- Antes do referido em 62- e 63- o autor jamais tinha tido contacto com os réus "Clínica Oftalmológica E…, SA", e F…, que até então desconheciam o historial clínico do autor.
65- Na consulta referida em 62- e 63- o autor descreveu ao réu F… a sua versão quanto ao tratamento a que havia sido submetido pelo réu D…, e expressou as queixas quanto ao que sentia.
66- O réu F…, depois de efectuar os exames (designadamente a aberrometria, a tonometria, a caratometria e a medição da graduação, mas não o teste de lágrimas e a análise à sensibilidade de contraste) que entendeu necessários (tendo o autor pago o respectivo custo), transmitiu ao autor que não tinha de se preocupar, embora entendendo necessária a realização de "retoque" ao olho intervencionado.
67- A forma descontraída, confiante e segura com que o réu F… falou com o autor transmitiu a este segurança que tudo correria pelo melhor e os problemas que sentia tinham solução breve e simples.
68- O réu F… não transmitiu ao autor qualquer outra informação quanto a possíveis efeitos secundários permanentes da intervenção com recurso à técnica "Lasik", ou quanto à possibilidade de o autor não alcançar em toda a sua extensão a aptidão da sua visão sem recurso a óculos ou lentes de contacto …
69-... Nem transmitiu ao autor qualquer informação quanto a técnicas de tratamento alternativas ao "Lasik", designadamente o "Lasik personalizado" ou a implantação de lente intra-ocular.
70- O autor confiou nas capacidades do réu F… enquanto médico especialista em oftalmologia, e na reputação que este e a ré "Clínica Oftalmológica F…, SA", possuíam.
71- A 14 de Setembro de 2005, nas instalações da ré "Clínica Oftalmológica E…, SA", o autor foi submetido a nova intervenção cirúrgica ao seu olho direito com utilização da técnica "Lasik", levada a cabo pelo réu F…, tendo pago €1.192,00.
72- Nos dias subsequentes (designadamente a 15 e 30 de Setembro e 02 de Dezembro de 2005), o autor deslocou-se a diversas consultas de acompanhamento da intervenção, sentindo melhorias na visão do olho intervencionado.
73-... Apesar de continuar a sentir enevoada a visão do olho direito.
74- Na sequência, o réu E…, a 02 de Dezembro de 2005, transmitiu ao autor que seria necessário levar a cabo novo "retoque" ao olho direito.
75- A 19 de Janeiro de 2006, o autor foi submetido a terceira intervenção ao olho direito com recurso à técnica "Lasik".
76- Todos os contactos do autor com vista à prestação dos serviços referidos em 71- a 75- tiveram lugar directamente com o réu F….
77- Não obstante as intervenções referidas em 71- e 75-, o autor continuou a não sentir melhorias na visão do seu olho direito, sentindo mesmo que a sucessão de intervenções piorou a qualidade de visão do olho direito.
78- O autor continuou a ser acompanhado pelo réu F…, que lhe propôs a realização de uma nova intervenção ao olho direito.
79- A certa altura, o autor deixou de confiar no réu F…, entendendo que a situação estava fora do controlo deste …
80-... A partir de 31 de Março de 2006 abandonando o tratamento a que estava a ser sujeito.
81- A intervenção cirúrgica com recurso à técnica "Lasik" apenas deve ser realizada quando o paciente mantenha estabilizado o grau de miopia durante certo período (pelo menos 1 ano).
82- Em Dezembro de 2004, o autor registava 8,25 dioptrias no olho esquerdo.
83- Em Julho de 2005, o autor registava 8,00 dioptrias no olho esquerdo.
84- Em Dezembro de 2006, o autor deslocou-se ao "Centro de Oftalmologia E…", em Barcelona, onde foi observado pelo Dr. K…, que transmitiu ao autor que, em sua opinião, o autor não deveria ter sido submetido a intervenção cirúrgica aos olhos com recurso à técnica "Lasik".
85- A técnica "Lasik", em Portugal, é utilizada há cerca de 15 anos (tendo por referência à data da propositura da acção).
86- Caso o autor tivesse tido consciência que a intervenção cirúrgica com recurso à técnica "Lasik" não eliminaria a sua necessidade de recorrer ao uso de óculos e lentes de contacto, ou que originaria halos, "starbusts" e clarões, e dificuldades na visão nocturna sem correcção, teria decidido não submeter-se às intervenções referidas em 44-, 71- e 75-.
87- A realização de intervenção cirúrgica com utilização da técnica "Lasik" pode causar no paciente os seguintes efeitos, pelo menos, independentemente dos concretos meios empregues e da concreta prestação do médico oftalmologista:
a. Hipocorrecção ou hipercorrecção;
b. Astigmatismo irregular;
c. Perda de acuidade visual corrigida;
d. Diminuição da visão nocturna, halos, clarões e starbusts;
e. Diminuição do contraste visual;
f. Crescimento epitelial sob o "flap";
g. Infecção e ulceração do "flap";
h. Infecções oculares;
i. Síndrome de olhos secos;
j. Sensibilidade à luz;
k. Regressão da acuidade visual;
l. Regressão do resultado com a idade;
m. As imperfeições refractivas (miopia, astigmatismo e hipermetropia) que o paciente apresenta podem não ser corrigidas de forma total.
88- Actualmente, o autor apresenta:
a. Astigmatismo irregular da córnea do olho direito;
b. Anisometropia (decorrente da grande diferença entre o erro refractivo dos 2 olhos, causador de diferenças entre a percepção do tamanho e nitidez, e sobrecarregando o cérebro, daí decorrendo sintomas como cefaleia, fotofobia, prurido, etc);
c. Visão bilateral apenas com o uso de lente de contacto no olho esquerdo. Na impossibilidade de uso de lente (por inflamação ou cansaço) o autor perde a visão biocular, tendo de recorrer a óculos no olho esquerdo e colocar uma pala no olho direito;
d. Aniseiconia (disparidade do tamanho da imagem fornecida pelos 2 olhos);
e. Problemas na visão ao perto, no olho tratado, quando não utiliza lente de contacto no olho esquerdo;
f. Noção alterada e oscilante das distâncias e da orientação físico-espacial, quando não utiliza lente de contacto no olho esquerdo;
g. Surgimento de células epiteliais por baixo da córnea do olho direito, com o esclarecimento que tal não interfere com a visão do autor;
h. Acuidade visual de 9/10, no olho direito, com correcção óptica (-0.25-0.50x10), constatada em Setembro de 2016.
89- Actualmente, o autor queixa-se de:
a. Blur matinal no olho direito (olho nublado ao acordar durante pelo menos 1 hora);
b. Halos, starbusts e clarões perturbadores da visão nocturna, designadamente na condução, na visualização de imagens da televisão, no uso de computador - em todas as situações de baixa luminosidade ou em que o objecto a visualizar possua iluminação própria;
c. Sensibilidade extrema à luz no olho direito.
90- Devido ao referido em 88- e 89-, o autor:
a. Em sua casa, alterou a configuração da sala de estar, e aumentou o diâmetro das televisões que aí possui;
b. No escritório, aumentou os pontos de luz e o diâmetro do monitor do seu computador;
c. Evita trabalhar à noite;
d. Evita conduzir à noite.
91- Toda a situação acima descrita causou ao autor angústia, desconforto com a sua visão, revolta, ansiedade e depressão, levando-o a procurar auxílio médico e medicamentoso.
92- Na consulta referida em 63-, a 19 de Julho de 2005, o autor apresentava uma acuidade visual no olho direito, sem correcção, de <1/10, e, com correcção, de 35º -1.00 - 1,75 = 10/10.
93- Nas várias consultas de acompanhamento a que se submeteu junto do réu F… (referidas em 72-), o autor apresentou a seguinte acuidade visual no seu olho direito:
a. a 15 de Setembro de 2005, sem correcção, de 9/10, e, com correcção, de 0,25 = 10/10;
b. a 30 de Setembro de 2005, sem correcção, de 9/10, e, com correcção, de 20º -0,50 + 0,50 = 10/10;
c. a 02 de Dezembro de 2005, sem correcção, de 9/10, e, com correcção, de 5º -1,00 + 0,50 = 10/10;
d. a 19 de Janeiro de 2006, sem correcção, de 10/10, e, com correcção, de 20º -1,00 + 0,25 = 10/10
e. a 20 de Janeiro de 2006, sem correcção, de 10/10, e, com correcção, de 90º -0,25 = 10/10;
f. a 31 de Março de 2006, sem correcção, de 7/10, e, com correcção, de 0º -0,25 + 1,50 = 10/10.
94- A anisometropia, a visão bilateral apenas com o uso de lente de contacto no olho esquerdo, a aniseiconia, os problemas na visão ao perto, no olho tratado, quando não utiliza lente de contacto no olho esquerdo, e a noção alterada e oscilante das distâncias e da orientação físico-espacial, quando não utiliza lente de contacto no olho esquerdo, referidos em 55- e 88-, decorrem de o autor não ter sido operado ao olho esquerdo, anomalias que se resolvem com recurso a lente de contacto ou cirurgia.
95- Em 2004 e 2005, o réu D… exercia as funções de coordenador do serviço de oftalmologia do réu "C…, SA", trabalhando em regime de prestação de serviços.
96- No decurso da consulta referida em 30- a médica J… informou o autor sobre a possibilidade de a eficácia do tratamento com recurso à técnica "Lasik" regredir com o decurso do tempo e de a intervenção poder gerar fotofobia e síndrome de olho seco.
97- Na consulta referida em 30- o autor apresentava 9,00 dioptrias de miopia e 0,50 dioptrias de astigmatismo no olho direito, e 8,50 dioptrias de miopia e 1,00 dioptria de astigmatismo no olho esquerdo.
98- Na consulta referida em 31- o réu D… confirmou os valores de miopia e astigmatismo que o autor apresentava nos 2 olhos, verificando apenas alteração no olho esquerdo (de 8,50 para 8,25 dioptrias) relativamente ao exame realizado na consulta referida em 30-.
99- Após a intervenção referida em 44- o réu D… informou o autor que durante algumas semanas deveria colocar no olho operado gotas antibióticas e anti-inflamatórias, lágrimas artificiais, utilizar óculos de sol, não esfregar o olho, e dormir com protector ocular.
100- Na consulta referida em 46- o autor apresentava acuidade visual de 5/10 sem correcção, e avaliação biomicroscópica óptima do olho intervencionado.].
101- As pregas no "flap" referidas em 48- podem decorrer do facto de o paciente esfregar o olho intervencionado, ou da não colocação do protector ocular pelo paciente, e podem estar associadas a elevado número de astigmatismo miópico prévio.
102- A 20 de Junho de 2005 o réu D… diagnosticou ao autor uma regressão da miopia ou hipocorrecção, o que poderia justificar a necessidade de «retoque» (nova intervenção com recurso à técnica "Lasik" para eliminar a miopia residual).
103- ... Propondo observar o autor em data posterior, para então efectuar novos exames e agendar a intervenção de "retoque".
104- Segundo a pupilometria levada a cabo pelo réu D…, era de menos de 7 mm o diâmetro das pupilas do autor.
105- Nos exames que levou a cabo o réu D… não detectou qualquer aberração ocular.
106- Em Portugal e internacionalmente, a técnica "Lasik" é utilizada há cerca de 15 anos (tendo por referência a data da propositura da acção), existindo estudos quanto à sua taxa de sucesso e quanto aos seus efeitos secundários.
107- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ……./., a interveniente “Companhia de Seguros G…, SA", assumiu a obrigação de indemnizar por danos causados a terceiros no âmbito da exploração da actividade a que se dedica o réu "C…, SA".
108- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ………, celebrado com a Ordem dos Médicos, a interveniente "H… - Sucursal em Portugal" assumiu a obrigação de indemnizar por danos causados a terceiros na sequência de actos de médicos no exercício da sua profissão, com início de vigência a 01 de Janeiro de 2007.
109- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ………….., a interveniente "I… - Companhia de Seguros, SA", assumiu a obrigação de indemnizar por danos causados a terceiros no âmbito do desenvolvimento pelo réu D… da sua actividade profissional como médico oftalmologista.
IV. O mérito do recurso: A] da admissibilidade do recurso e da possibilidade de se conhecer do mesmo:
O recorrido D… sustenta que o recurso não deve ser admitido ou conhecido porque no fundo o recorrente pretende que a Relação se pronuncie sobre pedidos que não formulou.
Cremos que esta argumentação não pode ser acolhida.
A admissibilidade do recurso não se confunde com a sua procedência. À decisão sobre a admissibilidade do recurso interessam apenas os requisitos estabelecidos na lei que tornam uma decisão recorrível, sejam eles os requisitos gerais do valor da causa e do valor da sucumbência (artigo 629.º, n.º 1) sejam os requisitos específicos que tornam a decisão recorrível por outros motivos e independentemente daqueles (artigo 629.º, n.ºs 2 e 3). Confrontado com uma decisão que preencha esses requisitos a pessoa com legitimidade pode interpor recurso da mesma e o recurso deve ser admitido.
Uma vez admitido o recurso tem de ser conhecido, excepto se sobrevier alguma causa de extinção da instância que o impeça. Será na fase do conhecimento do recurso que o tribunal ad quem irá verificar se o recurso deve improceder, designadamente se a pretensão do recorrente não corresponder à causa de pedir e ao pedido formulado na acção.
O que verdadeiramente o recorrido pode esgrimir é, pois, se o objecto do recurso respeita os limites objectivos da causa definidos pela causa de pedir e pelo pedido ou, ao invés, a pretensão do recorrente radica afinal numa nova e distinta causa de pedir ou demanda que a Relação decida sobre um pedido não deduzido na acção.
Quanto a isso, dir-se-á o seguinte.
É manifesto que na petição inicial o autor fundamentou a sua pretensão, por um lado, no erro médico por violação das legis artis na execução da intervenção oftalmológica e, por outro lado, na violação do dever de informação para obtenção de um consentimento informado (artigos 200.º e seguintes da petição inicial). Por isso, a acção encontra-se sustentada em duas causas de pedir distintas: a execução deficiente da prestação a cargo do médico por inabilidade, imperícia ou impreparação que determinaram o desrespeito pelas legis artis; a não obtenção de consentimento válido do doente para a realização da cirurgia em causa por não prestação da informação adequada para que esse consentimento fosse prestado de modo livre e informado. Os pedidos formulados pelo autor são, com excepção do da alínea e), essencialmente pedidos de indemnização pela ocorrência dos danos que alega terem-lhe sido causados. Na redacção do pedido o autor associa os danos patrimoniais com a incapacidade física que as intervenções realizadas pelos médicos lhe terão causado, razão pela qual não será possível julgar procedente esse pedido se nenhuma incapacidade se tiver demonstrado. Já o pedido de indemnização por danos não patrimoniais não se encontra associado a nenhum fundamento específico, pelo que desde que se mostre que aquela actuação fez o autor passar por situações que justificam a tutela do direito nenhum obstáculo relacionado com a redacção do pedido se coloca à sua procedência.
Isto é assim porque os danos que o autor alega terem resultado das actuações dos médicos são os mesmos e únicos, independentemente da natureza da actuação que lhes está na origem; não há pedidos que se fundem especificamente na primeira e/ou na segunda causa de pedir, há pedidos que se fundam nos danos alegados e são estes que podem ter como causa uma das actuações ilícitas alegadas ou ambas.
Coisa diferente consiste em saber se algum dos pedidos formulados apenas pode ser procedente se tiver como fundamento uma das causas de pedir deduzidas, rectius, se a delimitação do objecto de cognição deste tribunal decorrente da restrição do objecto do recurso à causa de pedir da violação do dever de informação para o consentimento informado exclui a procedência de algum dos pedidos deduzidos (que apenas poderia encontrar apoio jurídico na outra causa de pedir alegada na petição inicial). Trata-se, porém, de questão a resolver em sede de conhecimento do mérito.
Por ora, importa apenas concluir, do ponto de vista processual e mais especificamente na perspectiva da causa de pedir e do pedido, que nada obsta à apreciação do recurso com o objecto que o recorrente lhe assinalou.
B] da matéria de direito:
O recorrente foi peremptório na delimitação do objecto do seu recurso. Este apenas tem por objecto a questão da violação do dever de informação para o consentimento informado. É esse fundamento da acção, não acolhido na decisão recorrida, que o recorrente pretende que seja reanalisado pela Relação. Está pois excluída do recurso a reapreciação do decidido com base na causa de pedir do erro médico por violação das legis artis.
Parece não haver dúvidas de que a acções de responsabilidade civil por acto médico podem ser basicamente de dois tipos: acções com fundamento na má prática médica ou erros técnicos (violação das legis artis); acções com fundamento na violação ou desrespeito dos direitos dos pacientes, onde assume particular destaque a acção por violação do dever de informação para o consentimento informado[1].
Não interessa, para o caso, discutir se entre os dois fundamentos possíveis existe alguma relação de especialidade uma vez que tendo a acção sido julgada totalmente improcedente o recorrente não questiona o decidido no tocante ao fundamento da violação das legis artis mas apenas o decidido sobre o fundamento do dever de informação, sendo pois esta a única causa de pedir que subsiste para apreciação.
O paradigma jurídico de ser humano é o paradigma do ser livre, dotado da dignidade por excelência que é a dignidade humana. A afirmação dessa dignidade passa pela imposição de um dever geral de respeito que permita a afirmação cabal das diversas dimensões que emprestam humanidade à pessoa, sem as quais a pessoa não se afirma como pessoa. Entre essas dimensões contam-se todas aquelas que normalmente são associadas ao chamado direito geral de personalidade, rectius, «todas as manifestações previsíveis e imprevisíveis da personalidade» (apud Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil). O caminho para a afirmação dessa dignidade compreende o direito à autonomia privada ou de autodeterminação, isto é, a liberdade da própria pessoa de reger a sua vida, o seu destino, o modo como se afirma no mundo, o direito de exigir que as decisões que lhe dizem respeito passem por si e sejam respeitadas.
No domínio da saúde a autodeterminação afirma-se através do direito da pessoa a decidir se e em que circunstâncias se submete a tratamento ou actos médicos, não lhe podendo ser oposto que os médicos são os mais preparados para saberem o que convém ou é necessário ou sequer que a pessoa em concreto pode não ter capacidade para se autodeterminar nesse domínio. Ao invés, entende-se que o médico tem não apenas a obrigação de aguardar pela decisão do doente (excepto se este estiver impedido de o fazer e as circunstâncias aconselhem a presumir que a sua decisão seria essa), como tem a obrigação de fornecer ao doente as informações necessárias para este tomar uma decisão livre e informada.
O profissional de saúde tem o dever prestar ao doente informações de modo a permitir que o doente decida livre e conscientemente se consente ou recusa o acto médico que lhe é proposto. O objectivo da informação é o de permitir que o doente possa determinar, à luz do seu entendimento e valores, se deseja ou não consentir na intervenção, tomando uma decisão assente nos pressupostos de auto-responsabilização e da liberdade de escolha[2].
Este dever de informação presente na relação médico-doente e que é correlativo do direito à autodeterminação do doente concretiza-se através do chamado consentimento informado. Este afirma-se como o momento no qual o doente, na posse da informação necessária, devidamente esclarecido dos riscos e das alternativas, autoriza a realização de um acto médico, legitimando a intervenção de terceiros sobre o seu corpo e a sua integridade física, ou seja, dispõe desse segmento da sua personalidade tendo em vista da obtenção do ganho sanitário – de diagnóstico ou tratamento, curativo ou estético – que o acto médico visa proporcionar. É este objectivo que legitima, do ponto de vista ético-jurídico, a disponibilidade de elementos da personalidade humana que seriam indisponíveis e torna essa disposição compatível com a dignidade da pessoa humana.
A figura do consentimento informado encontra-se consagrada no artigo 5.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina[3] [4], aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001, ratificada pelo Decreto do Presidente da República e publicada no DR I-A, n.º 2 de 3 de Janeiro de 2001, e no artigo 3º, n.º 2, § 1º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[5]. E resulta do disposto nos artigos 25.º e 26.º da Constituição da República Portuguesa, nos artigos 70.º, n.º 1, 81.º, n.ºs 1 e 2, e 340.º do Código Civil, nos artigos 38.º, 39.º, 156.º e 157.º do Código Penal, na Base XIV, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto (Lei de Bases da Saúde), no artigo 135.º, n.º 11, do Estatuto da Ordem dos Médicos e nos artigos 19.º e 25.º do Regulamento de Deontologia Médica.
Para o caso é irrelevante que os factos tenham ocorrido já no longínquo ano de 2005 uma vez que pese embora alguns destes diplomas que foram reafirmando a figura do consentimento informado sejam posteriores a essa data, a legislação internacional, constitucional e ordinária vigente entre nós naquela data era já suficiente para alicerçar esse conceito jurídico.
Para ser juridicamente válido e gerar o efeito de tornar não ilícita a intervenção, o consentimento da pessoa para que seja realizado no seu corpo um determinado acto médico de diagnóstico, tratamento, cura ou melhoria da saúde em geral (física ou estética, corporal ou psíquica) necessita de ser livre e esclarecido ou informado, o que exige que a pessoa receba de quem vai realizar esse acto informação adequada à tomada de decisão.
Porque se trata de decidir quanto a uma intervenção sobre o corpo e, consequentemente, de uma decisão sobre prescindir da integridade física e sujeitar-se aos riscos da intervenção de terceiros, a tomada de decisão pressupõe o conhecimento das razões que subjazem à necessidade, conveniência ou finalidade da intervenção proposta, da natureza desta, da perigosidade dos meios que irão ser usados, das consequências previsíveis, dos efeitos secundários e dos riscos da intervenção que não devam considerar-se altamente improváveis, da existência de intervenções alternativas que sejam aptas a gerar resultados equiparados e/ou menos arriscados.
Este volume de informação (rectius, a densidade do dever de informação) depende sempre do caso concreto, relevando para o efeito os pormenores da situação e as características particulares do paciente e da relação médico-paciente[6].
É diferente se nos encontramos perante uma situação de urgência em que está em causa a vida do paciente ou a possibilidade de ele sofrer danos acrescidos em caso de demora no tratamento ou antes numa situação em que o tratamento pode ser útil mas não é inteiramente necessário, designadamente porque o problema já existia e o paciente tinha encontrado modo de viver com ele ou de resolver os problemas quele ele lhe colocava.
É diferente se nos encontramos perante uma situação em que entre o paciente e o médico existe uma relação de confiança consolidada em resultado da qual o doente criou justificadamente a confiança de que o médico atenderá de modo particular os seus interesses ou nos encontramos perante uma situação em que o paciente contacta pela primeira vez com o médico cuja competência, habilidade e conhecimentos nunca verificou.
É diferente se nos encontramos perante um paciente letrado que possui capacidade intelectual para compreender a informação que lhe é transmitida e de se relacionar com ela do ponto de vista da tomada de decisão ou nos encontramos perante um paciente sem essa capacidade, sem conhecimentos que lhe permitam apreender e avaliar a informação.
É diferente se nos encontramos perante uma intervenção padronizada, comum, frequente na prática médica ou a que o paciente já recorreu de outras vezes e que continua a fazer-se usando meios ou equipamentos muito testados e comprovados, ou antes perante um ensaio clínico ou um tratamento inovador, com uso de meios mais arriscados ou cuja aplicação pode gerar consequências mais gravosas, a que o paciente nunca foi submetido ou já recusou submeter-se.
É diferente se estamos a falar de riscos muito pouco frequentes ou de riscos de pequena gravidade ou, ao invés, de riscos cuja frequência estatística faz com que eles não devam ser desprezados ou são de gravidade que deva ser levada em consideração.
Como quer que seja, em qualquer das situações referidas o dever de informação existe e o consentimento informado deve ser obtido (excepto se tal não for possível[7] e for de presumir o consentimento); o que varia é a densidade da informação[8] que deve ser transmitida[9] e a medida em que a mesma é adequada para permitir uma decisão livre e informada.
Precisamente porque a informação tem um objectivo específico, o de criar condições para uma decisão livre e informada, parece que a mesma deve compreender tudo quanto uma pessoa medianamente interessada e razoável, consideraria, em condições normais, como factor com influência para a sua decisão. O que significa que essa informação deve abarcar os riscos normais da intervenção, com excepção apenas daqueles que se mostrarem desprezíveis, os riscos incomuns de gravidade, ainda que de ocorrência pouco frequente, e ainda todos os riscos que resultam das próprias características do doente e da interacção conhecida dessas características com a intervenção.
Não sendo obtido o consentimento informado (oralmente ou por escrito, nos caso em que esta formalidade é exigida, de modo expresso ou tácito, directamente ou presumidamente), a intervenção realizada no corpo da pessoa não está autorizada (nos termos em que a ordem jurídica o permite e exige) e vai consubstanciar a prática de um acto ilícito (artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, na perspectiva de uma violação do direito subjectivo de personalidade - primeira parte da norma - e na dimensão da violação das normas relativas ao consentimento enquanto normas de protecção que visam especificamente a protecção de interesses do destinatário dos actos médicos - segunda parte da norma -).
Centremos agora a atenção no caso.
Resultou provado que o autor padecia desde a infância de miopia que se foi agravando com a idade (23 e 24) e que a dada altura tomou conhecimento da existência de uma cirurgia laser para correcção de patologias da visão, designadamente a miopia, o astigmatismo e a hipermetropia, denominada Lasik (3). O autor interessou-se pela cirurgia tendo em vista a possibilidade de corrigir cirurgicamente a sua miopia e abandonar o uso de óculos ou lentes de contacto (26, 27 e 31). Através de outro médico oftalmologista que lhe indicou o réu Rui Martinho o autor foi informado da possibilidade de a eficácia da cirurgia Lasik regredir com o tempo e de poder gerar fotofobia e síndrome de olho seco (96).
Na consulta o réu D… transmitiu ao autor que a recuperação da cirurgia Lasik seria quase imediata, sem dores (35). Quanto às possíveis complicações resultantes da intervenção, o réu Rui Martinho transmitiu ao autor, pelo menos, a eventualidade de ser necessário levar a cabo um "retoque", ou seja, de em fase posterior utilizar novamente o laser para correcção de algo que não ficasse perfeito na primeira intervenção (36), o que, se viesse a ser necessário, apenas poderia ser realizado cerca de 3 meses após a intervenção originária, de forma a permitir a estabilização do olho e a conhecer- se a extensão da correcção necessária (37). O D… não transmitiu ao autor qualquer informação quanto a técnicas de tratamento alternativas ao Lasik, designadamente o Lasik personalizado ou a implantação de lente intra-ocular (38). Recebida a indicação do réu D… de que reunia as condições para ser submetido à cirurgia Lasik, o autor marcou a intervenção a qual foi realizada por este médico no dia 23 de Maio de 2005 (40, 41 e 42).
Como resulta destes factos, o autor celebrou com o réu D… um contrato cujo objecto foi a realização de uma cirurgia oftalmológica a laser para corrigir a miopia e abandonar o uso de óculos ou lentes de contacto.
Resulta ainda que antes de o autor se decidir pela realização da cirurgia o réu D… apenas lhe transmitiu as seguintes indicações: a) que a recuperação da cirurgia seria quase imediata e sem dores; b) que podia vir a ser necessário executar novamente o laser para correcção de algo que não ficasse perfeito na primeira intervenção; c) que, se viesse a ser necessário, isso apenas poderia ser realizado cerca de 3 meses após a intervenção originária, para permitir a estabilização do olho e apurar a extensão da correcção necessária.
Por outras palavras, não se provou que o réu tenha informado o autor de quaisquer riscos ou efeitos secundários da cirurgia, nem de tratamentos alternativos.
Na nossa leitura, estes factos evidenciam que o réu não cumpriu perante o autor o seu dever de lhe fornecer a informação adequada e suficiente para ele tomar a decisão livre e informada de consentir na cirurgia proposta. Uma vez que qualquer cirurgia importa riscos e pode gerar efeitos secundários, a total ausência de informação relativa aos riscos e aos efeitos secundários significa claramente que a informação não foi adequada nem suficiente uma vez que alguma tinha de ser prestada a esse respeito.
No caso está mesmo demonstrado que a intervenção cirúrgica com utilização da técnica Lasik pode causar no paciente os seguintes efeitos, pelo menos, independentemente dos concretos meios empregues e da concreta prestação do médico oftalmologista: a. Hipocorrecção ou hipercorrecção; b. Astigmatismo irregular; c. Perda de acuidade visual corrigida; d. Diminuição da visão nocturna, halos, clarões e starbusts; e. Diminuição do contraste visual; f. Crescimento epitelial sob o "flap"; g. Infecção e ulceração do "flap"; h. Infecções oculares; i. Síndrome de olhos secos; j. Sensibilidade à luz; k. Regressão da acuidade visual; l. Regressão do resultado com a idade; m. As imperfeições refractivas (miopia, astigmatismo e hipermetropia) que o paciente apresenta podem não ser corrigidas de forma total.
É certo que não sabemos qual o grau de probabilidade destes riscos ou efeitos secundários e, em alguma medida, também não está especificado o respectivo grau de gravidade, designadamente se são irreversíveis ou não.
Todavia, o ónus da prova de que cumpriu o dever de informação e de que obteve o consentimento informado que legitimaria a realização da cirurgia é do médico na medida em que se trata de um elemento constitutivo da autorização que a realização da cirurgia pressupõe e exige. Para fazer essa prova e pretendendo que havia riscos que não careciam de ser informados, o réu tinha de demonstrar que aquele seu dever estava circunscrito a determinados riscos ou efeitos secundários específicos e que estes foram informados.
Cabia pois ao réu demonstrar quais os riscos e efeitos secundários que se provou estarem associados à cirurgia que eram de tal modo improváveis, raros e/ou de escassa gravidade ou fácil tratamento por meios sucedâneos que não tinham de ser incluídos na informação a prestar ao autor. Não tendo feito essa prova deve presumir-se que todos eles tinham de ser informados e que a não informação de qualquer deles importa a violação do dever de obter um consentimento informado.
A circunstância de o autor ter sabido anteriormente por outro médico oftalmologista da possibilidade de a eficácia da cirurgia regredir com o tempo e poder gerar fotofobia e síndrome de olho seco, não é totalmente irrelevante.
O médico que se propõe fazer a intervenção deve possuir a informação científica e técnica necessária para informar os seus pacientes e assumir o risco do que pretende executar, pelo que é sobre ele que recai o dever de informação quanto mais não seja porque é ele que vai estabelecer com o paciente a especifica relação jurídica e de confiança que subjaz à prática da intervenção.
Sucede, contudo, que a atitude do paciente de reclamar por não lhe ter sido dada uma informação que afinal de contas ele já possuía, ainda que através de outra fonte que era igualmente confiável - outro médico oftalmologista -, pode traduzir um abuso de direito, excepto se o paciente alegar e demonstrar que confrontou o médico contratado para realizar a intervenção com essa informação e este não a confirmou. Eis porque no caso entendemos considerar irrelevante a falta de informação sobre os riscos de regressão dos efeitos e de causar fotofobia e síndrome de olho seco.
Por outro lado, a natureza da intervenção realizada não nos parece afastar ou sequer atenuar este dever de informação. O autor padece de miopia, isto é, de uma afectação da visão. Esse problema de saúde oftalmológica era superado com utilização de próteses oculares que permitiam ao autor superar em parte a afectação do sentido da visão mas cujo uso coloca naturalmente dificuldades e constrangimentos que não se colocam a quem não tem essa necessidade.
O autor não tinha necessidade absoluta de realizar a cirurgia, uma vez que a falta desta não iria agravar o seu problema nem colocar-lhe novos problemas de saúde. Todavia, tinha interesse em a realizar, não por razões puramente estéticas definidas segundo um critério pessoal e subjectivo, mas por razões de saúde uma vez que a disposição de uma visão perfeita ou sem miopia melhora claramente a qualidade de vida da pessoa ao permitir-lhe interagir melhor com a vida que o rodeia e executar melhor os actos da vida quotidiana sem necessidade do uso de próteses.
O réu devia captar que o paciente tinha capacidade e interesse em conhecer bem os riscos associados à cirurgia. Uma pessoa que vive com uma grave insuficiência visual pode não estar disposta a correr o risco de uma cirurgia da qual pode advir um efeito secundário que se traduz noutra forma de afectação da visão. Cabe-lhe o direito de fazer a avaliação dos riscos, de ponderar se as vantagens compensam os riscos, de equacionar meios alternativos que importem menos riscos ou riscos diferentes, de tomar a sua decisão de forma livre e, para esse efeito, o médico estava obrigado a informá-lo desses riscos e da existência de alternativas, ainda que tenha partido do paciente a iniciativa do contacto com o médico e o interesse pela cirurgia e esta não se mostrasse essencial para o equilíbrio da saúde física e psíquica do paciente.
Vejamos agora o que se passou na relação entre o autor e o réu F….
A matéria de facto revela que o autor o procurou para se informar sobre o estado clínico do seu olho direito e sobre as possibilidades de eventual correcção dos problemas que apresentava, com vista a alcançar a aptidão da sua visão sem recurso a óculos ou lentes de contacto, tendo na altura o autor descrito a este réu o tratamento a que havia sido submetido pelo réu Rui Martinho e manifestado as queixas do que sentia.
O objectivo do autor quando procurou este réu já não foi inteirar-se da cirurgia com este método, foi o de procurar uma solução clínica para a consequência da visão enevoada que adviera daquela cirurgia. Foi o réu F… que decidiu, no seu critério clínico, a abordagem técnica adequada para resolver esse problema de visão do autor e, mais concretamente, que essa abordagem passava pelo uso do mesmo método, agora com a realização do «retoque» cuja possibilidade já era conhecida do autor.
Também o réu F… não transmitiu ao autor qualquer informação sobre possíveis efeitos secundários permanentes da cirurgia Lasik ou a possibilidade de o autor não alcançar em toda a extensão a aptidão da sua visão sem recurso a óculos ou lentes de contacto nem transmitiu ao autor qualquer informação quanto a técnicas de tratamento alternativas, designadamente o Lasik personalizado ou a implantação de lente intra-ocular (68 e 69).
Existiu aqui igualmente um incumprimento notório do dever de informação. O réu estava já confrontado com uma consequência que constitui um dos riscos associados à cirurgia e que, como tal, podia ser irreversível, razão pela qual tinha obrigatoriamente de informar o doente dessa possibilidade.
Uma vez que o doente o procurou para resolver aquele problema e ele se lhe afirmou capaz de o resolver, o réu, não tendo sido o autor da anterior cirurgia, não podia ter dúvidas sobre a necessidade de esclarecer o doente dos riscos da cirurgia já realizada, da possibilidade de também a sua intervenção poder vir a não ter sucesso e da existência de outras alternativas para tentar resolver o problema, sendo certo que nada permite presumir que por já ter sido submetido a uma cirurgia dessa natureza o autor disporia das informações necessárias para tomar a sua decisão.
Não tendo feito isso, as intervenções que realizou não foram afinal validamente consentidas pelo doente por ausência de consentimento livre e informado.
Tendo-se concluído que os actos médicos praticados pelos réus consubstanciaram a prática de actos ilícitos por desprovidos do necessário consentimento informado do autor, e não havendo dúvidas sobre a sua imputabilidade aos réus pelo menos a título de negligência, pode questionar-se se existe no caso alguma causa de exclusão dessa ilicitude.
Foi julgado provado que «caso o autor tivesse tido consciência que a intervenção não eliminaria a sua necessidade de recorrer ao uso de óculos e lentes de contacto, ou que originaria halos, "starbusts" e clarões, e dificuldades na visão nocturna sem correcção, teria decidido não submeter-se às intervenções referidas» (86).
Em simultâneo, foi julgado não provado que «caso o autor tivesse tido consciência que haveria a possibilidade de a intervenção não eliminar a sua necessidade de recorrer ao uso de óculos e lentes de contacto, ou que poderia originar halos, “starbusts” e clarões, e dificuldades na visão nocturna sem correcção, teria decidido não submeter-se às intervenções referidas (jj).
Se bem interpretamos esta decisão, o tribunal a quo pretendeu julgar provado apenas que o autor teria decidido não consentir na realização do acto médico se soubesse que este não evitaria a necessidade de usar óculos e causaria os efeitos assinalados, isto é, se soubesse que a cirurgia teria com certeza essas consequências. Já que tomaria a mesma decisão no caso de esses resultados (ser necessário continuar a usar óculos e surgirem os efeitos assinalados) serem apenas prováveis (não certos como na outra hipótese factual) o tribunal a quo entendeu julgar não provado.
Não estando provado que a cirurgia em causa determina sempre a necessidade de o paciente continuar a fazer uso de óculos e/ou que causa sempre os efeitos indesejados assinalados (o que torna o facto provado irrelevante porque ele se refere à certeza), pode questionar-se se cabia ao autor provar que caso fosseinformado dos riscos possíveis (de haver a possibilidade de se verificar um resultado que veio a ocorrer) não teria dado o consentimento ou, ao invés, cabia aos réus demonstrar que o autor daria o seu consentimento mesmo que tivesse essa informação. Por outras palavras, a questão de saber contra quem retirar consequências de não ter ficado provado o que faria o autor se tivesse sido confrontado com os riscos possíveis da cirurgia (com a possibilidade, não a certeza de eles ocorrerem): artigos 414.º do Código de Processo Civil e 346.º do Código Civil, segunda parte.
A nosso ver, o ónus da prova recai sobre os réus[10]. São os réus que têm a necessidade de demonstrar que a afectação da integridade física do autor pelas intervenções que realizaram é, afinal, lícita por existir uma causa de exclusão da ilicitude congénita a intervenções dessa natureza (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil)[11]. A demonstração do consentimento serve essa finalidade, mas como para possuir tal alcance o consentimento necessita de revestir determinadas qualidades a demonstração terá de abarcar estas qualidades (ter sido precedido dos esclarecimentos e informações adequadas para a tomada de uma decisão livre e consciente). Se é suscitada a questão do consentimento hipotético, cabe ao autor do acto médico fazer a demonstração dos respectivos elementos constitutivos. Por isso, o facto provado (e a decisão de julgar não provado o outro facto) não é suficiente para excluir a ilicitude da actuação dos réus.
Vejamos agora os restantes pressupostos da obrigação de indemnização: a culpa, os danos e o nexo de causalidade.
No que concerne à culpa do médico, a qual pode revestir as modalidades do dolo ouda negligência, ela existirá em regra, na medida em que sendo clara a exigência do requisito e resultando ele mesmo das regras deontológicas do exercício da profissão, dificilmente haverá uma situação em que a falha não será imputável ao médico pelo menos a título de negligência.
Acresce que no domínio da responsabilidade contratual que estará presente em todas as situações de medicina privada, em que o médico exerce a sua actividade no âmbito de uma relação negocial acertada com o paciente em particular, a culpa presume-se, cabendo ao onerado com o dever de informação demonstrar que essa falha não se deveu a culpa sua (artigo 799.º do Código Civil).
Quanto aos danos, em tese pode entender-se que se a ilicitude é a violação do dever de informação o dano que a pode ter como causa adequada é o dano da perda da liberdade de autodeterminação. Se o objectivo desse dever é dar ao informado a capacidade de decidir por si, o que em consequência da deficiência da informação se perde é a possibilidade de ser ele a tomar a decisão, porquanto nada impede que mesmo na posse da informação adequada a decisão fosse no sentido de autorizar a prática do acto médico e nada permite presumir que daria ou que não daria o consentimento.
A verdade, contudo, é que embora o direito de autodeterminação constitua uma dimensão do bem jurídico a proteger – nem mais nem menos que o direito de personalidade – e seja, em simultâneo, o fundamento dogmático que torna possível a disposição daquele bem jurídico, o objectivo final da exigência do consentimento informado é afinal de contas também a protecção da integridade física e psíquica da pessoa[12].
O consentimento serve para reconhecer à pessoa o seu direito de autodeterminação, o direito de (ser ela a) decidir sobre (autorizar ou recusar) uma intervenção alheia no seu corpo, mas também e de modo particular para a proteger dos riscos associados a essas intervenções, impedir a afectação da sua dignidade que as intervenções importam, no fundo, evitar lesões (indesejadas) da sua integridade física e psíquica. Por isso, o consentimento é sempre necessário (o que não impede que, em circunstâncias excepcionais, se presuma a sua existência ou se justifica a sua dispensa) e sem ele toda a afectação da integridade física e psíquica da pessoa que a intervenção acarreta é ilícita e constitui em si mesmo um dano (dano real).
Além disso, por se tratar precisamente de uma actuação sobre o corpo, a integridade física e a saúde da pessoa, o acto ilícito gera sempre um dano. A extensão desse dano é que pode variar consoante as situações.
Se o acto médico não gera qualquer resultado negativo ou indesejado para a integridade física ou saúde da pessoa, o dano cinge-se à perda da liberdade de autodeterminação e de disposição do próprio corpo (v.g. o paciente pretendia o exame, este é realizado e não causa qualquer efeito secundário ou indesejado, mas o paciente descobre que afinal a sua realização importava riscos e não tinha sido informado previamente dos mesmos).
Se o acto médico gera um resultado negativo ou indesejado (ainda que possua utilidade: v.g. a colonoscopia realizada sem consentimento informado gera um efeito secundário indesejado mas o resultado do exame permite descobrir uma patologia a exigir tratamento), o dano ultrapassa a dimensão da perda de autodeterminação, de afectação do direito de personalidade em geral, e concretiza-se igualmente num dano da integridade física e saúde do lesado.
No caso existem factores imputáveis ao próprio autor que dificultam o apuramento do dano indemnizável ou a determinação da medida em que o mesmo é indemnizável.
Com efeito, resultou provado que o autor abandonou o acompanhamento que vinha sendo feito pelo réu D… após a realização da cirurgia e o aparecimento da visão enevoada, não permitindo, alegadamente por perda de confiança, que este réu realizasse qualquer intervenção no sentido de concluir a cirurgia programada e/ou corrigir ou eliminar aquela consequência, desconhecendo-se se a mesma era possível e que resultados produziria, sendo certo que o autor havia sido informado por aquele médico da possibilidade de ser necessária uma correcção do trabalho realizado.
Também os actos médicos que o réu F… se propôs executar não foram concluídos porque o autor, após a segunda intervenção realizada por este, continuou a não sentir melhorias na visão do seu olho direito e recusou submeter-se à nova intervençãoproposta por aquele médico abandonou o tratamento a que estava a ser sujeito.
As situações não são exactamente iguais. No primeiro caso, o autor não permitiu sequer ao médico que realizasse qualquer nova intervenção, apesar de estar informado que a cirurgia podia não produzir a totalidade dos seus efeitos na primeira intervenção e carecer de uma segunda para completar, concluir ou rectificar o resultado da primeira (dar um «retoque»). No segundo caso, o autor ainda permitiu uma segunda intervenção, sendo certo que já a primeira tinha o objectivo específico de corrigir os resultados da cirurgia realizada pelo médico anterior.
Embora se desconheça se o primeiro médico podia alcançar resultados melhores do que conseguiu o segundo (aparentemente poucos ou nenhuns) a verdade é que o autor tinha contratado com ele a execução da cirurgia para correcção da miopia, pelo que devia permitir que ele executasse a totalidade dos actos necessários à realização do objecto contratado.
Não o tendo feito e omitindo a colaboração necessária à execução da prestação a cargo do médico, não apenas entrou ele mesmo em incumprimento do contrato celebrado como impediu o médico de alcançar o resultado da eliminação das consequências indesejadas da intervenção, sendo certo que mesmo no âmbito do dever de indemnização a regra é a da restauração natural pelo que cabe ao devedor o direito de a procurar alcançar para se desonerar da obrigação alternativa da indemnização pecuniária (artigo 566.º do Código Civil).
Em relação ao segundo médico, uma vez que o que foi anunciado ao autor foi que o problema gerado pela primeira intervenção seria resolvido com um retoque através de nova intervenção, não tendo isso sido obtido nem com a primeira intervenção realizada por este médico que era suposto resolver o problema, nem com a segunda que já foi executada ao arrepio do que havia sido proposto pelo médico, a atitude do autor parece justificada atenta a circunstância de se tratar de uma cirurgia a laser que provoca alterações irreversíveis no olho e por isso representar um perigo de afectação de um dos sentidos essenciais à pessoa e à sua vida.
Por outro lado, resultou provado que de todas as sequelas das intervenções que o autor apresenta (as indicadas no facto do ponto 88) praticamente todas elas decorrem de o autor não ter sido operado ao olho esquerdo, anomalias que se resolvem com recurso a lente de contacto ou cirurgia (94).
A opção de não ser operado ao olho esquerdo é do autor. Este estava informado que a cirurgia tinha de abranger ambos os olhos (o médico até entendia que eles deviam ser intervencionados em simultâneo e foi a pedido do autor que acedeu em intervencionar primeiro o olho direito e só depois o olho esquerdo) pelo que era conhecedor de que se um olho foi intervencionado e o seu estado foi modificado pela cirurgia realizada a não realização da cirurgia ao outro olho causaria divergência da performance visual dos olhos. A opção por não executar a cirurgia que resolveria estes problemas e que estava incluída no plano inicial do tratamento é igualmente uma opção do autor, o qual se torna assim igualmente responsável pela manutenção da situação indesejada resultante dos actos médicos praticados.
Dessa relação escapam uma sequela que não difere muito da situação preexistente, a acuidade visual, e outra que não interfere com a visão, o surgimento de células epiteliais. Escapa ainda uma última sequela que se relaciona efectivamente com as queixas que o autor sempre apresentou - o astigmatismo que provoca a visão embaçada ou enevoada e a hipersensibilidade do olho à luz - mas que é igualmente superável com o uso de óculos e, sobretudo, constituí um risco de que o autor tinha sido informado pela outra médica oftalmologista que consultara antes dos réus.
Por fim, deve ter-se em consideração que estas situações levaram o autor a ter necessidade de introduzir mudanças no seu espaço familiar e de trabalho e a reduzir o trabalho e a condução no período nocturno (90), e causaram-lhe angústia, desconforto com a sua visão, revolta, ansiedade e depressão, levando-o a procurar auxílio médico e medicamentoso (91).
Ora, dispõe o artigo 570º, n.º 1, do Código Civil que «quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».
A ponderação judiciosa da globalidade destas circunstâncias, como vimos variadas e com distintas repercussões quer ao nível da imputabilidade quer dos resultados, não justifica, a nosso ver, a exclusão da indemnização (não se justifica deixar de censurar o comportamento dos réus), mas justifica uma redução da mesma a um valor baixo por ser notório que o comportamento desconfiado do autor, de não colaboração e de rompimento com os planos programados acabou por ter forte influência no resultado produzido.
Por tudo isso, afigura-se-nos que a indemnização dos danos não patrimoniais, que corresponde ao pedido da alínea b), deve ser fixada com base na equidade, mostrando-se adequado o valor de 3.500€ (três mil e quinhentos euros) por cada acto ilícito.
Assinale-se que este valor se encontra actualizado à presente data (consiste na ponderação dos danos com base em valores actuais), pelo que os juros de mora apenas serão devidos desde a presente data em aplicação do Acórdão n.º 4/2002 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no DR, Iª Série, de 27 de Junho de 2002, que uniformizou a jurisprudência do seguinte modo: «Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação».
O pedido da alínea a) tem de ser julgado improcedente porque, conforme começou por se assinalar, o mesmo respeita à indemnização por uma incapacidade funcional que não se provou.
Os pedidos das alíneas c) e d) improcedem na totalidade em virtude da delimitação do objecto do recurso às consequências da falta de consentimento informado. Essa restrição determina que o julgamento que aqui cabe não possa ter como fundamento a causa de pedir baseada nos contratos celebrados com os médicos e a sua resolução por incumprimento das respectivas obrigações, mas apenas a indemnização dos danos resultantes de um ilícito civil com fundamento no artigo 483.º do Código Civil, o que remete para os danos que têm como causa adequada o facto ilícito, não para a destruição do contrato e do respectivo sinalagma decorrente da respectiva nulidade ou resolução não arguidas na acção.
O pedido da alínea e) de publicação da sentença num jornal nacional («durante 4 Domingos, de forma a evitar que potenciais candidatos a realizar intervenção com recurso à técnica “Lasik” possam ser operados sem qualquer informação», sic) improcede evidentemente.
Com efeito, encontramo-nos num domínio jusprivatistico em que não existe norma legal que imponha essa publicação; o direito do autor cinge-se a ser indemnizados dos danos que sofreu, não a infligir aos réus o dano reputacional da publicação da condenação; não se reconhece ao autor legitimidade nem interesse para acautelar o perigo para outrem da repetição da actuação dos réus, nem há motivos reais e demonstrados para a temer.
Improcede identicamente o pedido da alínea f) uma vez que como se viu foi o autor com o seu comportamento e decisões que impediu que tivessem sido já executadas intervenções destinadas a eliminar as consequências indesejadas da cirurgia.
A responsabilidade pelo pagamento da indemnização acima assinalada cabe aos autores da violação do dever de informação para o consentimento informado, os médicos.
Estão igualmente demandadas sociedades comerciais em cujas instalações decorreram os actos médicos contratados com os médicos. Sucede que em virtude da delimitação do objecto do recurso, esta Relação apenas pode apreciar a causa de pedir fundada no instituto da responsabilidade civil, no preenchimento dos pressupostos do artigo 483.º do Código Civil, nas consequências da prática de um acto lícito pelos médicos com os quais o autor contratou a prática dos actos médicos em cuja execução se verificou aquela ilicitude.
Nesse contexto, a matéria de facto provada é insuficiente para condenar aquelas sociedades no pagamento da indemnização. Na verdade, não tendo sido elas as autoras do acto ilícito e cabendo a responsabilidade em regra ao autor e apenas a terceiros nos casos excepcionais em que a lei o prevê, não basta para as responsabilizar o ter-se demonstrado que os médicos prestavam colaboração a essas sociedades (factos dos pontos 20 e 22) e/ou que os actos foram praticados em instalações clínicas ou hospitalares pertencentes às sociedades.
Era sempre necessário algo mais, designadamente a demonstração da existência da situação de pluralidade de autores, instigadores ou auxiliares (artigo 490.º do Código Civil) ou de uma relação de comissão entre as sociedades e os médicos (artigo 500.º do Código Civil). Refira-se que foi o próprio autor a alegar o desconhecimento na natureza da relação entre os médicos e as referidas sociedades ao abrigo da qual eles exerciam a medicina em instalações destas, razão pela qual não foi sequer alegado um fundamento para imputar às referidas sociedades a responsabilidade perante terceiros por actos ilícitos cometidos na prática clínica dos médicos.
No tocante às seguradoras intervenientes, cuja intervenção se funda na existência de contratos de seguro que operaram a transferência para as seguradoras da responsabilidade civil emergente da actuação dos tomadores do seguro ou segurados, entendemos que a I… Companhia de Seguros e a H… não poderiam em circunstância alguma ser condenadas nos autos na medida em que a sua intervenção nos autos foi requerida pelos réus demandados apenas a título de intervenção acessória, apenas para acautelar um eventual direito de regresso dos demandados sobre as seguradoras.
Pese embora, com manifesta desatenção, no despacho que admitiu a sua intervenção nos autos se faça referência à intervenção principal e não à intervenção acessória, que possuem requisitos e geram consequências processuais bem distintas, certo é que vale aqui o princípio do pedido, razão pela qual não tendo sido requerida pela parte interessada a sua intervenção principal e tendo as intervenientes interpretado adequadamente a sua intervenção como sendo na qualidade que os demandados lhe assinalaram, entendemos que as intervenientes não possuem efectivamente a qualidade de partes principais e consequentemente não existe pedido relativamente a elas do qual possa resultar a sua condenação.
No que concerne à Companhia de Seguros G…, a qual foi efectivamente chamada a título de interveniente principal pela ré C…, S.A., haveria que discutir se e em que medida um terceiro estranho ao contrato a poderia demandar directamente para exigir o pagamento da indemnização devida pelo tomador do seguro ou segurado. Todavia, improcedendo a acção em relação à ré C…, S.A. que a chamou à acção e por conta de cuja responsabilidade esse chamamento teve lugar, deve concluir-se que a acção improcede igualmente no tocante Companhia de Seguros G….
Procede assim, em parte, o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida e, em sua substituição, julgam agora a acção parcialmente procedente, condenando os réus D… e F… a pagar aos autores, cada um, a indemnização de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora a contar da presente data até integral pagamento.
Custas da acção e do recurso pelo autor na proporção de 97% e pelos réus condenados na proporção de 3%.
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Porto, 13 de Maio de 2021.
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 615)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
____________________ [1] Afirmando que a violação, no caso por um médico oftalmologista, do dever de informação determina a invalidade do consentimento e a ilicitude das lesões causadas à integridade física e à liberdade, bem como a obrigação de indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo lesado, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-3-2010 (Pires da Rosa), in www.dgsi.pt. Afirmando que a responsabilidade civil emergente da realização de ato médico, ainda que se prove a inexistência de erro ou má prática médica, pode radicar-se na violação do dever de informação do paciente relativamente aos riscos e aos danos eventualmente decorrentes da realização do ato médico, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-10-2019, proc. n.º 3192/14.8TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02.11.2017, de 22.03.2018 e de 24.10.2019, todos disponíveis in www.dgsi.pt. [2] Para João Vaz Rodrigues, in O consentimento informado para o acto médico no ordenamento jurídico português, Coimbra, 2001, págs. 241-242, “o dever de informar obedece, cumulativamente, aos princípios da simplicidade e da suficiência, e visa o esclarecimento”. O autor acrescenta que a “a informação deve ser esclarecida no sentido de certificada. Trata-se de um verdadeiro dever intermédio, sem o qual os deveres de informar e de obter o consentimento ficam esvaziados dos respectivos conteúdos”. Por outras palavras, a informação tem de ser verdadeira, corresponder ao estado do conhecimento científico exigível por parte do profissional de saúde. [3] Cujo artigo 5.º estabelece: «1.º§ Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efectuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido. 2.º§ Esta pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos.» [4] Segundo J. Correia Gomes in Constituição e Consentimento Informado: Portugal, Revista Julgar N.º Especial, 2014, pág. 87, para esta Convenção «o consentimento informado, enquanto afirmação da autonomia do doente, é uma das regras essenciais no âmbito da relação clínica entre o doente e os profissionais de saúde, que confere àquele um direito de natureza subjectiva, com carácter obrigatório e efeitos vinculativos (artigos 5.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º)». [5] Cuja redacção é a seguinte: «1. Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental. 2. No domínio da medicina e da biologia, devem ser respeitados, designadamente: a) O consentimento livre e esclarecido da pessoa, nos termos da lei; (…)» [6] Álvaro Cunha Rodrigues, in Responsabilidade civil por erro médico: esclarecimento/consentimento do doente, Revista do CEJ, nº 16, 2011, págs. 9 segs, e 30, nota 21, sublinha que a exigência da informação não se confina a grelhas pré-definidas ou ‘standardizadas’”e que a respectiva latitude “variará de acordo com a própria preparação psicológica e cultural do paciente». [7] A doutrina entende que o consentimento informado é dispensável quando se verifiquem as seguintes situações cumulativas: o paciente encontrar-se impossibilitado de expressar livre e conscientemente a sua vontade; os representantes legais do paciente serem desconhecidos ou estarem incontactáveis em tempo útil; existir um risco iminente de morte. [8] Para André Dias Pereira, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente, Centro de Direito Biomédico, 9, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, págs. 369 a 443, o paciente deve ser esclarecido acerca do diagnóstico e do seu estado de saúde, dos meios e fins do tratamento; do prognóstico; da natureza do tratamento proposto; das consequências secundárias do tratamento proposto; dos riscos e benefícios do tratamento proposto, em especial dos riscos frequentes e dos riscos graves; das alternativas ao tratamento, bem como os riscos e consequências secundárias de tratamento alternativo; dos riscos e consequências secundárias da recusa de tratamento; dos aspectos económicos do tratamento. Na formulação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.10.2014, in www.dgsi.pt, “o conteúdo do dever de informação é elástico, não sendo, nomeadamente, igual para todos os doentes na mesma situação. Abrange, salvo ressalvas que aqui não interessam, e além do mais, o diagnóstico e as consequências do tratamento. Estas são integradas pela referência às vantagens prováveis do mesmo tratamento e aos seus riscos; não se exigindo, todavia, uma referência à situação médica em detalhe; nem a referência aos riscos de verificação excepcional ou muito rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento.» [9] No Acórdão de 26.11.2020, proc. n.º 21966/15.0T8PRT.P2.S1, in www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu no entanto que «não viola o dever de informação o médico que não detalha ao doente os riscos associados à intervenção cirúrgica de verificação muito rara, num quadro em que o doente está a par da gravidade sua situação clínica, e em que foram observadas as regras da legis artis.» [10] Nesse sentido, Orlando de Carvalho, in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 193 e ss., Figueiredo Dias/ Sinde Monteiro, in Responsabilidade Médica em Portugal, 1984, pág. 39, Costa Andrade, in Consentimento e Acordo, p. 458 ss. e Capelo de Sousa, in Direito Geral de Personalidade, pág. 221, nota 446. André Dias Pereira, Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo de causalidade, consultado na presente data in https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/10577, concorda e informa que «na Alemanha, é pacífico que sobre o médico impende ónus de provar que preencheu os pressupostos do consentimento justificante e isto quer a acção se funde em responsabilidade contratual, quer extracontratual. Assim terá o médico de provar que deu os esclarecimentos devidos, com todas as circunstâncias relevantes para o caso, as alternativas, as consequências e os riscos, etc.» [11] André Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra, 2012, pág. 477 e seguintes. Na jurisprudência, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 08.09.2020, proc. n.º 148/14.4TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, que «compete à instituição de saúde – e/ou médico – provar que, mesmo que houvesse cumprido correctamente os seus deveres de informação, o paciente se teria comportado do mesmo modo, tomando a mesma decisão». [12] Nesse sentido André Dias Pereira, O dever de esclarecimento e a responsabilidade médica, in Responsabilidade civil dos médicos, Coimbra, 2005, pág. 459, e Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra, 2012, pág. 405 e seguintes.
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]