RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
ABUSO DO DIREITO
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
Sumário


I - Tem sido jurisprudência unânime no STJ uma orientação restritiva quanto à admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, exigindo-se identidade do núcleo factual entre os casos em confronto, tal como configurados no acórdão fundamento e no acórdão recorrido. Facto e direito estão intrinsecamente ligados e tornam-se numa dualidade indivisível, de forma que, sendo os factos distintos, não se pode afirmar que estamos perante uma identidade de questões de direito.
II - Esta interpretação rigorosa dos requisitos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência explica-se pela circunstância de estar em causa a revogação de um acórdão do Supremo com força de caso julgado e não constitui qualquer violação do princípio da separação de poderes ou outros princípios constitucionais. 
III - Não se verifica qualquer identidade de questões de direito na temática da aplicabilidade do art. 334.º do CC em conjugação com o art. 729.º do CPC, nem compete ao Supremo proferir acórdãos uniformizadores de jurisprudência que limitem a liberdade do ato de julgar, em matéria de preenchimento de conceitos indeterminados ou de definição do âmbito de aplicação da figura do abuso do direito.

Texto Integral

 


Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


TERRARA – GESTÃO DE BENS MÓVEIS E IMÓVEIS, S.A, recorrente no presente processo, em que é recorrida Combitur – Construções Imobiliárias e Turísticas, S.A., inconformada com a decisão singular da Relatora, de 24 de março de 2021, que não admitiu o recurso para uniformização de jurisprudência por si interposto, vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 692º do Código de Processo Civil (CPC), concluindo nos termos seguintes:

«1ª.- A exigência da fundamentação da decisão reclamada para a verificação do fundamento da contradição sobre a mesma questão fundamental de direito, previsto no nº 1 do artigo 688º do Código de Processo Civil, da necessidade de que o núcleo factual fosse o mesmo, ou tivesse semelhança factual ou que existisse igualdade substancial da situação de facto, no acórdão recorrido e no acórdão - fundamento, violou a letra e o pensamento legislativo desse nº 1 do artigo 688º do Código de Processo Civil, impostos pelos nºs 1, 2 e 3 do artigo 9º do Código Civil.

2ª.- Interpretado, aquele segmento «em contradição sobre a mesma questão fundamental de direito» do nº 1 do artigo 688º do Código de Processo Civil, no sentido que é, ainda, necessária a existência de que o núcleo factual seja o mesmo, ou da semelhança factual ou da igualdade substancial da situação de facto, no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento, é, materialmente, inconstitucional, por violar os princípios constitucionais, consagrados nas alíneas c) e d) do artigo 161º, e nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 198º da Constituição da República Portuguesa, relativos à competência exclusiva da Assembleia da República ou do Governo para legislar, uma vez que constitui aditamento legislativo, a esse segmento, de fundamento cumulativo de «identidade de núcleo factual, ou de semelhança factual ou de igualdade substancial da situação de facto», no acórdão recorrido e no acórdão – fundamento, que fere de inconstitucionalidade material esse segmento «sobre a mesma questão fundamental de direito».

3ª.- A contradição, entre o acórdão recorrido e o acórdão - fundamento, sobre a mesma questão fundamental de direito, que ambos decidiram e que, como fundamento, para a interposição do recurso foi colocada, como seu objecto, para decisão pelo Pleno das Secções Cíveis deste Tribunal, pela sua natureza e singeleza, inexige para a sua verificação, a necessidade da existência que o núcleo factual fosse o mesmo, ou que tivesse semelhança factual ou que existisse igualdade substancial da situação de facto, e que as obrigações executadas tivessem a mesma natureza jurídica, no acórdão recorrido e no acórdão - fundamento, porque o seu objecto: Saber e decidir, se o artigo 729º do Código de Processo Civil proíbe, ou não, a aplicação do artigo 334º do Código Civil, como fundamento para, em oposição por embargos a execução, fundada em sentença de condenação, transitada em julgado, decidir julgar extinta a execução, é simples questão de direito, que não depende, para ter-se como verificada, da necessidade dessas exigências, pois é suficiente estar-se perante decisões executadas de sentenças condenatórias transitadas em julgado e perante a letra do artigo 729º do Código de Processo Civil.

4ª.- São erradas as afirmações da fundamentação da decisão reclamada: «O acórdão recorrido deferiu a pretensão do embargante baseada no abuso do direito pelo exequente»; «o exequente teve acesso aos documentos cuja entrega coativa pretendia»; «e no acórdão recorrido [executava-se] uma obrigação de prestação de facto de entrega de documentos», porque: i) A embargante, Combitur – Construções Imobiliárias e Turísticas, S.A., na oposição por embargos à execução não a baseou no abuso do direito pela exequente, e aqui reclamante, Terrara – Gestão de Bens Móveis e Imóveis, S.A., mas antes a baseou no proferimento pelo Tribunal da primeira instância de sentença inexequível, e foi o Tribunal da Relação ……. que, pelo seu acórdão de 14 de Maio de 2014, decidiu, oficiosamente, aplicar o artigo 334º do Código Civil à execução instaurada pela aqui reclamante para a julgar extinta; ii) A execução instaurada pela aqui reclamante, no dia 26 de Abril de 2019, foi a de execução para pagamento coactivo de quantia certa, da quantia de € 208.625,00, prevista nos artigos 724º e seguintes do Código de Processo Civil, fundada na obrigação da decisão da alínea d), transitada em julgado no dia 30 de Setembro de 2014 da sentença proferida no dia 15 de Julho de 2014 na respectiva acção declarativa, que condenou a executada, Combitur – Construções Imobiliárias e Turísticas, S.A., «a pagar uma sanção pecuniária compulsória no valor diário de € 125.00 (cento e vinte e cinco euros) por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação da entrega dos documentos referido em c)», e não foi execução de prestação de facto de obrigação de entrega dos documentos.

5ª.- O acórdão recorrido de 12 de Janeiro de 2021, proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, perante a execução, instaurada pela reclamante, no dia 26 de Abril de 2019, para pagamento de quantia certa de € 208.625,00, fundada na decisão condenatória, transitada em julgado no dia 30 de Setembro de 2014 e proferida no dia 15 de Julho de 2014 pela sentença da primeira instância, decidiu aplicar o artigo 334º do Código Civil para, como fundamento, confirmar a decisão do acórdão de 14 de Maio de 2020 do Tribunal da Relação de ……., que o tinha aplicado, oficiosamente, e decidir julgar extinta a execução; por sua vez, o acórdão - fundamento de 4 de Julho de 2019 deste Supremo Tribunal de Justiça, perante execução instaurada para pagamento de quantia certa, fundada em decisão condenatória, transitada em julgado, de sentença, decidiu excluir a aplicação do artigo 334º do Código Civil, para, como fundamento de oposição à execução, julgar extinta a execução, mesmo que os respectivos factos integrassem o abuso do direito do artigo 334º do Código Civil, por parte da exequente.

6ª.- Em consequência, verifica-se a contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, e a decisão reclamada violou o disposto no nº 1 do artigo 688º do Código de Processo Civil, nos nºs 1, 2 e 3 do artigo 9º do Código Civil, nas alíneas c) e d) do artigo 161º, e nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 168º, ambos da Constituição, pelo que impõe se a sua revogação por acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, que admita o recurso, interposto pela reclamante, para decidir se o artigo 729º do Código de Processo Civil proíbe, ou não, a aplicação do artigo 334º do Código Civil, como fundamento, para, em oposição por embargos a execução, fundada em sentença de condenação, transitada em julgado, decidir julgar extinta a execução».


A reclamada, Conbitur, apresentou resposta à reclamação, pugnando para que seja confirmada a decisão singular.


Cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação

1. O teor da decisão singular impugnada foi o seguinte:

«5. Os pressupostos substanciais de admissibilidade deste recurso para uniformização de jurisprudência são os seguintes: 1) a existência de uma contradição decisória entre dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação, e sobre a mesma questão fundamental de direito; 2) a questão de direito apreciada revela-se decisiva para as soluções perfilhadas num e noutro acórdão, desconsiderando-se argumentos ou razões que não encerrem uma relevância determinante; 3) a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais ou institutos jurídicos; 4) as soluções em confronto, necessariamente divergentes, têm que ser encontradas no “domínio da mesma legislação”, de acordo com a terminologia legal, ou seja, exige-se que se verifique a “identidade de disposição legal, ainda que de diplomas diferentes, e, desde que, com a mudança de diploma, a disposição não tenha sofrido, com a sua integração no novo sistema, um alcance diferente, do que antes tinha”.

Como se entende na jurisprudência deste Supremo Tribunal, de 03-11-2020 (proc. n.º 951/06.9TBCLD.C1.L1.S2-A) as questões de direito devem ter “(…) na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto”.

 Na aferição do requisito identidade da questão de direito, exige-se que exista também semelhança ou igualdade substancial da situação de facto. Não há, pois, contradição sobre a mesma questão fundamental de direito quando as soluções divergentes foram determinadas pela diferenciação dos pressupostos de facto sobre que recaíram e não por interpretação das normas jurídicas.

É certo que o acórdão fundamento excluiu a possibilidade de invocação do abuso do direito como fundamento de oposição à execução, enquanto o acórdão recorrido deferiu a pretensão do embargante baseada no abuso do direito pelo exequente, pois este demorou 4 anos após o trânsito em julgado a intentar a ação de execução e provou-se que o exequente teve acesso aos documentos cuja entrega coativa pretendia, em data anterior à data da sentença transitada em julgado, pelo que tal ação não tinha qualquer resultado útil.

 Os acórdãos alegadamente em conflito foram proferidos em processos de embargos à execução, mas não se verifica o requisito da identidade da questão de direito, na medida em que o núcleo factual dos casos é muito distinto e as obrigações referidas nas sentenças dadas à execução não têm a mesma natureza jurídica: no acórdão fundamento executava-se uma obrigação de pagar alimentos, irrenunciável e que visa satisfazer necessidades básicas do credor, e no acórdão recorrido uma obrigação de prestação de facto de entrega de documentos, que já estavam na posse do exequente-embargado.

 Sumariou-se o seguinte no acórdão recorrido:

«III - A supressio traduz-se no não exercício do direito durante um lapso de tempo, suscetível de criar na contraparte a confiança de que esse direito não mais será exercido. Mas não basta o exercício tardio do direito. É necessário que se atenda ao poder dos factos e sejam ponderadas todas as circunstâncias do caso, à luz do princípio da boa fé, e ainda que se verifique a obtenção de uma vantagem excessiva para o titular do direito, acompanhada da imposição de sacrifícios relevantes e injustificados para a contraparte.

IV – Atua com abuso do direito de ação, na modalidade de suppressio, quem propõe um processo executivo para exigir a entrega coativa de documentos e o pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de valor superior a 200.000 euros, fazendo-o mais de 4 anos após o trânsito em julgado da sentença de condenação e estando já na posse dos documentos exigidos em data anterior a essa sentença».

 No acórdão fundamento, de 04-07-2019, a afirmação da não aplicabilidade do instituto do abuso do direito como fundamento de oposição à execução, dada a natureza fechada do artigo 729.º do CPC, é apenas um segmento da decisão. Interpretada na sua globalidade, a fundamentação do acórdão indica que essa exclusão da possibilidade do abuso do direito não é, em abstrato, total, na medida em que o Acórdão conheceu efetivamente, e de forma desenvolvida, da questão do abuso do direito, negando a verificação dos seus requisitos com o seguinte fundamento:

«É que, como resulta do art. 334.º do CCivil, o abuso do direito só releva quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumem ou pelo fim social ou económico do direito. Como decorre de toda uma (quase inabarcável) produção jurisprudencial e doutrinária, o abuso de direito só existe em casos verdadeiramente excecionais, em casos de todo em todo gritantes, ofensivos do sentimento ético-jurídico dominante, clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais. Por isso, não basta, para se falar em abuso do direito nos termos e para os efeitos do art. 334.º do CCivil, que o titular do direito, ao exercer o direito, se exceda.

Como nos diz, por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24.1.2002 (Col Jur - Ac do STJ, 2002, tomo I, p. 53 e 54), o exercício de um direito só poderá ser havido como ilegítimo quando houver manifesto abuso, isto é, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma grosseira ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante. E acrescenta o mesmo acórdão que “a utilização do abuso do direito não deve constituir panaceia fácil de toda e qualquer situação de exercício excessivo de um direito, em que o respectivo excesso não seja manifesto ou que só aparentemente se apresente como manifestamente excessivo (…)”.

Ora, não vemos onde, no caso vertente, esta sempre exigível “grosseira ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante” possa residir.

Não se duvida que a circunstância de se saber (pontos 10 e 11 dos factos provados que a Exequente se manifestou no sentido de exigir os alimentos apenas até ao final de 2008 e de, mesmo assim, ter vindo depois reclamar alimentos para além dessa data, possa ser vista objetivamente como revelando um comportamento leviano, incoerente, contraditório e frustrador de possíveis expetativas do Embargante. Mas não se trata de um comportamento que traduza uma grosseira ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante, tanto mais que, inclusivamente (como alegado pelo Embargante), a cessação dos alimentos ficou sujeita a uma futura formalização que afinal nunca aconteceu. Esta conclusão de que o comportamento da Exequente não pode ser visto como traduzindo uma grosseira ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante deve, entretanto, ser aproximada de um outro pormenor. É que, como bem se aponta no acórdão recorrido, os alimentos futuros não podem ser renunciados (art. 2008.º, n.º 1 do CCivil), e daqui que as declarações da credora no sentido de vir a abdicar de alimentos futuros são juridicamente inconsequentes (nulas). Repare-se até que essas declarações não significam necessariamente que a credora dos alimentos deixou de precisar deles (caso em que cessaria a obrigação de prestar alimentos, nos termos do art. 2013.º, n.º 1 alínea b) do CCivil), mas apenas que estava disposta a abdicar do direito a alimentos futuros. Trata-se de coisas muito diferentes no plano jurídico».

           

O acórdão recorrido, aceitando que o artigo 729.º do CPC é uma norma fechada, conclui pela aplicabilidade do abuso do direito no contexto factual e jurídico específico para o caso dos autos:

«Neste sentido, na jurisprudência, tem-se entendido que a norma do artigo 729.º do CPC constitui uma norma fechada, no sentido de que circunscreve os fundamentos em que a oposição pode assentar (cfr. Acórdão do STJ, de 4-7-2019). Mas, quando se aplica uma norma, aplica-se também o sistema jurídico no seu conjunto e os princípios gerais de direito, sobretudo aqueles que estão positivados, como o caso do princípio da boa fé (artigos 227.º e 762.º, n.º 2, do Código Civil) e do princípio da proibição do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), princípios que têm um âmbito de aplicação muito amplo. O instituto do abuso de direito serve, assim, no caso vertente, de válvula de escape a uma situação, que os limites apertados do artigo 729.º do Código Civil não permitem resolver de forma considerada justa pela consciência social e jurídica».

 A jurisprudência vai evoluindo e essa evolução faz-se em função dos factos de cada caso e da sua configuração única, daí que, sendo a factualidade nos dois casos distinta, distintas são também as questões de direito decididas pelo acórdão recorrido e pelo acórdão fundamento.

Não se verificando o requisito “identidade da questão fundamental de direito”, não é admissível o recurso de uniformização de jurisprudência».   


2. Tem sido jurisprudência unânime no Supremo Tribunal de Justiça uma orientação restritiva quanto à admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, exigindo-se identidade do núcleo factual entre os casos em confronto, tal como configurados no acórdão fundamento e no acórdão recorrido. O processo mental subjacente a uma decisão judicial de questões de direito comporta uma dimensão de ponderação e de avaliação de factos, que é única em cada caso concreto, e por isso incomparável com outros casos em que seja decidida uma questão de direito com alguns pontos de semelhança. Facto e direito estão intrinsecamente ligados e tornam-se numa dualidade indivisível, de forma que, sendo os factos distintos, não se pode afirmar que estamos perante uma identidade de questões de direito. Em consequência, a decisão singular, agora reclamada, não violou a letra e o espírito do artigo 688.º do CPC, como defendeu o reclamante.


3. Vejamos agora se a decisão reclamada viola os princípios e normas constitucionais invocados na reclamação. 

Entende o reclamante que a decisão impugnada viola os artigos 161.º, als. c) e d), e 198.º, n.º 1, a), b) e c), ambos da Constituição, padecendo, alegadamente, de inconstitucionalidade material, na medida em que a orientação jurisprudencial nela adotada seria um aditamento legislativo ao artigo 688.º do CPC, que não prevê qualquer identidade da situação de facto como requisito para a admissibilidade do recurso para uniformização da jurisprudência. Assim, o tribunal estaria, na perspetiva do reclamante, a legislar, competência que cabe exclusivamente à Assembleia da República e ao Governo.

 Mas não tem razão.

 O papel dos tribunais na interpretação e integração da lei, bem como na densificação de conceitos indeterminados, não viola o princípio da separação de poderes. A moderna teoria do direito não vê o juiz como uma “boca que pronuncia as palavras da lei”, atribuindo-lhe, antes, uma função constitutiva e criativa na fixação do sentido com que deve valer a norma, de forma a adaptar a lei à realidade social e às necessidades práticas, num sistema judicial e social cada vez mais complexo. Baptista Machado   referia mesmo que o julgador desempenha uma tarefa de “legislador complementar” (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 259). Por outro lado, a circunstância de se tratar de recurso que põe em causa o trânsito em julgado formado sobre um acórdão do Supremo justifica o rigor com que a lei define os requisitos legais e explica também a tendência para uma interpretação restritiva do preceito.

 A aplicação do instituto do abuso do direito recorre a conceitos indeterminados cujo sentido é definido casuisticamente pelo tribunal, de forma irrepetível, não podendo afirmar-se, sem mais, a sua inaplicabilidade aos processos executivos ainda que baseados em sentença transitada em julgado. A oscilação dos tribunais na decisão de aplicar, ou não, este instituto nos processos executivos, depende mais da avaliação casuística dos factos e da densificação do conceito de boa fé processual, do que de uma afirmação genérica de inaplicabilidade do artigo 334.º do Código Civil a determinado tipo de processos ou grupo de casos. Pelo que, reitera-se, não se verifica qualquer identidade de questões de direito nesta temática da aplicabilidade do artigo 334.º do Código Civil em conjugação com o artigo 729.º do Código de Processo Civil, nem compete ao Supremo proferir acórdãos uniformizadores de jurisprudência que limitem a liberdade do ato de julgar, em matéria de preenchimento de conceitos indeterminados ou de definição do âmbito de aplicação da figura do abuso do direito, excluindo a sua aplicabilidade a um determinado tipo de processos.

           

 Assim, sem mais considerações, indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão reclamada nos seus exatos termos.


Anexa-se sumário, elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

 -  Tem sido jurisprudência unânime no Supremo Tribunal de Justiça uma orientação restritiva quanto à admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, exigindo-se identidade do núcleo factual entre os casos em confronto, tal como configurados no acórdão fundamento e no acórdão recorrido. Facto e direito estão intrinsecamente ligados e tornam-se numa dualidade indivisível, de forma que, sendo os factos distintos, não se pode afirmar que estamos perante uma identidade de questões de direito.

- Esta interpretação rigorosa dos requisitos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência explica-se pela circunstância de estar em causa a revogação de um acórdão do Supremo com força de caso julgado e não constitui qualquer violação do princípio da separação de poderes ou outros princípios constitucionais.

-  Não se verifica qualquer identidade de questões de direito na temática da aplicabilidade do artigo 334.º do Código Civil em conjugação com o artigo 729.º do Código de Processo Civil, nem compete ao Supremo proferir acórdãos uniformizadores de jurisprudência que limitem a liberdade do ato de julgar, em matéria de preenchimento de conceitos indeterminados ou de definição do âmbito de aplicação da figura do abuso do direito.


III - Decisão

Pelo exposto, indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão reclamada nos seus exatos termos.

Custas pelo reclamante.


Supremo Tribunal de Justiça, 4 de maio de 2021


Maria Clara Sottomayor (relatora)

Alexandre Reis

Pedro de Lima Gonçalves