ESCUSA
JUÍZ DE INSTRUÇÃO
SUSPEIÇÃO
IMPARCIALIDADE
ABERTURA DA INSTRUÇÃO
Sumário


I - O princípio do juiz natural, com consagração constitucional no art. 32.º, n.º 9, da CRP, encontra-se estabelecido em benefício e defesa do arguido e constitui uma garantia de que o processo – o seu processo – será julgado pelo juiz do tribunal determinado – por lei anterior – competente para o efeito.
II - Tal princípio só há-de ser arredado em situações extremas e, nomeadamente, naquelas em que o juiz natural não oferece as garantias de imparcialidade e de isenção, necessárias à função de julgar naquele caso concreto.
III - Não basta saber que o juiz reúne as condições subjectivas necessárias ao exercício imparcial das suas funções; é, ainda, necessário que essa imparcialidade surja clara e linear para o comum dos cidadãos.

Texto Integral





Autos de Escusa de Juiz
Proc. n.º 29/20.2YGLSB.S1-A.S1
5ª Secção

acórdão
Acordam em conferência os juízes na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. relatório.
1. O Senhor Dr. AA, Juiz Conselheiro deste Supremo Tribunal de Justiça, exercendo na …. Secção …., vem, ao abrigo do disposto nos art.os 43º n.os 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal (CPP), pedir escusa de intervir no Processo de Instrução n.º 29/20…..., invocando o seguinte:
─ «[…].
1. Com o requerimento de abertura da instrução no processo em epígrafe pretende o queixoso com a faculdade de se constituir assistente, impugnar a decisão de arquivamento do inquérito com vista à pronúncia da Senhora Procuradora Geral da República, a Drª BB a qual, entre outros, é visada naquele processo, sendo-lhes imputada a prática dos seguintes crimes:
Coação, art. 154, Perseguição art. 154-A, Ameaça, art. 153, Difamação, art. 180, Injúria, art. 181, Por escrito, art. 182.°, Publicidade e Calúnia, art. 183.°, Agravado, art.184.°, Devassa da Vida Privada, art, 192.°, por meio de informática, art. 193.°, tortura, art. 243.°, Sabotagem, art. 329.°, Falsificação, art. 256.°, Falsas Declarações, art. 348-A, falsidade de testemunho, art. 360.°, Denegação de Justiça e Prevaricação, art. 369.°, Violação de Segredo de Justiça, art. 371.°, por Violação de leis de bases de dados, artigos 40.° a 48.°, da Lei 67/98 e Lei 26/2016, [inelegível], Abuso de Poder, art. 382.°, com a consequente subtração aos direitos e garantias do Estado Português, art. 201.º, todos do Código Penal Português.” – transcrição.


2. Está assim, em causa a admissão do requerimento de abertura da instrução e a consequente determinação de abertura e realização da instrução.


3. A queixa-crime apresentada contra a Senhora Drª BB reporta-se a factos que lhe são imputados enquanto Procuradora Geral da República e Presidente do Conselho Superior do Ministério.


Acontece, porém, que:


4. O requerente conhece a Senhora Drª BB desde 1984 quando ambos, magistrados do Ministério Público, exerceram funções de delegado do Procurador da República nos Juízos Correcionais …, instalados no edifício do “…..”.


5. Na mesma altura o requerente conheceu o Senhor Procurador Geral Adjunto, Dr. CC, marido da Senhora Drª BB, o qual também exercia as funções de delegado do Procurador da República naqueles Juízos Correccionais.


6. Durante o período em que o requerente aí desempenhou funções até 1989, manteve um estreito convívio com ambos seus Colegas.


7. Após a extinção dos Juízos Correccionais, não obstante deixarem de exercer funções nos mesmos Tribunais e/ou Serviços do Ministério Público, o requerente continuou a conviver com a Senhora Drª BB e seu marido, designadamente, em encontros regulares de magistrados com os quais o requerente e aqueles haviam desenvolvido relações de amizade.


8. Durante o período entre 1999 e 2002, o requerente e a Senhora Drª BB, exerceram funções no DIAP ..……, onde estavam colocados, já com a categoria funcional de Procuradores da República, reatando e desenvolvendo um convívio mais próximo, e também com o seu marido que amiúde se deslocava ao DIAP de …..


9. Durante o período subsequente àquele, em que a Senhora Drª BB desempenhou as funções de Procuradora da República no Tribunal de Família e Menores de …, o requerente manteve regularmente encontros e contactos com aquela sua Colega.


10. Em 2012, aquando da colocação do requerente na Procuradoria Geral Distrital …. para o exercício de funções junto do Tribunal da Relação …. como Procurador Geral Adjunto, também já aí estavam colocados como Procuradores Gerais Adjuntos a Senhora Drª BB e o seu marido Dr. CC.


11. O requerente e a Senhora Drª BB desempenharam ambos, contemporaneamente, funções na … Secção do Tribunal da Relação …….


12. Assim, o requerente manteve convívio permanente com ambos, com a Senhora Drª BB durante o período em que exerceu funções naquele Tribunal e com o Senhor Dr. CC até à jubilação deste em Junho de 2016.


13. A Senhora Drª BB tomou posse como Procuradora Geral da República em outubro de 2018, e o requerente exerceu as funções de Procurador Geral Adjunto até à publicação da sua nomeação como Juiz Conselheiro em 2 de Fevereiro de 2021 tendo, por isso sido, durante todo aquele período, a sua imediata superior hierárquica.


14. Ainda recentemente, em finais de 2020, o requerente esteve reunido por razões de serviço do Ministério Público com a Senhora Drª BB, enquanto sua superior hierárquica, na Procuradoria Geral da República.


15. Ao longo das respectivas carreiras que foram correndo paralelamente e com proximidade, o requerente desenvolveu estima, consideração e uma opinião sólida sobre a Senhora Drª BB, sobretudo por via da sua postura pessoal e do seu exercício funcional.

16. Toda a factualidade descrita é pública e notória no meio judiciário, designadamente na Magistratura do Ministério Público sendo, por isso, natural e compreensível, que a intervenção de quem decide nesse processo seja alvo de um escrutínio muito particular pela comunidade, mormente quanto às condições de objectividade e imparcialidade.


17. Tal materialidade, não afectando embora a capacidade do requerente para apreciar e decidir, de forma isenta e de modo imparcial, a intervenção neste processo, sendo visada a Senhora Drª BB, podem constituir, no plano das representações da comunidade, um motivo sério e grave susceptível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade de qualquer decisão que ali viesse a proferir e, nessa mesma medida, desconfiança no sistema da Justiça, globalmente considerado.


Posto isto e, porquanto:


a) - A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo conforme proclamado na Declaração Universal dos Direitos do Homem – artº. 10º, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – artº. 14º nº. 1, e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos – artº. 6º nº. 1.


b) - A Constituição da República Portuguesa, no seu artº. 32º, nº. 9, consagra o princípio do «juiz natural» configurado como uma garantia fundamental do processo criminal assegurando, também por esta via, todas as garantias de defesa em processo criminal. Trata-se de uma garantia no âmbito dos Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais – protecção dos direitos de defesa, na afirmação da liberdade e do direito de defesa do arguido – de julgamento por um Juiz aleatoriamente pré-determinado.


c) - Assim sendo, a administração da Justiça é impensável sem Tribunais independentes e imparciais. Por isso, a Constituição da República garante que, para o exercício da função jurisdicional, os Tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei. – vd. arº. 203º.


d) - A independência dos Juízes que deverá resultar de um sentido de responsabilidade, baseado num dever ético social, vincado no carácter moral da pessoa do Juiz, reputado imparcial em relação a qualquer causa, pressupõe, também, a existência de um quadro legal destinado a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral da comunidade na objectividade da jurisdição.


e) - Há, pois, situações em que a garantia da imparcialidade dos Tribunais pressupõe excepções ao princípio do «juiz natural», excepções essas definidas pela lei.


f) - Devendo o «juiz natural» ser recusado quando se verificarem circunstâncias evidentes e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o Juiz, aleatoriamente pré-definido como competente para determinada causa, deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.


g) - Deste modo, na perspectiva das partes, as garantias de imparcialidade referem-se à independência do Juiz e à sua neutralidade perante o objecto da causa.


h) - Como ensina o Professor Jorge de Figueiredo Dias, trata-se de “(…) um verdadeiro princípio geral de direito, actuante no domínio da política judiciária, que se esconde atrás de toda a matéria respeitante aos impedimentos e suspeições do juiz: o de que é tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os participantes processuais, reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional jurisdicidade” – «Direito Processual Penal», I, 1974, pág. 320.


i) - O mesmo pensamento correu no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: “a imparcialidade da jurisdição não é só a imparcialidade subjectiva. É também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada.... Afinal, trata-se da confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes.... Deve, pois, recusar-se qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente recear a existência de uma falta de imparcialidade... O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se como objectivamente justificadas” - Caso Hauschildt, cit. no acórdão, do Tribunal Constitucional, n.º 52/92, no DR, I-A, de 14-3-92.


j) - Assim, a imparcialidade do juiz pode apresentar-se sob diversas perspectivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito a um Tribunal imparcial, reflectindo dois modos diversos, mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.


Com efeito, “I - Na sua vertente subjectiva, a imparcialidade do juiz significa uma posição pessoal, do foro íntimo do juiz, caracterizada pela inexistência de qualquer predisposição no sentido de beneficiar ou prejudicar qualquer das partes com a sua decisão. II - Na vertente objectiva, a imparcialidade traduz-se na ausência de quaisquer circunstâncias externas, no sentido de aparentes, que revelem que o juiz tenha um pendor a favor ou contra qualquer das partes, afectando a confiança que os cidadãos depositam nos tribunais” – Acórdão deste Tribunal de 13.9.2006 no Proc. 06P3065, relator: Cons. Silva Flor - http://www.dgsi.pt


l) - Também, como ensina o Professor Cavaleiro de Ferreira, “Importa considerar sobretudo que, em relação ao processo, o juiz possa ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados, sendo este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar, para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza; a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou de não admitir o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da sua suspeição” – «Curso de Processo Penal», I, pág. 237-239.


m) – Sendo ainda, sublinhado na doutrina, “São várias, na verdade, as razões que, perante um caso concreto, podem levar a pôr em dúvida a capacidade de um juiz para se revelar imparcial no exercício da sua função; e o que aqui interessa, convém acentuar, não é tanto o facto de, a final, o juiz ter conseguido manter a sua imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados.» - Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, em «Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», pág. 13.


n) - Por isso que não podem deixar de ser contempladas excepções ao princípio do juiz natural que se consubstanciem em “circunstâncias relacionais ou contextuais objectivas suscetíveis de gerar, não só no interessado mas também na comunidade, o receio sobre a existência de uma ideia feita, ou prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa” como sejam “circunstâncias ou contingências de relação (amizade ou inimizade) com algum dos interessados” constituindo “fundamento na afectação da imparcialidade objectiva” (cfr. Henriques Gaspar, em «Código de Processo Penal, Comentado», 1.ª edição, pág. 147),


o) - Em suma, se a característica de independência dos Juízes é garantida por esse princípio do «juiz natural» deve de acautelar-se a possibilidade de poder ser posto em causa, ou seja, de poder surgir alguma dúvida sobre a imparcialidade da intervenção de um qualquer Juiz – esse constitui o fundamento do regime dos impedimentos, da recusa e da escusa.


p) - E, assim sendo, cabe ao Juiz procurar evitar que aquelas assinaladas circunstâncias possam criar em outrem a percepção ou convicção de que não é imparcial.


Posto isto:
Sob a epígrafe “Recusas e Escusas”, dispõe o artº. 43º do CPP que o juiz pode pedir ao Tribunal competente a escusa de intervir em determinado processo “quando ocorrer o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” – nº. 1.
Constituindo, também, motivos de escusa “a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º” – nº. 2.
Ora, “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nº.s 1 e 2.” – nº. 4.


Nestes termos, com tais fundamentos, e ao abrigo do disposto no citado artº. 43º nº. 1, do CPP, requeiro a V. ª Ex.ª se digne escusar-me de intervir no presente processo.
[…]».


2. Colhidos os vistos, de acordo com o exame preliminar, foram os autos presentes a conferência.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. Fundamentação.

a. Dados processuais relevantes.
3. Compulsados os presentes autos e os de instrução n.º 29/20…, surpreendem-se os seguintes momentos facto-procedimentais com interesse para a decisão:

(1). Correu termos na …. Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, sob direcção de uma Senhora Juíza Conselheira, o Processo de Inquérito Criminal com o n.º 29/20….., instaurado sob denúncia do, ora, assistente DD e em que figurou como denunciada, entre outros, a Senhora Procuradora-Geral da República Dra. BB.

(2). Investigou-se, aí, a prática de crimes de «Coação, art. 154, Perseguição art. 154-A, Ameaça, art. 153, Difamação, art. 180, Injúria, art. 181, Por escrito, art. 182.°, Publicidade e Calúnia, art. 183.°, Agravado, art.184.°, Devassa da Vida Privada, art, 192.°, por meio de informática, art. 193.°, tortura, art. 243.°, Sabotagem, art. 329.°, Falsificação, art. 256.°, Falsas Declarações, art. 348-A, falsidade de testemunho, art. 360.°, Denegação de Justiça e Prevaricação, art. 369.°, Violação de Segredo de Justiça, art. 371.°, por Violação de leis de bases de dados, artigos 40.° a 48.°, da Lei 67/98 e Lei 26/2016, [inelegível], Abuso de Poder, art. 382.°, com a consequente subtração aos direitos e garantias do Estado Português, art. 201.º, todos do Código Penal Português.»

(3). O inquérito foi encerrado por despacho de arquivamento, datado de 12.1.2021 e fundado no art.º 277º n.º 1 do CPP, por não se ter concluído que, com relação aos factos denunciados, «a Senhora Procuradora-Geral da República […] tenha cometido qualquer crime, nomeadamente os elencados na queixa/denúncia.»

(4). Discordante, o assistente requereu em 10.3.2021 a abertura de instrução ao abrigo do art.º 287º do CPP, juntando documentos e pedindo a audição da denunciada.

(5). Distribuído e concluso que lhe foi o processo de instrução, o Senhor Juiz Conselheiro AA limitou-se a consignar, em 20.4.2021, que «Seguia pedido de escusa de escusa nos termos do art.º 43º do CPP».

(6). Nesse mesmo dia deu entrada em juízo pedido de escusa do Senhor Juiz Conselheiro, com o teor transcrito em 1. supra.

b. Apreciação.
4. Nos termos do art.º 43º n.º 1 do CPP, «a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.».
Nos termos do n.º 2 da mesma norma, «Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º».
E – n.º 4 – «O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2».
Tratando-se de juiz do Supremo Tribunal de Justiça, o pedido de escusa deve ser apresentado na respectiva secção criminal – art.º 45º n.º 1 al.ª b) do CPP.

O princípio do juiz natural, com consagração constitucional no art.º 32º n.º 9 da CRP, encontra-se estabelecido em benefício e defesa do arguido e constitui uma garantia de que o processo – o seu processo – será julgado pelo juiz do tribunal determinado – por lei anterior – competente para o efeito.

5. Assim colocadas as coisas:
─ O Senhor Juiz Conselheiro Dr. AA, enquanto magistrado do Ministério Público que foi até Fevereiro p. p., manteve uma relação de convivência profissional de dezenas de anos com a denunciada Senhora Dra. BB, ora Procuradora-Geral da República, e com o marido dela, também magistrado do Ministério Público, Dr. CC.
─ Trabalharam, lado a lado, em vários tribunais e departamentos do Ministério Público enquanto delegados do procurador da República, procuradores da República e procuradores-gerais adjuntos.
─ Cultivaram amizades comuns no meio profissional e privaram nos inerentes convívios.
─ O Senhor Conselheiro Dr. AA nutre um sentimento de estima e de consideração, pessoal e profissional, pela Senhora Dra. BB.
─ Toda esta factualidade é do conhecimento público e notório no meio judiciário, pelo menos, da área …, sendo por isso natural que a intervenção do Senhor Juiz Conselheiro Dr. AA no processo de instrução mencionado seja alvo de um escrutínio muito particular pela comunidade, mormente, quanto às condições de objectividade e imparcialidade.

6. Não saindo beliscada a imparcialidade do Senhor Juiz Conselheiro requerente no teste subjectivo, convém recordar, com Cavaleiro de Ferreira in "Curso de Processo Penal", 1981, I, p. 237, que «não importa, aliás, que na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa, sobretudo, considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados»; que é esse «também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar para voluntariamente declarar a sua suspeição», e que «Não se trata de confessar uma fraqueza: a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios; mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento de suspeição.».
A ligação do Magistrado requerente à Magistrada denunciada é evidente, antiga, e do conhecimento generalizado, pelo menos, nos meios judiciários da área de ….
Num meio relativamente restrito como aquele é, o conhecimento de que o Juiz Conselheiro a quem cabe decidir num processo de instrução em que é requerida pessoa a quem o ligam laços tão sólidos de estima e de consideração pessoal e profissional é susceptível de gerar alguma compreensível apreensão, gerando desnecessárias – mesmo se, seguramente, infundadas – dúvidas sobre a imparcialidade e isenção do julgador.
O que, sempre, cumpre acautelar e evitar.

Em suma: não basta saber que o juiz reúne as condições necessárias ao exercício imparcial das suas funções; é, ainda, necessário que essa imparcialidade surja clara e linear para o comum dos cidadãos: ao juiz, como à mulher de César, não basta ser, também tem que parecer.
Ou, como se afirma no AcSTJ de 7.122005 -, Proc. 2799/05[1], tirado em caso de recusa de juiz mas aplicável, mutatis mutandis à situação de escusa, «para que a recusa seja concedida, o prisma a que se tem de atender não é o particular ponto de vista do requerente (isto é, a desconfiança que ele possa ter do juiz que vai julgar a causa), mas a situação objectiva que possa derivar de uma determinada posição do juiz em relação ao caso concreto ou a determinado sujeito ou interveniente processual, em termos de existir um risco real de não reconhecimento público da sua imparcialidade».

7. Por tudo quanto fica exposto, há que concluir que a intervenção do Senhor Juiz Conselheiro requerente na decisão do processo de instrução que lhe foi distribuído e acima identificado, pode gerar risco sério de ser considerada suspeita.
E, tal como o AcSTJ de 15.7.2020 - Proc. n.º 375/18.5PALSB.L1-A.S1[2], também aqui se subscrevem as palavras do TEDH de que, «neste domínio, as aparências têm importância, "a justiça não só deve realizar-se, também deve ver-se que se realiza"»; de que o «"que está em jogo é a confiança que deve inspirar no público um tribunal numa sociedade democrática"»; e de que, assim, «"qualquer juiz sobre quem recaia uma legítima razão para ter falta de imparcialidade deve retirar-se" ou ser apartado».

III. decisão.

IV. Decisão.
8. Termos em que acordam os juízes desta 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em deferir o pedido formulado pelo Senhor Juiz Conselheiro Dr. AA, escusando-o de intervir no Processo de Instrução n.º 29/20…. que corre termos neste Supremo Tribunal.

Sem custas.
*
Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP).
 *
Supremo Tribunal de Justiça, em 13.5.2021.



Eduardo Almeida Loureiro (Relator)



António Gama

Margarida Blasco

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[1] In SASTJ
[2] In www.dgsi.pt.