INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
VENDA EXECUTIVA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
Sumário

I- Os critérios de interpretação das declarações negociais encontram-se previstos nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.
II- O sentido relevante da declaração apura-se no seu contexto.
III- A lei não limita, em geral, os elementos ou circunstâncias suscetíveis de serem levados em conta na interpretação.
IV- Apenas exige, no caso dos negócios formais, que o resultado interpretativo apurado tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento (artigo 238.º).
V- Não se provando a vontade real dos declarantes, aplica-se o critério normativo objetivo do n.º 1 do artigo 236.º, em principio, a declaração vale como o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, poderia deduzir do comportamento do declarante; ou, numa formulação próxima, vale com o sentido que o declaratário real lhe daria se fosse uma pessoa razoável, diligente, de boa fé.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Proc. nº 731/18.9T8LLE-B.E1

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO

Banco (…), S.A. intentou ação executiva contra (…) Limited para pagamento de quantia de € 1.203.002,39, à qual acrescem os juros vincendos até integral pagamento.

O exequente obteve o registo de hipoteca judicial (com a data de 2017/01/09) sobre o imóvel adquirido pela executada: o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz sob o n.º (…), da freguesia de (…), concelho de Faro.

Em 22-03-2018 foi lavrado auto de penhora sobre o imóvel.

No dia 13-03-2020 foi lavrada escritura pública, através do qual a encarregada de venda nomeada nestes autos vendeu ao Banco (…), S.A. o prédio acima referido, pelo preço de oitocentos e noventa e três mil e trezentos e cinquenta euros.

Em 12-06-2020 o exequente veio requerer o seguinte:

“1 - Em 13/03/2020 foi adquirido pelo exequente, em venda efectuada no âmbito dos presentes autos por negociação particular, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º (…), freguesia de (…);

2 - O referido imóvel já se encontra registado a favor do ora adquirente;

3 - E encontra-se ocupado por (…), arrendatária que foi do referido prédio, uma vez que o arrendamento, nos termos do contrato, caducou com a venda do prédio;

4 - Tal situação mantém-se até ao presente.

5 – O prédio em questão não é nem foi casa de morada de família.

Pelo exposto, não resta outra alternativa ao ora adquirente que não a de recorrer ao disposto no artigo 757.º do C.P.C., com vista à desocupação do prédio e substituição da fechadura que, repete-se, se encontra ilegalmente ocupado, pelo que requer a V. Exa. se digne ordenar a sua entrega efectiva.”

Em 16-09-2020 foi proferido o seguinte despacho:

“Tomei conhecimento do teor do expediente junto aos autos pela senhora Agente de Execução, do qual resulta que a executada nestes autos, a sociedade «(…) Limited», na qualidade de proprietária, celebrou com (…), contrato de arrendamento, datado de 01 de Dezembro de 2013, tendo por objecto o prédio urbano sito em (…), freguesia de (…), concelho de Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º … (anterior …) e inscrito na matriz sob o artigo (…), resultando desse contrato que o arrendamento vigora por 5 anos, com início a 01 de Dezembro de 2013 e fim em 30 de Novembro de 2018, renovando-se automaticamente por períodos de 3 anos, caso não seja denunciado por nenhuma das Outorgantes (vide cláusula 3ª do contrato).

Resulta da certidão do registo predial que na data da celebração do contrato de arrendamento não incidia sobre o prédio qualquer hipoteca a favor do exequente nos presentes autos, «Banco (…), S. A.», e a hipoteca que ora se executa na presente execução foi registada apenas em 2017/01/09 pela Ap. (…), sendo certo que o prédio em causa foi adjudicado ao exequente «Banco (…), S. A.» que pretende agora entrar na posse do mesmo, pretensão a que se opõe a arrendatária (…), segundo relatado pela senhora Agente de Execução, que veio requerer ao Tribunal autorização para solicitar o auxilio da força pública tendo em vista a entrega do prédio ao exequente e agora adquirente.

Aqui chegados, a questão que se coloca é saber se o contrato de arrendamento celebrado em 01 de Dezembro de 2013 pelo período de 5 anos e que se terá renovado automaticamente em 30 de Novembro de 2018 por mais 3 anos, ou seja, até 30 de Novembro de 2021, caducou com a adjudicação do imóvel ao exequente no âmbito da presente execução, ou se ao invés, se mantém até ao termo previsto, ou seja, 30 de Novembro de 2021.

A nosso ver, salvo o devido respeito por opinião contrária, o contrato de arrendamento em causa, porque celebrado antes da constituição da hipoteca a favor do exequente e ora adquirente, «Banco (…), S. A.», não caducou com a adjudicação do prédio ao exequente, mantendo-se válido, razão pela qual não existe qualquer fundamento legal para que a senhora Agente de Execução seja autorizada a solicitar o auxilio da força pública para expulsar do prédio a arrendatária (…), já que a mesma tem título válido (contrato de arrendamento) para ocupar o prédio agora adjudicado ao exequente «Banco (…), S. A.» que terá direito a receber o valor das rendas e poderá, se assim o entender, denunciar o contrato nos termos previstos no mesmo.

Notifique, sendo também a arrendatária (…).”

Em 22-09-2020 o exequente apresentou o seguinte requerimento:

1 – Na sequência do requerimento da Sra. Agente de Execução solicitando a autorização do auxílio da força pública com vista à entrega efectiva do imóvel ao exequente, foi esta notificada pelo tribunal para vir juntar o contrato de arrendamento aos autos.

2 – Reportando-se a este requerimento, veio o Meritíssimo Juiz negar a requerida autorização, suportada pela questão que identificou como a de “saber se o contrato de arrendamento celebrado em 01 de Dezembro de 2013 pelo período de 5 anos e que se terá renovado automaticamente em 30 de Novembro de 2018 por mais 3 anos, ou seja, até 30 de Novembro de 2021, caducou com a adjudicação do imóvel ao exequente no âmbito da presente execução, ou se ao invés, se mantém até ao termo previsto, ou seja, 30 de Novembro de 2021”.

3 – Acontece que, salvo o devido respeito, não é essa a questão em causa, uma vez que a cláusula terceira do contrato de arrendamento, para além da alínea a), tem uma alínea b) que estipula que o contrato de arrendamento cessa automaticamente em caso de venda do imóvel objecto do mesmo.

4 – Ora, nos termos desta alínea, acordada livremente entre as partes, o contrato de arrendamento caducou na data da venda do imóvel ao exequente, ou seja, no dia 13 de Março de 2020.

5 – Razão pela qual deve ser dado sem efeito o despacho em crise, sendo substituído por outro que defira a autorização do auxílio da força pública com vista à entrega efectiva do imóvel ao exequente.”

Em 8-10-2020 a (…), Interveniente Acidental nestes autos, veio apresentar resposta ao requerido pela exequente, com os seguintes fundamentos:

1. A aqui Interveniente Acidental é arrendatária do imóvel objeto dos presentes autos.

2. O contrato de arrendamento é válido até Dezembro de 2021.

3. Pelo que à presente data, o contrato de arrendamento celebrado encontra-se em vigor.

4. Sem prejuízo, e salvo o devido respeito, esta não é a ação, nem a instância correta para se discutir a validade ou cessação de um contrato de arrendamento.

5. Com efeito, a presente ação destina-se apenas a proceder à cobrança executiva de uma dívida da Executada à Exequente.

6. Assim, e salvo o devido respeito, a Exequente deverá lançar mão de um processo específico para discutir a validade do contrato de arrendamento vigor.

Nestes termos e nos mais de Direito que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, deverá ser indeferido o requerimento apresentado pela Exequente.

Em 4-01-2021 foi proferido o seguinte despacho:

“Na sequencia do nosso despacho que indeferiu o requerido pela senhora Agente de Execução no que tange à autorização para requisitar o auxilio da força pública para entregar ao e exequente o prédio adquirido pelo mesmo no âmbito da presente execução, veio o exequente “Banco (…), S.A.” (Refª Citius 36545067), requerer que o Tribunal dê sem efeito o dito despacho, substituindo-o por outro que defira a autorização do auxilio da força pública com vista à entrega efectiva do imóvel ao exequente.

Para tanto alegou, em suma, que a questão em causa, não é questão suscitada pelo Tribunal, ou seja, se o contrato de arrendamento caducou com a adjudicação do imóvel ao exequente ou se ao invés, se mantém até ao termo previsto, ou seja, 30 de Novembro de 2021, uma vez que a cláusula terceira do contrato de arrendamento, para além da alínea a), tem uma alínea b) que estipula que o contrato de arrendamento cessa automaticamente em caso de venda do imóvel objecto do mesmo, pelo que nos termos desta alínea, acordada livremente entre as partes, o contrato de arrendamento caducou na data do imóvel ao exequente, ou seja, no dia 13 de Março de 2020.

Respondeu a Interveniente Acidental, … (Refª Citius 36729684), pugnando pelo indeferimento do requerido pelo exequente, alegando, em suma, que o contrato de arrendamento é válido até Dezembro de 2021, encontrando-se em vigor e esta não é a acção, nem a instância correcta para se discutir a validade ou cessação de um contrato de arrendamento, destinando-se esta acção apenas a proceder à cobrança executiva de uma divida da executada ao exequente, devendo o exequente lançar mão de um processo especifico para discutir a validade do contrato de arrendamento em vigor.

O exequente voltou a pronunciar-se (Refª Citius 37246484), requerendo que o Tribunal defira, com carácter de urgência, a autorização do auxílio da força pública com vista à entrega efectiva do imóvel ao exequente.

Para tanto, e para além do já alegado no requerimento anterior, alegou, em suma, que (…) foi notificada do requerimento apresentado pelo exequente para se pronunciar no prazo de 10 dias, tendo recepcionado tal notificação no pretérito dia 25/09/2020, obtendo a notificação resposta de um ilustre advogado no dia 8 de Outubro, por isso, já depois de expirado o prazo de 10 dias, tendo protestado juntar procuração a seu favor, o que não foi feito até à presente data e volvidos que estão quase 2 meses sobre este requerimento (extemporâneo e sem mandato) o exequente continua impedido de tomar posse do prédio de que é proprietário, ocupado por alguém que não tem qualquer título para o ocupar e quem vem utilizando manobras dilatórias para impedir a entrega efectiva do bem, e o prédio em questão não é nem foi casa de morada de família.

Cumpre apreciar e decidir.

Em primeiro lugar, diga-se que o Tribunal quando proferiu o despacho datado de 16/09/2020 leu com atenção todo o contrato de arrendamento junto aos autos, nomeadamente a alínea b), da cláusula 3.ª que tem a seguinte redacção “O presente contrato cessará automaticamente em caso de venda do imóvel objecto do mesmo”, de resto como é seu dever.

A questão que se coloca é saber se tal cláusula que vincula as partes outorgantes do contrato, a saber: a executada “(…) Limited”, na qualidade de locadora e a Interveniente Acidental, (…), na qualidade de locatária, tem aplicação no caso de venda forçada, como sucedeu (venda no âmbito de um processo de execução, efectuada pelo Tribunal).

A nosso ver, salvo o devido respeito por opinião contrária, o contrato de arrendamento em causa cessaria automaticamente, caso a Locadora, a aqui executada “(…) Limited” vendesse voluntariamente o prédio objecto do contrato, sendo uma cláusula manifestamente protectora dos direitos da Locadora, aceite pelas partes livremente, no âmbito da autonomia da vontade, mas não se nos afigura que as partes (Locadora e Locatária) quando inseriram tal cláusula no contrato tenham previsto a venda forçada do imóvel, pretendendo com a inserção da mesma no contrato salvaguardar interesses de terceiros, nomeadamente adquirente no âmbito de uma acção executiva.

A nosso ver, do que se trata é de interpretar o contrato celebrado, nomeadamente a referida alínea b), da cláusula 3.ª e a nosso ver, a interpretação mais conforme, será considerar que tal cláusula foi inserida no contrato apenas para salvaguardar os interesses da Locadora que caso pretendesse alienar voluntariamente o prédio em questão, não seria confrontada com a recusa da Locatária em entregar o prédio, escudada no contrato de arrendamento.

Porque é assim, a nosso ver, tratando-se de uma venda forçada, efectuada pelo Tribunal, no âmbito de uma acção executiva, não tem aplicação o disposto na alínea b), da cláusula 3.ª do contrato, no qual não foi o exequente/adquirente, interveniente, pelo que se aplica o regime geral, de acordo com o qual, conforme já se deixou dito no nosso anterior despacho, o contrato de arrendamento não caducou com a adjudicação do prédio ao exequente, sendo o seu termo previsto para 30 de Novembro de 2021, razão pela qual, a Interveniente Acidental (…), dispõe de titulo válido (contrato de arrendamento) para ocupar o prédio, inexistindo qualquer fundamento legal para que seja autorizada a requisição do auxilio da força pública para forçá-la a abandonar o prédio.

Pelo exposto, sem necessidade de mais considerandos, por falta de fundamento legal, infere-se o requerido pelo exequente/adquirente.

Notifique, sendo também a senhora Agente de Execução.”

Inconformado com o decidido, o exequente interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (que se reproduzem):

A- Em decisão proferida pelo tribunal ora recorrido foi indeferido o requerimento do exequente para dar sem efeito o despacho que indeferiu o requerido pela Sra. Agente de Execução no que tange à autorização para requisitar a força pública com vista a entregar ao exequente o prédio por este adquirido no âmbito da execução.

B- O prédio adquirido permanece ocupado pela pessoa que dele foi arrendatária, sendo que o contrato de arrendamento que existia caducou com a venda do prédio, conforme nele estipulado.

C- O contrato de arrendamento celebrado entre a sociedade executada e (…) estipula expressamente, na alínea b) da sua Cláusula 3.ª e na sua Cláusula 12.ª, que o arrendamento cessa automaticamente em caso de venda do imóvel objeto do mesmo, sem necessidade de pré-aviso.

D- O exequente adquiriu o prédio na sequência de apresentação de proposta aceite na venda por negociação particular, através de escritura pública.

E- Nos termos do artigo 1057.º do Código Civil, o banco adquirente sucedeu nos direitos e obrigações do locador.

F- De acordo com o estipulado no contrato de arrendamento, nomeadamente na referida alínea b) da cláusula 3.ª, verificou-se a condição a que as partes o subordinaram, ou seja, o arrendamento caducou como consequência da venda, sendo esta uma das formas de caducidade da locação- artigo 1051.º do Código Civil.

G- Uma vez que o arrendamento havia caducado, e porque a agora ocupante sem título do prédio, interpelada para o efeito, se recusava a proceder à sua entrega, viu-se a exequente obrigado a requerer a entrega efectiva do bem, nos termos do artigo 757.º do Código do Processo Civil.

H- Com vista à concretização desta entrega, veio a Sra. Agente de Execução requerer a este tribunal a autorização do auxílio de força pública com vista à entrega efectiva do imóvel ao exequente, requerimento que o tribunal a quo indeferiu.

I- A este despacho reagiu o exequente alertando para o facto de o contrato de arrendamento ter cessado automaticamente em caso de venda do imóvel objeto do mesmo, de acordo com a Cláusula 3.ª, alínea b) do contrato de arrendamento, sendo que, nos termos desta alínea, acordada livremente entre as pates, o contrato de arrendamento havia caducado na data da venda do imóvel ao exequente, ou seja, no dia 13 de Março de 2020, requerendo em conclusão que fosse dado sem efeito o despacho, sendo substituído por outro que deferisse a autorização do auxilio da força pública com vista à entrega efectiva do imóvel ao exequente.

J- É em resposta a este requerimento que o tribunal a quo profere a decisão em crise, indeferindo o requerido cm base na interpretação peregrina de que a alínea b) da Cláusula 3.ª do contrato de arrendamento só se aplicaria à Locadora primitiva.

K- Em ordem a determinar o sentido juridicamente relevante das declarações negociais ínsitas no contrato de arrendamento em questão há que interpretá-lo de acordo com os princípios essenciais a ter em consideração nesta matéria e que são os seguintes:

-A declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário – artigo 236.º, n.º 2, do Código Civil;

-Não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário) – artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil;

-Nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto – artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil;

-O sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a esta validade – artigo 238.º, n.º 2, do Código Civil.

L- Tudo isto significa em termos práticos que o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição de declaratário real.

M- No caso dos autos estipulou-se – Cláusula 3.ª, alínea b) – que o arrendamento cessaria automaticamente em caso de venda do imóvel objeto do mesmo; estipulando-se ainda- cláusula 12.ª – que o contrato cessaria automaticamente sem necessidade de pré-aviso.

N- Interpretando o contrato em obediência ao estatuído no artigo 236.º do Código Civil, nada leva a concluir que as contraentes quisessem afastar a aplicação do contrato a possíveis sucessores nos direitos e obrigações do mesmo.

O- Sendo este um negócio formal, a pretensa declaração que o tribunal a quo vê existir no contrato em questão, não tem um mínimo de correspondência no texto, o que impõe que não valha a sua interpretação, nos termos do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil; dito doutra forma, para que possa valer, o sentido atribuído pelo “declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento, o que não acontece.

P- Mesmo que se defendesse que este sentido sem correspondência mínima no texto poderia ainda valer uma vez que traduziria a vontade real das partes, as razões determinantes da forma do negócio, opõem-se sem sombra de dúvidas a essa validade, todos do Código Civil.

Termos em que,

Deve ser dado provimento ao presente recurso anulando a decisão recorrida e, acolhendo as razões do exequente apelante, ordene que seja deferida a autorização para requisitar a força pública com vista a entregar ao exequente o prédio por ele adquirido no âmbito da execução.

Assim V. Exas. farão a costumeira JUSTIÇA!

Não foram apresentadas alegações.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito devolutivo.

Foi dado cumprimento aos vistos por via eletrónica.

II- OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1 e 663.º, n.º 2, do CPC.

A única questão a apreciar é a de se saber se verifica a caducidade do contrato de arrendamento na sequência da venda executiva do imóvel penhorado, e, em consequência deferida a autorização para requisitar a força pública com vista a entregar ao exequente o prédio por ele adquirido no âmbito da execução.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Dão-se aqui por integralmente reproduzidos os factos que constam do relatório que antecede, acrescentando-se ainda os seguintes:

-No dia 1 de dezembro de 2013 foi celebrado entre (…) Limited e (…) um contrato de arrendamento urbano para fim habitacional.

-Desse contrato constam as seguintes cláusulas relevantes para a apreciação da questão em causa e que se transcrevem:

1ª A Primeira Outorgante é dona e legitima proprietária do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … (anterior artigo …) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º …, o prédio denominado Vila (…), sito em (…), na freguesia de (…), 8005-436 Faro.

2ª A Primeira Outorgante dá de arrendamento à Segunda Outorgante, que aceita esse arrendamento, a fracção autónoma descrita na cláusula antecedente.

3ª a) O presente contrato vigora pelo prazo de 5 anos, com inicio em 01 de Dezembro de 2013, e fim em 30 de Novembro de 2018, renovando-se automaticamente por períodos de 3 anos, caso não seja denunciado por nenhuma das Outorgantes.

b) O presente contrato cessará automaticamente em caso de venda do imóvel objeto do mesmo.

12ª Senhoria e Inquilina, caso pretendam denunciar o contrato no seu termo, poderão fazê-lo através dos meios legalmente previstos para o efeito, desde que observem o prazo mínimo previsto na legislação aplicável, à excepção da situação prevista na linha b) da cláusula 3.ª, caso em que o contrato cessará automaticamente sem necessidade do pré-aviso.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Na decisão recorrida entendeu-se que “o contrato de arrendamento em causa cessaria automaticamente caso a Locadora, a aqui executada “(…) Limited” vendesse voluntariamente o prédio objecto do contrato, sendo uma cláusula manifestamente protectora dos direitos da Locadora, aceite pelas partes livremente no âmbito da autonomia da vontade, mas se nos afigura que as partes (Locadora e Locatária) quando inseriram tal cláusula no contrato tenham previsto a venda forçada do mesmo, pretendendo com a inserção da mesma no contrato salvaguardar interesses de terceiros, nomeadamente no âmbito de uma acção executiva”.

O apelante discorda, sustentando em síntese que em obediência ao estatuído no artigo 236.º do Código Civil, nada leva a concluir que os contraentes quisessem afastar a aplicação do contrato a possíveis sucessores nos direitos e obrigações do mesmo; sendo este um negócio formal, a pretensa declaração que o tribunal a quo vê existir no contrato em questão, não tem um mínimo de correspondência no texto, o que impõe que não valha a sua interpretação, nos termos do artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil; dito doutra forma, para que possa valer, o sentido atribuído pelo “declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento, o que não acontece. Mesmo que se defendesse que este sentido sem correspondência mínima no texto poderia ainda valer uma vez que traduziria a vontade real das partes, as razões determinantes da forma do negócio opõem-se sem sombra de dúvidas a essa validade, atento o disposto no artigo 1057.º do Código Civil.

Sob a epigrafe “venda em execução”, o artigo 824.º do Código Civil preceitua que a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida (n.º 1) e que os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo (n.º 2).

Segundo o Ac. do TRG, de 14-05-2009[1] “a venda judicial, em processo executivo, de fracção hipotecada faz caducar o seu arrendamento, quando posteriormente celebrado à constituição e registo daquela hipoteca, por na expressão “direitos reais” mencionada no artigo 824.º, n.º 2, do CC se incluir, por analogia, aquele arrendamento.

Como assim, um contrato de arrendamento (registado ou não) celebrado antes do registo de hipoteca, arresto ou penhora é oponível a estes atos (…)

Mas já um contrato de arrendamento, … celebrado posteriormente à constituição de arresto, hipoteca ou penhora extingue-se com a venda”.

No caso em apreço, o arrendamento foi constituído em data anterior à hipoteca, pelo que não ocorre a sua caducidade em consequência da venda executiva, por força do disposto no artigo 824.º do Código Civil.

Suscita-se agora a interpretação das cláusulas do contrato de arrendamento em causa, para se saber se o mesmo caducou, com a venda executiva, conforme defende o recorrente.

As normas relativas à interpretação das declarações negociais encontram-se previstas nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.

Artigo 236.º (Sentido normal da declaração)

1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

Artigo 237.º (Casos duvidosos)

Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menor gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.

Artigo 238.º (Negócios formais)

1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com o sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.

RUI PINTO DUARTE[2] sintetiza os conteúdos relevantes em matéria de interpretação da seguinte forma:

-Em geral, se se conhecer a vontade real dos declarantes, a declaração vale de acordo com a mesma (artigo 236.º, n.º 2);

-No tocante a negócios formais, o sentido a atribuir à declaração tem de ter um mínimo de correspondência no texto (artigo 238.º, n.º 1), não se aplicando tal exigência se for conhecida a vontade real dos declarantes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a tal validade (artigo 238.º, n.º 2);

-Não se conhecendo a vontade real dos declarantes, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, na posição do real declaratário, atribua à declaração (artigo 236.º, n.º 1);

-Em caso de dúvida, se tratar de negócio oneroso, prevalece o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações e se tratar de negócio gratuito o sentido que for menos gravoso para o disponente (artigo 237.º).

Como sintetiza CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA[3], no contexto dos preceitos sobre interpretação dos negócios jurídicos, “vontade” não equivale a desejo, propósito ou aspiração, antes tendo o valor de “intenção” significativa de ser relevante e de intenção de ser compreendido”.

Diz-nos ainda RUI PINTO[4] que sendo “o contrato um acordo de vontades (artigo 232.º), há que buscar a “vontade comum”, não apenas a vontade de cada um dos intervenientes” e que se deve ir buscar a chamada vontade real dos contraentes e só se nada apurar quanto à mesma é que se aplicam as restantes regras.

O STJ tem seguido o critério segundo o qual qualquer elemento de um conjunto deve ser interpretado enquanto tal, isto é, no seu contexto.

Acórdão de 5.07.2012[5],

“I - Na interpretação de um contrato, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes, deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo.

II - Em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, é dada prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, mas a lei não se basta apenas com o sentido por este apreendido e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia (artigo 236.º do CC).

III - No domínio da interpretação de um contrato há que recorrer, para a fixação do sentido das declarações, nomeadamente à letra do negócio, às circunstâncias que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos, os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento) e a finalidade prosseguida.”

Acórdão de 16.04.2013[6]:

“Na interpretação de um contrato, a efectuar de acordo com as normas previstas nos artigos 236.º a 238.º do CC, deve buscar-se não apenas o sentido das declarações negociais separadas e alheadas do seu contexto negocial global, mas procurar-se o sentido juridicamente relevante daquele contexto, atendendo, em especial, à letra do negócio, às circunstâncias de tempo, lugar e outras que antecederam a celebração do contrato ou são contemporâneas das mesmas, às negociações entabuladas pelas partes e às finalidades por elas prosseguidas, ao próprio tipo negocial, à lei, aos usos e costumes, e à posição assumida pelas partes na concretização do negócio.”

Em face do exposto, há a considerar que “o sentido relevante da declaração apura-se no seu contexto. A lei não limita, em regra, os elementos ou circunstâncias suscetíveis de serem levados em conta na interpretação. Apenas exige, no caso dos negócios formais, que o resultado interpretativo apurado tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento (artigo 238.º). Não se provando o sentido da vontade real dos declarantes aplica-se o critério normativo objetivo do n.º 1 do artigo 236.º, em princípio, a declaração vale como o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, poderia deduzir do comportamento do declarante; ou, numa formulação próxima, vale com o sentido que o declaratário real lhe daria se fosse uma pessoa razoável, diligente de boa fé. O padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames da boa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real.”[7]

Importa ainda dizer que “constitui matéria de facto saber qual foi o sentido efetivamente pretendido pelo declarante (a sua vontade real) e o eventual conhecimento da mesma pelo declaratário. Mas a interpretação em si mesmo é uma operação jurídico-valorativa e, desse modo, uma questão de direito”.[8]

Vejamos agora as cláusulas relevantes para a questão em apreço:

3ª a) O presente contrato vigora pelo prazo de 5 anos, com inicio em 01 de Dezembro de 2013, e fim em 30 de Novembro de 2018, renovando-se automaticamente por períodos de 3 anos, caso não seja denunciado por nenhuma das Outorgantes.

b) O presente contrato cessará automaticamente em caso de venda do imóvel objeto do mesmo.

12ª Senhoria e Inquilina caso pretendam denunciar o contrato no seu termo, poderão fazê-lo através dos meios legalmente previstos para o efeito, desde que observem o prazo mínimo previsto na legislação aplicável, à excepção da situação prevista na linha b) da cláusula 3ª, caso em que o contrato cessará automaticamente sem necessidade do pré-aviso.

Da factualidade dada como provada não é possível apurar o sentido da vontade real dos outorgantes do contrato de arrendamento, pelo que há que fazer apelo ao critério do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil. E segundo este critério, entendemos que as cláusulas acima referidas não podem ser interpretadas com o sentido pretendido de que a venda forçada implica a caducidade do contrato de arrendamento. Com efeito, no contexto em que o mesmo foi celebrado em 1-12-2013 não é minimamente previsível que as partes tivessem querido que o contrato de arrendamento cessasse imediatamente com a venda executiva do prédio objeto do contrato, salvaguardando os interesses de terceiros, nomeadamente no âmbito de uma ação executiva, conforme bem refere a decisão recorrida.

Em conclusão, concorda-se com a interpretação seguida na decisão recorrida, pelo que improcede a apelação.

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

(…)

V- DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Évora, 17 de junho de 2021

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Lopes Barata

Maria Emília Ramos Costa

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[1] Proc. 683/03.0TCGMR-D.G1, relator António Sobrinho, www.dgsi.pt.

[2] A Interpretação dos Contratos, 2017, Almedina, pp. 54-55.

[3] Contratos IV, 2018, Almedina, p. 320.

[4] Obra citada, p. 56.

[5] Proc. 1028/09.0TVLSB.L1.S1, relator António Joaquim Piçarra, www.dgsi.pt

[6] Proc. 2449/08.1TBFAF.G1.S1, relator António Joaquim Piçarra, www.dgsi.pt.

[7] Evaristo Mendes/Fernando Sá, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pp. 537 e 540.

[8] Evaristo Mendes/Fernando Sá, obra citada, p. 541.