LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
MÁ FÉ PROCESSUAL
REQUISITOS
Sumário

A dedução de pretensão infundada não basta, só por si, para se concluir pela litigância de má-fé, única via de conciliar o direito fundamental do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa) com os deveres de boa-fé processual.

Texto Integral

Proc. n.º 21792/15.7T8LSB-A.E1


Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório.
1. (…), residente na Rua dos (…), Quinta da (…), Lote 3, Marinhais, por apenso à execução, para pagamento de quantia certa, em que são exequentes (…), residente na Rua (…), n.º 4, 10º-A, em Lisboa e (…) – Sociedade de Investimentos, (…) e (…), Lda., com sede na Rua (…), n.º 4, 10º-A, em Lisboa, deduziu oposição mediante embargos.

Excecionou o caso julgado (a causa é idêntica à causa julgada na ação que correu termos com o n.º 93/14.3TBBNV quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir), a inexequibilidade do título executivo e a inexigibilidade da obrigação exequenda.

Concluiu pela absolvição do pedido executivo e pediu a condenação dos Embargados como litigantes de má-fé, em multa não inferior a € 10.200,00 e indemnização no montante de € 174.815,80.

Os Embargados não contestaram.

2. Seguiu-se despacho saneador que conhecendo do mérito da causa, dispôs a final:

“Em face do exposto:

1. Julgo procedente a exceção de caso julgado e, em consequência, absolvo a Embargante da instância;

2. Julgo parcialmente procedente o pedido de condenação dos Exequentes, ora Embargados, como litigantes de má-fé em multa no montante de 10 (dez) u.c. e indemnização à Executada, ora Embargante, no montante de € 6.325,65 (seis mil, trezentos e vinte e cinco euros e sessenta e cinco cêntimos).”

3. O recurso
Os Embargados recorrem da sentença e concluem assim a motivação do recurso:
“1- Os embargados aqui recorrentes não se conformam com a douta sentença proferida no âmbito dos referidos autos, que julgou parcialmente procedente o pedido de condenação dos Exequentes/Embargados/Apelantes como litigantes de má-fé e nessa esteira condenou em multa e indemnização.

2- Pois, decidindo como decidiu, o Tribunal a quo não fez uma correta apreciação da prova resultando assim, num erro de julgamento.

3- Entendem os ora recorrentes que o Tribunal a quo não poderia ter dado como provada a litigância de má-fé, dado que não foi feita prova adequada e suficiente para o efeito.

4 - Ora, salvo o devido respeito, que é muito, não é admissível que o Tribunal a quo dê como provada tal factualidade com base num pedido do Embargante.

5 - Pelo que, face ao supra exposto Vossas Excelências, reapreciando a matéria de facto provada e não provada, e subsumindo-a nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue totalmente improcedente a condenação em litigância de má-fé.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, e reapreciando a matéria de facto dada como provada e não provada, alterando-a no sentido das conclusões supra referidas, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente por provado e em consequência proferido acórdão revogatório da decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue totalmente improcedente fazendo assim, esse Venerando Tribunal a já acostumada JUSTIÇA!”

Respondeu a Embargante por forma a defender a extemporaneidade do recurso, em qualquer caso, a sua improcedência e pediu a condenação dos Recorrentes como litigantes de má-fé, em multa individual não inferior a 40 UCs, alegando que o recurso, sem qualquer fundamento sério, tem em vista entorpecer a ação da justiça e protelar o trânsito em julgado da decisão.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


4. Questão prévia
A Recorrida suscita a extemporaneidade do recurso; argumenta que a decisão recorrida condena em multa e indemnização, inserindo-se na previsão da alínea e) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, o prazo para a sua interposição é de 15 dias, cujo termo, sem multa, ocorreu a 11/6/2019 e, assim, o recurso interposto em 21/6/2019 está fora do prazo.
Segundo o artigo 638.º, n.º 1, do CPC, na parte que releva, o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias, reduzindo-se para 15 dias nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º.
O n.º 2 do artigo 644.º do CPC reporta-se a decisões intercalares que admitem recurso imediato; as decisões que ponham termo à causa e o despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida de mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos, no binómio decisões intercalares/decisões finais, comportam decisões finais ainda que tenham como objeto questões que, pela sua natureza, poderiam dar azo a decisões intercalares.
O que releva para efeitos da distinção das previsões das alíneas dos números 1 e 2 do artigo 644.º do CPC, é o alcance da decisão – final ou intercalar – e não, necessariamente, a natureza das questões que constituem seu objeto.
No caso, o recurso vem interposto do despacho saneador que absolveu a embargante da instância e condenou os embargados como litigantes de má-fé pondo termo à causa, inserindo-se, assim, na previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 644.º do CPC.
O prazo para a interposição do recurso é de trinta dias e, assim, o recurso interposto, em 21/6/2019, da sentença notificada aos Recorrente em 27/5/2019, está em prazo.
O recurso é tempestivo, restando conhecer do seu objeto.

II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir se os Embargados litigam de má-fé.

III. Fundamentação
1. Se os Embargados litigam de má-fé
Depois de discorrer, em tese, sobre o conceito da litigância de má-fé, com recurso a doutrina e jurisprudência apropriada, a decisão recorrida ajuizou, na espécie, o seguinte:
“(…) no caso em análise, verificou-se a exceção de caso julgado, com os fundamentos que antecedem, pelo que não nos restam dúvidas de que os Exequentes, ora Embargados deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar e tendo em consideração que a execução que correu termos sob o n.º 93/14.3TBBNV foi já julgada extinta, por sentença transitada em julgado.

A postura dos Embargados e a utilização que fizeram dos meios processuais que tinham ao seu dispor ofende o Tribunal e a administração da justiça, porquanto com ela se deu aso (inútil e abusivamente) aos presentes os autos.

Desta feita, por entender que a conduta das Embargantes se caracteriza como uma atitude dolosa, por se tentarem a arrogar a direito que sabiam não ter (não podiam desconhecer), conclui o Tribunal que têm os mesmos que ser condenados como litigantes de má-fé.”
Os Recorrentes divergem deste juízo argumentando que “não foi feita prova adequada e suficiente” e pedem a “reapreciação da matéria de facto provada e não provada” por forma a obterem a revogação da decisão recorrida.
Iniciando por esta última argumentação importa sublinhar a sua inconcludência; os Recorrentes não indicam os concretos pontos de facto que pretende ver reapreciados ou os concretos meios probatórios que, em seu entender, justificam tal reapreciação, como exige e impõe o artigo 640.º do CPC, ao impugnante da decisão de facto.
Não indicam, nem podiam indicar porquanto a decisão recorrida, para além de afirmar a verificação e procedência da exceção do caso julgado, juízo com o qual os Recorrentes se conformaram, não discrimina quaisquer outros factos justificativos da condenação.
Resta, pois, verificar se a improcedência da pretensão executiva, por verificação da exceção do caso julgado, constitui fundamento bastante para a condenação dos ora Recorrentes como litigantes de má-fé.
No regime deposto pelo D.L. n.º 329-A/95, de 12/12, a má-fé processual tinha como requisito essencial o dolo, não bastando a culpa, por mais grave que fosse; caracterizava então a má-fé a pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não se ignorava, a alteração consciente da verdade dos factos ou omissão consciente de factos essenciais e o uso manifestamente reprovável do processo (artigo 456.º, n.º 2, do CPC de 1961).
É desta altura o Ac. do STJ de 17/11/72 (BMJ 221-164), amiúde repetido em decisões judiciais, onde se sintetizou que “só a lide essencialmente dolosa e não a meramente temerária ou ousada, justifica a condenação como litigante de má-fé”.
Com a reforma processual de 95/96 o legislador alargou o âmbito de aplicação da litigância de má-fé, propósito anunciado no seguinte passo do preâmbulo do diploma reformador (DL n.º 329-A/95): “Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagram-se expressamente o dever de boa-fé processual, sancionando-se como ligante de má-fé a parte que, não apenas como dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por ação ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjetivos”.
Em consonância, o artigo 456.º do CPC de 1961, com a redação idêntica à do artigo 542.º do CPC vigente, dispôs:
“1. Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Esta previsão deixa claro que à caracterização da litigância de má-fé não é, hoje, indispensável o dolo, a par da lide dolosa, também a lide negligente é suscetível de sanção desde que a negligência seja grave, mas também deixa claro que as condutas processuais que objetivamente enumera [alíneas a) a d)], só por si, são insuficientes à afirmação da litigância de má-fé; à semelhança de outras áreas do direito sancionatório, também o preenchimento do tipo de ilícito processual exige a verificação cumulativa de determinados elementos objetivos (um ou mais dos descritos nas alíneas do n.º 2) e de elementos subjetivos, seja o dolo, seja a negligência grave.
Tornando ao caso dos autos, o juízo que consistiu em considerar dolosa a conduta dos Recorrentes mostra-se fundado, a nosso ver, numa mera probabilidade e isto porquanto assente exclusivamente na circunstância de se arrogarem a um direito (o pagamento coercivo duma dívida) cuja falta de fundamento não deviam ignorar – “por entender que a conduta das Embargantes se caracteriza como uma atitude dolosa, por se tentarem a arrogar a direito que sabiam não ter (não podiam desconhecer), conclui o Tribunal que têm os mesmos que ser condenados como litigantes de má-fé” – mas não mais do que isto, uma vez que não exclui o lapso ou a mera falta de diligência na preparação da ação infundada.

A dedução de pretensão infundada, não basta, só por si, para se concluir pela litigância de má-fé, única via de conciliar, a nosso ver, do direito fundamental do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa) com os deveres de boa-fé processual.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 11.12.03[1], “a verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má-fé processual.»
Prudência a aconselhar, no concreto caso dos autos, que não se acompanhe a condenação dos Recorrentes como litigantes de má-fé, assente, como se encontra na defesa de uma solução jurídica manifestamente errada.
Solução que transporta, em si, a negação de litigarem de má-fé no recurso, uma vez que, neste, se lhes reconhece razão.

2.2. Custas
Vencida no recurso, incumbe à Recorrida o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida na parte em que condena os Recorrentes como litigantes de má-fé.
Custas pela Recorrida.
Évora, 17/6/2021
Francisco Matos
José Tomé Carvalho
Mário Branco Coelho

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[1] Disponível in www.dgsi.pt