CONCURSO EFETIVO E CONCURSO APARENTE DE CRIMES
CRIME DE BURLA E CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
Sumário

Há concurso meramente aparente (concurso de normas) entre o crime de burla e o crime de abuso de confiança, quando a ação que constitui o abuso de confiança («crime-meio») é simultaneamente elemento constitutivo do crime de burla («crime-fim»). Isto é, quando no âmbito do mesmo desígnio criminoso, a inversão do título da posse, constitutiva do abuso de confiança, integra a intenção de enriquecimento ilegítimo da burla, consumando este crime, daí derivando um só (o mesmo) prejuízo no mesmo lesado. Nesse caso, por via da relação de consunção, haverá apenas um crime de burla.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório

1. No Juízo Local Criminal de Tomar, do Tribunal Judicial da comarca de Santarém, procedeu-se a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, de MRRF, com os sinais dos autos, tendo a mesma sido condenada como autora pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto no artigo 205.º, § 1.º e 5.º e 30.º § 2.º do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão; e pela prática como autora de um crime de burla qualificada na forma continuada, previsto no artigo 218.º, § 2.º, alínea a) e 30.º, § 2.º do mesmo código, na pena de 3 anos de prisão.

Em cúmulo jurídico a arguida foi condenada na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, na condição de entregar a MCRF a quantia de 3 000€; e a mesma quantia a MRF, para compensação dos danos causados.

2. Inconformada com a decisão, dela recorreu a arguida, que finalizou a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«A) Na ata de Audiência de discussão e julgamento de 9 de outubro de 2019, o tribunal a quo indeferiu o pedido de indemnização civil, porém, na douta sentença consta que a demandante reduziu o valor do pedido civil, o que significa que existe um erro na sentença que, nos termos do artigo 380º do Código de Processo Penal, deverá ser corrigido.

B) A sentença recorrida está ferida de nulidade, porquanto entende a recorrente que o tribunal a quo incumpriu o dever de fundamentação a que está vinculado nos termos do artigo 374º2 CPP.

C) Acresce que a arguida apresentou contestação na qual não se limitou a negar a prática do crime que lhe era imputado, porém na sentença apenas é referido que a arguida apresentou contestação e todos os factos foram dados como não provados, quer em sede de fundamentação da decisão de facto, quer na parte relativa ao direito, o que viola o estipulado no art. 374º, n º 1 d) do CPP.

D) Além disso, lendo atentamente a motivação da decisão de facto, verificamos a indicação dos meios de prova, mas não a apreciação crítica para que se perceba porque foram julgados provados os factos supra referidos.

E) Na motivação o tribunal a quo indica a prova documental em que fundou a sua convicção e diz terem sido ponderados os depoimentos da ofendida e das testemunhas.

F) Porém, desta fundamentação da matéria de facto da sentença não é possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal, nomeadamente em relação à autoria dos factos, aos factos integradores dos crimes de abuso de confiança qualificado e de burla qualificada e ao montante apurado a final.

G) O tribunal a quo não analisou minuciosamente os documentos que o caso demandava, uma vez que deu como provados factos que não correspondem ao que consta desses documentos, pelo que na decisão em recurso, foi dada como provada, incorretamente a matéria constante, nomeadamente dos pontos 13; 17; 18; 22; 23;25; 26; 28;29; 30; 31; 32;33; 34; 37; 38; 39; 40; 43; 44;45;46; 47; 49 e 52.

H) Com efeito, no ponto 9º da matéria de facto dada como provada, diz “… a pedido subscrito pela arguida, o B… procedeu à abertura da conta poupança n.º…, associada à aludida conta de depósitos º…; e no ponto 13 diz “Entre o dia 12-11-2009 e o dia 17 de Outubro de 2010, aproveitando-se de ter livre acesso à mesma, a arguida foi transferindo parte daquelas quantias para a sua conta poupança …, num total de €3.200,00 (nos dias e montantes mencionados na tabela referida na acusação, que se considera reproduzida), …”.

I) Ora, estamos perante uma conta associada à primeira, tendo as mesmas titulares, constando dos mesmos extractos e sendo as transferências automáticas entre si, facto que é corroborado pelo documento de fls. 181 e todos os extractos emitidos pelo Banco e juntos ao processo, portanto, não podia ser dado como provado que a arguida transferiu tais montantes para uma conta sua e, consequentemente devia ter sido dado como provado o ponto IV dos pontos não provados da contestação.

J) Além disso, da análise dos extratos nºs 11/2009, 1/2010, 2/2010, 3/2010, 4/2010, 5/2010, 8/2010 documentos de fls 353 a 367 conclui-se que esses montantes em causa, ora eram creditados na conta poupança, ora eram debitados, sendo que, em Agosto de 2010 (cfr. doc 367) o saldo era de 0,00€, conforme quadro que se apresenta no corpo deste recurso, no artigo 34º, pelo que também devia ter sido dado como provado o ponto VIII dos factos não provados da contestação.

K) No ponto 17 é dado como provado que “A par, entre o dia 24-7-2010 e o dia 31-12-2012, sempre nos concelhos de … e …, com recurso ao cartão de multibanco da aludida conta, a arguida ou alguém a seu mando, levantou um total de €13.610 …”

L) Porém, não só não se provou que os mesmos tenham acontecido sempre em … e em …, como se constata da análise dos extratos juntos, como não se provou que tais montantes fossem feitos pela e para a arguida dispor em seu proveito,

M) Já que dos depoimentos das testemunhas, irmãos da arguida, conclui-se que a ofendida vivia com a filha arguida, pelo menos durante o tempo em que ocorreram os factos, além de que todos os irmãos viviam com dificuldades económicas, pelo que não podiam prover pelo sustento da mãe, tendo, por isso a ofendida de recorrer ao dinheiro que possuía,

N) Assim, do depoimento da testemunha MCRF, prestado na audiência de julgamento de 09/10/2019, o qual se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital proveniente da aplicação informática "H@bilus Media Studio", contadores 00.00.01 a 00.33.02, gravado no ficheiro 20191009103241_2840025_2871732 do minuto ao minuto 2:18 ao minuto: “…Em 2010 o meu irmão tinha comprado o bilhete para trazer a minha mãe de férias a Portugal mas essa tal minha irmã alegou que a minha mãe não podia vir porque tinha consultas médicas e outras coisas e não deixou vir a minha mãe… ”E do minuto 5:22 ao minuto 5:32 …Agora aquilo que sei é que ela veio uma vez ou duas a Portugal trazer a minha mãe e dessas vezes que veio trazer a minha mãe, a minha mãe foi duas vezes ao banco…E do minuto 8:18 ao minuto 8:34 -… inclusive nesse mesmo, eu não sei se posso falar, mês de Agosto depois o meu irmão regressou a Londres com minha mãe, a minha mãe, nesse mês de Agosto foi para casa dessa tal minha irmã e …E do minuto 13:46 ao minuto 14:08: Procuradora - A sua mãe durante esse tempo todo que viveu em Londres, vivia com quem? Com a Senhora? MCRF – Dra., a minha mãe sempre viveu em casa dos 3 filhos mas ela houve um tempo foi a conclusão a que eu cheguei mais o meu irmão enquanto a minha mãe teve dinheiro ela conseguiu puxar a minha mãe mais para o lado dela.

O) E do depoimento da testemunha MRF, prestado na audiência de julgamento de 09/10/2019, o qual se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital proveniente da aplicação informática "H@bilus Media Studio", contadores 00.00.01 a 00.33.02, gravado no ficheiro 0191009110548_2840025_2871732 do minuto 4:5 ao minuto 4:30: Procuradora -Quando ela vinha cá a Portugal o Sr. sabe onde é que ela ia, se ficava nessa tal casa em …? MRF - Não sei onde é que ela ficava lá no algarve, ela de vez em quando vinha aqui com a minha mãe a Portugal, ficava aí deixava-a aí, por várias vezes, pelo menos uma vez deixou a minha, mãe aqui em Portugal e eu levei-a para Inglaterra agora onde é que ela residia…

P) E, ainda do depoimento da testemunha MBMA que se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital proveniente da aplicação informática "H@bilus Media Studio", contadores 00.00.01 a 00.21.17 do minuto 17:32 ao minuto 14:48: M. Juiz: Está bem e ela lá vive com quem? MBMA: Vive com uma filha que tem problemas mentais com (imperceptível) e um ano e tal antes da mãe falecer sempre viveu com a mãe (imperceptível). E do minuto 18:06 ao minuto 19:01, Advogada – …desde já o seu depoimento a senhora diz que sempre teve conhecimento que a R vivia com a mãe daquilo que ela lhe dizia ou ia lá…MBMA – Não, a R quando vinha a Portugal normalmente trazia a mãe. Mandatária: Levava a mãe para …? MBMA – Exactamente. Mandatária: A Sra. não consegue precisar se a mãe estava com ela? MBMA -Estava porque cheguei a falar muitas vezes ao telefone com a mãe, inclusive a mãe gostava muito de falar comigo e chegou a falar muitas vezes comigo ao telefone. Mandatária: Não sabe se ela estava todos os dias com a R, certo? MBMA - Eu sei que a ela estava todos os dias com a mãe eu sei que a R cuidou da mãe durante 16 anos seguidos.

Q) E, embora as testemunhas (irmãos da arguida), por um lado afirmassem que a ofendida não “mexia” no dinheiro do banco, acabam por referir que a final vivia da sua reforma e até chegava a dizer aos filhos que levantassem dinheiro para as necessidades, como se constata do trecho seguinte da testemunha MRF, do minuto 12:15 ao minuto 12:49: Procuradora - Nunca levantou, …a sua irmã M. do C a partir de determinada altura acabou por, ao responder ao responder a perguntas que a sua mãe que dizia vai ao banco para comprar isto, a sua mãe não dizia isto? Olha vai lá ao banco levantar dinheiro que é para se comprar isto? MRF - Era capaz de me ter dito algumas vezes. E do minuto 16:47 ao minuto 17:31: Procuradora - Tem conhecimento se ela acabou por depois ir ao banco, por andar a diligenciar porque era muito dinheiro, ao fim e ao cabo se a sua mãe não mexia quem iria lucrar com isto tudo eram os filhos, não era? Quando ela morresse ficavam com este dinheirinho. MRF - Sim, a minha mãe sempre pensou que aquele dinheiro ficasse para a gente penso eu que era o que ela devia pensar, porque se ela não lhe mexia, ela nunca vinha a … desde que eu me lembro ela nunca, tinha a reforma dela, o dinheiro que ela ganhava, o da reforma chegava para ela não tinha mais despesas praticamente nenhumas, chegava bem para ela, nunca vinha levantar dinheiro propriamente ao banco para ela, desde que eu me lembro até. E mais, do minuto 30:52 ao minuto 31:10: Defensora oficiosa – …Portanto, a reforma era para a sua mãe viver todos os meses, não é Sr. M? MRF – É. Defensora oficiosa - Estivesse ela em casa da sua irmã, estivesse na sua, estivesse na da sua outra irmã a reforma era para a sua mãe viver. MRF - Era da minha mãe. Defensora oficiosa - Era da sua mãe? MRF – Sim. Defensora oficiosa: E a sua mãe utilizava a reforma para viver. MRF – Sim.

R) Acresce ainda que do minuto 9:28 ao minuto 9:48 diz MCRF - Mais tarde a reforma da minha mãe não existia, a minha mãe não tinha reforma, não tinha nada, a minha mãe estava na minha casa, era só o meu companheiro a trabalhar para pagarmos todas as contas, não foi fácil e eu e mais o meu irmão dirigimo-nos ao … para abrir uma conta para a reforma da minha mãe passar para aquela conta… E do minuto 21:48 ao minuto 22:34: Juiz - Não terminei a pergunta, mesmo nessa altura, a sua mãe não usava a conta dela para as despesas? MCRF - Exatamente, a minha mãe disse que se eu quisesse utilizar, podia utilizar eu questionei a minha irmã derivado à reforma da minha mãe não ter, não haver reforma, não existir reforma, não se sabia da reforma e eu quando fui ao banco abrir a conta com o meu irmão para a reforma entrar naquela conta que eu fui com a minha mãe abrir no banco com o meu irmão, a conta não entrava na reforma e era levantada. Juiz – Já explicou isso, não foi nada disso que eu lhe perguntei. Juiz - Então não sabe explicar. MCRF - Mas se eu precisei, se a minha mãe disse para eu utilizar, eu precisei e a reforma não aparecia, não havia…

S) Pelo que, não podia ter sido dado como provado que os montantes foram apropriados pela arguida, portanto, não se podendo considerar provado o ponto 17 da matéria de facto dada como provada e consequentemente deve ser dado como provado o ponto V da matéria não provada da contestação.

T) Nos pontos 21 a 26 é dado como provado que:

Ponto 21. “A par, entre 29-8-2003 e 24-7-2009, MLR subscreveu vários planos de poupança de reforma associados à aludida conta, com dinheiro da sua exclusiva pertença e propriedade, nomeadamente os seguintes:

a) No dia 29-8-2003, o PPR/e NB garantido II n.º …, que, em 31.11-2009 apresentava o saldo de €16.712.95:

b) No dia 26-10-2006, o NB PPR Garantido n.º …, que, em 31-11-2009 apresentava o saldo de €7.983,23;

e c) No dia 24-7-2009 O PPR Super Inv 2009 n.º …, que, em 31-11-2009, apresentava o saldo de €2996,77,

No mesmo período, MLR era titular de um fundo de capitalização associado à aludida conta.

Ponto 22. Para levantamento- “resgate”- das aludidas quantias era necessária a autorização e assinatura de MLR, como a arguida bem sabia. Ponto 23. Donde a arguida engendrou um esquema para levantar as quantias ali inscritas.

Ponto 24. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o dia 14-11-2009 e o dia 1611-2009, num Balcão do …, em local não apurado, a arguida solicitou o resgate da quantia associada ao aludido fundo de capitalização associado à conta n.º ….

Ponto 25. Para tanto, apôs- ou mandou apor- a assinatura de MLR no campo “titular” do requerimento e disponibilizou-o ali.

Ponto 26. Donde, no dia 17-11-2011, aquele montante ficou disponibilizado na referida conta.”

U) Destes factos dados como provados não se escrutina qual é o montante que ficou disponibilizado referido no ponto 26. Além de que ao proceder-se à análise do extracto bancário nº 2/2012 que se encontra a fls 382 v, naquela data, 17/11/2011, não existe qualquer movimento, motivo pelo qual o facto do ponto 26 não pode ser dado como provado.

V) Já quanto ao ponto 23, refere-se que a arguida engendrou um esquema para levantar as quantias ali inscritas, porém e, salvo melhor opinião, nos factos dados como provados não se vislumbra qualquer esquema. Há apenas o resgate e consequente disponibilidade na conta das quantias dos PPR, tais resgates estão assinados pela ofendida e não se provou que não tenha sido a mesma a assiná-los, nem tão pouco que tenha sido a arguida ou alguém a mando desta a fazê-lo.

W) Do depoimento da ofendida constante de fls. 41/42 dos autos, não se recolhe qualquer elemento que possa afirmar ou infirmar que a mesma não assinou tais documentos, com efeito consta, nomeadamente que a ofendida sabia que tinha 2 contas no banco … em …, que a sua filha, ora arguida, podia movimentar tal conta, que ela própria levantava dinheiro quando vinha a Portugal, falando em montantes de 1.500,00€ (também as testemunhas corroboram tais factos) e que dessa conta saiam montantes para pagar despesas da sua casa em Portugal, que a ofendida foi ao banco com a sua filha e, por sugestão do banco, a sua filha passou a ter poderes para movimentar a conta,… e por fim, que habitualmente vinha a Portugal com esta sua filha que consigo permanecia… Assim tal ponto não pode ser dado como provado.

X) Quanto aos factos dados como provados nos pontos 28, 32, 33 e 37 são ininteligíveis, porquanto o ponto 19 tem o seguinte teor: “Fazendo-os seus.”, o que nada tem a ver com o invocado nos pontos dados como provados.

Y) Ponto 28. “Após, no dia 1-12-2009, em localidade não apurada, ao Balcão do …, de forma não apurada, a arguida solicitou o resgate parcial do PPR acima referido em 19.º a)”.

Ponto 32. “No dia 16-12-2009, em localidade não apurada, ao Balcão do …, de forma não apurada, a arguida pediu o resgate do remanescente do PPR acima referido em 19.º A)”.

Ponto 33. “Na mesma ocasião, pediu o resgate total do PPR n.º…, acima referido em 19.º B).”

Ponto 37. “No dia 17-2-2010, em local não apurado, de forma não apurada, solicitou o resgate do remanescente do PPR Super Inv 2009 n.º…, acima referido em 19.º C)”.

Z) No ponto 39 foi dado como provado o seguinte “Em consequência, no 19-2-2010, os responsáveis do Banco disponibilizaram a quantia de €2.914,45, na conta de depósitos …. Ora, mais uma vez, consultados os documentos juntos se constata que o valor constante do extrato 3/2010, documento de fls 359 verso é de 2 974,45€ e não o montante que foi dado como provado, por isso, o facto constante do ponto 39 não pode ser dado como provado.

AA) Também no ponto 40 foi dado como provado que “No dia 26-02-2010 através de internet- sistema …- a arguida efetuou duas transferências, no montante global de€1000,00, daquela conta para a conta n.º…, titulada por CMSC, e movimentada por MBMA, sua amiga.”

BB) Porém, mais uma vez analisados os documentos, se constata que no documento de fls 359 verso (extrato bancário 3/2010), consta apenas uma (e não 2) transferência no montante de 500,00€, pelo que tal ponto não podia ser dado como provado como fez o tribunal a quo e, consequentemente, ter sido dado como provado o ponto IX da matéria não provada da contestação na sentença recorrida.

CC) Assim dadas as discrepâncias existentes entre os montantes dados como provados e os montantes constantes na prova documental, também os pontos 43, 47 e 52 não podem ser dados como provados.

DD) Acresce ainda que no ponto 52º na sua parte final”… deixando a aludida conta com um saldo total de €5,38”, constata-se que efetivamente, esse era o saldo da conta à ordem, porém havia ainda Apólice … n º …, PPR garantido …, no montante de 1.059,19€ e um Dossier nº ….- Capitalização nom montante de 225,69€, como se constata da análise dos extratos bancários n º 4/2012 e 1/2013 de fls, 388, 389, 390 e 391, pelo que não está provado tal facto.

EE) Relativamente aos factos dados como provados no ponto 44 “Daí que, por exemplo, no dia 25-8-2011, a arguida dispôs de parte daquele dinheiro, pertença de MLR transferido para CC-€7000,00-em numerário-para pagar o contrato de aluguer por si celebrado com Banco …, respeitante ao uso do veículo de matrícula n.º…, pelo período de 84 meses (contrato n.º…) e analisando os documentos de fls 493 a 499, (extractos bancários relativos à conta pertencente a CC) e extrato n º 6/2011 que é o documento de fls 380, constata-se que o montante de 7 000,00€ não foi transferido para a conta de CC, mas para pagamento de um serviço, pelo que se devia ter dado como provado o ponto X da matéria dada como não provada na contestação.

FF) Constata-se ainda que, houve um depósito em numerário na mesma conta e no mesmo montante de 7 000,00€, tornando impossível saber qual a sua proveniência, pelo que não é possível dar como provado que tal dinheiro era pertença da ofendida MLR.

GG) Ademais, sendo tal conta titulada por ambas (ofendida e arguida), tal vem demonstrar que nem todo o dinheiro existente nessa conta seria pertença exclusiva da ofendida. Para reforço do acabado de referir e, da análise dos documentos que serviram para fundamentar a matéria de facto, refere-se que em 30/08/2011, entrou em numerário, na referida conta o montante de 1 500,00€; em 26/09/2011, o montante de 1 530,00€, ambos constantes do extrato 6/2011, doc. de fls. 380; Em 28/02/2012 o montante de 8 000,00€; em 2/04/2012, o montante de 820,00€, ambos constantes do extrato 2/2012, documento de fls. 384 e no dia 7/05/2012, o montante de 2 700,00 €, conforme extrato 3/2012, documento de fls. 386, tudo num total de 21 550,00€. Pelo que falta o elemento típico de “apropriação, já que não pode haver apropriação de bem próprio, pelo que também o ponto44 da matéria de facto não podia ter sido dado como provado.

HH) Quanto à autoria dos factos, nem todos ficaram provados, uma vez que nem as testemunhas nem a ofendida afirmam perentoriamente que a arguida tenha praticado factos integradores dos crimes pelos quais foi acusada, assim, do depoimento da testemunha MCRF, prestado na audiência de julgamento de 09/10/2019, o qual se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital proveniente da aplicação informática "H@bilus Media Studio", contadores 00.00.01 a 00.33.02, gravado no ficheiro 20191009103241_2840025_2871732 do minuto 2:42 ao minuto 24:52: Advogada - É que, nessa altura, provavelmente ela não terá deixado a sua mãe vir para ela não se aperceber que já estava a desparecer dinheiro e MCRF - Eu não quero estar a dizer o que… a confirmar o que está nos extratos.

II) Mais nenhum meio de prova foi produzido para além da testemunhal e documental e tendo sido considerado provado que a arguida falsificou ou mandou falsificar assinaturas, dir-se-á que seria absolutamente necessário que fosse produzida prova pericial, o que não aconteceu. Sem que haja prova pericial que sugira a existência da falsificação e considerando que para o resgate dos respetivos PPR as assinaturas são conferidas por semelhança com a ficha de assinaturas em poder do banco e que este só procede ao pagamento porque não há indício de qualquer situação ilícita.

JJ) Não se descortina na prova produzida qualquer meio enganoso, utilizado pela arguida e que possa ter induzido em erro nem a ofendida, nem o banco, nesta conformidade não resulta da prova produzida a prática pela arguida do crime de burla, sendo este também um fundamento de recurso.

KK) Por não se encontrarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla qualificada o tribunal a quo violou o disposto no artigo 218.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal.

LL) Sem prescindir de tudo quanto atrás se disse, ainda que assim, não se entendesse, a sentença refere que … “decide-se suspender na sua execução a pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão imposta à arguida, pelo mesmo período, com a condição de pagar a cada um dos seus irmãos MCRF e MRF, o valor de 3 000,00€ (três mil euros) para compensação dos danos causados”, ora, salvo melhor opinião, ainda que, a arguida tivesse utilizado dinheiro que pertencia a sua mãe, não tendo havido habilitação de herdeiros, tal valor pertenceria à herança.

MM) Quanto à pena aplicada entende-se ser muito gravosa, tanto mais que não teve em conta as circunstâncias concretas do caso, nomeadamente o facto de a arguida ter tomado conta da sua mãe por vários anos e além disso também se põe em causa a condição a que a pena ficou subordinada.

NN) Não é razoável exigir da arguida o pagamento de uma quantia tão elevada em tão curto espaço de tempo, tanto mais que, a recorrente vive com uma filha com problemas de saúde, pelo que é apenas o vencimento da mesma para a renda da casa, alimentação e tudo o mais necessário a ambas.

OO) Significa que não podendo ninguém ser condenado em pena de prisão por falta de pagamento das suas dívidas, a sentença proferida é como uma sentença de prisão a prazo, o que é inconstitucional por violação do artigo 13º da CRP.

PP) Acresce que na sentença não consta nenhum juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação pela arguida dessa condição, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura.

QQ) Recentemente o STJ no Acórdão Uniformizador n º 8/2012 de 12/09/2012 a propósito do crime de abuso de confiança fiscal considerou que essa falta implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, o que expressamente também se invoca.

RR) Sob pena de a condição ser absolutamente desprovida de sentido ao alcance, a respetiva aplicação tem de observar os princípios da adequação e proporcionalidade, sob pena de violação do disposto no art. 51º n º 2 do C. Penal.

SS) A recorrente foi condenado pelo artigo 205º, n º 1 e 5, porém não estão preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico de abuso de confiança.

TT) Ora, a arguida nunca podia ter sido condenado pelo nº 5 uma vez que não preenche nenhuma das previsões aí enunciadas, ou seja, a arguida não recebeu a coisa por depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, conforme referido na lei, a arguida era co-titular da conta e por isso com legitimidade para a poder movimentar.

UU) Assim, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 205º, n º 1 e n º 5 do Código Penal.

VV) Porque, assim, se não foi violado na douta sentença recorrida o disposto nos artigos 374º d) e 374º n º 2 do CPP, 205º da CRP, 51º, n º 2 do CP, 120º, n º 2 CPP, 410º, n º 2 a) CPP, 205º, n º 1 e 5 do CP e 218º, n º 2 alínea a) do CP.

WW) Por todo o exposto deve a sentença ser revogada e a arguida absolvida de todos os crimes que lhe são imputados.»

3. Admitido o recurso o Ministério Público apresentou-se a responder, assinalando alguns erros no julgamento dos factos, mas sustentando, no essencial, a sentença proferida, considerando que este tribunal superior pode lançar mão dos meios ao seu dispor para proceder a tais correções (dados corretos constam da prova documental), aduzindo, em síntese, o seguinte:

«1. A sentença recorrida padece de nulidade nos termos do disposto no artigo 374 n.º2 e 379 do CPP, por ser omissa na motivação da convicção quanto os pontos IV a XI dos factos não provados, uma vez que o Tribunal, nesta parte, não explicou concretamente as razões de ter demonstrado ou afastado cada uma daquelas questões e/ou factos.

2. A par, a sentença recorrida padece ainda de vários lapsos de escrita e de erros na análise da prova documental (que decorriam da acusação), sendo certo, porém, que, na nossa perspetiva, os mesmos não contendem com a convicção e mérito da douta decisão final.

3. Assim sendo, entendemos que a matéria de facto deve ser motivada nos termos acima expostos na motivação da presente resposta e, consequentemente, ser alvo das modificações supra indicadas, mormente:

a) quanto à comprovação dos factos 9.º e 13.º dos factos provados (e não comprovação do ponto IV dos factos não provados), sobre os quais o Tribunal A Quo não se debruçou verdadeiramente, os mesmos resultam, além do mais, dos documentos de fls. 335 e 345 e das declarações da ofendida de fls. 41 e 42 reproduzidas em julgamento, donde se conclui que as transferências, ali elencadas, só foram realizadas automaticamente porque a arguida o ordenou anteriormente e fê-lo sem autorização ou conhecimento da ofendida;

b) Os factos não provados pela sentença nos pontos VI e VII têm necessariamente de ser dados como provados, pois resultam dos documentos de fls. 352 a 391, que o Tribunal A QUO omitiu.

c) O facto número 26 padece de lapso quanto ao ano e montante conforme resulta da articulação dos factos da própria sentença e do teor dos documentos de fls. 328, 332, devendo o facto ser alterado em conformidade, passando constar ali o dia 17-11-2009 e o montante de €4270,00.

d) Os factos 28, 32,33 e 37, padecem de claro erros de escrita de remissão, já que se referem claramente ao plano PPR elencados no facto 21 (por lapso na sentença com referência ao facto 19) e respetivas alíneas. Isso é evidente da leitura integral da sentença, na medida em que o facto 21 é o único com alíneas e tem total correspondência com a descrição feita nos demais factos. Assim devem os mesmos ser corrigidos, substituindo a referência do facto 19 para o facto 21, nos termos do disposto no artigo 380 do CPP.

e) O facto 39 contém lapso na indicação do número, com troca de um algarismo, sendo que o valor correto é €2974,45 e não o valor de €2914,45, conforme resulta de fls. 359 verso, pelo que também tem de ser alterado em conformidade;

f) O facto 40 também não está correto na indicação do valor, já que no dia 26-2-2010 houve apenas uma transferência de 500€ (e não de 1 000€), conforme resulta do documento de fls. 359 verso;

g) Em virtude das alterações dos factos 39.º e 40.º que acima defendemos, tem de haver, necessariamente, a alteração do valor global indicado no facto 43.º, ficando a constar o valor de 31 969€.

4. Neste sentido, ao abrigo do disposto no artigo 379 n.º2, do CPP e 431.º alíneas a) e b) do CPP, nada impede que o Tribunal Superior supra a nulidade de omissão de pronúncia e proceda à referida modificação de facto nos ternos expostos

5. Por seu turno, pelas razões que acima elencámos na nossa motivação, bem andou o Tribunal ao dar como provados os factos 23, 25,29,34, 38 e 46 e 52, já que, em resumo, ficou demonstrado que a conta bancária do BES era formalmente cotitulada pela arguida e pela sua mãe, mas materialmente era constituída, somente, com capitais e poupanças desta.

6. Além disso, não há evidências de que a arguida tenha transferido dinheiro para a conta da ofendida para fazer face a despesas desta, sendo que os únicos depósitos em numerário que ali realizou, elencados no ponto 87 do seu recurso, serviram sempre, e apenas, para suportar os pagamentos de uma locação financeira de um veículo alheio à ofendida e usado pela testemunha MA, amiga da arguida, conforme resulta dos pagamentos de serviços elencados em fls. 380, 384 e 386, em conjugação com a informação do … de fls. 409 e das declarações prestadas por aquela em Julgamento

7. E aqueles depósitos em numerário foram precedidos de transferências da conta da ofendida, ordenadas pela arguida e que tiveram como destinatário interesses próprios desta (p. exemplo, nos dias 10-12-2009 e 21-12-2009, CC, companheiro de MA, recebeu 1 0000€ e 14 000€, respetivamente, provenientes da conta da ofendida no …. Todavia, nos dias seguintes, 11-12-2009 e 22-12-2009, respetivamente, o mesmo levantou, ao balcão, 8 500€ e 5 000€, respetivamente, tudo em numerário - vide fls.496 e verso e 498 e verso, 619 e 620.)

8. De igual modo, resultando de toda a prova testemunhal, que a arguida efetuou os resgates dos produtos financeiros tituladas pela ofendida sem o conhecimento ou autorização desta e tendo ficado o Tribunal convencido disso, não se vislumbra qualquer erro na análise da prova, ainda que não tenha sido possível efetuar perícia à letra dos documentos que serviram de suporte aos pedidos dos mesmos.

9. No mesmo sentido, comprovando-se esta realidade, é axiomático concluir que houve astúcia nesta parte pela arguida, já que os colaboradores do … só facultaram à arguida os montantes dos PPRs, porque agiram convictos que os pedidos de resgate tinham sido feitos pela ofendida, enquanto única titular dos mesmos.

10. Por outro lado, há claro lapso na imputação à arguida do crime previsto e punido pelo artigo 205 n-º5 do CP, uma vez que a mesma não recebeu as quantias no âmbito de depósito legal ou numa qualidade ali tipificada, tendo, antes, cometido o crime previsto e punido pelo artigo 205 n.º4 alínea a) do Código Penal (factos 1 a 20 da sentença recorrida).

11. Assim sendo, deve haver alteração da qualificação jurídica em conformidade.

12. A par, ainda assim, entendemos que a pena aplicada, pelo Tribunal a Quo, de 3 anos e 6 meses de prisão é a adequada, proporcional e necessária ao caso em análise, ainda que tenham de existir as referidas modificações de facto e qualificação jurídica, na medida em que não podemos olvidar, além do mais, que a arguida:

- cometeu, com dolo direto, dois crimes graves de abuso de confiança qualificada, previsto e punido pelo artigo 205 n.º4 alínea a) do CP e burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218 n.º2 alínea a) do CP;

- não demonstrou arrependimento;

- não devolveu qualquer quantia; e

- provocou sofrimento à sua mãe, idosa, no final da sua vida, que se viu desapossada das suas poupanças.

13. Por fim, auferindo a arguida mais de 1 300€ mensais e não sendo incapaz, tem, necessariamente, capacidade para, durante 3 anos e 6 meses, pagar/devolver a quantia de 6 000€ aos lesados naquele período, já que tal montante, diluído por aquele período, corresponde a uma mensalidade suportável de 142,86€.

14. Neste sentido, a condição de suspensão fixada pelo Tribunal a Quo é proporcional e adequada ao caso, pelo que há um juízo de prognose favorável ao cumprimento, pela arguida, dessa condição.»

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso, em razão de a sentença não conter como deveria, de modo suficiente e inteligível, a apreciação crítica da prova (artigos 374.º, § 2.º e 379.º, § 1.º, al. a) e 2.º CPP).

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2.º do CPP, nada mais se acrescentou.

6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

A. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (1).

Sendo as questões a examinar neste caso as seguintes:

a. Nulidades da sentença:

i) por não indicação das conclusões da contestação (disposições conjugadas dos artigos 379.º, § 1.º, alínea a) e 374.º, § 1.º, al. d) CPP);

ii) por preterição da análise crítica da prova (o tribunal limitou-se a enunciar os meios de prova sem fundamentar o modo como formou a sua convicção com base neles relativamente aos factos que julgou provados) - (disposições conjugadas dos artigos 379.º, § 1.º, alínea a) e 374.º, § 2.º CPP);

b. Erro de julgamento de facto: a prova constante dos autos e produzida na audiência não permite concluir como consta do acervo dos factos provados e dos não provados na sentença (artigo 412º, § 3.º e 4.º CPP);

c. Erro de julgamento de direito (artigo 412.º, § 2.º CPP):

i) os factos não permitem concluir pela comissão pela arguida dos crimes de abuso de confiança e de burla;

ii) a pena é desproporcionada, sendo ilegal a condição estabelecida para a suspensão da execução da pena.

B. A sentença recorrida

B.1. Na sentença recorrida, o tribunal a quo fez constar o seguinte quanto a factos provados, factos não provados e motivação da decisão de facto (transcrição) (2) :

«1. A arguida é filha de MLR.

2. MLR nasceu no dia … (e faleceu no dia …).

3. No dia 18 de agosto de 1994, no Balcão de … do Banco … (atualmente …), MLR e a arguida procederam à abertura de uma conta bancária à ordem solidária com o n.º …, junto do Banco …, com dinheiro de propriedade exclusiva de MLR.

4. Ambas acordaram que, a partir da referida data, MLR usaria a aludida conta para guardar todas as suas poupanças e receberia ali, mensalmente, o montante de pensão de reforma e viuvez que era titular.

5. Enquanto a arguida, por ser jovem e letrada, ficava encarregue de auxiliar MLR a efetuar movimentos e pagamentos, ficando apenas autorizada a fazê-lo quando aquela o pedisse ou necessitasse, nomeadamente para pagamento de despesas desta.

6. Donde, a partir daquela data, a arguida figurou como segunda titular da aludida conta, ficando apenas autorizada a dispor, nas referidas condições, dos valores que ali seriam depositados por MLR.

7. No dia 26-10-2006, no Balcão de …, a arguida MRRF, enquanto segunda titular da conta, solicitou um cartão de multibanco e o acesso ao cartão MB net para poder efetuar transações via internet.

8. Com o que o … lhe facultou um cartão multibanco e o respetivo acesso on-line à conta de depósitos ….

9. Na mesma ocasião, a pedido subscrito pela arguida, o … procedeu à abertura da conta poupança n.º …, associada à aludida conta de depósitos ….

10. A arguida fê-lo sem dar conhecimento a MLR, com o desiderato de se apropriar de dinheiro daquela conta titulada por sua mãe, sem que esta a detetasse.

11. Entre o mês de novembro de 2009 e o mês de agosto de 2012, a arguida deslocou-se habitualmente à casa que tinha na Rua …, …, enquanto MLR residiu habitualmente em …,

12. Neste circunstancialismo, com periodicidade mensal, o Centro Nacional de Pensões depositou a pensão de reforma titulada pela mãe da arguida, na conta de depósitos ….

13. Entre o dia 12-11-2009 e o dia 17 de outubro de 2010, aproveitando-se de ter livre acesso à mesma, a arguida foi transferindo parte daquelas quantias para a sua conta poupança …num total de 3 200€ (nos dias e montantes mencionados na tabela referida na acusação, que se considera reproduzida), posteriores ao recebimento da aludida pensão de reforma titulada por MLR.

14. Com o mesmo desiderato, no dia 2-2-2010, num Balcão do Banco …, em local não concretamente apurado, a arguida levantou a quantia de 1 000€ em numerário da conta…

15. No dia 5-2-2010, num Balcão do Banco …, em local não concretamente apurado, a arguida levantou a quantia de €500,00 em numerário da conta ….

16. E no dia 11-2-2010, num Balcão do Banco …, em local não concretamente apurado, a arguida levantou a quantia de €700,00 em numerário da conta …, apoderando-se da mesma.

17. A par, entre o dia 24-7-2010 e o dia 31-12-2012, sempre nos concelhos de … e …, com recurso ao cartão de multibanco da aludida conta, a arguida ou alguém a seu mando, levantou um total de 13 610€ (nos dias e montantes mencionados na tabela referida na acusação, que se considera reproduzida), sempre seguidos ao recebimento da mensalidade da reforma titulada por MLR.

18. Desta forma, entre 12-11-2009 e 12-12-2012, através dos levantamentos em numerário e transferências diretas para a conta por criada, a arguida assenhoreou-se de quantias totais cifradas em 19 000€.

19. Fazendo-as seus.

20. Sem nunca dar conhecimento a MLR.

21. A par, entre 29-8-2003 e 24-7-2009, MLR subscreveu vários planos de poupança de reforma associados à aludida conta, com dinheiro da sua exclusiva pertença e propriedade, nomeadamente os seguintes:

a) No dia 29-8-2003, o PPR/e NB garantido II n.º …, que, em 31.11-2009 apresentava o saldo de 16 712,95€;

b) No dia 26-10-2006, o NB PPR Garantido n.º …, que, em 31-11-2009 apresentava o saldo de 7 983,23€; e,

c) No dia 24-7-2009 O PPR Super Inv 2009 n.º…, que, em 31-11-2009, apresentava o saldo de 2 996,77€. No mesmo período, MLR era titular de um fundo de capitalização associado à aludida conta.

22. Para levantamento- “resgate”- das aludidas quantias era necessária a autorização e assinatura de MLR, como a arguida bem sabia.

23. Donde a arguida engendrou um esquema para levantar as quantias ali inscritas.

24. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o dia 14-11-2009 e o dia 16-11-2009, num Balcão do …, em local não apurado, a arguida solicitou o resgate da quantia associada ao aludido fundo de capitalização associado à conta n.º ….

25. Para tanto, apôs - ou mandou apor- a assinatura de MLR no campo “titular” do requerimento e disponibilizou-o ali.

26. Donde, no dia 17-11-2011, aquele montante ficou disponibilizado na referida conta.

27. E no dia 19-11-2009, a arguida efetuou duas transferências nos valores de 4 270€ e 1 400€ para a conta n.º …, titulada por CMSC, e movimentada por MBMA, sua amiga.

28. Após, no dia 1-12-2009, em localidade não apurada, ao Balcão do …, de forma não apurada, a arguida solicitou o resgate parcial do PPR acima referido em 19.º a).

29. Para tanto, apôs - ou mandou apor - a assinatura de MLR no campo do titular/tomador de seguro do escrito denominado “pedido de resgate” e entregou-o ali.

30. Em consequência, os responsáveis do Banco disponibilizaram a quantia de 13 919,83€ na referida conta de depósitos º ….

31. No dia 9.12.2009, a arguida transferiu o valor de 14 000€ daquela conta para a conta n.º …, titulada por CMSC, e movimentada por MBMA, sua amiga.

32. No dia 16-12-2009, em localidade não apurada, ao Balcão do …, de forma não apurada, a arguida pediu o resgate do remanescente do PPR acima referido em 19.º A).

33. Na mesma ocasião, pediu o resgate total do PPR n.º …, acima referido em 19.º B).

34. Para tanto, apôs- ou mandou apor- a assinatura de MLR nos campos titular/tomador de seguro dos dois escritos denominados “pedidos de resgate” e entregou-os ali.

35. Em consequência, no dia 18.12.2009, os responsáveis do Banco disponibilizaram as quantias de 2 688,82€ e 7 911,42€, respetivamente, na conta º ….

36. No dia 21-12-2009, a arguida transferiu o valor de 10 000€ daquela conta para a conta n.º …, titulada por CMSC e movimentada pela sua amiga MBMA.

37. No dia 17-2-2010, em local não apurado, de forma não apurada, solicitou o resgate do remanescente do PPR Super Inv 2009 n.º…, acima referido em 19.º C).

38. Para tanto, a arguida- ou pessoa a seu mando- apôs a assinatura de MLR no campo do tomador de seguro e entregou-o no Balcão do … da cidade de ….

39. Em consequência, no 19-2-2010, os responsáveis do Banco disponibilizaram a quantia de 2 914,45€, na conta de depósitos º ….

40. No dia 26-02-2010 através de internet- sistema …- a arguida efetuou duas transferências, no montante global de 1 000€, daquela conta para a conta n.º …, titulada por CMSC, e movimentada por MBMA, sua amiga.

41. No dia 01-03-2010, da mesma forma, efetuou transferência no valor de 500€, para aquela conta.

42. E no dia 5-03-2010, da mesma forma, efetuou nova transferência no valor de 1 229€ para a aludida conta, movimentada por MA.

43. Todas as transferências acima efetuadas pela arguida para a conta de CC e MA, no montante global de 32 399€, foram realizadas para levantamentos em numerário e compras em seu proveito e por si autorizados.

44. Daí que, por exemplo, no dia 25-8-2011, a arguida dispôs de parte daquele dinheiro, pertença de MLR e transferido para CC – 7 000€ - em numerário- para pagar o contrato de aluguer por si celebrado com Banco …, respeitante ao uso do veículo de matrícula n.º…, pelo período de 84 meses (contrato n.º …)

45. A arguida sabia que MLR nunca autorizou ou teve conhecimento dos aludidos resgates.

46. A arguida convenceu, assim, sempre os responsáveis do … que a sua mãe havia autorizado aqueles resgates e transferências, o que sabia ser falso.

47. Deste modo, os resgates por si realizados e consequentes apropriações, acima elencada de 19.º a 42.º, causaram, direta e necessariamente, a MLR-, um prejuízo no valor de 32 399€.

48. E permitiram que, necessariamente, se locupletasse, como locupletou, nos referidos montantes, o que sempre quis e desejou.

49. Sabia, ainda, que a assinatura “MLR”, aposta nos requerimentos acima identificados, eram inverídicas, uma vez que não tinha sido assinados por esta nem eram do seu conhecimento.

50. Com o que a arguida pôs em causa a fé pública que merecem os documentos bancários, mormente associados aos planos de poupança reforma e fundos de capitalização, prejudicando, ainda, o Estado.

51. A arguida só deixou de praticar os factos em 12-12-2012.

52. Com a prática dos factos acima discriminados em 1.º a 48.º, a arguida provocou, assim, um empobrecimento patrimonial total à idosa, sua mãe, MLR no valor total de 51 409€, deixando a aludida conta com um saldo total de 5,38€.

53. A arguida nunca se mostrou disponível para devolver aquelas quantias a MLR ou, desde o falecimento desta ocorrido a …, aos seus irmãos MCRF e MRF, únicos herdeiros.

54. A arguida agiu, assim, sempre de forma livre, voluntária e deliberada.

55. Sabia que as quantias acima aludidas não lhe pertenciam e que agia contra a vontade da dona das mesmas: MLR.

56. Aproveitou, assim, a oportunidade favorável à prática dos factos acima discriminados, por não ter sido alvo de qualquer controlo ou fiscalização pela sua mãe após a prática dos primeiros factos, pelo que persistiram as possibilidades de repetir todas aquelas condutas.

57. Sabia ainda que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mais se provou que:

58. A arguida vive no … e aufere £682,10 quinzenalmente, como empregada de mesa.

59. Vive em casa arrendada, com uma amiga, cuja renda corresponde a £1 200 mensais, a que acresce taxa de resíduos sólidos no valor de cerca de £149mensais, despesas que divide com a referida amiga.

60. Vive com a filha R, que sofre de diversos problemas de saúde, nomeadamente do foro psiquiátrico, e é acompanhada em …, tendo sido internada, nos cuidados intensivos do …em 2 de outubro de 2020.

61. A arguida não tem antecedentes criminais.

Factos não provados

Nada mais se provou, com interesse para a decisão da causa, designadamente que:

I. Entre o mês de novembro de 2009 e o mês de agosto de 2012, a arguida residiu habitualmente na Rua …, ….

II. O valor da pensão da ofendida era de 890€ mensais.

III. Foi a arguida que, pessoalmente atuou como descrito em 17.

Da contestação não se provou que:

IV. A arguida e a ofendida, sua mãe eram titulares da conta … desde 1994 e em 2006, associaram a esta conta, uma conta poupança com o número ….

V. A falecida ofendida vivia em … com a ora arguida, por isso, não é verdade que desconhecesse os movimentos das contas bancárias, tanto mais que era com o dinheiro depositado nessas contas que a ofendida fazia face às suas despesas do dia-a-dia.

VI. A reforma titulada pela mãe da arguida era de 451,06€ por mês, até dezembro de 2011,

VII. E de 456,63€ a partir de janeiro de 2012 até dezembro de 2012.

VIII. A arguida não transferiu montantes para a conta poupança no valor de 3 200€, já que se tratava de uma conta associada, portanto com as mesmas titulares e, como tal, as transferências eram automáticas entre as duas contas e os montantes em causa transitavam de uma conta para outra.

IX. Em 26/02/2010, a arguida não transferiu 1 000€ para a conta titulada por CC mas 500€.

X. Dos mesmos extratos não consta qualquer transferência para CC, no valor de 7 000€, constando sim um depósito de numerário nesse montante e o pagamento de serviços nesse valor.

XI. A arguida não apôs ou mandou apor qualquer assinatura da sua mãe em qualquer pedido de resgate, foi sempre a sua mãe quem assinou os documentos necessários e fê-lo de livre vontade.

Motivação

Quanto aos elementos objetivos dos tipos de ilícito, o Tribunal fundou a sua convicção com base do teor do auto de denúncia de fls. 2 a 4; a cópia de pedido de resgate de fls. 6 e 10; os extratos bancários constantes do anexo, de fls. 74 a 138; as informações bancárias do … com fichas de assinaturas, subscrições de contratos, registos de pagamento SIBS, pedidos de resgates e talões de levantamento, de fls. 49 a 61 e 181, 270 a 282, 327 a 391; a informação do banco … e a cópia do contrato de aluguer a que se faz referência no facto 43.º, de fls. 409 a 418; e a informação do Banco … com extratos referente à conta … de fls. 466, 467 e 492 a 499, com talões de levantamento de fls. 618 a 620. Do teor destes documentos resulta a intervenção da arguida nas transferências de numerário e operações bancárias em causa.

Em conjugação, foram ponderados os depoimentos da testemunha MLR, ofendida, lido ao abrigo do disposto no artigo 356.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, atento o seu falecimento, que assegurou não ter autorizado as referidas operações bancárias; MCRF e MRF, filhos da ofendida e irmãos da arguida, que explicaram o modo como detetaram os movimentos bancários em causa e a respetiva autoria, bem como elencaram as diligências que levaram a cabo para resolver a situação. Mais explicaram o motivo pelo qual a conta foi aberta e a finalidade para a qual era usada pela ofendida. As indicadas testemunhas depuseram de forma espontânea e objetiva, unânime e inequívoca, com conhecimento direto dos factos, merecendo, por isso, a credibilidade do Tribunal. Mais esclareceram a forma “não surpreendida” como a arguida reagiu à notícia do “desaparecimento” do dinheiro da conta de que era titular em conjunto com a ofendida.

Mais se ponderou o teor do depoimento das testemunhas CMSC e MBMA, amigos da arguida, para quem a mesma fez transferências bancárias a partir da conta em causa, que esclareceram as circunstâncias e motivos pelos quais tal aconteceu, bem como indicaram o valor em causa.

As condições económicas da arguida decorrem dos documentos pela mesma juntos em 17.11.2020, que o comprovam.

No que diz respeito aos antecedentes criminais, teve-se em atenção o certificado de registo criminal junto aos autos.

Quanto aos factos não provados, os mesmos resultaram da ausência de prova(não tendo sido juntos elementos de prova que o sustentem), não obstante o print da segurança social de fls.173 em que consta a morada da arguida em … (pesquisa do dia 07.01.2015), pois que, pelas testemunhas, seus irmãos, foi dito que a mesma reside em … desde antes do ano 2000, sendo que, no entanto, tem casa em … e aí se desloca com frequência (tal como confirmaram os amigos CMC e MA, residentes no …).

Os factos não provados constantes da contestação decorrem da prova dos factos constantes da acusação, nos termos supra expostos, dos quais importa a resposta não provado a factualidade que constitui o respetivo oposto.»

C. Apreciando

1. Das nulidades

1.1 Não indicação das conclusões da contestação

Sustenta a recorrente que no relatório da sentença recorrida não é feita qualquer menção às conclusões da contestação, o que nos termos do disposto no artigo 379.º, § 1.º, al. a) e 374.º, § 2.º e 3.º, al. b) do CPP torna nula a sentença.

Mas não tem razão.

A respeito dos requisitos da sentença dispõe-se na al. d) do § 1.º do artigo 374.º CPP que o relatório da sentença deverá conter a indicação sumária «das conclusões contidas na contestação», se esta tiver sido apresentada.

Na circunstância do presente caso a arguida apresentou contestação e arrolou 4 testemunhas.

A sentença recorrida faz menção a essa apresentação de contestação e rol de testemunhas, mas nada mais.

Sucede que a contestação apresentada não indica ela própria as suas conclusões.

De todo o modo, contrariamente ao que alega a recorrente, a considerar-se existente a apontada omissão isso nunca constituiria a invalidade que lhe vem apontada, porquanto «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei.» E «nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular» (artigo 118.º, § 1.º e 2.º CPP)

A nulidade da sentença só ocorre nos casos previstos no artigo 379.º CPP, no qual se não contém a referida al. d) do § 1.º do artigo 374.º CPP, pelo que, a haver alguma irregularidade, por a mesma não ter sido reclamada no prazo previsto no artigo 123.º, § 1.º CPP, encontra-se sanada.

Termos em que improcede este fundamento do recurso.

1.2 Preterição da análise crítica da prova

Decorre do disposto no § 2.º do artigo 374.º CPP, a propósito dos requisitos da sentença penal, que esta contém, necessariamente, três partes:

- a primeira destinada ao relatório (contendo a identificação do arguido, do assistente das partes civis, a indicação dos crimes imputados e uma súmula das conclusões da contestação);

- a segunda respeita à fundamentação (na qual se enumeram os factos – provados e não provados – e os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal;

- e a terceira é reservada ao dispositivo, contendo a decisão, as normas aplicáveis e outras determinações.

Nos termos do disposto no artigo 379.º, § 1.º, al. a) do CPP, se a sentença não contiver as menções referidas no § 2.º do artigo 374.º CPP, será nula.

A sentença recorrida evidencia estes três segmentos: contém um breve um relatório; uma enumeração dos factos provados e não provados, com (sumária) fundamentação com referência às bases probatórias em que assentaram os juízos que permitiram a seleção factológica (provada e não provada) e uma breve fundamentação jurídica demonstrativa da comissão dos ilícitos e das penas que lhes devem corresponder; e depois um dispositivo onde se indicam os crimes cometidos e as penas concretas aplicadas.

Tem razão a recorrente quando reclama perante o que considera ser uma insuficiência de motivação da decisão de facto.

O exame crítico das provas (3) exige, não apenas que se indiquem os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova produzidos ou apresentados em audiência.

Esse dever pressupõe que se motive, de modo sucinto embora, mas claro, o modo como se formou a convicção do julgador, de molde a permitir «ao arguido, aos demais intervenientes processuais e à comunidade em geral, uma completa compreensão das razões que motivaram a decisão proferida, das razões pelas quais só aquela decisão e não outra poderia ter sido tomada, para que demonstre, em suma, que a decisão não foi tomada de forma arbitrária» (4).

Sendo indubitável que este segmento da sentença evidencia algumas deficiências, pois podia (e deveria) ser mais detalhado e explicativo (se o tivesse sido, evitaria alguns erros sobre os quais adiante nos deteremos) (5), contudo, não pode dizer-se que seja inexistente, nem (muito menos), impeditivo de um cabal escrutínio do decidido, como bem se demonstra nos termos da estruturação do recurso e da resposta ao mesmo.

A prova está documentada nos autos e por isso disponível para permitir o devido escrutínio. Pelo que também improcede este segmento do recurso.

2. Erro de julgamento de facto

Alega a recorrente a existência de erro de julgamento da matéria de facto, reportando-se à chamada impugnação ampla (412.º, § 3.º CPP). Este erro de julgamento ocorre quando o Tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova (pelo que deveria ter sido considerado não provado); ou quando dê como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta modalidade de impugnação da matéria de facto a reapreciação a realizar pelo Tribunal ad quem não se circunscreve ao texto da sentença, antes se alargando à análise da prova produzida em audiência, nomeadamente através da audição das declarações e depoimentos gravados, e na demais que conste dos autos e sobre a qual tenha incidido o necessário contraditório.

Esta reapreciação da matéria de facto, contudo, não se confunde com um novo julgamento, pois o recurso é um «remédio jurídico» que giza colmatar erros de julgamento, despistando ou corrigindo, cirurgicamente, eventuais erros in judicando (por violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (por violação de normas de direito processual).

Neste contexto não é suficiente a alegação e demonstração de uma mera divergência de convicção face à formada pelo julgador (pretendendo-se com isso sobrepor a convicção do recorrente à que foi formada por um julgador imparcial). Pois a Constituição e a lei atribuem ao tribunal – e só ao tribunal – o poder de apreciar, livre e imparcialmente, as provas; com o concomitante dever de motivar a sua convicção segundo parâmetros racionais controláveis (artigo 127.º CPP), impondo-se-lhe, para garantia de direitos fundamentais, o limite decorrente do princípio in dubio pro reo (por força do qual só poderá julgar provado facto desfavorável ao acusado quando tal demonstração se evidencie para além de toda a dúvida razoável).

O recorrente, por seu turno, tem o ónus de indicar a decisão de facto alternativa à que consta da decisão recorrida, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe a razão pela qual deveria o Tribunal recorrido ter decidido de modo diferente. E, isso mesmo, em boa medida, é o que sucede no presente caso.

A impugnante assinala como estando mal julgados os factos dos seguintes pontos: 13, 17, 18, 23, 25, 26, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 37, 38, 39, 40, 43, 44, 45, 46, 47, 49, 52 e ainda os IV, VI, VII, VIII e X (não provados), por considerar que o que naqueles se afirma não tem base nos documentos em que pretensamente se arrima, tendo-os estes.

Vejamos, então.

Comecemos por assinalar que as provas disponíveis se contêm no extenso acervo documental relativo à abertura das contas DO (depósitos à ordem) e contas de poupança ou outras aplicações financeiras da queixosa e movimentos dessas contas; e também da conta DO de CMSC (movimentada igualmente por MBMA, amiga da arguida). Mas também nas declarações prestadas na fase de inquérito pela queixosa (fls. 41/42), entretanto falecida, que foram lidas em audiência nos termos permitidos pelo artigo 356.º, § 4.º CPP. E nos depoimentos testemunhais de MCRF e MRF (irmãos da arguida), bem como de CMSC e MBMA.

Relativamente ao ponto 13: a conta poupança n.º … é titulada pela queixosa e está associada à conta DO n.º …, com a mesma titularidade, em conformidade, aliás, com o que se refere no ponto 9 e se demonstra documentalmente a fls. 181, pelo que o afirmado em 13, na medida em que tal frontalmente contraria, deve considerar-se não provado.

Ponto 17: os extratos dos movimentos da conta em causa mostram apenas que entre os dias 24/7/2010 e 31/12/2012 se procedeu a levantamentos que somam 13 610€ e como tais levantamentos só podem ter sido feitos pela arguida, uma vez que apenas ela mobilizava o cartão multibanco dessa conta (cf. depoimento da queixosa), prova-se apenas que: «Entre os dias 24-7-2010 e 31-12-2012, a arguida procedeu a levantamentos, com recurso ao cartão de multibanco da aludida conta, que somam de 13 610€», sendo este o teor que passará a ter o ponto 17.º.

Ponto 18: arredados que foram, pelos motivos referidos, os montantes que se aludiam em 13, este ponto 18 tem de corrigir-se quanto ao valor, que terá de corresponder à soma das parcelas contidas nos pontos 14, 15, 16 e 17, isto é: 15 810€. Mas também relativamente à menção a uma alegada transferência (mas para que conta? De quem? Quando? Quanto?).

Pontos 23, 25, 26, 29, 34, 38 e 49: no ponto 23 alude-se de modo vago a «um esquema» que a arguida teria urdido, sem que se precise qual seria! Como assim tal não deverá manter-se nos factos provados. O mesmo se tem de dizer relativamente às repetidas afirmações (nos demais pontos) de que a arguida teria aposto ou mandado apor a assinatura da sua mãe nos documentos ordinatórios dos resgates. Ora, disso, não há rigorosamente nenhuma prova. Há apenas a suspeita de que assim possa ter sido. Mas esse nem sequer é o único modo que justificará a presença das assinaturas da queixosa nos documentos de resgate. Esta poderá ser mesmo a autora das assinaturas, tendo-as firmado umas vezes porque o queria fazer (as testemunhas filhos dela referiram que por vezes ela ordenava que se fizessem levantamentos das contas dela); e outras vezes porque poderá ter sido levada a pensar estar a assinar renovações das aplicações ou outras operações respeitantes às suas poupanças. Não há prova rigorosamente nenhuma de como as coisas se terão passado. O que se sabe é que os documentos contêm a assinatura da queixosa, assinatura essa que nunca suscitou qualquer dúvida ao banco (caso em que não teria realizado as operações assim tituladas). Pelo que os pontos em que se fazem estas menções têm de ser considerados não provados.

Pontos 28, 33, 37: contêm lapso de escrita evidente, que imporá corrigir: as remissões feitas para o ponto 19. referem-se na verdade às constantes no ponto 21. Consideram-se, pois, as mesmas ali feitas em conformidade com o que ora se deixa referido.

Pontos 30 e 31: os estratos bancários constantes dos autos referem as transferências que se aludidas nestes pontos, não apresentando a recorrente qualquer outra prova que tal possa infirmar. Pelo que nada há a alterar relativamente a estes pontos.

Ponto 39: contém (mais) um erro de escrita. Revela a documentação bancária (fls. 359 vs.) que o valor correto é de 2 974,45€ (e não 2 914,45€, conforme se escreveu na sentença). Considera-se, pois, corrigido o valor em conformidade com o que ora se deixa referido.

Ponto 40: refere-se neste ponto (mais uma vez por lapso de escrita) a realização de duas transferências de 500€ cada uma; porém o extrato de fls. 359 vs. revela que no dia 26/2/2010 se realizou apenas uma transferência, no valor de 500€. Fica a correção feita.

Ponto 43: neste ponto procede-se à soma das parcelas (pontos 27, 31, 36, 40, 41 e 42) para afirmar o valor total das transferências feitas para a conta DO de CC. As correções feitas ao ponto 40 impõem que neste ponto se afirme o valor total de 31 899€.

Ponto 44: a redação deste ponto é pouco feliz, mas lido com cuidado, levando-se em conta o que vem dito de trás (nomeadamente do ponto 43.), percebe-se que ali não se está a referir-se a qualquer transferência para a conta de CC (muito menos uma «transferência de numerário», conforme refere a recorrente, por as transferências serem sempre de valores e não de numerário), antes a um levantamento de 7 000€. A parte relevante deste ponto é a demonstração de a arguida estar a dispor de dinheiro da conta de CC como se fora seu (em resultado das transferências que foi fazendo para a mesma), pois destinou-o ao pagamento de um crédito seu no banco … (conforme mostra a documentação).

Pontos 45, 46 e 47: trata-se de factos relativos ao dolo da arguida, os quais se inferem dos factos objetivos por ela realizados. E não há dúvida que a arguida se quis apropriar de dinheiro pertencente à sua mãe e logrou fazê-lo do modo que está descrito nos demais factos assentes.

Ponto 52: Trata-se de um facto síntese para afirmar a dimensão do prejuízo causado pela arguida à queixosa. O valor correto, depois de somadas as parcelas é de 47 709€ (soma dos levantamentos em numerário, no montante de 15 810€ - cf. ponto 20 da nova ordenação [infra] + 31 899€ de transferências para conta de CC cf. ponto 38 na nova ordenação [infra]), sendo esse que ficará assente.

Os pontos IV, VI, VII dos «factos não provados» deverão integrar o acervo dos factos provados, na medida em que a sua demonstração se mostra efetuada pelo teor dos documentos de fls. 343/345 (contrato) e 352/391 (extratos de conta).

Já o mesmo não acontecendo com o ponto VIII, por ser um facto conclusivo e que se não mostra corroborado por nenhum meio de prova (por isso mesmo a recorrente não indica qualquer base probatória).

E a factualidade relevante do ponto X foi incluída na nova redação do ponto 44.

O facto narrado no ponto 10 deverá considerar-se não provado, por nele se afirmarem intenções contraditórias. Pretendendo apropriar-se do dinheiro que está na conta de depósitos à ordem, sobre a qual tem inteira liberdade de movimento, carecerá de sentido constituir uma conta poupança em nome da queixosa, para cuja desmobilização se precisará sempre da assinatura dela!

Em resultado do que vem sendo exposto conclui-se que a impugnação factológica feita pela arguida/recorrente procede e improcede nos termos sobreditos.

Por razões de clareza expositiva, em sequência da motivação exposta, apresenta-se a matéria de facto provada com as correções efetuadas:

1. MLR nasceu no dia … (e faleceu no dia …). (antigo ponto 2)

2. A arguida é filha de MLR. (antigo ponto 1)

3. No dia 18/6/1994, no Balcão de … do Banco … (atualmente …), MLR e a arguida procederam à abertura de uma conta bancária de depósitos à ordem, solidária, com o n.º… junto do Banco …, com dinheiro de propriedade exclusiva de MLR. (antigo ponto 3)

4. Ambas acordaram que, a partir da referida data, MLR usaria a aludida conta para guardar todas as suas poupanças e receberia ali, mensalmente, o montante de pensão de reforma e viuvez de que era titular. (antigo ponto 4)

5. Enquanto a arguida, por ser jovem e letrada, ficava encarregue de auxiliar MLR a efetuar movimentos e pagamentos, ficando apenas autorizada a fazê-lo quando aquela o pedisse ou necessitasse, nomeadamente para pagamento de despesas desta. (antigo ponto 5)

6. Donde, a partir daquela data, a arguida figurou como segunda titular da aludida conta, ficando apenas autorizada a dispor, nas referidas condições, dos valores que ali seriam depositados por MLR. (antigo ponto 6)

7. Neste circunstancialismo, com periodicidade mensal, o Centro Nacional de Pensões depositou a pensão de reforma titulada pela mãe da arguida, na conta de depósitos n.º …. (antigo ponto 12)

8. A reforma titulada pela mãe da arguida era de 451,06€ por mês, até dezembro de 2011 (proveniente do ponto VI dos factos não provados da sentença recorrida). (provém do ponto VI dos factos não provados da sentença recorrida).

9. E de 456,63€ a partir de janeiro de 2012 até dezembro de 2012. (proveniente do ponto VII dos factos não provados da sentença recorrida). (provém do ponto IV dos factos não provados da sentença recorrida)

10. Em 2006 foi constituída uma conta poupança com o número …, associada à referida conta de depósitos à ordem. (provém do ponto IV dos factos não provados da sentença recorrida).

11. No dia 26/10/2006, no Balcão de …, a arguida MRRF, enquanto segunda titular da conta, solicitou um cartão de multibanco e o acesso ao cartão MB net para poder efetuar transações via internet. (antigo ponto 7)

12. Com o que o … lhe facultou um cartão multibanco e o respetivo acesso on-line à conta de depósitos n.º …. (antigo ponto 8)

13. Na mesma ocasião, a pedido subscrito pela arguida, o … procedeu à abertura da conta poupança n.º …, associada à aludida conta de depósitos n.º …. (antigo ponto 9)

14. Entre o mês de novembro de 2009 e o mês de agosto de 2012, a arguida deslocou-se habitualmente à casa que tinha na Rua …, …, enquanto MLR residiu habitualmente em …, …. (antigo ponto 11)

15. No dia 2/2/2010, num Balcão do Banco …, em local não concretamente apurado, a arguida levantou a quantia de 1 000€ em numerário da conta …. (antigo ponto 14)

16. No dia 5/2/2010, num Balcão do Banco …, em local não concretamente apurado, a arguida levantou a quantia de 500€ em numerário da conta …. (antigo ponto 15)

17. E no dia 11/2/2010, num Balcão do Banco …, em local não concretamente apurado, a arguida levantou a quantia de 700€ em numerário da conta …, apoderando-se da mesma. (antigo ponto 16)

18. Entre os dias 24/7/2010 e 31/12/2012, a arguida procedeu a levantamentos, com recurso ao cartão de multibanco da aludida conta, que somam de 13 610€. (antigo ponto 17)

19. Desta forma, entre 12/11/2009 e 12/12/2012, através dos levantamentos em numerário, a arguida assenhoreou-se de quantias totais cifradas em 15 810€, fazendo-os seus. (antigos pontos 18 e 19)

20. Sem nunca dar conhecimento a MLR. (antigo ponto 20)

21. A par, entre 29/8/2003 e 24/7/2009, MLR subscreveu vários planos de poupança de reforma associados à aludida conta, com dinheiro da sua exclusiva pertença e propriedade, nomeadamente os seguintes:

a) No dia 29/8/2003, o PPR/e NB garantido II n.º …, que, em 31-11-2009 apresentava o saldo de 16 712,95€;

b) No dia 26/10/2006, o NB PPR Garantido n.º …, que, em 31-11-2009 apresentava o saldo de 7 983,23€; e,

c) No dia 24/7/2009 O PPR Super Inv 2009 n.º …, que, em 31-11-2009, apresentava o saldo de 2 996,77€. No mesmo período, MLR era titular de um fundo de capitalização associado à aludida conta. (antigo ponto 21)

22. Para levantamento - “resgate” - das aludidas quantias era necessária a autorização e assinatura de MLR, como a arguida bem sabia. (antigo ponto 22)

23. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o dia 14/11/2009 e o dia 16/11/2009, num Balcão do …, em local não apurado, a arguida solicitou o resgate da quantia associada ao aludido fundo de capitalização associado à conta n.º ….

24. E no dia 19/11/2009, a arguida efetuou duas transferências nos valores de 4 270€ e 1 400€ para a conta n.º …, titulada por CMSC, e movimentada por MBMA, sua amiga. (antigo ponto 27)

25. Após, no dia 1/12/2009, em localidade não apurada, ao Balcão do …, de forma não apurada, a arguida solicitou o resgate parcial do PPR acima referido em 22.º a). (antigo ponto 28)

26. Em consequência, os responsáveis do Banco disponibilizaram a quantia de 13 919,83€ na referida conta de depósitos nº …. (antigo ponto 30)

27. No dia 9/12/2009, a arguida transferiu o valor de 14 000€ daquela conta para a conta n.º …, titulada por CMSC, e movimentada por MBMA, sua amiga. (antigo ponto 31)

28. No dia 16/12/2009, em localidade não apurada, ao Balcão do …, de forma não apurada, a arguida pediu o resgate do remanescente do PPR acima referido em 21.º a). (antigo ponto 32)

29. Na mesma ocasião, pediu o resgate total do PPR n.º …, acima referido em 21.º b). (antigo ponto 33)

30. Em consequência, no dia 18/12/2009, os responsáveis do Banco disponibilizaram as quantias de 2 688,82€ e 7 911,42€, respetivamente, na conta n.º …. (antigo ponto 35)

31. No dia 21/12/2009, a arguida transferiu o valor de 10 000€ daquela conta para a conta n.º …, titulada por CMSC e movimentada pela sua amiga MBMA. (antigo ponto 36)

32. No dia 17/2/2010, em local não apurado, de forma não apurada, solicitou o resgate do remanescente do PPR Super Inv 2009 n.º…, acima referido em 21.º c). (antigo ponto 37)

33. Em consequência, no 19/2/2010, os responsáveis do Banco disponibilizaram a quantia de 2 974,45€, na conta de depósitos n.º …. (antigo ponto 39)

34. No dia 26/2/2010 através de internet - sistema …- a arguida efetuou uma transferência, no montante de 500€, daquela conta para a n.º …, titulada por CMSC e movimentada por MBMA, sua amiga. (antigo ponto 40)

35. No dia 1/3/2010, da mesma forma, efetuou transferência no valor de 500€, para aquela conta. (antigo ponto 41)

36. E no dia 5/3/2010, da mesma forma, efetuou nova transferência no valor de 1 229€ para a aludida conta, movimentada por MA. (antigo ponto 42)

37. Todos as transferências acima efetuadas pela arguida para a conta de CC e MA, no montante global de 31 899€, foram realizadas para levantamentos em numerário e compras em seu proveito e por si autorizados. (antigo ponto 43)

38. Daí que, por exemplo, no dia 25/8/2011, a arguida dispôs de parte daquele dinheiro, pertença de MLR e transferido para CC – 7 000€ - em numerário- para pagar o contrato de aluguer por si celebrado com Banco …, respeitante ao uso do veículo de matrícula n.º …, pelo período de 84 meses (contrato n.º …). (antigo ponto 44)

39. A arguida sabia que MLR nunca autorizou ou teve conhecimento dos aludidos resgates. (antigo ponto 45)

40. A arguida convenceu, assim, sempre os responsáveis do … que a sua mãe havia autorizado aqueles resgates e transferências, o que sabia ser falso. (antigo ponto 46)

41. Deste modo, os resgates por si realizados e consequentes apropriações, acima referidas, causaram, direta e necessariamente, a MLR, um prejuízo no valor de 32 399€. (antigo ponto 47)

42. E permitiram que se locupletasse, como locupletou, nos referidos montantes, o que sempre quis e desejou. (antigo ponto 48)

43. Com o que a arguida pôs em causa a fé pública que merecem os documentos bancários, mormente associados aos planos de poupança reforma e fundos de capitalização, prejudicando, ainda, o Estado. (antigo ponto 50)

44. A arguida só deixou de praticar os factos em 12/12/2012. (antigo ponto 51)

45. Com a prática dos factos acima discriminados, a arguida provocou, assim, um empobrecimento patrimonial total à idosa, sua mãe, MLR no valor total de 47 709€.

46. A arguida nunca se mostrou disponível para devolver aquelas quantias a MLR ou, desde o falecimento desta ocorrido a 29/11/2017, aos seus irmãos MCRF e MRF, únicos herdeiros. (antigo ponto 53)

47. A arguida agiu, assim, sempre de forma livre, voluntária e deliberada. (antigo ponto 54)

48. Sabia que as quantias acima aludidas não lhe pertenciam e que agia contra a vontade da dona das mesmas: MLR. (antigo ponto 55)

49. Aproveitou, assim, a oportunidade favorável à prática dos factos acima discriminados, por não ter sido alvo de qualquer controlo ou fiscalização pela sua mãe após a prática dos primeiros factos, pelo que persistiram as possibilidades de repetir todas aquelas condutas. (antigo ponto 56)

50. Sabia ainda que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. (antigo ponto 57)

Mais se provou que:

51. A arguida vive no … e aufere £682,10 quinzenalmente, como empregada de mesa. (antigo ponto 58)

52. Vive em casa arrendada, com uma amiga, cuja renda corresponde a £1 200 mensais, a que acresce taxa de resíduos sólidos no valor de cerca de £149mensais, despesas que divide com a referida amiga. (antigo ponto 59)

53. Vive com a filha R, que sofre de diversos problemas de saúde, nomeadamente do foro psiquiátrico, e é acompanhada em …, tendo sido internada, nos cuidados intensivos do …em 2 de outubro de 2020. (antigo ponto 60)

54. A arguida não tem antecedentes criminais. (antigo ponto 61)

3. Dos erros de direito

3.1 Da comissão dos crimes (em especial do crime de burla)

Considera a recorrente que a factualidade provada não permite concluir pela comissão do crime de burla, por não se ter demonstrado qualquer meio enganoso por ela utilizado, de molde a induzir em erro a ofendida e o banco.

Vejamos.

O crime de burla, previsto no artigo 217.º do Código Penal (CP) consiste num modo de captar o alheio, em que o agente, servindo-se do erro causado ou mantido através da sua conduta astuciosa, ou do engano prolongado pela omissão do dever de informar, através de uma falsa representação da realidade, insidiosamente, induz a vítima a dispor do seu património (ou de terceiros), causando-lhe(s) um prejuízo.

Os elementos objetivos e subjetivos deste ilícito vêm a ser:

- A indução de uma pessoa (o lesado e/ou burlado) em erro ou engano sobre factos;

- (erro ou engano) provocado com astúcia;

- de molde a determinar outrem à prática de atos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial;

- Com intenção de o agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.

A verificação da astúcia do burlão haverá de resultar dos atos concretos praticados por este, sejam eles as mentiras com as quais logrou uma falsa aparência de verdade, ou os que evidenciam a destreza empregue para enganar e/ou surpreender a boa-fé do burlado, levando-o a praticar os atos geradores do prejuízo do seu património ou de terceiro.

Tal poderá ser provocado por palavras, gestos ou atos a que socialmente se atribui um certo significado, como sucede nos casos em que o burlão refere factos falsos, ou omite (esconde) factos verdadeiros, pois trata-se de um processo enganatório, astucioso, gizado para a manipulação psíquica do burlado.

Importando referir que não haverá erro nem engano quando o queixoso não procedeu com a diligência mínima que é exigível.

Os factos provados mostram que a arguida sabia que a sua mãe (ofendida) nunca a autorizou a resgatar as poupanças, e que nem sequer teve conhecimento dos resgates efetuados. O que significa que não foi a sua mãe quem assinou as ordens de resgate (conforme asseverou no seu depoimento); ou pelo menos que o tenha feito com consciência do que estaria a realizar; já que só a arguida, sempre ela, foi quem apresentou as ordens de resgate ao banco.

Sendo a arguida cotitular da conta DO com sua mãe, pessoa já idosa; apresentando-se aquela no banco munida das ordens de resgate assinadas; sendo essas assinaturas semelhantes (e confirmadas por semelhança) com a da titular das poupanças, logrou convencer os agentes do banco de que a ordenante era a sua mãe.

Criou, pois, um estado de coisas, falso (porque a sua mãe não ordenou, efetivamente, nenhum resgate), que levou os funcionários bancários ao engano. Logrando, nas diversas ocasiões, que as poupanças caíssem na conta de depósitos à ordem, onde depois deitou mão à respetiva liquidez, que sabia não lhe pertencer, dela se apropriando do modo que está descrito, em prejuízo da ofendida (sua mãe).

Claro está que depois de o dinheiro cair na conta DO (feitos os resgates operava-se a transferência da conta aplicação respetiva para a conta DO), passava a estar ao seu alcance, na medida em que sendo cotitular daquela conta DO podia movimentá-la sem levantar suspeitas, o que efetivamente fez através de diversos levantamentos nas caixas de pagamento automático (com o cartão multibanco) ou através de transferências para conta de terceiro cujo acesso lhe foi permitido. E ao fazer os levantamentos ou transferências, de dinheiro proveniente da desmobilização das aplicações, invertendo o título da posse sobre tais quantias, consumava os crimes de burla, do mesmo passo que praticava crimes de abuso de confiança.

O crime de abuso de confiança (também designado por «furto impróprio»), previsto no artigo 205.º, § 1.º do Código Penal, ocorre quando há uma apropriação de «coisa móvel» que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade, em atropelo à confiança em que assentou a entrega da «coisa móvel».

Nas circunstâncias do caso presente a arguida tinha a posse legítima de dinheiro pertencente a sua mãe (legitimidade esta adveniente da cotitularidade da DO onde caiam os valores dos resgates). Verificando-se o crime quando fez suas as quantias, provenientes dos resgates efetuados.

Referem Hans-Heinrich Jeschek e Thomas Weigend (6), que o comportamento humano consiste numa série continuada de ações e omissões. O que implica dever definir-se a forma como tais ações devem ser divididas. Uma divisão meticulosa em fragmentos mínimos, de acordo por exemplo com um critério fisiológico (relativamente ao número de ações musculares realizadas), careceria de sentido, porquanto segundo a teoria do concurso, numa única ação ilícita têm de apreciar-se várias ações e tal só pode ser feito se se tiver em conta um determinado critério necessariamente jurídico. A junção de uma pluralidade de atos individuais numa única unidade de ação, através da interpretação do tipo de ilícito, só existe dentro de limites relativamente estreitos.

Em primeiro lugar exige-se a homogeneidade das formas de ação traduzidas na violação repetida da mesma norma ou de normas similares (por exemplo, estabelece-se a relação de continuidade entre o furto simples e o furto qualificado). A homogeneidade da forma de ação pressupõe também uma certa conexão temporal e espacial.

Em segundo lugar exige-se a unidade do bem jurídico violado.

E em terceiro lugar exige-se a homogeneidade do dolo, exigindo a jurisprudência um dolo genérico e global que deve abarcar o resultado total do facto nos seus traços essenciais conforme o lugar, o tempo, a pessoa do lesado e a forma de comissão do facto, no sentido de que os atos individuais só representam a realização sucessiva de um todo, querido unitariamente.

Daqui resultando que a arguida foi autora de um só crime reiterado de burla – fazendo sucessivos resgates das aplicações de poupança -, sendo o banco (sempre) a entidade burlada, através dos seus agentes. E a lesada (aquela que sofreu o prejuízo patrimonial) foi sempre a sua mãe, por ser a legítima proprietária dos valores ilicitamente sacados. E também, autora de um crime reiterado de abuso de confiança, sendo este igualmente executado em diversos e sucessivos momentos.

Trata-se apenas um crime de execução reiterada de burla e de um crime de execução reiterada de abuso de confiança, em o agente realiza os crimes que decidiu cometer através de uma repetição homogénea de atos, em que cada parcela da execução se integra no evento unitário, na prática de um só crime de burla e de um só crime de abuso de confiança.

Uma vez que os valores correspondentes aos ilícitos referidos são superiores a 20 400€, os mesmos são qualificados, como resulta do previsto nos artigos 205.º, § 1.º e 4.º, al a) e 218.º, § 2.º, al. a) CP, com referência ao artigo 202.º, al. b) do mesmo código e 22.º reg. Custas Processuais.

O concurso de crimes de burla e de abuso de confiança levanta a questão da sua efetividade ou mera aparência, porquanto conforme revelam os dados de facto, a atuação da arguida teve por finalidade a apropriação do dinheiro que a sua mãe tinha depositado no banco, nomeadamente em aplicações a prazo.

Nesse caso a inversão do título da posse do abuso de confiança surge como elemento constitutivo do crime de burla, na medida em que aquele se verifica concomitantemente se produz o prejuízo na esfera patrimonial da lesada, consumando-se o crime de burla.

Nestes termos o abuso de confiança surge como crime-meio da burla como crime-fim.

Refere a doutrina mais qualificada (7) que há crime-meio quando «um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos.»

«Critério de primacial relevo para a conclusão pela tendencial unidade substancial dos factos – apesar da pluralidade de tipos penais violados pelo comportamento global – é o da unidade, segundo o sentido social assumido por aquele comportamento, do sucesso ou acontecimento (hoc sensu, do “evento” ou “resultado”) ilícito global-final» (8).

No presente caso é evidente a unidade do desígnio criminoso (a unidade motivacional (9)), havendo também uma unidade de bem jurídico violado (ambas as incriminações tutelam o património), sendo o lesado também o mesmo em ambos os ilícitos, verificando-se ainda uma conexão espácio-temporal das realizações típicas, isto é, uma contemporaneidade consequencial das ações criminosas de burla e de abuso de confiança.

E desta maneira se demonstra, por via da relação de consunção, que se verifica apenas um crime de burla, que na circunstância, nos termos já referidos é qualificada.

Deverá, pois, ser a arguida punida por um só crime de burla qualificada, punível com pena de prisão de 2 a 8 anos.

Sucede, porém, que a ação ilícita da arguida não se cingiu à apropriação das quantias aplicadas em produtos financeiros a prazo (que após desmobilização foram por si apropriadas). Pois estas tinham por junto o valor de 32 399€ (cf. ponto 41 matéria de facto).

E está provado que para além dessas, a arguida também se apropriou de mais 15 810€ (cf. ponto 19 factos provados), pertencentes à sua mãe, que se encontravam depositados na conta DO (não provenientes dos aludidos resgates).

Esta apropriação ilícita de dinheiro da ofendida por banda da arguida, realizada também em tranches (em diversos momentos no tempo), nos termos narrados, ciente de que a mesma lhe não pertencia, constitui-a como autora de um crime também único, mas autónomo, de abuso de confiança, previsto no artigo 205.º, § 1.º e 4.º, al. a), por referência ao artigo 202.º, al. a) todos do CP, punível com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

3.2 Da proporcionalidade da pena e legalidade da condição para a suspensão da execução da pena de prisão

Conformando-se com a medida da pena única de prisão fixada pelo tribunal a quo, a arguida/recorrente entende, contudo, que a condição fixada para a suspensão da execução da pena, no montante e no prazo, é ilegal, por não ter condições para a satisfazer e isso poder vir a redundar na sua prisão por falta de pagamento de dívidas.

Vejamos, então.

As penas parcelares foram de 3 anos de prisão pelo crime continuado de burla e de 2 anos de prisão pelo crime continuado de abuso de confiança. Sendo a pena única fixada pelo tribunal a quo de 3 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, na condição de entregar a MCRF a quantia de 3 000€; e o mesmo valor a MRF, para compensação dos danos causados.

Preceitua o artigo 40.º, § 1.º e 2.º CP que a aplicação das penas visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente; e, em caso algum apenas pode ultrapassar a medida da culpa.

O programa político-criminal assumido pelo legislador neste preceito traduz-se, na opinião de Figueiredo Dias (10), a qual sufragamos, no seguinte:

«1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.

2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.

3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.»

A diversa qualificação jurídica esboçada supra não difere substancialmente da que foi realizada da 1.ª instância, sobre (no essencial) a mesma base factológica. Não estando as penas concretas desalinhadas do juízo exigido pela nova qualificação. Sendo que a pena única decorrente do cúmulo jurídico realizado na 1.º instância (artigo 79.º CP) integra, indubitavelmente, a censura que a nova qualificação jurídica igualmente exige, no âmbito dos princípio e regras que orientam a matéria da determinação concreta da pena.

Efetivamente, na ponderação de todas as circunstâncias (artigo 71.º CP), em que ponteiam alguns elementos que marcam negativamente a imagem global dos factos praticados, a pena única de 3 anos e 6 meses de prisão fixada pelo tribunal a quo, mostra-se ajustada à medida da culpa e às exigências de prevenção geral e de prevenção especial que o caso exige.

O mesmo se dizendo da suspensão da execução da pena de prisão, a qual, porém, nas concretas circunstâncias do caso, só é realmente cogitável, conforme bem se entendeu na 1.ª instância, com a coadjuvação de deveres que obriguem a arguida a refletir sobre o mal causado a uma pessoa idosa, sua mãe, que ficou sem as suas poupanças, tendo falecido sem nenhum tipo de ressarcimento.

A solução concretamente fixada mostra-se, pois, equilibrada, na medida em que balanceia o montante exigido pela condição (que é baixo) com um período suficientemente alargado (de 3 anos e 6 meses), escolhendo como beneficiários os irmãos da arguida, que são concomitantemente as pessoas mais próximas da vítima (sua mãe entretanto falecida), os quais se veem deste modo envolvidos na punição da prevaricadora, através de uma certa satisfação moral (artigo 51.º CP) (11).

Trata-se de um dever que a comunidade, através do tribunal, impõe à arguida, como condição da suspensão da pena de prisão em que foi condenada. Não se tratando, como é bom de ver, de nenhuma compensação por danos patrimoniais. Isso terá outro contexto e outra sede.

Contrariamente ao sustentado pela recorrente esta condição não é ilegal, porquanto a lista de deveres estabelecidos na lei, nas diversas alíneas do § 1.º do artigo 51.º CP, não é exaustiva, antes exemplificativa. Ademais constando nesse alinhamento a possibilidade de ser determinada a entrega de quantias a uma qualquer instituição (artigo 51.º, § 1.º, al. c) CP). Ora, destinando-a aos filhos da vítima, como fez o tribunal a quo, o seu significado social é notoriamente maior, donde, a mais de permitido pela lei, é comunitariamente mais justo e por isso mesmo mais adequado à finalidade da pena.

Anote-se ainda que se o tribunal considerasse que a arguida não tem condições para cumprir este dever não o fixaria, ou então não lhe suspenderia a pena de prisão, pois que uma sem a outra não é suficiente para lograr a finalidade da pena.

Finalmente, em nenhuma circunstância o cumprimento efetivo da pena de prisão, por banda da arguida, em decorrência de eventual incumprimento do dever fixado como condição de suspensão da execução da pena de prisão, poderia ser visto como uma prisão por dívidas. Por, nesse caso, necessariamente, provir de uma violação grosseira do dever imposto, conforme se prevê no artigo 56.º, § 1.º, al. a) CP).

Termos em que o recurso nesta parte deverá improceder.

III – Decisão

Destarte e por todo o exposto, na parcial procedência do recurso, decide-se:

a) Alterar a matéria de facto provada e não provada nos termos que se deixaram expostos.

b) Considerar que a arguida cometeu um único crime de burla (que consumiu os crimes de abuso de confiança);

c) manter em tudo o mais o decidido na sentença recorrida.

d) Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP (a contrario).

Évora, 22 de junho de 2021

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa

Assinado eletronicamente

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1.Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

2.Valem aqui, integralmente, as considerações deixadas na NOTA 1.

3.Por todos, Ac. STJ proc 733/17.2JAPRT.G1.S1

4.Cf. Ac. Tribunal Constitucional n.º 47/2005.

5.Na nossa anterior decisão chamámos a atenção para esta realidade, estando o resultado à vista…

6.Hans-Heinrich Jeschek e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5ª Ed., Editorial Comares, Granada, dezembro de 2002, pp. 769/773.

7. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Gestlegal, 2019, 3.ª edição, pp. 1182.

8.Jorge de Figueiredo Dias, idem, pp. 1180.

9.Hans-Heinrich Jeschek e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5ª Ed., Editorial Comares, Granada, dezembro de 2002, pp. 767.

10.Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal Sobre a Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2001, pp. 110/111.

11.Veja-se sobre a natureza e função dos deveres consignados neste retábulo, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pp. 196, em comentário ao artigo 51.º do Código Penal; e Hans-Heinrich Jeschek e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5.ª Ed., Editorial Comares, Granada, dezembro de 2002, pp. 906/907.