DECISÃO INSTRUTÓRIA
VÍCIOS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA DA VÍTIMA
Sumário

I - Em sede de decisão instrutória é legalmente inadmissível invocar os vícios do art. 410º, n º 2 do CPP.
II - Ao inobservar regra rodoviária primária, ao atravessar a via de forma inesperada e repentina, a correr entre os veículos, num dia de chuva, com tráfego intenso, num local de pouca iluminação, não só pela fraca visibilidade mas também pelas condições climatéricas, trajando roupa escura, a vitima omitiu um dever objetivo de cuidado, atuando com leviandade e incúria.
III - A conduta do Arguido em nada contribuiu para a produção do acidente, antes o mesmo se devendo ao repentino e perigoso atravessamento da via por parte da vítima.
IV - Tanto mais que a infeliz Sinistrada, ao assim ter efetuado o atravessamento da via, só se tornou visível para o Arguido ou para qualquer outro condutor em iguais circunstâncias, no exato momento em que o veículo conduzido por este se encontrava a menos de 10 metros da mesma.

Texto Integral

Processo n º 1250/18.9GBVNG.P1

Acórdão, julgado em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I-Relatório.
Ministério Público não se conformando com o despacho de não pronúncia proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Porto- Juízo de Instrução Criminal do Porto-J5, que nos autos à margem referenciados decidiu não pronunciar:
“Pelo exposto, determino, não pronunciar o arguido B...”, pelo crime que o M.P. quer ver imputado e, em consequência, ordenou o oportuno arquivamento dos autos, veio recorrer nos termos que ali constam, que ora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte (partes relevantes): (transcrição)
“CONCLUSÕES:
Por despacho constante de fls. 533 a 568, datado de 22.11.2021 foi decidido pela Mma Juiz de Instrução Criminal não pronunciar o arguido B… pela prática do ilícito criminal de homicídio por negligência p. e p. pelos artigos 137°,n°l, 13M5°, todos do Código Penal e 24°.n°l. 25°,n°l, al. c) e 27°,n°l do Código da Estrada.
É desta decisão de considerar que o arguido não praticou o ilícito criminal de homicídio por negligência, contrariamente ao alegado na acusação pública que o Ministério Público vem agora interpor recurso.
Por despacho de fls.306 a 308. o Ministério Público acusou o arguido B… pela prática de um crime de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.°, n°l, do Código Penal, com referência aos artigos 24°,n°l, 25°,n°l, al. c) e 27°,n°l do Código da Estrada.
No entanto, por decisão instrutória proferida no dia 22-11-2021, a Mma Juiz de Instrução Criminal decidiu não pronunciar o arguido, estribando a sua decisão no seguinte «fundamento:
"A conduta do arguido em nada contribuiu para a produção do acidente, antes o mesmo se devendo ao repentino e perigoso atravessamento da via por parte da vítima".
Na douta Decisão Instrutória proferida estão indiciados os seguintes factos:
No dia 15 de Dezembro de 2018, pelas 20hl0, o arguido B…, conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-LC-.. na Estrada Nacional ., mais precisamente na Av. …, em …, V. N. de Gaia, na hemi -faixa da direita, atento o seu sentido de marcha, sentido Norte/Sul.
Naquelas circunstâncias chovia com bastante intensidade e a via estava iluminada artificialmente do lado esquerdo (atento o sentido de marcha Norte/Sul), com iluminárias espaçadas em intervalos de vinte e cinco metros.
A faixa de rodagem tem 7 metros de largura está dentro da localidade de … e é ladeada por bermas e edifícios, alguns habitacionais, em ambos os sentidos.
Naquele local, o piso é betuminoso, estava em bom estado de conservação e a faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha Norte/Sul, tem traçado em reta, em patamar e é antecedida por uma curva ligeira à direita.
A estrada tem duas vias de trânsito, em sentidos opostos, separadas entre si por linha longitudinal contínua e delimitada nos seus limites por linha guia.
A velocidade máxima permitida no local é de 50 km/h.
Àquela hora circulava trânsito nas duas vias com alguma intensidade.
No local, bem como nas imediações não existe local destinado á travessia de peões.
O arguido circulava pela referia via fazendo uso das luzes do veículo, quer na retaguarda, quer na
O arguido circulava pela referida via fazendo uso das luzes do veículo, quer à retaguarda, quer, na parte da frente aqui utilizando os médios, vigilante, atento ao trânsito e a velocidade que não foi possível apurar, mas inferior a 50 km/ hora.
Naquelas circunstâncias, surgiu-lhe inopinadamente, em plena via, um vulto, que a atravessava a correr, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha Norte/ Sul, trajando vestuário escuro e enquanto circulava no local, trânsito em ambos os sentidos.
Tal vulto tratava-se de C…, vitima do acidente em causa, a qual, mercê das condições atmosféricas, da luminosidade, do trânsito que se fazia sentir em ambos os sentidos, do facto de ter iniciado a travessia inopinadamente, a correr e de trajar roupa escura, só se tornou visível para o arguido ou para qualquer outro condutor em iguais circunstâncias, no exato momento em que o veículo conduzido por este se encontrava a menos de 10 metros da mesma.
Momento em que a avistou, já em plena metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do veículo de matrícula ..-LC-.., continuando a travessia em passo de corrida, tendo em conta a chuva que caía.
Tendo o arguido, na tentativa de evitar o atropelamento, desviado o veículo ligeiramente para a esquerda, atento o sentido de marcha deste e acionando os meios de travagem, manobras que se vieram a revelar infrutíferas para evitar o embate da viatura por si conduzida contra o corpo da vítima C….
O embate deu-se entre a parte frontal direita, zona do para-choques e ótica direita do veículo de matrícula ..-LC-.. e a parte lateral direita do peão.
Tendo ainda, mercê de tal embate, a vítima embatido com a zona da cabeça na parte lateral direita inferior do para-brisas do veículo conduzido pelo arguido.
Após o que a vítima acabaria prostrada na berma direita, limite direito do mais concretamente 1,5 metros a cercado limite direito da faixa de, atendo de da metade direita da faixa de marcha sentido do veículo e a 4,5 metros da faixa de rodagem
Em resultado do atropelamento, a vítima sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e toraco-abdomino-pélvicas.
Tais lesões foram causa direta e necessária da sua morte que ocorreu às 23h20 do referido dia.
6- Não considerou a M.ma Juiz de Instrução indiciados os seguintes Factos:
O arguido circulava a uma velocidade calculada de 62 Km/ hora.
O embate deu-se devido à velocidade que o arguido imprimia ao veículo.
Após o embate a vítima ficou prostrada a cerca de 21 a 25 metros do local do acidente.
O arguido conduzia o veículo com falta de cuidado e atenção, imprimindo ao veículo velocidade superior à legalmente permitida e à adequada para a noite escura e as condições climatéricas que se faziam sentir.
O arguido conduziu sem os cuidados e precauções que são exigidos a qualquer condutor prudente e a uma velocidade que não lhe permitiu controlar o veículo e imobiliza-lo no espaço livre visível à sua frente.
O arguido sabia que, ao incumprir as regaras estradais podia colocar, como colocou, em causa a vida e integridade física dos restantes utentes da via pública, no entanto confiou que tal resultado não sucederia bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei.
Considera assim a M.ma Juiz de Instrução que não existem indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento pela prática do crime de homicídio por negligência p.p. pelo artigo 137°,n°l do Código Penal.
Tal juízo de indiciação tem por base o depoimento das testemunhas D…, inquirido a fls.17/19 e fls. 165/167 que afirma que viu um vulto que trajava roupa escura a atravessar a via a correr em direção ao restaurante.
Afirma que não presenciou o acidente e que no local não existe uma passadeira peões.
9- Inquirido a fls. E… (fls.116 a 120), cunhado da vítima, afirma que esta seguia no seu veículo automóvel e que logo que estacionou esta atravessou a via a correr. Mais esclarece que não presenciou o acidente, tendo no entanto ouvido um estrondo.
Inquirida em fase de instrução F… esclarece que estava numa bicha de " para arranca", no segundo carro atrás d veículo atropelante e no mesmo sentido deste. Não se apercebeu do peão a atravessar. Era cerca das 20h00, estava de noite e chovia imenso, a visibilidade era reduzida apesar de ter iluminação pública.
Inquirido G…, esclareceu que era o condutor do veículo que seguia no carro imediatamente atrás do veículo que seguia na retaguarda do veículo atropelante. Entre o seu veículo e o veículo atropelante seguia apenas uma viatura. A marcha que seguiam era lenta. Não se apercebeu da travessia da vítima. O veículo atropelante tinha os faróis ligados.
Inquirido H…, esclarece que vinha no carro imediatamente atrás do veículo atropelante no sentido …/… (sentido Norte/Sul). O acidente ocorreu em frente ao restaurante onde faz 50% das suas refeições.
Estava a chover muito, eram cerca das 20h00 da noite e havia má visibilidade pelo facto de existir fraca iluminação.
Apercebeu-se de um vulto que vinha do lado esquerdo da via, com roupa escura e tombou para a direita, á frente da viatura. Viu o carro atropelante a travar porque se apercebeu das luzes de travagem.
O peão após o embate ficou tombado do lado direito em frente do carro não sabendo precisar os metros a que ficou.
Inquirida F…, afirma que estava numa bicha de "para- arranca", no segundo carro atrás do veículo atropelante e no mesmo sentido deste. Que no local não havia passadeira, estava a chover e tinha fraca iluminação. Mais afirma que a vítima trajava roupa escura e o veículo atropelante tinha os faróis escuros.
14- Por sua vez, o arguido, nas suas declarações, quer em fase de inquérito, quer em fase de instrução, manteve que seguia no sentido Norte/Sul, a uma velocidade moderada e numa fila de trânsito, chovia com alguma intensidade e a visibilidade era reduzida.
Ao aperceber-se tratar-se de um peão a atravessar a via, vindo do lado esquerdo para a direita da faixa de rodagem, acionou o mecanismo de travagem, não conseguindo evitar o embate no peão, na zona frontal direita do seu veículo.
O arguido juntou ainda aos autos, prova documental, cujos originais se mostram juntos a fls.401 a 425, e que consiste na investigação tecno-pericial elaborado pelo I… ao acidente em causa nos presentes autos.
Após análise e valoração de todos estes meios de prova, designadamente do Relatório elaborado pelo I…, conjugado com a inquirição do perito J… e inspeção ao local onde o tribunal constatou a existência de um erro na elaboração do croquis por parte da autoridade policial, conclui a M.ma Juiz de Instrução que a dinâmica do acidente se desenrolou da forma que considerou indiciada, designadamente no tocante á velocidade imprimida pelo arguido ao veículo por si conduzido e á distância da projeção da vítima desde o ponto de embate até ao local onde ficou imobilizada.
Não concordamos com a M.ma Juiz quando considera que o arguido não podia estar a conduzir a uma velocidade superior a 50 Km, adequada para o local e que a culpa do acidente de viação que vitimou a ofendida é da responsabilidade exclusiva da vítima.
Salvo o devido respeito, a Ex.ma Sr3. Dr\ Juiz a quo apreciou e valorou deficientemente a prova testemunhal e documental recolhida em inquérito e instrução.
As testemunhas inquiridas apenas confirmaram que a vítima trajava de roupa escura e que passou a via pública a correr.
E que estava muito trânsito, chovia intensamente e que o arguido tinha ligado as luzes do seu veículo automóvel.
No que respeita á velocidade, algumas das testemunhas inquiridas, supõem que o mesmo, seguia a uma velocidade inferior a 50 Km hora.
Ora, consideramos que a prova recolhida em instrução e o facto de existirem discrepâncias entre o Relatório elaborado pelo I… e o elaborado pela autoridade policial, não se revela capaz de infirmar e desvalorizar a demais prova recolhida nos autos, a qual indicia suficientemente a prática pelo arguido de um crime de homicídio por negligência p.p. pelo artigo 137°,n°l do Código Penal.
Assim, não nos restam dúvidas, que nenhuma prova realizada em instrução inviabilizou a prova recolhida no inquérito e os indícios suficientes recolhidos nos autos.
O M.P. proferiu despacho de acusação imputando, ao arguido a autoria material de um crime de homicídio por negligência p.p. pelo artigo 137°,n°l do Código Penal.
Para tanto, baseou-se, o M.P., nos elementos indiciários constantes do inquérito, designadamente a prova testemunhal, documental e pericial.
Tal prova, levou a concluir que o arguido seguia a uma velocidade calculada de 62 km hora.
Em sede de instrução e atendendo ás discrepâncias nos Relatórios, a M.ma Juiz de Instrução considerou que o arguido seguia a uma velocidade inferior a 50 Km hora.
Não concordamos com tal conclusão.
No entanto, mesmo considerando que o arguido seguia a uma velocidade de 50 km hora, não teria o mesmo que adequar a velocidade ao local e ao estado do tempo e á fraca visibilidade da estrada?
São elementos constitutivos do crime de homicídio por negligência:
conduta humana traduzida numa acção ou omissão; infracção do dever objectivo de cuidado; possibilidade de imputação objectiva do resultado (a morte) à conduta contrária ao dever;
ausência de causas de justificação da conduta; autor imputável e com as faculdades e experiência que lhe permitam reconhecer o dever de cuidado objectivamente exigido e prever o curso causal que conduz ao resultado concreto produzido.
Verifica-se a negligência sempre que o agente, ao atuar, omite os deveres de cuidado que as circunstâncias concretas inerentes àquele impõe ou são exigíveis para evitar eventos danosos. Nessa medida, os resultados só se verificam por o agente não tomar as precauções adequadas a evitá-las e, como tal, não prevê ou não prevê com exatidão esse resultado como consequência normal e adequada da sua conduta.
E os cuidados reclamados são tanto maiores quanto maior for a perigosidade decorrente do exercício de uma atividade para com terceiros, máxime, ao tráfico rodoviário.
Mas para que se possa imputar ao agente o juízo de reprovação ético-social por não conformar a sua atuação com a ordem jurídica, é necessário que o agente possa e seja capaz de, face às circunstâncias, conhecer delas e tomar as precauções devidas e idóneas para evitar o resultado.
É preciso lançar mão do critério do homem, concreto "individualizado", no sentido de se saber se outra pessoa, com as mesmas qualidades do agente, não teria rodeado a sua conduta com as precauções devidas para evitar o resultado e, como tal, atuado de modo diverso.
O art° 24, n°l do CE dispõe que "o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas e ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente".
Por seu turno, o art° 25, n°l, ale) do CE estipula que "o condutor deve moderar especialmente a velocidade nas localidades ou vias marginadas por edificações ", " al j) Nos troços de via molhados. ", al.m) " sempre que exista grande intensidade de trânsito ".
Por último, o art° 101 ° do CE dispõe no seu n. °1, que os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.
No caso em apreço, a ofendida passou a via a correr, fora da passadeira para peões, mas será que tal facto exime o arguido da sua responsabilidade? Consideramos que não.
Em qualquer circunstância, o condutor do veículo automóvel não está dispensado dos deveres de cuidado e atenção e do respeito pelas regras, designadamente de velocidade, que lhe permitam evitar um qualquer atropelamento ainda que o peão esteja atravessar a via onde não deve.
Atentas as referidas características da via e do local, devia o arguido ter previsto que, ao atuar sem a atenção e os cuidados a que se encontrava obrigado, para evitar acidentes em geral, e, em particular, o atropelamento de peões, pudesse colher as pessoas que efectuassem a travessia da via, mesmo que não fosse no local próprio, e que, com a sua conduta, poderia causar a morte de outrem, como veio a suceder, o que era previsível para qualquer condutor medianamente cauteloso e para o arguido, e, não obstante, agiu o arguido sem todos os cuidados e a atenção necessária que lhe eram exigíveis e de que era capaz, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
Agiu, pois, o arguido sem prestar a atenção devida no exercício da condução e as cautelas necessárias a que estava obrigado e era capaz, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida por lei.
Actuou, assim, o arguido com falta dos deveres de cuidado, de atenção e prudência que lhe eram exigidos e, não obstante saber que a condução de veículos automóveis nessas circunstâncias é perigosa para terceiros, não se coibiu de proceder do modo descrito.
E foi a sua condução negligente e inconsiderada que, tendo dado causa ao acidente, teve por consequência que a vítima fosse colhida pelo veículo por si conduzido e sofresse as lesões descritas e examinadas no relatório de autópsia as quais foram a causa direta e necessária da sua morte.
Dispõe o artigo 283°, n.° 1 e 2 do Código de Processo Penal que "1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de dez dias, deduz acusação.
2-Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. "
"Há fortes indícios da prática de um crime (lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-07-97) se o conjunto de provas oferece um "maior" grau de probabilidade de o agente vir a sofrer a respetiva pena do que ser absolvido".
"Vem-se entendendo que a «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição» - Acórdão do STJ de 28/06/2006, in www.dgsi.pt
Os indícios suficientes traduzem-se em sinais exteriores e objectivos de ocorrência de crime cometido pelo arguido que permitam concluir que existe uma probabilidade razoável de lhe ser aplicada uma pena ou medida de segurança e não uma possibilidade remota de tal vir a acontecer em julgamento.
Entendemos assim que, em sede de instrução e ainda que numa visão perfunctória, os indícios recolhidos não se alinham com uma decisão de arquivamento quanto à participação do arguido pelos factos vertidos na acusação.
Atentos os depoimentos recolhidos em inquérito, os indícios de que o arguido, a MMa JIC ao não pronunciar o arguido pelo crime de que vem acusado, fez errada apreciação e valoração da prova recolhida.
Com efeito, será em sede de audiência de discussão e julgamento e com a concentração, imediação e oralidade, que lhe serão próprias. que terá de se produzir a prova perante o mesmo julgador e dissipar quaisquer duvidas que existam, pois não nos restam duvidas que os indícios recolhidos são suficientes permitindo a formação sobre um juízo de culpabilidade do arguido.
Devia, desta feita, a Mma Juiz de Instrução Criminal ter decidido pronunciar o arguido pelos crimes de que vinha acusado, porquanto os indícios existentes em inquérito da atuação do arguido são suficientes para submeter o mesma a julgamento.
O art. 410° do CPP dispõe o seguinte:
"1-Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2-Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
Erro notório na apreciação da prova ".
O erro notório na apreciação da prova constitui uma ' falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, que as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das "leges artis " {vide Simas Santos e Leal Henriques, in "Recursos em Processo Penal", 7.a Edição, 2008, Editora Rei dos Livros, p. 77).
Descrito, ainda que sumariamente, o apontado vício, incontroverso é que ele tem de resultar da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Posto isto, dúvidas não temos que existe erro notório na apreciação da prova pelos seguintes motivos:
A M.ma Juiz deu como provado que não havendo no local uma passadeira para passagem de peões, o peão optou por fazer a travessia a correr entre os veículos, num dia de chuva, com trânsito intenso, numa via com pouca iluminação, não só pela fraca visibilidade, mas também pelas condições climatéricas, que se faziam sentir, trajando roupa escura.
Concluindo pela culpa exclusiva do peão no acidente que o vitimou.
E que o arguido circulava a uma velocidade adequada para o local e circunstâncias da via, não podendo de forma alguma contar com o comportamento inesperado do peão e evitar o embate.
O erro em que a Mm. a Juiz "a quo" incorreu e que é patente e percetível para o cidadão comum depois de analisar a prova recolhida em sede de inquérito e em instrução.
Com efeito, se o arguido não pode evitar o embate, é porque não conduzia de forma desatenta e a uma velocidade não adequada ás condições climatéricas, á fraca visibilidade e ao estado da via.
Assim sendo a Decisão Instrutória violou o disposto nos artigos 277°,n°2, 283a e 308°,n°l do CPP.
Deverá a Decisão Instrutória ser revogada por uma outra que pronuncie o arguido pela prática do ilícito criminal de que vem acusado pelo Ministério Público.”
O arguido respondeu concluindo pela improcedência do recurso argumentando, no seguintes termos:
“CONCLUSÕES

Encerrado o inquérito no âmbito dos presentes autos, o MP deduziu acusação, na qual imputou ao Arguido a prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1 do C.P., com referência aos artigos 24º, n.º 1, 25º, n.º 1, c) e 27º, n.º 1, todos do C.E.

Em sustento da culpa que imputou ao Arguido, alegou o Ministério Público, em suma, que aquele, nas circunstâncias descritas na acusação, havia embatido com o veículo que conduzia contra um peão, em plena via de trânsito, à noite, num momento em que chovia com bastante intensidade, trajando o peão roupas escuras, num momento em que este fazia o atravessamento da faixa de rodagem sempre a correr, cfr. acusação pública.
Mais alegou o MP que:

A Sinistrada, após tal embate caiu sobre o veículo, batendo com a cabeça no para-brisas, na zona intermédia do limite direito, tendo depois sido projectada para a berma direita da estrada, ficando aí prostrada a cerca de 21 a 25 metros do local do embate.

Que em resultado do atropelamento e das lesões traumáticas sofridas pela infeliz Sinistrada, resultou a sua morte, pelas 23:20 h. do dia da ocorrência do acidente.

Que o arguido circulava a uma velocidade calculada de 62 Km/h, sendo a velocidade máxima permitida no local de 50 Km/h.

Que o arguido conduziu o referido veículo com falta de cuidado e de atenção, imprimindo ao veículo velocidade superior à legalmente permitida e à adequada para a noite escura e as condições climatéricas que se faziam sentir, tendo, em consequência, embatido em C….

Que o arguido conduziu, sem os cuidados e precauções que são exigidos a qualquer condutor prudente e a uma velocidade que não lhe permitiu controlar o veículo e imobiliza- lo no espaço livre e visível à sua frente.

Que o arguido agiu de forma imprevidente e sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz.

Que ao conduzir da forma descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que devia cumprir as normas estradais no exercício da condução em via pública.
10º
Que sabia ainda o arguido que, ao incumprir as regras estradais, podia colocar, como colocou, em causa a vida e integridade física dos restantes utentes da via pública, no entanto, confiou que tal resultado não se sucederia.
11º
Para prova de tudo quanto vem narrado e imputado no libelo acusatório o MP considerou todo o acervo probatório indicado na acusação.
12º
Entre os quais e em especial, no que concerne à determinação da velocidade que o Arguido imprimia ao veículo que conduzia, a participação do acidente de viação de fls. 8 a 10, com especial enfoque para os croquis de fls. 10, 78 e 79 e o relatório pericial de fls. 174 a 195.
13º
Inconformado com a acusação, o Arguido requereu a abertura da Instrução.
14º
33
Em tal sede, produzida e valorada a competente prova carreada para os autos em sede de inquérito e Instrução, foram tidos por indiciados e não indiciados os factos constantes da respectiva decisão instrutória, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
15º
Considerou a decisão recorrida, além do mais, que a velocidade mencionada no inquérito a que alegadamente circularia o veículo conduzido pelo Arguido, bem como a distância de projecção do peão, estavam erradas.
16º
Porquanto haviam sido estimadas a partir de pressupostos errados e insuficientes.
17º
Afirmando e demonstrando que no inquérito foram elaborados croquis, cfr. fls 10, 78 e 79, contendo medição efectuada não a partir do local, mas por via de fotografia extraída do Google.
18º
E que, no local, se verificou um erro de medição, em mais 14 metros, relativos à extensão da frente do restaurante onde ocorreu o embate, facto que associado à alegada projecção do peão levou a conclusões erradas sobre esta, tendo dado por indiciada uma distância de projecção do peão de apenas 4,5 m, ao arrepio da distância mencionada na acusação, de 21 a 25 m.
19º
Mais considerou a decisão recorrida que apenas pela identificação do local do embate (da cabeça do peão no para-brisas do carro) não é possível determinar a velocidade da circulação do automóvel, como fez a perícia de fls. 174 a 194, em que se baseou a acusação, porque a mesma depende de outros factores, designadamente da estatura da vítima e do tipo de veículo, conjunto de variantes não consideradas e cuja desconsideração impede uma estimativa fiável da velocidade.
20º
Melhor concretizando, a decisão recorrida apurou que o relatório de fls. 174 e ss. parte de um único pressuposto para a determinação da velocidade do veículo, ou seja, o local onde ocorreu o embate da cabeça da vítima com o para brisas do veículo, cfr. fls. 183.
21º
E, a partir de tal local, estimou a velocidade de circulação do veículo.
22º
Assim, segundo tal perícia, de fls. 174 e ss (a que a decisão instrutória não aderiu), tendo a cabeça da Sinistrada embatido no local do para-brisas visível na figura 4 de fls. 181, desde logo e sem mais se conclui que o veículo circulava aproximadamente a 62 Km/h, cfr. fls 184 e 194.
23º
Velocidade a que aderiu o MP na acusação.
24º
Em total e absoluto confronto e desconsideração com as mais elementares regras da experiência.
25º
Porquanto o local do para-brisas onde a cabeça de um peão embate (em consequência de um choque frontal), depende de vários factores, que não apenas a velocidade, mas também de circunstâncias tais como o facto de no momento do embate o peão estar ou não com os dois pés assentes na via, o facto de ir ou não em passo de corrida, o peso do peão, a altura do mesmo, o tipo, altura e configuração do veículo, a inclinação do para brisas, etc.
26º
Em suma, e no essencial, a decisão instrutória teve por suficientemente indiciado que a Sinistrada, ao inobservar regras primárias ínsitas no artigo 101 do C.E., relativas ao atravessamento das vias de tráfego por parte dos peões, ao atravessar a via de forma inesperada e repentina, a correr entre os veículos, num dia de chuva, com tráfego intenso, num local de pouca iluminação, não só pela fraca visibilidade mas também pelas condições climatéricas, trajando roupa escura, omitiu um dever objectivo de cuidado, actuando com leviandade e incúria.
27º
Não tomando as providências necessárias que lhe permitiriam evitar o atropelamento.
28º
Concluindo que não era exigível que o Arguido, que circulava a uma velocidade adequada para o local e circunstâncias da via, pudesse contar e prever esse comportamento inesperado por forma a encetar qualquer manobra e evitar o embate.
29º
Considerando que a conduta do Arguido em nada contribuiu para a produção do acidente, antes o mesmo se devendo ao repentino e perigoso atravessamento da via por parte da vítima.
30º
Tanto mais que a infeliz Sinistrada, ao assim ter efectuado o atravessamento da via, só se tornou visível para o Arguido ou para qualquer outro condutor em iguais circunstâncias, no exacto momento em que o veículo conduzido por este se encontrava a menos de 10 metros da mesma, cfr. facto tido por indiciado, a fls. 544 da decisão instrutória.
31º
Sendo que o próprio Recorrente admitiu que a própria vítima contribuiu para o acidente, cfr. fls. 16 das motivações de recurso.
32º
A decisão recorrida efectuou uma minuciosa, detalhada e completa exposição das razões de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram de base para formar a convicção do Tribunal relativa à matéria tida por indiciada e não indiciada.
33º
E esse exame crítico passou pela valoração de toda a prova produzida em Inquérito e Instrução, tal como exaustivamente descrito na decisão recorrida.
34º
Em face de tal, entendeu que a dinâmica do acidente terá ocorrido não da forma como vem referida na acusação, mas sim da forma como vem descrita no requerimento para abertura da instrução, cfr. fls. 561, in fine, e 562.
35º
A finalizar, cumpre ainda dizer que a apreciação que o MP faz da prova é apenas a sua apreciação, ou seja, aquela pela qual pugna, encontrando-se porém a mesma totalmente à margem de quaisquer regras da experiência.
36º
No entanto, tais referências constituem mera contraposição da sua própria análise valorativa e não demonstram a imposição lógica de decisão diversa.
37º
Não basta a expressão de divergência do Recorrente quanto à apreciação dos factos – expressa na motivação e nas conclusões do recurso em que se limitam a manifestar a discordância relativamente ao modo como o Tribunal “a quo” valorou a prova produzida -contrapondo a sua própria análise valorativa, mas sem indicar elementos que efectivamente imponham, demonstrando-a, decisão diversa.
38º
A regra de apreciação de prova estatuída no artº 127º do Código de Processo Penal, assente nas regras de experiência e na livre convicção do julgador, não significa arbitrariedade mas apenas exclusão da prova tabelada como critério essencial.
39º
Implica que a decisão obedeça a regras lógicas explícitas e perceptíveis para permitir a sua sindicabilidade em sede recursiva e, simultaneamente, a sua compreensão pelos seus destinatários. Regras lógicas que são impostas e delimitadas pelos requisitos, nulidades e vícios da sentença previstos nos arts. 374º, 379º e 410º do Código de Processo Penal.
40º
E exige dos recorrentes, igualmente, um necessário esforço de demonstração de imperativo lógico para infirmar a decisão impugnada, não se bastando com a mera manifestação da discordância e/ou invocação de outras possíveis/plausíveis consequências das premissas de facto.
41º
Acresce que, não se alcança dos autos, nem sequer das motivações do recurso, qual a falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum…
42º
… denunciadora de que foram dados como provados factos inconciliáveis entre si, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou.
43º
… ou que a decisão tenha chegado a conclusões ilógicas ou inaceitáveis.
44º
Não demonstrar minimamente o Recorrente que, um homem médio, perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente daria conta que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
45º
Nada disso vem fundadamente alegado ou emerge nas doutas motivações de recurso, para além da quase conclusiva afirmação da existência do erro notório na apreciação da prova.
46º
Produzida a prova em sede de inquérito e de instrução e valorada a mesma, outra conclusão não se pode extrair a não ser a de que não se verifica nenhum dos pressupostos fáctico-jurídicos constitutivos “sine qua non” do tipo legal de crime que é imputado na acusação ou de qualquer outro.”
Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer não se pronunciando quanto à procedência.
Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.
Erro notório na apreciação da prova.
Erro do julgamento indiciário da matéria indiciária por deficiente apreciação e valoração das provas.
Do enquadramento dos factos.
1.Decisão instrutória.
“0 Tribunal é competente.
0 M.P. tem legitimidade para acusar.
Não existem questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa.
No âmbito dos presentes autos, findo o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B… (melhor identificado nos autos a fls.225, imputando-lhe a prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137° n°l, 13°, 15° todos do Código Penal e 24° n°l, 25° n°l al.c) e 27° n°l do Cod. Da Estrada.
Na sequência, o arguido requereu a abertura de instrução, defendendo a inexistência da prática do crime de que vem acusado e pretendendo a prolação, a final, de despacho de não pronúncia.
Requereu realização de prova nesta fase de instrução, tendo-se procedido à inquirição das testemunhas F…, G…, H…, cujos depoimentos se mostram gravados em suporte digital junto aos autos a fls.506 e J… na qualidade de perito, que realizou o relatório de peritagem de fls.337 e s.s. junto aos autos, cujo depoimento se mostra igualmente gravado em suporte digital junto aos autos a fls.518.
Na sequência deste depoimento e por se afigurar de todo o interesse e relevância para o apuramento dos factos e descoberta da verdade material, foi requerida a inspeção ao local com a presença do I… e com a presença do perito J… onde, se procedeu à reconstituição do acidente tendo por base o croqui junto aos autos elaborado pela autoridade policial.
Foi interrogado o arguido que confirmou as declarações por si prestadas em inquérito bem como a versão do requerimento de abertura de instrução.
Pelo arguido foi ainda junta aos autos prova documental 425 cujos originais se mostram juntos a fls.401 a 425, e que consiste na investigação tecno-pericial elaborada pelo I… ao acidente em causa nos presentes autos e cujo perito J… confirmou, analisou e prestou todos os esclarecimentos nesta fase de instrução, quer através do seu depoimento, quer no local do acidente na diligência de inspeção ao local.
Foi ainda junta aos autos prova documental, fotografias de fls.513 a 517, tiradas no local do acidente e que foram igualmente analisadas pelo Sr. Perito J… aquando da sua prestação de depoimento.
Procedeu-se à apreciação das provas produzidas nesta fase de instrução e anteriormente mencionadas, bem como ã reapreciação das provas produzidas em inquérito.
As provas recolhidas em inquérito foram as seguintes:
Prova documental:
Auto de notícia do acidente e croqui elaborado pela autoridade policial de fls.5 a 10 e respetivo relatório fotográfico de fls.ll e 12 e declaração do arguido enquanto condutor do veículo interveniente no acidente de viação de fls.13;
Aditamento ao auto de notícia de fls.43 a 44 contendo o exame toxicológico elaborado à amostra de sangue colhida ao arguido e do qual se constata que aquando do acidente de viação o mesmo não se encontrava sob a influência do álcool.
Certidão de óbito da vítima (fls.47);
Relatório de inspeção ocular e croqui de fls.75 a 79; Auto de exame ao veículo de fls.80 a 81; Relatório fotográfico de fls.81 a 98;
Elementos relativos ao veículo interveniente no acidente de viação de fls.99 a 103;
Relatório de averiguação da companhia de seguros K… de fls.124 a 160;
Relatório de peritagem elaborado pelo L… e solicitado em fase de inquérito referente ao acidente em causa nos presentes autos.
Relatório de autópsia e respetivos elementos clínicos da vitima de fls.209 a 221;
Prova testemunhal:
Depoimentos das testemunhas D…, (fls.17 a 18), M… (fls.112 a 114), E… (fls.118 a 121).
Declarações do arguido:
Prestadas em inquérito (fls.231 a 234).
Após a conclusão de todas as diligências probatórias deferidas e não se reputando a existência de quaisquer outras úteis ou necessárias à decisão a proferir, realizou- se o debate instrutório, com observância do legal formalismo.
Impõe-se assim, Saber se existem, ou não, indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137° n°l do Código Penal.
Vejamos, não sem antes tecermos algumas considerações gerais.
Decorre do artigo 286° n° 1 do Código de Processo Penal que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Constitui assim, no Código de Processo Penal, uma atividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa.
O artigo 308° n°l do Código de Processo Penal estipula que "Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário profere despacho de não pronúncia."
Por sua vez o art. 283° n° 2 do Código de Processo Penal preceitua que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".
A mencionada "possibilidade razoável" de condenação em julgamento envolve um juízo retrospetivo de valoração dos meios de prova recolhidos no processo que fundamentam a acusação; e um juízo de prognose prospetivo sobre os meios de prova que poderão vir a ser produzidas ou examinadas na audiência de julgamento, sabendo-se que a produção de prova em julgamento obedece a princípios diferentes da fase de investigação e instrução, com destaque para a "institucionalização" do contraditório e os princípios da imediação e da concentração nessa fase do julgamento.
O referido juízo retrospetivo sobre as provas recolhidas não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objetivas face ao princípio in dúbio pro reo, vigente em termos de apreciação da matéria de facto. Na verdade, nas palavras de Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I vol, pág 213) "Um non liquet na questão da prova (...) tem que ser sempre valorado a favor do arguido", sendo que "com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dúbio pro reo".
É exigível pois, quer da parte do Ministério Público, quer da parte do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na demonstração da objetividade do facto, na apreciação do material probatório que a suporta em conformidade com as normas relativas à aquisição e valoração das provas, nos critérios de racionalidade inerentes ao princípio da livre apreciação da prova.
Com efeito, e como refere Castanheira Neves (Processo Criminal, Sumários, p. 39) "na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução (...) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação".
E o juízo retrospetivo, incide sobre os meios de prova recolhidos no processo e que fundamentam a acusação. Meios de prova que "não serão, salvo casos excecionais, reforçados até à audiência de julgamento. A tendência natural será, pelo contrário, no sentido do enfraquecimento dessas provas já que (além da erosão do tempo) irão ser submetidas ao crivo do contraditório e atacadas através do efetivo exercido do direito de defesa, até ai substancialmente afetado" - cf. Jorge Noronha e Silveira, o conceito de indícios suficientes no processo penal português", in (Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coordenação de Maria Fernanda Palma. Almedina, 2004 p. 168).
O mesmo juízo retrospetivo não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objetivas, antes exige da parte quer do Ministério Público, quer do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na sua estrutura fenomenológica, na objetividade de indagação fáctica e apreciação do material probatório, na conformação normativa pelas mesmas proibições de valoração da prova, na racionalidade lógica e metodológica em que assenta a sua livre apreciação dos elementos de prova coligidos, na parametrização (em prognose, na acusação, e atual, no julgamento) própria de condenação e no grau de convicção (que não se compadece, em ambos os casos, com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem "razoável" de dúvida) - cfr. Carlos Adérito Teixeira, "Indícios suficientes": parâmetro de racionalidade e "instância" de legitimação concreta do poder-dever de acusar", in Revista do CEJ, n°l, p. 161; e no mesmo sentido, Paulo Dá Mesquita, Direção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, p. 92 nota 127; e Jorge Noronha e Silveira, "O conceito de indícios suficientes no processo penal português", in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coordenação de Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004p. 168 e 169).
Na jurisprudência, a interpretação do conceito do in dúbio pro reo no âmbito da instrução é resumidamente efetuada pelo STJ da seguinte forma - "o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime. Os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição" (Acórdão de 28/06/2006, in www.dgsi.pt).
Pelo que a não formação de uma convicção segura acerca da culpabilidade do arguido, em virtude da prova recolhida suscitar dúvidas insanáveis, razoáveis e objetivas, deve conduzir a uma decisão de não pronúncia, mediante a mobilização do princípio in dúbio pro reo (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n° 39/2002 (in www.tribunalconstitucional.pt).
Com efeito, entendeu aquele tribunal que: "a interpretação normativa dos artigos citados que exclui o princípio in dúbio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, prevista no artigo 32°, n° 2 da Constituição".
Sendo exigível este grau de certeza na análise das provas recolhidas subjacente à decisão sobre a existência ou não de indícios suficientes coloca-se a questão de saber em que medida isso se compatibiliza com o facto da lei utilizar como critério de decisão a "possibilidade razoável" de condenação.
A "possibilidade razoável" que o n°2 do artigo 283° do Código de Processo Penal reporta-se ao tal juízo de prognose, que sendo uma previsão assenta necessariamente numa avaliação probabilística. Não se reportando apenas à convicção que a autoridade competente tem de efetuar em relação aos elementos probatórios recolhidos mas ainda à possibilidade de confirmação dessa convicção, em audiência de julgamento, na medida em que a audiência de julgamento obedece a uma racionalidade específica, com os princípios da concentração da prova, da imediação, do exercício pleno do contraditório.
E importa ter sempre presente que a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um ato neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento para além de constituir sempre um "normal" incómodo, por vezes pode-se traduzir num vexame (neste sentido cfr. Ac do STJ de 28.06.2006, in www.dgsi.pt).
Por isso mesmo, cabe ao Ministério Público (enquanto detentor do exercício da ação penal) e ao juiz de instrução (quando há lugar a esta fase), avaliar sobre se os indícios são, ou não, suficientes.
E acerca do que devem ser considerados indícios suficientes, pode ver-se entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra, datado de 10-09-2008, disponível em www.dgsi.pt) sumariado do seguinte modo:
"I.- Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado
- A suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia).
- O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade.
- Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação."
Em conclusão:
Admitida a instrução, se, até ao encerramento da mesma, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado e virem a demonstrar, os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia - artigo 308.° do Código de Processo Penal.
Da análise da prova recolhida em inquérito e nesta fase de instrução e supra indicada resultaram indiciados os seguintes factos.
FACTOS INDICIADOS:
No dia 15 de Dezembro de 2018, pelas 20hl0, o arguido B…, conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-LC-.. na Estrada Nacional ., mais precisamente na Av. …, em …, Vila Nova de Gaia, na hemi-faixa da direita, atento o seu sentido de marcha, sentido Norte/Sul.
Naquelas circunstâncias, era noite, chovia com bastante intensidade e a via estava iluminada artificialmente do lado esquerdo (atento o sentido de marcha Norte/Sul) com luminárias espaçadas em intervalos de cerca de 25 metros.
A faixa de rodagem tem 7 metros de largura está dentro da localidade de … e é ladeada por bermas e edifícios, alguns habitacionais, em ambos os sentidos.
Naquele local o piso é betuminoso, estava em bom estado de conservação e a faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha Norte/Sul tem traçado em reta, em patamar e é antecedida por uma curva ligeira à direita.
A estrada tem duas vias de trânsito, em sentidos opostos, separadas entre si por uma linha longitudinal contínua e delimitada nos seus limites por linha de guia.
A velocidade máxima permitida no local é de 50 Km/hora.
Àquela hora circulava trânsito nas duas vias com alguma intensidade.
Não existe no local, bem como nas imediações passadeira destinada à travessia de peões.
O arguido circulava pela referida via fazendo uso das luzes do veiculo, quer à retaguarda, quer, na parte da frente aqui utilizando os médios, vigilante, atento ao trânsito e a velocidade que não foi possível apurar, mas inferior a 50 km/hora.
Naquelas circunstâncias, surgiu-lhe inopinadamente, em plena via, um vulto, que a atravessava a correr, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha Norte/Sul, trajando vestuário escuro e enquanto circulava no local, trânsito em ambos os sentidos.
Tal vulto tratava-se de C…, vitima do acidente em causa, a qual, mercê das condições atmosféricas, da luminosidade, do trânsito que se fazia sentir em ambos os sentidos, do facto de ter iniciado a travessia inopinadamente, a correr e de trajar roupa escura, só se tornou visível para o arguido ou para qualquer outro condutor em iguais circunstâncias, no exato momento em que o veiculo conduzido por este se encontrava a menos de 10 metros da mesma.
Momento em que a avistou, já em plena metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do veículo de matricula ..-LC-.., continuando a travessia em passo de corrida, tendo em conta a chuva que caia.
Tendo o arguido, na tentativa de evitar o atropelamento, desviado o veiculo ligeiramente para a esquerda, atento o sentido de marcha deste e acionando os meios de travagem, manobras que se vieram a revelar infrutíferas para evitar o embate da viatura por si conduzida contra o corpo da vítima C….
O embate deu-se entre a parte frontal direita, zona do para-choques e ótica direita do veículo de matrícula ..-LC-.. e a parte lateral direita do peão.
Tendo ainda, mercê de tal embate, a vítima embatido com a zona da cabeça na parte lateral direita inferior do para- brisas do veículo conduzido pelo arguido.
Após o que a vítima acabaria prostrada na berma direita, mais concretamente a cerca de 1,5 metros do limite direito da metade direita da faixa de rodagem, atendo o sentido de marcha do veículo e a 4,5 metros do local onde foi embatida.
Em resultado do atropelamento, a vítima sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e toraco-abdomino- pélvicas. Tais lesões foram causa direta e necessária da sua morte que ocorreu às 23h20 do referido dia.
O arguido possui habilitação legal para conduzir veículos automóveis da categoria B desde 11/03/2013.
FACTOS NÃO INDICIADOS:
O arguido circulava a uma velocidade calculada de 62 Km/hora.
O embate deu-se devido à velocidade que o arguido imprimia ao veículo.
Após o embate a vítima ficou prostrada a cerca de 21 a 25 metros do local do acidente.
O arguido conduzia o veículo com falta de cuidado e atenção, imprimindo ao veículo velocidade superior à legalmente permitida e à adequada para a noite escura e as condições climatéricas que se faziam sentir.
O arguido conduziu sem os cuidados e precauções que são exigidos a qualquer condutor prudente e a uma velocidade que não lhe permitiu controlar o veículo e imobiliza-lo no espaço livre visível à sua frente.
O arguido agiu de forma imprevidente e sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz.
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que devia cumprir as normas estradais no exercício da condução em via pública.
O arguido sabia que, ao incumprir as regaras estradais podia colocar, como colocou, em causa a vida e integridade física dos restantes utentes da via pública, no entanto confiou que tal resultado não sucederia bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei.
MOTIVAÇÃO:
Analisemos então da existência, ou não, de indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137° n°l do Código Penal com referência aos arts° 24° n°l, 25° n°l al.c) e 27° n°l do Código da Estrada.
A convicção do tribunal formou-se no que aos factos provados e não provados respeita, com base nos seguintes elementos de prova:
Provas recolhidas em inquérito:
Prova documental:
Auto de notícia do acidente e croqui elaborado pela autoridade policial de fls.5 a 10 e respetivo relatório fotográfico de fls.ll e 12 e declaração do arguido enquanto condutor do veículo interveniente no acidente de viação de fls.13;
Aditamento ao auto de noticia de fls.43 a 44 contendo o exame toxicológico elaborado à amostra de sangue colhida ao arguido e do qual se constata que aquando do acidente de viação o mesmo não se encontrava sob a influência do álcool.
Certidão de óbito da vítima (fls.47);
Relatório de inspeção ocular e croqui de fls.75 a 79; Auto de exame ao veículo de fls.80 a 81; Relatório fotográfico de fls.81 a 98;
Elementos relativos ao veículo interveniente no acidente de viação de fls.99 a 103;
Relatório de averiguação da companhia de seguros K… de fls.124 a 160;
Relatório de peritagem elaborado pelo L… e solicitado em fase de inquérito referente ao acidente em causa nos presentes autos.
Relatório de autópsia e respetivos elementos clínicos da vítima de fls.209 a 221;
Prova testemunhal:
Depoimentos das testemunhas D…, (fls.17 a 18), M… (fls.112 a 114), E… (fls.118 a 121).
Declarações do arguido prestadas em inquérito (fls.231 a 234).
Em instrução: Prova testemunhal:
Testemunhas F…, G…, H…, cujos depoimentos se mostram gravados em suporte digital junto aos autos a fls.506 e J… na qualidade de perito, que realizou o relatório de peritagem de fls.337 e s.s. junto aos autos, cujo depoimento se mostra igualmente gravado em suporte digital junto aos autos a fls.518.
Inspeção ao local:
Com a presença do I… e com a presença do perito J… onde, se procedeu à reconstituição do acidente tendo por base o croqui de fls.10 e 79 junto aos autos elaborado pela autoridade policial e se pode verificar o erro nas medições elaboradas, designadamente quanto à frente do restaurante N… (e não O… como vem indicado a fls.79.
Interrogatório do arguido que confirmou as declarações por si prestadas em inquérito bem como a versão do requerimento de abertura de instrução.
Assim, disseram no essencial as testemunhas ouvidas em fase de inquérito:
D… (fls.17/19)
Seguia na mesma via mas no sentido Sul/Norte. Ao passar junto ao restaurante N… presenciou um vulto que trajava roupa escura a atravessar a via a correr em direção ao restaurante. Após a mesma entrar na hemifaixa dos veículos que seguiam no sentido Norte/Sul (no sentido contrário ao seu) ouviu um estrondo. Pese embora não tivesse presenciado o embate, apercebeu-se que, a proximidade da viatura que seguia no sentido contrário ao do depoente com o local onde o peão atravessava a via, a correr, era muita, não tendo dado tempo de reação suficiente ao condutor da mesma para evitar o atropelamento, o que, aliado ao facto de já estar escuro e à chuva intensa e à dificuldade de visibilidade contribuíam ainda mais para aquela dificuldade de reação.
M… (fls.112/114), filho da vítima e que não presenciou o acidente.
E… (fls.116 a 120) cunhado da vítima.
Condutor do veículo que seguia com a vítima em sentido Sul/Norte e dirigiram-se ao Restaurante N… estacionando o veículo do outro lado da via, no parque de estacionamento, sem sair do mesmo pelo que não presenciou o atropelamento já que estacionou o veículo com a frente para Este e a traseira orientada para o eixo da via, aguardando no interior do veículo. Logo que estacionou, a vítima saiu apressada do mesmo e de imediato atravessou a via a correr em direção ao restaurante. Ouviu de imediato um estrondo e teve o pressentimento de que teria sido a vítima a ser atropelada.
D… (Fls.165/167).
Circulava na mesma via mas no sentido Sul/Norte (sentido contrário ao seguido pelo veículo conduzido pelo arguido).
Não seguiam à sua frente outros veículos. Quando circulava próximo do restaurante N… apercebeu-se a uma distância que estima entre 5 a 10 metros, um vulto escuro, a efetuar o atravessamento da faixa de rodagem a correr, vindo do lado direito considerando o sentido de marcha Sul/Norte.
No momento em que se cruzou com o veiculo que circulava no sentido oposto ao da sua marcha, ouviu um estrondo deduzindo que o vulto que viu atravessar a faixa de rodagem tinha sido atropelado pelo veículo que circulava no sentido …/… (Norte/Sul).
O embate ter-se-á dado já na via de trânsito destinada ao tráfego sentido …/… (Norte/Sul). Pese embora desconhecesse a velocidade praticada pelo veículo atropelante, na sua perspetiva, era ajustada para o local e condições climatéricas.
O veículo atropelante fazia uso de luzes.
Conhece bem o local, sendo que a faixa de rodagem tem traçado em reta, com extensão considerável, dotada de duas vias de trânsito, ladeadas por bermas e habitações. O piso encontrava-se molhado devido à chuva que caia. No local não existe nenhuma passagem para peões.
Testemunhas ouvidas nesta fase de instrução disseram no essencial, o seguinte:
F….
Estava numa bicha de "para arranca" no segundo carro atrás do veículo atropelante e no mesmo sentido deste. Seguia no banco do acompanhante. No local, não existe passadeira. Não se apercebeu do peão a atravessar. Foi quem primeiro socorreu a vítima por ser enfermeira de profissão.
Foi cerca das 20h00 horas, era de noite, chovia imenso a visibilidade era reduzida apesar de ter iluminação pública (lampião na faixa contrária) e a vítima trajava de roupa escura.
Seguiam em "para arranca" por estar muito trânsito. A vítima atravessou da esquerda para a direita e recorda-se de a pessoa que a acompanhava se ter lamentado de a vítima ter atravessado a correr à frente dos veículos.
G….
Condutor do veículo que seguia no carro imediatamente atrás do veículo que seguia na retaguarda do veículo atropelante. Nesse dia já era de noite, chovia torrencialmente, as condições de visibilidade eram reduzidas devido à pouca iluminação apesar do poste do lado esquerdo. Seguia no sentido Norte Sul na Estrada nacional N.. Seguia em "para arranca". Entre o seu veículo e o veículo atropelante seguia pelo menos uma viatura apenas com a distância de segurança entre os veículos. A marcha em que seguiam era uma marcha lenta quer o veículo que conduzia, quer os que seguiam à sua frente. Não podia ir a mais de 40 km hora naquelas condições climatéricas e de trânsito. Seguiam no "para arranca" todos os carros incluindo, o carro atropelante. Tem ideia que velocidade engrenada seria a segunda velocidade. Os carros que iam à sua frente mantiveram a mesma distância entre si. Nos momentos em que ia em Ia e 2a velocidade a distância entre os veículos manteve-se sempre a mesma (distância de segurança). Não se apercebeu da travessia da vítima. Quando se apercebeu do atropelamento, já estava um aglomerado de gente em frente ao restaurante e a mulher prestou assistência a vitima (testemunha F…). Quando avistou a vítima, esta estava junto à berma, mas já teria sido deslocada e trajava de negro. O veículo atropelante tinha os faróis ligados. No local existe uma paragem de autocarro no sentido Sul/Norte logo após o estacionamento em frente ao restaurante. O posicionamento desta paragem relativamente ao local em que viu a vítima, fica bem antes do local onde a mesma estava a ser assistida.
E…
Vinha no carro imediatamente atrás do veiculo atropelante no sentido …/… (sentido Norte/Sul). O acidente ocorreu em frente ao restaurante onde faz 50% das refeições. Seguia em direção a casa, estava a chover muito, eram cerca das 20h00 da noite e havia má visibilidade pelo facto de existir fraca iluminação. O veículo que conduzia era uma carrinha de caixa aberta e seguia em marcha lenta (cerca de 40/50 Km/hora) e admite ser possível vir com a 3ª velocidade engrenada, pois não era possível uma velocidade superior.
Apercebeu-se de um vulto que vinha do lado esquerdo da via, com roupa escura e tombou para a direita, à frente da viatura. Viu o carro atropelante a travar porque se apercebeu das luzes de travagem. O depoente também teve que travar de imediato. Referiu que se fosse ele o condutor do veículo que seguia à sua frente, teria sido ele a atropelar a vítima, porque também não se apercebeu da mesma.
O Veiculo que conduzia era uma carrinha por isso, tem mais altura relativamente ao solo. É superior a visibilidade por ficar quase ao nível do tejadilho dos veículos ligeiros de passageiros.
O peão após o embate ficou tombado do lado direito em frente do carro não sabendo precisar os metros a que ficou. Entre a vítima e local do embate ficou um espaço menor que um veículo ligeiro de passageiros.
Todos estes depoimentos se nos afiguraram sinceros porque nenhum interesse tinham na causa tratando-se de outros condutores que circulavam naquela via no momento do acidente. Todos presenciaram os factos, com exceção da testemunha que conduzia o veículo em que seguia a vítima, pelas razões que acima se deixaram consignadas mas, que apesar de ser familiar, admitiu que a mesma saiu do carro de forma rápida e atravessou a via a correr. Relativamente às restantes testemunhas, todas elas presenciaram de algum modo o acidente, tendo em conta o posicionamento dos respetivos veículos em que seguiam. Todas tiveram a mesma perceção da dinâmica do acidente relativamente à conduta da vítima e à atuação do condutor do veículo atropelante, referindo que o mesmo seguia a velocidade adequada para o local e para as características quer da via, quer climatéricas, velocidade que não puderam determinar com toda a segurança, mas sendo unânimes em referir que o veículo não poderia seguir a velocidade superior a 50 Km por hora já que atendendo à chuva, à fraca visibilidade e ao trânsito que se fazia sentir, seguiam numa velocidade de "para arranca", tendo algumas referido que a velocidade engrenada nunca foi superior à terceira velocidade. Para além do mais, todos seguiam próximo uns dos outros com a distância de segurança necessária entre os veículos. O condutor do veículo atropelante seguia com as luzes do veículo ligadas (quer na frente), quer nas traseiras.
Por outro turno, o peão surgiu de forma inesperada, atravessou a via a correr e com roupas escuras. Todos foram de igual modo consentâneos em concordar que naquelas circunstâncias, apesar de travar, o veículo do arguido não teria tempo de imobilizar o seu veículo por forma a evitar o embate.
Declarações do arguido:
Finalmente, nas declarações do arguido, que quer em inquérito quer em sede de instrução manteve a versão de que seguia no sentido Norte/Sul a velocidade moderada e numa fila de trânsito já que havia algum trânsito, chovia com intensidade e a visibilidade era reduzida. De repente e ao chegar junto ao restaurante N… e sem que nada o fizesse prever, deparou-se com um vulto já na sua hemifaixa vindo do lado esquerdo e em deslocação rápida para a sua direita. Ao aperceber-se tratar-se de um peão, imediatamente reagiu, acionando o mecanismo de travagem, contudo, ainda assim, não conseguiu evitar o embate no peão, na zona frontal direita do seu veículo pois que tudo foi muito rápido. A vítima trajava de roupa escura e segundo testemunhas no local estaria a atravessar a via a correr.
Seguia a uma velocidade aproximada entre 30/40 Km/hora atentas as condições climatéricas daquele dia e ao tráfico intenso que não permitia seguir a velocidade superior pelo que apesar de não ter a certeza, a velocidade engrenada não seria superior à terceira velocidade, pois que naquele local toda a gente seguia mais ou menos na mesma velocidade 2ª para arrancar e por conseguinte haveria uma constante modificação alternada de velocidades engrenadas (entre a 2a e 3a velocidades).
Pelo arguido foi ainda junta aos autos prova documental cujos originais se mostram juntos a fls.401 a 425, e que consiste na investigação tecno-pericial elaborada pelo I… ao acidente em causa nos presentes autos e cujo perito J… confirmou, analisou e prestou todos os esclarecimentos nesta fase de instrução, quer através do seu depoimento, quer no local do acidente na diligência de inspeção ao local.
Foi ainda junta aos autos prova documental, fotografias de fls. 513 a 517, tiradas no local do acidente e que foram igualmente analisadas pelo Sr. Perito J… aquando da sua prestação de depoimento.
Após análise e valoração de todos estes meios de prova, designadamente do relatório elaborado pelo I…, conjugado com a inquirição do perito J… e inspeção ao local onde o Tribunal se pode certificar do erro ocorrido aquando da elaboração do croqui efetuado pela autoridade policial, foi possível concluir que a dinâmica do acidente se desenrolou da forma que supra se deixou indiciada designadamente no tocante à velocidade imprimida pelo veículo conduzido pelo arguido e bem assim à distância de projeção da vítima desde o ponto do embate até ao local onde ficou imobilizada.
Na verdade, do relatório elaborado pelo I… de fls. 337 e s.s., pode constatar-se com evidência que os elementos que inicialmente serviram para elaborar o croqui estavam errados porquanto foram retirados de uma fotografia ao local do acidente através do Google Maps o que levou a afirmar a distância total do restaurante em frente ao qual ocorreu o acidente muito maior que a realidade e induziu em erro as restantes perícias realizadas em fase de inquérito designadamente a perícia feita pela companhia de seguros de fls.124 e s.s. e a perícia realizada pela L… de fls.174 e s.s. levando à conclusão que o veículo seguia a uma velocidade superior a 50 Km/hora e a distância de projeção do peão muito superior à efetivamente verificada.
As medições feitas nos croquis de fls. 10 e 79 baseadas na fotografia retirada do Google de fls. 125 é que levaram à conclusão do relatório de fls.194.
Só pela identificação do local do embate não é possível determinar a velocidade porque depende de outros fatores, designadamente da estatura da vítima, do tipo de veículo, o que não se conseguiu. Há todo um conjunto de variantes, que apenas com essa premissa não é possível detetar.
Na verdade, ouvido o perito J… em fase de instrução após este ter ainda acompanhado ao local o Tribunal juntamente com a equipe do I…, foi realizada a inspeção ao local com a reconstituição possível do acidente onde se verificou que a dinâmica deste ocorreu de forma diversa da relatada pela acusação.
O auto elaborado pela GNR partiu de um pressuposto errado, considerando algo que que na realidade tem como frente apenas 16 metros (o restaurante N…), está no auto como medindo 30 metros (a frente do restaurante N…) e por isso, existem 14 metros de diferença o que leva a uma projeção muito maior do peão, pois que na verdade, foram realizadas as medições através de uma fotografia retirada do GOOGLE Maps.(fs.125).
A medição da frente do restaurante N…, feita no local é 16 metros. Visto na imagem retirada do GOOGLE (fls, 125), dá a sensação que o telheiro junto ao restaurante é a continuação do mesmo o que, na verdade, in loco se verifica, é que são duas estruturas edificadas autónomas e distintas até em altura. Acresce que se enganaram inclusive no nome do restaurante. O restaurante é o restaurante N… e não O…. (Cfr.fls. 79, croqui que está feito á escala de 1/300 que dá aproximadamente 29 metros quando se constata pelas fotos que o restaurante N… tem apenas 16 metros de frente. A perícia em sede de inquérito (parte de um dado conhecido o local onde a vítima terá embatido no veículo fls.194).Contudo, e como bem explicou o perito ouvido em sede de instrução, partir apenas do local onde a vítima embate para determinar a partir daí a velocidade, não é possível detetar a velocidade do veículo apenas com essa premissa pois que depende de outros fatores, designadamente da estatura e peso da vítima do tipo de veículo, altura do mesmo, inclinação do para-brisas, peso da vítima etc), ou seja, um conjunto de variantes e que por isso não é possível detetar apenas pelo local de embate do peão.
O relatório do I… chega a uma velocidade e trajetória (percurso percorrido desde o embate até ao local em que ficou prostrada a vitima) diferente da constante de acusação, e teve como suporte as fotos obtidas após o sinistro, fotos do veículo, a análise do local e medição aí efetuada e não através de fotografia retirado do Google, que, como acima se deixou dito, levou a que as medidas se mostrassem erradas, o que nos foi dado a conhecer no local.
Ateve-se ainda ao diferencial entre o posicionamento do veículo ao momento do atropelamento e o posterior local onde a vítima ficou prostrada, o tempo e o espaço entre os dois locais, definindo assim a projeção da vítima assim como a velocidade a que se deslocava o veículo.
Explicou ainda no seu depoimento, o mesmo perito, que desde o momento entre o primeiro embate até ao momento em que a cabeça embate no para-brisas, o embate não é uma tacada de bilhar porque o carro também não está imobilizado. Todo o espaço de tempo entre o primeiro embate até que o peão cai no solo o veículo continua a circular.
Assim, verificados que foram os vestígios indicados em sede de participação do acidente elaborado pelas autoridades policiais (GNR) onde a vitima se prostrou e o local onde através de todos os elementos disponíveis e igualmente do conjunto da prova testemunhal recolhida foi possível verificar o real ponto de atropelamento, sendo possível cotar um diferencial de 6,60 metros o que, aliado à possível análise aos danos do veiculo atropelante (através das fotos recolhidas) conseguiu a mesma peritagem concluir que o mesmo se deslocaria a uma velocidade aproximada de cerca de 42,958 Km/hora) velocidade adequada para o local e às circunstâncias da via e que o único motivo preponderante para o desfecho do sinistro terá sido o fator surpresa que traiu o condutor do veiculo atropelante, aqui arguido, pelo inesperado, irresponsável e perigoso atravessamento da faixa de rodagem por parte da vitima.
Aqui chegados, cumpre referir que, apesar da minuciosa regulamentação das provas efetuada pelo CPP, salvo os casos em que a lei define critérios de apreciação vinculada, vigora o princípio geral de que a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador - Art.l27° do CPP.De harmonia com o disposto no artigo 127.° do C.P.P., salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Esta regra da livre apreciação da prova tem algumas exceções, designadamente as respeitantes ao valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (artigo 169.°); ao caso julgado, não obstante este apenas se encontrar indiretamente regulado no C.P.P., a propósito do pedido civil (artigo 84.°); à confissão integral e sem reservas no julgamento (artigo 344.°) e à prova pericial (artigo 163. °).
O artigo 163.° do C.P.P. dispõe:
«1 - O juízo técnico, cientifico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.»
Reconhecendo-se que o juiz não comporta um saber enciclopédico, este artigo fixa o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção "júris tantum" de validade do parecer técnico, científico ou artístico ofertado pelo perito, que obriga o julgador. O que determina que a conclusão a que chegou o perito só pode ser afastada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (n° 2 do artigo 163°). O regime constante do Código de Processo Penal tem por base a posição defendida pelo Prof. Figueiredo Dias, para quem os dados de facto do arrazoado técnico estão sujeitos à livre apreciação do julgador - "que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer" - enquanto que o juízo científico expendido só é passível de crítica "igualmente material e científica". Exceções seriam os casos inequívocos de erro, nos quais o juiz deve motivar sua divergência (Direito Processual Penal, I, Reimpressão de 1984, p. 209; Cfr, também, Maria do Carmo Silva Dias, Revista do CEJ, 2.° semestre de 2005, n°3 p.219).
A prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.
Quanto à validade, importa aferir se a prova foi produzida de acordo com a lei, ou se não foi produzida contra proibições legais e examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente.
Com relação à matéria de facto em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não é posto em causa o juízo de carácter técnico-cientifico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria.
É esta a interpretação corrente dada pelos tribunais ao art. 163°, do Código de Processo Penal, atenta a sua função de auxiliar do julgador, a quem incumbe a função de fixação dos factos, para que dispõe dos adequados conhecimentos jurídicos e da experiência da vida (cfr. Acórdão do S.T.J., de 11 de Julho de 2007, processo 07P1416, www.dgsi.pt).
No caso em apreço, constata-se que o relatório a que deu relevo o M.P e que motivou a acusação se reporta a um parecer elaborado pelo L… o qual, pelas supra razões acima referidas parte de premissas erradas, baseando-se num croqui elaborado pela autoridade policial cujas medidas não se mostram corretas o que nos foi possível averiguar na ida ao local. Existe contudo nos autos o relatório elaborado pelo I… que foi solicitado pelo arguido em fase de instrução.
Existem como já se referiu, dois relatórios que são divergentes elaborados de forma diferente, não estando o Tribunal vinculado a acolher como "bom" apenas o mencionado pelo M.P. que foi adotado pela acusação.
Perante tais elementos, está o tribunal habilitado a ponderar tais relatórios/pareceres, avaliando os respetivos pressupostos e confrontando-os com os elementos colhidos da prova produzida quer em inquérito, quer nesta fase de instrução, designadamente com declarações do arguido e testemunhas, demais relatórios e prova documental, no quadro do princípio da livre apreciação da prova.
E não sendo coincidentes os relatórios, quanto à dinâmica do acidente, é óbvio que não podem ser acolhidas simultaneamente como reproduzindo a verdade dos factos, pelo que cabe ao tribunal ponderá-las, à luz da restante prova produzida, analisada criticamente.
Ora o relatório elaborado pelo I…, foi por nós confrontado e analisado aquando da deslocação ao local aí se podendo realizar a reconstituição do acidente com as medições corretas verificando-se que a projeção do peão e bem assim a velocidade não pode ser a indicada na acusação. A isto acresce que a dinâmica do acidente relatada em tal perícia é corroborada pelos depoimentos de todas as testemunhas ouvidas quer em sede de inquérito, quer já nesta fase de instrução, a que não pode ignorar-se a versão do arguido, porquanto as suas declarações mostram-se corroboradas por todos estes elementos de prova, quer documental, quer testemunhal, quer pericial.
Em face do conjunto da prova produzida, apreciada de forma crítica e segundo as regras da experiência, conclui-se, portanto que a dinâmica do acidente terá ocorrido não da forma como vem referido na acusação mas sim da forma como vem referido no requerimento de abertura de instrução do arguido.
Após análise critica, de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, discordamos da conclusão a que se chegou em fase de inquérito, tendo em conta os elementos probatórios recolhidos e constantes dos autos até ao final do inquérito e que foram reforçados nesta fase de instrução.
O DIREITO:
A decorrência "fáctica" do que vimos analisando, poder-se-á afirmar que existem indícios de que morte da vítima foi causada (e/ou também causada) por negligência do arguido aquando do exercício da condução automóvel?
Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
Vem ao arguido imputada a prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência previsto e punível pelo art° 137° n° 1 do Código Penal e 24°n°l, 25°n°l al.c) e 27°n°1 do Cód. da Estrada.
Importa, antes de mais, analisar os elementos típicos deste ilícito, por forma a concluir pela correta qualificação criminal da conduta do arguido.
Dispõe o art° 137° do Código Penal que: "1- Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 -...."
Estamos, assim, perante um crime negligente. Neste tipo de crimes, contrariamente ao que acontece nos tipos dolosos continua a discutir-se se deve distinguir-se entre um tipo objetivo e um tipo subjetivo de ilícito.
A este propósito Teresa Beleza, citando Fragoso e Stratenwerth, refere: "O que é característico dos crimes negligentes, ao contrário dos crimes dolosos, é justamente a incongruência entre a situação objetiva e a situação subjetiva. Na negligência, a pessoa não representa uma situação objetiva, ou se a representa como uma possibilidade, não se convence dela, e, portanto, essa incongruência, essa oposição, essa contradição entre a realidade objetiva e a representação duma pessoa é justamente aquilo que é característico dos crimes negligentes; e por isso talvez não se deva falar no elemento subjetivo do tipo de crime" (in Direito Penal Vol. II, pág. 573, AAFDL).
Hoje é doutrina dominante que a negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa. Isto é, como violação de um dever de cuidado objetivo, faz parte do tipo de ilícito, como censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa. Tal é, aliás, consagrado na própria definição legal de negligência, plasmada no art° 15° do Código Penal: "Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado..." isto é violação do cuidado objetivamente devido, que corresponde ao tipo de ilícito e "... e de que é capaz", ou seja capacidade instrumental (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo o seu conhecimento e capacidades pessoais), que corresponde ao tipo de culpa (No mesmo sentido Figueiredo Dias in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora - 2001, pág. 352).
Tem, assim, que haver sempre a violação de um dever de cuidado e capacidade instrumental. Esta capacidade instrumental é a capacidade que detém o "homem médio". Quando se diz "homem médio", é o "homem médio pertencente à categoria intelectual e social do círculo de vida do agente" (Figueiredo Dias ob. citada). Ou seja, não é propriamente a violação de um dever de cuidado exigível a uma pessoa média. Em termos de previsibilidade de um certo resultado, teremos de analisar não só aquilo que é previsível e evitável para a generalidade das pessoas, mas também se para aquela pessoa em concreto, era previsível e evitável que um certo acontecimento se desse.
Nos termos do mesmo preceito legal, a negligência será consciente quando o agente tenha representado como possível a realização de um facto que preencha um tipo de crime, mas tenha atuado sem se conformar com essa realização, e será inconsciente quando nem sequer chegue a representar a possibilidade de realização do facto.
Estas duas categorias não são hierarquizáveis, no sentido de ser uma mais grave que outra.
Conforme refere Maia Gonçalves em anotação ao Ac. STJ de 12 de Outubro de 1966, BMJ 160, a negligência inconsciente abarca dois tipos de casos:
aqueles em que a lei, para evitar certos resultados, quer que o agente represente a possibilidade de produção dos mesmos, a fim de que se abstenha de condutas que os podem produzir;
os casos em que a lei, "rendendo tributo ao progresso", aceita a prática de condutas perigosas, mas quer que aqueles que as pratiquem prevejam os resultados antijurídicos que delas possam advir e tomem cuidados especiais com vista a evitá-los (ex: domínios da circulação terrestre, da industrialização, etc.).
Corresponde ao último caso o ora "sub juditio". E isto porque os crimes de homicídio por negligência cometidos nas nossas estradas, resultam na sua quase totalidade, da elevada perigosidade que a circulação rodoviária acarreta e, consequentemente, da violação de deveres de cuidado estabelecidos por lei com vista a evitar que essa perigosidade não se concretize.
No domínio da circulação rodoviária, há que referir um princípio fundamental desenvolvido pela jurisprudência, denominado "princípio da confiança", o qual retira o desvalor da ação quando o agente tenha atuado, confiando que os outros tenham cumprido os seus deveres de cuidado. Ou seja, uma pessoa pode legitimamente esperar que as outras pessoas tenham sucessivamente cumprido, os seus deveres de cuidado, que lhes impunham, a eles próprios, um certo comportamento. Se um condutor circular pela sua mão de trânsito, tem o direito de partir do princípio que o condutor que circula em sentido contrário também o faz. 0 condutor que vai na rua e vê um peão, para quem o sinal está vermelho, tem o direito de presumir que o peão não vai atravessar a rua, etc.
Volvendo ao caso, os elementos constantes dos autos permitem um juízo de alta probabilidade de condenação do arguido?
Invoca a acusação a violação do disposto nos art° 24° n°l, 25° n°l al.c) e 21° n°l do Cod. da Estrada por parte do arguido no exercício da condução automóvel.
Dispõe o art°24° n°l do C.E. que " 0 condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo â presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente".
Reza o art° 25° n°l al.c) que "sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade dentro das localidades ou vias marginadas por edificações".
Refere por seu turno o art° 21° n°l do mesmo diploma legal que "sem prejuízo do disposto nos arts° 24° e 25° e de limites inferiores que lhes sejam impostos, os condutores de veículos ligeiros de passageiros ou mistos não podem exceder dentro das localidades, a velocidade instantânea de 50 Km".
No que tange ao disposto no art° 27° n°l do Cod. da Estrada, desde logo, o arguido não violou o disposto neste preceito legal, pois que, como resulta da matéria indiciada, não foi possível apurar em concreto a velocidade a que seguia o veículo conduzido pelo arguido, mas circulava seguramente a uma velocidade não superior a 50 Km/hora.
Resta agora analisar, se apesar disso, o arguido desrespeitou o disposto nos citados arts° 24° n°l e 25° n°l al.c).
A regra de que o condutor deve especialmente fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente significa dever assegurar-se, no exercício da condução automóvel, de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso de necessidade, o fazer parar. Ela rege especialmente para o caso de os condutores circularem com veículos automóveis à sua vanguarda e pressupõe a não verificação de condições anormais ou obstáculos inesperados, não lhe sendo exigível que contem com eles, sobretudo os derivados da imprevidência alheia.
Dispõe o art° 101°, do Código da Estrada que "1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.
2- O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.
3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 metros".
Ora, esta norma terá sido infringida pelo próprio peão que, desde logo, pese embora não exista passadeira no local optou por atravessar a via, de forma inesperada e repentina. Fez a travessia a correr entre os veículos, num dia de chuva, com tráfico intenso, numa via com pouca iluminação não só pela fraca visibilidade mas também pelas condições climatéricas que se faziam sentir e trajando roupa escura.
Inobservando esta regra rodoviária primária, omitiu um dever objetivo de cuidado, atuando com leviandade e incúria, não tomando providências necessárias que lhe permitiriam evitar o atropelamento, pois não é exigível que o arguido que circulava a uma velocidade adequada para o local e circunstâncias da via, pudesse contar e prever esse comportamento inesperado por forma a encetar qualquer manobra e evitar o embate. É assim possível concluir que a conduta do arguido em nada contribuiu para a produção do acidente, antes o mesmo se devendo ao repentino e perigoso atravessamento da via por parte da vítima, devendo relativamente ao arguido ser proferido despacho de não pronúncia.
DECISÃO:
Pelo exposto, determino, não pronunciar o arguido B….”

Conhecendo.

Quanto aos vícios previstos no art. 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal, todos eles têm forçosamente, como decorre do texto do corpo do n.º 2, que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo possível, para a sua demonstração, o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações prestadas ou documentos juntos durante o inquérito, a instrução, ou até mesmo no julgamento – cfr. Ac. STJ de 19-12-90, citado por Maia Gonçalves em anotação a este artigo.
Tais vícios são intrínsecos à própria decisão considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais.
Não se descortinam tais vícios nomeadamente o erro notório.
Nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do C. P. P. é também fundamento de recurso o erro notório na apreciação da prova.
Este erro é aceite como aquele em que incorre o tribunal de modo ostensivo, evidente aos olhos de um observador comum, patente a esse homem de formação média – Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3.º volume, página 326, e por exemplo, Ac. da R. Coimbra de 17/12/2014, www. dgsi.pt -.
Ora, a violação de análise de regras de experiência poderia ser um dos motivos para sustentar um tal erro no sentido de que o tribunal valorava regras de experiência que entendia como existentes quando afinal não existiam ou valorava tais regras existentes num sentido contrário àquele que as mesmas determinavam.
Em termos de vícios constantes das alíneas do nº 2 do artº 410º do CPP, verifica-se que o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se perfila a existência de qualquer dos vícios aludidos no nº 2 do artº 410º do CPP, pois que a matéria de facto indiciariamente provada é bastante para a decisão de direito, inexistem contradições insuperáveis de fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, não se afigurando, por ouro lado, que haja situações contrárias à lógica ou à experiência comum, constitutivas de erro patente detetável para qualquer pessoa que ao ler a decisão compreenda a sua exposição factual.
No caso do vício de erro notório na apreciação da prova exige-se a evidência de um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores da decisão recorrida e que se traduza em uma conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Ou seja, que perante os factos indiciariamente provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, 200
No caso concreto cabe desde já dizer que o recorrente invoca os vícios prevenidos no nº2 do artº 410º do CPP fora das condições legais, uma vez que se limita a divergir do modo como o tribunal recorrido valorou a prova produzida em sede de instrução, sendo que o que pretende é contestar a valoração da prova indiciária, trazendo à colação a sua própria valoração dos factos, sendo que em sede de instrução é legalmente inadmissível invocar tais vícios cfr. in www dgsi ac. RL de 24-11-2020 que se transcreve na parte que interessa “O vício de erro notório na apreciação da prova, bem como os demais enunciados no nº 2, do artigo 410º, do CPP, são vícios relativos à sentença, não tendo aplicação à decisão instrutória a que se reporta o artigo 307º, do mesmo Código – cfr. os acs. da Relação de Lisboa de 03.04.2019, processo n.º 3106/18.6T9LSB.L1, e de 31/10/2017, processo n.º 3335/16.7.T9SNT.L1, acs. da Relação do Porto de 15/02/2012, Proc. nº 918/10.2TAPVZ.P1 e de 18/04/2012, Proc. nº 4454/10.9TAVNG.P1 e ac. da Relação de Évora de 03/07/2012, Proc. nº 4016/08.0TDLSB.E1, todos disponíveis em dgsi.pt.
E, assim é, porque dizem respeito à matéria de facto provada (e/ou não provada) o que inexiste numa decisão instrução, que apenas pode concluir pela existência de matéria de facto suficientemente indiciada ou não indiciada, o que se declara, acrescendo que esses vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência, o que exclui o recurso a quaisquer elementos externos à decisão, ainda que constantes do processo, para a sua detecção e o certo é que a apreciação do recurso da decisão instrutória impõe a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo, tanto os presentes no inquérito como os produzidos já na fase de instrução, para se concluir sobre a sua suficiência ou não com vista à prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, respectivamente, pelo que a crítica à decisão sobre a existência ou inexistência dos indícios não é admissível pela invocação do vício de erro notório na apreciação da prova tal como no nosso ordenamento jurídico se encontra configurado - Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal - Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, pág. 909.
Aliás, basta verificar que se não for possível decidir da causa por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do art.º 410.º, do CPP, o tribunal de recurso determina o reenvio para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio - cfr. art.º 426.º, do CPP. O que pressupõe, como bem se refere no ac. da Relação de Lisboa de 03.04.2019, processo n.º 3106/18.6T9LSB.L1, que os vícios tenham derivado de um julgamento anterior e não de diligências realizadas em fase de instrução que culmina numa decisão instrutória que reveste a forma de um despacho.”

Passemos agora à análise dos factos indiciários constantes da pronúncia e seu enquadramento legal.
Uma primeira observação para referir que este tribunal superior atentou em toda a documentação junta aos autos e ouviu atentamente a prova gravada.

Estabelece o art. 308.°, n.° 1 do Código Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de urna pena ou de urna medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Segundo o art. 283.°, n.° 2, para onde remete o art. 308.°, n.° 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar urna possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, urna pena ou medida de segurança”. Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, está o disposto no art. 286.°, n.° 1, segundo o qual “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
De acordo com o princípio “in dubio pro reo” sempre que se esteja, no decurso da apreciação e avaliação da prova perante uma dúvida irremovível e razoável, quanto à verificação de certos factos que geram a sua incerteza, deve o Tribunal favorecer o arguido. Aliás, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de realçar a relevância deste princípio e da inadmissibilidade da sua exclusão na valoração da prova que está subjacente ao despacho de pronúncia, ao “julgar inconstitucionais os artigos 286°, n°1, 298°, e 308°, n° 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32 n° 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de uni juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil.” [Ac. 439/02]. O mesmo tem sido assinalado pela demais jurisprudência, segundo a qual “O juízo de prognose que determinará a sujeição do arguido a julgamento é equivalente tanto na fase de inquérito, como na fase de instrução, e exige uma possibilidade de condenação em julgamento que respeite o princípio in dubio pro reo.” [Ac. R. Porto de 2011/Nov./23].
Em suma, podemos dizer que “Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito democrático e da presunção da inocência impõem que a expressão indícios suficientes (308°/JCPP,) seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final” (Ac. R. Porto de 2010/Jan./20).

Isto significa que no culminar da fase de instrução, como se refere no Ac. desta Relação de 2006/Jan./04, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases. Em primeiro lugar, por um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada. Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido. Por último efetuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se conclua que predomina uma razoável possibilidade do arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se sempre um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efetuar em julgamento.

Está em causa um crime de homicídio negligente.

Conforme do Ac. da RP de 09.05.2018 (proc. nº 20/15.0GTPNF.P2; rel. Exmº Desembargador JORGE LANGWEG) “São elementos constitutivos do crime de homicídio por negligência:
- conduta humana traduzida numa acção ou omissão;
- infracção do dever objectivo de cuidado;
- possibilidade de imputação objectiva do resultado (a morte) à conduta contrária ao dever;
- ausência de causas de justificação da conduta;
- autor imputável e com as faculdades e experiência que lhe permitam reconhecer o dever de cuidado objectivamente exigido e prever o curso causal que conduz ao resultado concreto produzido.
Verifica-se a negligência sempre que o agente, ao actuar, omite os deveres de cuidado que as circunstâncias concretas inerentes àquele impõe ou são exigíveis para evitar eventos danosos. Nessa medida, os resultados só se verificam por o agente não tomar as precauções adequadas a evitá-las e, como tal, não prevê ou não prevê com exactidão esse resultado como consequência normal e adequada da sua conduta.
E os cuidados reclamados são tanto maiores quanto maior for a perigosidade decorrente do exercício de uma actividade para com terceiros, maxime, o tráfego rodoviário.
Mas para que se possa imputar ao agente o juízo de reprovação ético-social por não conformar a sua actuação com a ordem jurídica, é necessário que o agente possa e seja capaz de, face às circunstâncias, conhecer delas e tomar as precauções devidas e idóneas para evitar o resultado. É preciso lançar mão do critério do homem concreto “individualizado”, no sentido de se saber se outra pessoa, com as mesmas qualidades do agente, não teria rodeado a sua conduta com as precauções devidas para evitar o resultado e, como tal, actuado de modo diverso.
Antes de nos debruçarmos sobre o caso sub judice, convém referir certas regras estradais com interesse para a delimitação da situação.
O artº 24, nº1 do CE dispõe que “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”
Por seu turno, o artº 25, do CE estipula que:
Velocidade moderada
1 - Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade:
a) À aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões e ou velocípedes;
b) À aproximação de escolas, hospitais, creches e estabelecimentos similares, quando devidamente sinalizados;
c) Nas localidades ou vias marginadas por edificações;
d) Nas zonas de coexistência;
e) À aproximação de utilizadores vulneráveis;
f) À aproximação de aglomerações de pessoas ou animais;
g) Nas descidas de inclinação acentuada;
h) Nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de visibilidade reduzida;
i) Nas pontes, túneis e passagens de nível;
j) Nos troços de via em mau estado de conservação, molhados, enlameados ou que ofereçam precárias condições de aderência;
l) Nos locais assinalados com sinais de perigo;
m) Sempre que exista grande intensidade de trânsito.
E quanto ao trânsito de peões:
O artº 101, do CE prescreve sobre o atravessamento da faixa de rodagem:
1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.
2 - O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.
3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.
4 - Os peões não devem parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito”- fim de citação.
Seguindo de perto o Prof. Figueiredo Dias (in Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 352/354), a opinião largamente maioritária da dogmática do crime negligente é a chamada doutrina do “duplo escalão”, que se exprime: a) Pelo tipo de ilícito do facto negligente: “(...) considera-se preenchido por um comportamento sempre que este discrepa daquele que era objectivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para desse modo se evitar uma violação juridicamente indesejada. (...) Para além disso torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico; e consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social do círculo de vida do agente; b) Pelo tipo de culpa do facto negligente: que se considera preenchido quando se conclui que “(...) o mandato geral de cuidado e previsão podia também ser cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades “individuais”, isto é, rigorosamente, da inteligência, da formação e da experiência de vida dos homens como agente agindo na circunstância”.
É exactamente esse posicionamento perante o risco que surge como critério separador entre figuras que detêm uma topografia próxima. Assim, o conceito de dolo eventual configura-se, também, por contraposição ao conceito de negligência consciente que o limita de forma directa. A negligência consciente significa que o autor reconheceu na verdade o perigo concreto, mas não o tomou seriamente em conta, porque, em virtude de uma violação do cuidado devido em relação à valoração do grau de risco ou das suas próprias faculdades, nega a concreta colocação em perigo do objecto da acção, ou, não obstante considerar seriamente tal possibilidade, confia, também de forma contrária ao dever, em que não se produzirá o resultado lesivo.
É sabido que num âmbito de dinâmica social existem condutas especialmente aptas para produzir determinados resultados. A regra nestes casos é simples: quando um sujeito leva a cabo uma conduta especialmente apta para produzir um determinado resultado lesivo e o faz sendo conhecedor da perigosidade abstracta de tal conduta e contando com um perfeito «conhecimento situacional» entende-se, num ponto de vista social, que necessariamente avaliou que a sua conduta era apta para produzir o citado resultado lesivo naquela especifica situação.
A negligência é por natureza o campo onde a conduta se traduz na omissão de dever objectivo de cuidado ou de atenção, que o agente, dentro das suas possibilidades e de acordo com as circunstâncias do caso, deveria ter actuado, não o fazendo ou fazendo-o imperfeitamente, assim originando a produção de um resultado que deveria e poderia, também de acordo com as circunstâncias concretas, ter previsto.
Assim, a verificação do tipo de ilícito inerente à negligência estrutura-se a partir de três elementos: a omissão de um dever objectivo de cuidado que ainda não pertence à culpa já que tal elemento intervém no que respeita à adequação causal da conduta a criar o risco de produção de resultados que a lei visa evitar (juízo normativo); possibilidade de prever o perigo de realização do tipo (previsibilidade objectiva); e, finalmente, já dentro da culpa, exigir-se que o agente possa e seja capaz de prever ou de prever correctamente a produção do resultado típico (culpabilidade).
Antes do mais interessa averiguar se o arguido deixou de cumprir os deveres de cuidado a que se encontrava adstrito (conceito de cuidado objectivo e normativo).
A omissão do dever objectivo de cuidado consiste em o agente não ter usado da diligência exigida, que é requerida na vida da relação social relativamente ao comportamento em causa.
Na verdade, a manifestação mais evidente da falta de cuidado consiste na violação de normas estradais que pautam o exercício da condução rodoviária, que sem ser ilícita- por se reconhecer a sua utilidade social- apresenta riscos que lhe são inerentes.
É evidente que a circulação rodoviária é uma actividade que envolve um especial risco e, como tal, deverá qualquer condutor ter presentes os cuidados impostos pelas regras de trânsito destinados a esbater tais riscos, e circular com atenção.
Ora, para que haja negligência, além de uma actividade que viole normas de conduta, é necessário que o evento seja previsível, e só a omissão desse dever impeça a sua previsão (objectiva). Daqui resulta que torna-se necessário que esse dever vise obstar à produção do evento, isto é, seja adequado a evitá-lo, como se constatou nos presentes autos.
A previsibilidade e o dever de prever, que assim objectivamente limitam a negligência é determinada de acordo com as regras gerais de experiência dos homens ou de certo tipo de homem.
Neste momento importa averiguar se o nexo de causalidade se encontra estabelecido, já que deste modo se fixa objectivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência.
A este respeito, escreveu o Prof. Eduardo Correia (in Direito Criminal, I, p. 421 ss.,) quando abordou a causalidade nas acções por negligência, que a adequação não consiste unicamente na previsibilidade do resultado inevitável, mas antes na sua previsibilidade como consequência normal, típica de uma certa conduta, e que a mera omissão de um dever jurídico não implica desde logo a possibilidade objectiva de negligência. É necessário que esse dever vise obstar à produção do evento, isto é, que seja adequado a evitá-lo.
De qualquer modo, a adequação da acção deverá referir-se a todo o processo causal e não só ao evento, o não quer dizer que a actuação de um terceiro interrompa necessariamente o nexo causal, pois tal actuação pode ser previsível pelo agente, e neste caso o resultado continuará a ser imputável
Acresce que, o que é relevante para o direito é que exista previsibilidade objectiva, senão muitas condutas negligentes só conduziriam ao evento em casos raros.
Importa salientar que, se as condutas do agente e da vítima se revelam como favorecedoras do resultado, haverá lugar à imputação deste ao primeiro, desde que, com a sua acção imprudente e violadora de regras estradais, foi maior a eficácia causal da sua intervenção.
Assim, mesmo que a acção da vítima concorra com o comportamento do agente, enquanto comportamento negligente, o resultado é ainda imputado ao agente, visto que no direito penal, onde se lida com interesses públicos, não é admissível uma compensação de negligências, que o direito civil admite com base num critério patrimonial. Por outro lado, revestindo o concurso negligente importância mínima, a pena deverá ser atenuada, uma vez que é mínimo o contributo causal.
Finalmente, é ainda necessário que o agente possa prever ou seja capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de representar ou de os representar correctamente a realização do tipo legal de crime.
São duas as formas de aparecimento da conduta negligente criminalmente punível a saber: a negligência consciente e a negligência inconsciente que se encontram delimitadas no art. 15º do C. Penal.
Em qualquer destas categorias se exige a capacidade do agente para proceder com os cuidados que, segundo as circunstancias, seriam os indicados.
Não está aqui em causa o indiscernível poder de agir de outra maneira na situação, mas um critério subjectivo e concreto que deve partir do que seria razoavelmente esperar do homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição.
Posto isto, numa primeira abordagem a primeira perícia junta ao processo implicaria a suficiência de indícios para levar o arguido a julgamento. Contudo, a segunda perícia e inspeção ao local permitem, desde logo concluir que a primeira partiu de pressupostos factualmente errados, as distâncias não estavam bem calculadas permitindo concluir que o arguido não ia a mais de 50km/h.
Na verdade, tal como pormenorizadamente se alcança da decisão recorrida, esta declarou extrair do relatório do I…, de fls. 401 a 425, certamente em conjunto com a demais prova produzida, nomeadamente da inspeção ao local, que os croquis de fls. 10 e 78 e 79 estão errados, porquanto os elementos que inicialmente serviram para os elaborar foram retirados de uma fotografia ao local do acidente através do Google Maps, o que levou a afirmar a distância total do restaurante (número de metros da frente do restaurante voltada para a via) em frente ao qual ocorreu o acidente muito maior que a realidade e induziu em erro as restantes perícias realizadas em fase de inquérito designadamente as de fls. 124 e ss., e de fls. 174 e ss., levando à conclusão que o veículo seguia a uma velocidade superior a 50 Km/h e a distância de projeção do peão muito superior à efetivamente verificada, cfr. fls. 555 e 556 da decisão instrutória.
Neste sentido a decisão a quo é profícua a explicar corretamente o seu raciocínio “No caso em apreço, constata-se que o relatório a que deu relevo o M.P e que motivou a acusação se reporta a um parecer elaborado pelo L… o qual, pelas supra razões acima referidas parte de premissas erradas, baseando-se num croqui elaborado pela autoridade policial cujas medidas não se mostram corretas o que nos foi possível averiguar na ida ao local. Existe contudo nos autos o relatório elaborado pelo I… que foi solicitado pelo arguido em fase de instrução.
Existem como já se referiu, dois relatórios que são divergentes elaborados de forma diferente, não estando o Tribunal vinculado a acolher como "bom" apenas o mencionado pelo M.P. que foi adotado pela acusação.
Perante tais elementos, está o tribunal habilitado a ponderar tais relatórios/pareceres, avaliando os respetivos pressupostos e confrontando-os com os elementos colhidos da prova produzida quer em inquérito, quer nesta fase de instrução, designadamente com declarações do arguido e testemunhas, demais relatórios e prova documental, no quadro do princípio da livre apreciação da prova.
E não sendo coincidentes os relatórios, quanto à dinâmica do acidente, é óbvio que não podem ser acolhidas simultaneamente como reproduzindo a verdade dos factos, pelo que cabe ao tribunal ponderá-las, à luz da restante prova produzida, analisada criticamente.
Ora o relatório elaborado pelo I…, foi por nós confrontado e analisado aquando da deslocação ao local aí se podendo realizar a reconstituição do acidente com as medições corretas verificando-se que a projeção do peão e bem assim a velocidade não pode ser a indicada na acusação. A isto acresce que a dinâmica do acidente relatada em tal perícia é corroborada pelos depoimentos de todas as testemunhas ouvidas quer em sede de inquérito, quer já nesta fase de instrução, a que não pode ignorar-se a versão do arguido, porquanto as suas declarações mostram-se corroboradas por todos estes elementos de prova, quer documental, quer testemunhal, quer pericial.
Em face do conjunto da prova produzida, apreciada de forma crítica e segundo as regras da experiência, conclui-se, portanto que a dinâmica do acidente terá ocorrido não da forma como vem referido na acusação mas sim da forma como vem referido no requerimento de abertura de instrução do arguido.
Após análise critica, de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, discordamos da conclusão a que se chegou em fase de inquérito, tendo em conta os elementos probatórios recolhidos e constantes dos autos até ao final do inquérito e que foram reforçados nesta fase de instrução.”
De facto, refere a decisão a quo “Após análise e valoração de todos estes meios de prova, designadamente do relatório elaborado pelo I…, conjugado com a inquirição do perito J… e inspeção ao local onde o Tribunal se pode certificar do erro ocorrido aquando da elaboração do croqui efetuado pela autoridade policial, foi possível concluir que a dinâmica do acidente se desenrolou da forma que supra se deixou indiciada designadamente no tocante à velocidade imprimida pelo veículo conduzido pelo arguido e bem assim à distância de projeção da vítima desde o ponto do embate até ao local onde ficou imobilizada.
Na verdade, do relatório elaborado pelo I… de fls. 337 e s.s., pode constatar-se com evidência que os elementos que inicialmente serviram para elaborar o croqui estavam errados porquanto foram retirados de uma fotografia ao local do acidente através do Google Maps o que levou a afirmar a distância total do restaurante em frente ao qual ocorreu o acidente muito maior que a realidade e induziu em erro as restantes perícias realizadas em fase de inquérito designadamente a perícia feita pela companhia de seguros de fls.124 e s.s. e a perícia realizada pela L… de fls.174 e s.s. levando à conclusão que o veículo seguia a uma velocidade superior a 50 Km/hora e a distância de projeção do peão muito superior à efetivamente verificada.
As medições feitas nos croquis de fls. 10 e 79 baseadas na fotografia retirada do Google de fls. 125 é que levaram à conclusão do relatório de fls.194.
Só pela identificação do local do embate não é possível determinar a velocidade porque depende de outros fatores, designadamente da estatura da vítima, do tipo de veículo, o que não se conseguiu. Há todo um conjunto de variantes, que apenas com essa premissa não é possível detetar.
Na verdade, ouvido o perito J… em fase de instrução após este ter ainda acompanhado ao local o Tribunal juntamente com a equipe do I…, foi realizada a inspeção ao local com a reconstituição possível do acidente onde se verificou que a dinâmica deste ocorreu de forma diversa da relatada pela acusação.
0 auto elaborado pela GNR partiu de um pressuposto errado, considerando algo que que na realidade tem como frente apenas 16 metros (o restaurante N…), está no auto como medindo 30 metros (a frente do restaurante N…) e por isso, existem 14 metros de diferença o que leva a uma projeção muito maior do peão, pois que na verdade, foram realizadas as medições através de uma fotografia retirada do GOOGLE Maps.(fs.125).
A medição da frente do restaurante N…, feita no local é 16 metros. Visto na imagem retirada do GOOGLE (fls, 125), dá a sensação que o telheiro junto ao restaurante é a continuação do mesmo o que, na verdade, in loco se verifica, é que são duas estruturas edificadas autónomas e distintas até em altura. Acresce que se enganaram inclusive no nome do restaurante. O restaurante é o restaurante N… e não O…. (Cfr.fls. 79, croqui que está feito á escala de 1/300 que dá aproximadamente 29 metros quando se constata pelas fotos que o restaurante N… tem apenas 16 metros de frente. A perícia em sede de inquérito (parte de um dado conhecido o local onde a vítima terá embatido no veículo fls.194).Contudo, e como bem explicou o perito ouvido em sede de instrução, partir apenas do local onde a vítima embate para determinar a partir daí a velocidade, não é possível detetar a velocidade do veículo apenas com essa premissa pois que depende de outros fatores, designadamente da estatura e peso da vítima do tipo de veículo, altura do mesmo, inclinação do para brisas, peso da vítima etc), ou seja, um conjunto de variantes e que por isso não é possível detetar apenas pelo local de embate do peão.
O relatório do I… chega a uma velocidade e trajetória (percurso percorrido desde o embate até ao local em que ficou prostrada a vitima) diferente da constante de acusação, e teve como suporte as fotos obtidas após o sinistro, fotos do veículo, a análise do local e medição aí efetuada e não através de fotografia retirado do Google, que, como acima se deixou dito, levou a que as medidas se mostrassem erradas, o que nos foi dado a conhecer no local.
Ateve-se ainda ao diferencial entre o posicionamento do veículo ao momento do atropelamento e o posterior local onde a vítima ficou prostrada, o tempo e o espaço entre os dois locais, definindo assim a projeção da vítima assim como a velocidade a que se deslocava o veículo.
Explicou ainda no seu depoimento, o mesmo perito, que desde o momento entre o primeiro embate até ao momento em que a cabeça embate no para-brisas, o embate não é uma tacada de bilhar porque o carro também não está imobilizado. Todo o espaço de tempo entre o primeiro embate até que o peão cai no solo o veículo continua a circular.
Assim, verificados que foram os vestígios indicados em sede de participação do acidente elaborado pelas autoridades policiais (GNR) onde a vitima se prostrou e o local onde através de todos os elementos disponíveis e igualmente do conjunto da prova testemunhal recolhida foi possível verificar o real ponto de atropelamento, sendo possível cotar um diferencial de 6,60 metros o que, aliado à possível análise aos danos do veiculo atropelante (através das fotos recolhidas) conseguiu a mesma peritagem concluir que o mesmo se deslocaria a uma velocidade aproximada de cerca de 42,958 Km/hora) velocidade adequada para o local e às circunstâncias da via e que o único motivo preponderante para o desfecho do sinistro terá sido o fator surpresa que traiu o condutor do veiculo atropelante, aqui arguido, pelo inesperado, irresponsável e perigoso atravessamento da faixa de rodagem por parte da vitima.”
Perante um comportamento inopinado de uma pessoa trajando roupas escuras que atravessa apressadamente de noite toda a estrada de um lado a outro em direção a um restaurante, numa estrada com fraca iluminação e numa altura em que chovia muito, não se vê como poderia o condutor, mesmo àquela velocidade de 42,958Km/h, ter evitado o embate, sendo certo que o mesmo ainda tentou desviar-se, assim que o vulto lhe surgiu.
Ao inobservar regra rodoviária primária, ao atravessar a via de forma inesperada e repentina, a correr entre os veículos, num dia de chuva, com tráfego intenso, num local de pouca iluminação, não só pela fraca visibilidade mas também pelas condições climatéricas, trajando roupa escura, a vitima omitiu um dever objetivo de cuidado, atuando com leviandade e incúria.
Não tomando providências necessárias que lhe permitiriam evitar o atropelamento.
Não era exigível que o Arguido, que circulava a uma velocidade adequada para o local e circunstâncias da via, pudesse contar e prever esse comportamento inesperado por forma a encetar qualquer manobra e evitar o embate.
Considerado que a conduta do Arguido em nada contribuiu para a produção do acidente, antes o mesmo se devendo ao repentino e perigoso atravessamento da via por parte da vítima.
Tanto mais que a infeliz Sinistrada, ao assim ter efetuado o atravessamento da via, só se tornou visível para o Arguido ou para qualquer outro condutor em iguais circunstâncias, no exato momento em que o veículo conduzido por este se encontrava a menos de 10 metros da mesma, cfr. facto tido por indiciado, a fls. 544 da decisão instrutória.
A tal propósito tem entendido a jurisprudência: “… Não é previsível para um condutor, cumprindo as regras de trânsito, que um peão lhe surja de repente pela via onde transite …” (Ac. do RE de 25.7.85, in BMJ 35q, pág. 473), sendo certo que “… a lei não exige que o condutor conte, em regra, com a conduta negligente de outrem …” (Ac. do STJ de 4.4.78, In BMJ 276, pág. 193), ou, como aquele outro Acórdão refere, “… não se pode exigir de um condutor uma previsibilidade para além do que é normal …”, citados no Ac. Rel. G de 15- 03-2018, proc. n.º 3721/16.2T8GMR.G1.
“Isto é, não era exigível ao condutor (…) que, nas circunstâncias apuradas, previsse que um peão iria proceder à travessia da faixa de rodagem, da forma imprevidente como aquele a efectuou …”, cfr. Ac. Rel G, de 15-03-2018, processo 3721/16.2T8GMR.G1, in www.dgsi.pt.
“… A regra de que o condutor deve especialmente fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente significa dever assegurar-se, no exercício da condução automóvel, de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso de necessidade, o fazer parar. Ela rege especialmente para o caso de os condutores circularem com veículos automóveis à sua vanguarda e pressupõe a não verificação de condições anormais ou obstáculos inesperados, não lhe sendo exigível que contem com eles, sobretudo os derivados da imprevidência alheia …”, cfr. Ac. supra citado.
Neste sentido, embora a propósito da concorrência de culpas, o Ac. Rel. P de 07-04-2014, proc. n.º 33/11.1TBLMG.P1, in www.dgsi.pt., onde se refere: “…O risco natural inerente à circulação do veículo é excluído no caso do lesado, pessoa adulta, penetrar na via sem se certificar de veículos com os quais poderia colidir e, além disso, o ter feito a correr e num momento em que o veículo atropelante estava a uma distância não superior a 10 metros de si..”.
Ainda a propósito das condutas a observar pelos peões no atravessamento das vias, o Ac. STJ de 26-02-2019, proc. n.º 4419/13.9TBGDM.P1-S1, que refere:
“… O dever de prevenção do perigo impõe a todos os peões que adoptem uma conduta adequada à situação concreta em que se encontram, o que implica, na hipótese de atravessamento da via, atender a circunstâncias como as dimensões e a intensidade de circulação na via, as condições de visibilidade dos condutores ou a existência de passagens seguras na proximidade e, consoante elas, adoptar comportamentos não exigidos rigorosamente pela lei, (…), só atravessar na travessia própria ou até nem atravessar de todo…”
Acresce ainda que, dos autos emerge substancial indiciação de que a infeliz C… decidiu iniciar a travessia da faixa de rodagem sem ter, previamente a tal travessia, se certificado que a podia efetuar em segurança.
E, assim sendo, não havendo intervalo de tempo entre a atuação temerária do peão e o atropelamento, não se pode colocar a questão da culpa do condutor do veículo automóvel.
Neste sentido o Ac. Rel. P de 09-01-2020, proc. n.º 9/14.7T8CPV.P2, in www.dgsi.pt. Pois que, “…Não é exigido aos condutores que contem, em cada momento, com os obstáculos que surjam inopinadamente, com obstáculos ou circunstâncias totalmente avessos ao curso ordinário das coisas, ou com a falta de prudência de terceiros, nomeadamente de um peão...”, cfr. Ac. Rel. L, de 01-10-2019, processo 29042/13.4T2SNT.L1-1, in www.dgsi.pt.
Assim, tendo presente o disposto no art. 425º, n º 5 do CPP, nega-se provimento ao recurso interposto, aderindo-se aos fundamentos da decisão impugnada.
O tribunal a quo efetuou uma minuciosa, detalhada e completa exposição das razões de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram de base para formar a convicção do Tribunal relativa à matéria tida por indiciada e não iniciada.
E esse exame crítico passou pela valoração de toda a prova produzida em Inquérito e Instrução, tal como exaustivamente descrito na decisão recorrida.

Em suma, a matéria de facto indiciariamente provada é manifestamente insuficiente para permitir a conclusão de que o arguido praticou um crime homicídio negligente, art, 137º do C.P.
A decisão a quo espelha uma interpretação correta e adequada dos elementos de prova recolhidos nos autos, e que permitiram ao Tribunal a quo concluir, fundamentada e legalmente, pela insuficiência de indícios de uma atuação negligente do arguido.
Decidiu, assim, a Mm.ª Juiz de instrução a quo, em obediência aos factos indiciados e ao Direito aplicável, pelo que o recurso apresentado pelo M.P. será julgado integralmente improcedente.

Decisão.
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo M.P. mantendo a decisão instrutória de não pronúncia.
Sem custas por não serem devidas pelo M.P.
Notifique.
Sumário:
(Da exclusiva responsabilidade do relator)
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Porto, 26 de maio de 2021.

(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico