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DESTINO DOS OBJECTOS APREENDIDOS
SENTENÇA
Sumário
I - Da análise do disposto no art.º 374.º, n.º 3, al. c), em conjugação com o disposto no art.º 186.º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Penal, resulta que o momento correto para dar destino aos objetos que até esse momento continuam apreendidos é a sentença, porque após a produção da prova, é na sentença que se fixam os factos, se procede ao seu enquadramento jurídico, e se decide a causa submetida a julgamento, e bem assim as consequências que daí possam advir. II - Uma das consequências que possam advir da decisão da causa submetida a julgamento poderá ser a perda dos instrumentos ou direitos relacionados com a prática de um crime. III - É na sentença, após fixação da matéria assente, que o Tribunal fica na posse de todos os elementos que permitem decidir, de acordo com o princípio da proporcionalidade, se determinado objeto serviu ou estava destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou se por este foi produzido e, bem assim, se o mesmo - pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso – oferece riscos sérios de ser utilizado no cometimento de novo facto ilícito, ou coloca em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, tal como dispõe o art.º 109.º, n.º 1, do Cód. Penal. IV - A norma do art.º 186.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal indica não só que, havendo sentença, é nela que a decisão da perda de bens é proferida, mas também as consequências do não perdimento dos bens: a restituição dos objetos apreendidos a quem de direito. V - Mas se nada foi declarado na sentença sobre o perdimento a favor do Estado de determinado bem apreendido nos autos teremos que distinguir duas situações para a resolução da questão. Pela clareza pela sua explicação, passaremos a citar o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/4/2013, disponível em www.dgsi.pt: “Se o bem ou objeto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art.º 374.º, n.º 3, al. c),do Cód. Proc. Penal, se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art.º 186.º, n.º 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objeto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstrato a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.» VI - Consoante a natureza do bem, assim merece e deve a questão ter um tratamento diferenciado. Não pode tratar-se do mesmo modo, juridicamente, nomeadamente no que respeita à restituição de bens apreendidos, bens que têm natureza diferente. Se são diferentes, devem diferentemente ser tratados. VII - Sempre se consigna que se o Ministério Público entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria – no tempo certo – interpor recurso da sentença que tal não decidira. Como não o fez: sibi imputet! VIII - Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objetos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art.º 186º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objetos. IX - Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso.
Texto Integral
Proc. n.º 970/18.2JAPRT-C.P1 Tribunal de origem: Juízo Central Criminal do Porto – J8– Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
Nos autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, registados sob o n.º 970/18.2JAPRT, a correr termos no Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 8, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, no qual é arguido, entre outros, B…, foi proferido, com data de 14.02.2020, decisão judicial que indeferiu o pedido de devolução aos respetivos arguidos dos objetos apreendidos nos autos e por aqueles referidos, e, em consequência, ao abrigo do disposto no art.º 109.º, n.º 1, do Cód. Penal, foram os mesmos declarados perdidos a favor do Estado.
Desta decisão veio o arguido B… interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1- O recurso adstringe-se ao despacho proferido em 14/05/2020, que indeferiu um requerimento do arguido, no contexto do qual este solicitou a restituição de duas espingardas
caçadeiras.
2- De seguida, foi exposta a facticidade relevante para o caso sub judice, com a indicação e descrição do seguinte: do requerimento apresentado pelo arguido/recorrente; do parecer do Ministério Público; e do despacho que incidiu sobre o apontado requerimento.
3- No requerimento, o arguido solicitou a devolução de duas espingardas caçadeiras (uma da marca Browning e a outra da marca Bennei), que lhe foram apreendidas na envolvência de uma busca domiciliária realizada, em 18.06.2018, por inspetores da Polícia Judiciária. Para o efeito, aduziu ser proprietário das referidas armas, ter licença para o respetivo uso e porte e possuir o pertinente livrete de manifesto.
4- Aberta vista, a Digna Procuradora emitiu o subsequente parecer: “Tendo em atenção os tipos legais de crimes cometidos pelo arguido B… […] promove-se que as armas que lhe foram apreendidas sejam declaradas perdidas a favor do Estado, dada a sua perigosidade e também pelo perigo que representam em serem utilizadas contra as pessoas (artigo 109º nº1, do Código Penal), pelo que se deverá indeferir o seu pedido de entrega das visadas armas apreendidas.
5- Após, a M.ma Juíza prolatou o sequente despacho: “Vieram os arguidos B… e C…, requerer a devolução das armas e munições apreendidas nos autos alegando serem os seus legítimos proprietários e estarem licenciados para o seu uso e porte. […] No caso dos autos, como bem concluiu a Digna Magistrada do Ministério Público, os arguidos requerentes foram condenados pela prática de crimes contra as pessoas como sejam: Sequestro, p.p. pelo art.º 158º, n.º 1, do C.P.; Ofensa à integridade física, p.p. pelo art.º 143º, n.º 1, do C.P. na pena de 1 no de prisão e Coação na forma tentada, p.p. pelo art.º 154º, n.º 1, do C.P. ; um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo art.º 86º, n.º 1, al. d), da Lei 05/06, de 23 de Fevereiro. A personalidade violenta dos arguidos revelada nos atos praticados associada às características dos objetos apreendidos, oferecem sério risco de tais objetos virem a ser utilizados no cometimento de novos factos ilícitos, pelo que a sua devolução aos arguidos é suscetível de por em causa a segurança das pessoas, a moral e a ordem pública. Nos termos legais e factuais expostos, indefiro o pedido de devolução aos respetivos arguidos, dos objetos apreendidos nos autos e por aqueles referidos, e, em consequência, ao abrigo do disposto no art.º 109º, n.º1, do C.P., declaro-os perdidos a favor do Estado. […]. Oportunamente devem as armas e munições ser entregues ao Comando Geral da PSP.
6- Com prestabilidade, incumbe também enfatizar assequentes particularidades:
a) No Acórdão proferido a 04/02/2020, que transitou em julgado em 05-03-2020, foi dado como assente: “No dia 18 de junho de 2018, pelas 7h08min, no interior da residência do arguido B…, […] foram encontrados: No quarto do arguido: […] – atrás da porta, duas espingardas caçadeiras de que possui licença e livrete de manifesto. Repartidos pela casa (quarto e sala) e pela viatura do arguido, com a matrícula ..-SS-.., foram apreendidas 847 munições de arma de fogo, de calibre 12 Gauge; […]”
b) No perímetro da Acusação e do Acórdão, não consta que as sobreditas espingardas caçadeiras e as munições, apreendidas ao arguido, tivessem servido para a prática de um facto ilícito típico ou estivessem destinadas a servir para a prática a sua prática.
c) O arguido foi condenado, inter alia, por um crime de detenção de arma proibida – porém, esse crime estribou-se apenas na detenção de um bastão extensível.
d) Pelo tocante ao destino dos bens apreendidos, o Acórdão proferido nos presentes autos foi completamente omisso no que afeta às espingardas caçadeiras e às munições apreendidas ao arguido.
Omissão, no acórdão, do destino a dar às espingardas caçadeiras e às munições apreendidas ao arguido.
6- Nesta parcela, balizou-se o teor dos artigos 374.º, n.º 3, alínea c), e 186.º, n.º 2, ambos do CPP.
7- A sentença é o momento processualmente adequado para se avaliar e decretar a perda dos instrumentos ou objetos relacionados com a prática de um crime. […] Por isso e após ser proferida uma sentença impõe-impõe -se, em regra, que os objetos apreendidos sejam restituídos […], “a quem de direito”, ou seja, à pessoa que tiver direito a eles.
8- Os bens apreendidos em processo penal só podem ser declarados perdidos até ao trânsito da decisão final, salvo se se tratar de bens que, pela sua natureza, não podem ser detidos por quem os pretende reaver; após a prolação de uma sentença, tratando -se de bens ou objetos apreendidos que tenham natureza e características lícitas, eles devem ser restituídos às pessoas que tiverem direito a eles, não podendo ser declarados perdidos a favor do Estado, em despacho proferido após a sentença.
9- No contorno do Acórdão pronunciado nos presentes autos não foi dado destino às espingardas caçadeiras e às munições apreendidas pelo arguido.
10- Trata-se de armas e munições que, no caso sub examine, não se conformam proibidas, porquanto, como foi assentado, o arguido estava plenamente habilitado à sua detenção, por ser titular da apropositada licença e do correspondente livrete de manifesto.
11- Posto isso, estava defeso à M. ma Juíza, em despacho proferido após o acórdão, declarar perdidas a favor do Estado as espingardas caçadeiras e as munições apreendidas ao arguido – o tribunal a quo infringiu, por conseguinte, o disposto nos artigos 374.º, n.º 3, alínea c), e 186.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal (CPP), e 62.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Subsidiariamente: não verificação do condicionalismo tipificado no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal.
12- Neste tópico, sinalizou-se o teor do artigo 109.º do Código Penal.
13- A perda dos objetos/instrumentos consubstancia um procedimento cominatório que requisita o seguinte: i) que os objetos tenham sido utilizados num facto ilícito típico ou que estivessem destinados a servir para a respetiva prática; ii) quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
14- É uma providência que tem como desígnio evitar o cometimento de futuros crimes, no pressuposto de que tais objetos, diante da sua específica e normal utilidade social, se mostrem particularmente idóneos para a prática criminosa.
15- A propósito da perigosidade dos objetos, é controversa a problemática da sua avaliação: se ela deve ser perspetivada objetivamente, ou seja, ponderando o objeto na sua substância ou essência; ou se deve ser considerada sob um ângulo subjetivo, isto é, no domínio da conexão que intercede entre o objeto e um determinado indivíduo.
16- Registe-se que a perigosidade objetiva se configura, em termos de política criminal, nitidamente prevalecente para a apropositada declaração.
17- Não se posterga que o objeto mais anódino se pode, na verdade, transfigurar num fator de risco quando detido por um indivíduo perigoso; todavia, representa-se-nos que a declaração de perda, por essa via, constituiria uma forma de sustar a perigosidade do agente – e não, como é finalidade do instituto, de prevenir a perigosidade do objeto, sendo, ademais, certo que a lei dispõe de outros mecanismos e institutos para obstar à perigosidade do agente.
18- A perda a favor do Estado do objeto/instrumento somente deverá ser decretada se ela se conformar proporcional à gravidade do facto ilícito típico cometido e à perigosidade do objeto em causa, sendo necessário que o objeto seja considerado instrumento do crime ou que estivesse destinado a sê-lo, o que exige a prova da relação de causalidade entre a utilização do objeto e a prática do facto ilícito típico, de forma a poder afirmar-se que, sem essa utilização, a infração em concreto não teria sido praticada ou tê-lo-ia sido de forma diversa.
19- Na situação em tela, as espingardas caçadeiras e as munições apreendidas não consubstanciam instrumenta sceleris, ou seja, não serviram nem estavam destinadas a servir para a prática de facto ilícito típico; não se trata de material de que o arguido se tenha servido ou se preparava para servir na prática do crime – não configuram, ipso facto, instrumentos de facto ilícito típico.
20- A M.ma Juíza devia ter determinado a restituição das espingardas caçadeiras e das munições apreendidas ao arguido, pois que não existe nenhuma conexão ou relação de causalidade entre tais objetos/instrumentos e a prática do facto ilícito típico
21- De resto, tal restituição já devia ter sido operada na oportunidade do encerramento do inquérito, previamente ao despacho em que foi deduzida a acusação; com efeito, dado que na acusação não foi outorgada nenhuma justaposição, imbricação ou concatenação entre as espingardas caçadeiras e as munições apreendidas ao arguido e os crimes que lhe foram irrogados, é incontroverso que a apreensão desses objetos/instrumentos se mostrava totalmente desnecessária para efeito de prova.
22- Assim sendo, em vista do estatuído do artigo 186.º, n.º 1, do CPP, impunha-se ao Ministério Público que, logo no predito momento, tivesse dado destino aos indigitados objetos/instrumentos, mediante a correspondente restituição ao arguido.
23- O Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal.
Termina pedindo seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, seja revogado o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que determine a restituição ao arguido das duas espingardas caçadeiras e das munições que lhe foram apreendidas.
A este recurso veio o Ministério Público responder conforme consta nos autos, nos seguintes termos sintéticos:
- O recorrente imputa ao despacho questionado os seguintes vícios: a) Omissão do acórdão final não dando destino às mesmas armas e munições que foram apreendidas ao arguido, devendo ser nesta que nos termos dos artigos 374.º n.º 3 al. c) e 186.º, do CPP, O Tribunal deveria ter analisado e avaliado tal decisão (de entrega ou de perdimento); b) Subsidiariamente, violação do artigo 109.º, do Cód. Penal; c) Violação da norma do artigo 186.º n.º 1, do CPP, uma vez que se impunha ao MP que, logo após a conclusão do inquérito, tivesse dado destino a tais objetos, com a correspondente entrega dos mesmos aos arguidos.
- Quanto à primeira questão ou ponto levantado pelo arguido, certo e preliminar consideração se nos oferece apenas dizer que se o mesmo tivesse entendido, então, que as armas em questão deveriam ter sido entregues, deveria ter recorrido, precisamente invocando tal putativa omissão no predito acórdão, entretanto já transitado em julgado.
- No entanto, e quando o Tribunal nada referiu no acórdão sobre o destino de objetos apreendidos, deve entender-se que o Tribunal incorreu em mera irregularidade e não em qualquer nulidade, devendo tal vício ser suprido em momento posterior.
- Quanto ao segundo aspeto invocado pelo recorrente, referente à alegada violação do disposto no art.º 109.º do Cód. Penal, referimos que comungamos da razão da Mmª Juíza em relação ao seu despacho/decisão recorrida.
- A perda de objetos ou bens a favor do Estado, decorrentes da ocorrência de atividades ilícitas obedece ao regime geral constante do Código Penal e a um conjunto normativo de leis avulsas e específicas envolvendo atividades ilícitas também elas específicas, como é o caso dos estupefacientes, dos crimes fiscais ou dos crimes económicos, entre outros.
- Assim, o primeiro requisito exigido para que se possa, ao abrigo do Código Penal, declarar perdido a favor do Estado um determinado objeto, é que tenha ocorrido um facto ilícito ou anti-jurídico (ou tão só a sua tentativa).
- Em segundo lugar, ou como segundo requisito, há que apurar se em tal configuração ilícita foi utilizada (ou estivesse para ser utilizado) um determinado objeto, ou através dela, tal objeto tenha sido produzido (pressupostos formais).
- Finalmente, exige-se que pela sua natureza ou pelas circunstâncias, esse objeto possa pôr em perigo a comunidade (a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública) ou oferecer sérios riscos de ser utilizado para a prática de crimes (juízo de perigosidade ou pressuposto material para declaração de perda).
- É precisamente o perigo que representa os bens, ora aqui e agora peticionados pelo arguido – duas espingardas caçadeiras e 847 munições de arma de fogo, de calibre 12 Gauge-, que possuem um carácter de alta perigosidade no sentido de poderem ser utilizadas pelo arguido em novos factos de natureza ilícita idêntica à destes autos.
- Os referidos bens acarretam especial potencialidade e perigosidade, pelo que a medida em causa de perdimento se revela proporcional e adequada a evitar ou poder evitar a prática de novos ilícitos penais.
- Se as presentes armas não foram consideradas para a imputação de um outro crime de detenção de arma proibida ao arguido/recorrente e pelo facto de estarem devidamente documentadas e o mesmo possuir licença de uso e porte de arma, também é certo que, o mesmo, tendo em atenção que foi condenado nos autos, por crime de igual natureza, cremos que existe – não apenas em abstrato, mas mesmo em concreto-, de poderem ser utilizadas num outro momento e no cometimento de outros crimes contra as pessoas, por cuja prática o mesmo, nestes nossos autos, veio a ser condenado.
- Já quanto ao último aspeto no presente recurso abordado e referente ao momento próprio para ser decretado o destino a dar aos bens em causa – pelo MP e no final do inquérito-, sai prejudicado, perante o que já foi referido e respondido no nosso primeiro contraponto.
Termina pedindo seja negado provimento ao recurso e seja mantido o despacho recorrido.
Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra nos autos, pugna pela procedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II- Fundamentação: Fundamentação de facto: Factos provados documentalmente com relevância para a decisão do incidente: 1. No acórdão proferido no processo, transitado em julgado a 05.03.2020, cuja cópia consta a fls. 3 a 27 dos presentes autos, o arguido B… foi condenado pela prática em autoria material e concurso real de: a) um crime de sequestro p.p. pelo art.º 158.º, n.º 1, do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; b) um crime de ofensa à integridade física p.p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do CP na pena de 1 ano de prisão; c) um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d), da Lei 5/2006, de 23.02, na pena de 8 meses de prisão, e em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena de 2 anos e 2 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e 2 meses. 2. No acórdão proferido no processo, transitado em julgado a 05.03.2020, consta nos factos provados, entre outros, o seguinte: “No dia 18 de junho de 2018, pelas 7h08min, no interior da residência do arguido B…, sita na …, n.º .., r/c esq., em …, foram encontrados: No quarto do arguido: - em cima de uma mesa de computador, um bastão extensível, sem qualquer marca, medindo cerca de 21cm quando fechado e cerca de 53,5cm quando estendido, construído em metal, por três segmentos de tubo metálico, sendo que o primeiro serve de empunhadura, possuindo de revestimento borracha de cor preta e o último segmento possui na extremidade uma ponta redonda; - atrás da porta, duas espingardas caçadeiras de que possui licença e livrete de manifesto; - repartidas pela casa (quarto e sala) e pela viatura do arguido, com a matrícula ..-SS-.., foram apreendidas 847 munições de arma de fogo, de calibre 12 Gauge; (…)”. 3. No acórdão proferido no processo, transitado em julgado a 05.03.2020, não foi dado destino a duas armas apreendidas ao arguido B… de marcas Benneli e Browning. 4. A 04.05.2020 o arguido apresentou requerimento, cuja cópia consta a fls. 28 dos autos, onde consta, para além do mais: “O arguido (…), vem, na sequência do douto acórdão (…), proferido em 04.02.2020, e considerando o teor do mesmo, requerer a V.Ex.ª se digne ordenar a devolução dos seguintes bens: 1 arma de marca Browing; 1 arma de marca Bennel. Tratam-se de duas armas, tipo caçadeiras, que foram apreendidas ao arguido, aquando da busca domiciliária realizada em 18.06.2018, pelos Inspetores da Polícia Judiciária em sua casa. (…). O arguido, conforme demonstrou, possui licença das mesmas e livrete de manifesto. Considerando assim, que as referidas armas, não foram declaradas perdidas a favor do Estado, e são pertença do aqui arguido, requer-se pois (nomeadamente a contrario sensu) a sua entrega ao aqui arguido. (…)” 5. Apreciando tal requerimento, a 06.05.2020, o Ministério Público promoveu o indeferimento da peticionada entrega, conforme consta da promoção constante a fls. 31 dos presentes autos. 6. Com data de 14.05.2020, foi proferida a seguinte decisão judicial: “Vieram os arguidos B… e C… requerer a devolução das armas e munições apreendidas nos autos alegando serem os seus legítimos proprietários e estarem licenciados para o seu uso e porte. A digna Magistrada do Ministério Público promoveu se indeferisse o requerido atentos os crimes contra as pessoas praticados por tais arguidos. Dispõe o art.º 109.º, do Cód. Penal, que “1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.” Mas quando é que um determinado objeto assume o estatuto para se poder considerar que oferece o perigo de “ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”? Logo depois de ser cometido um facto ilícito? Mas antes de tal ato o instrumento não oferece já a, digamos, “potência” para ser utilizado? Na clássica formulação aristotélica diríamos até que toda a matéria, sendo essencialmente indeterminação, é também sempre potência que pode vir a existir em ato. Não é em abstrato que um determinado objeto-instrumento deve ser considerado para determinar aquela potencialidade de perigo, mas em concreto, tendo designadamente em conta a natureza e características do objeto, as circunstâncias em que foi utlizado ou poderá ser utilizado. Como referiu o Prof. Figueiredo Dias na Comissão Revisora do Código Penal a «(…) perigosidade do objeto não deve ser avaliada em abstrato, mas em concreto, isto é, nas concretas condições em que ele possa ser utilizado (às «circunstâncias do caso» se refere expressamente o art.º 107.º-1). Um revólver, por ex., é um objeto «em si» perigoso, mas que terá deixado de o ser se, após o tiro que constituiu meio de cometimento do ilícito-típico, a engrenagem tiver ficado danificada de forma irreparável. Esta conexão entre a perigosidade do objeto e as concretas circunstâncias do caso pode acabar por «implicar uma referência ao próprio agente». Esta «referência ao agente» não deixa, de resto, de apoiar a interpretação restritiva, feita no §987 do disposto no art.º 107.º-2». Ou como diz o Ac. da Relação do Porto proferido no recurso n.º 4689/07: «(…) os objetos não são perigosos em si já que, sem ligação a um agente concreto perigoso (que não é o arguido), não têm potencialidades para por em risco, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos,» (Acórdão da Relação de Coimbra de 15 de julho de 2009, in www.dgsi.pt. No caso dos autos, como bem concluiu a Digna Magistrada do Ministério Público, os arguidos requerentes foram condenados pela prática de crimes contra as pessoas como sejam: sequestro, p.p. pelo art.º 158.º, n.º 1, do CP; Ofensa à integridade física, p.p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do CP; um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d), da Lei 5/2006, de 23.02. A personalidade violenta dos arguidos revelada nos atos praticados associada às características dos objetos apreendidos, oferecem sério risco de tais objetos virem a ser utilizados no cometimento de novos factos ilícitos, pelo que a sua devolução aos arguidos é suscetível de por em causa a segurança das pessoas, a moral e a ordem pública. Nos termos legais e factuais expostos, indefiro o pedido de devolução aos respetivos arguidos, dos objetos apreendidos nos autos e por eles referidos, e, em consequência, ao abrigo do disposto no art.º 109.º, n.º 1, do C.P., declaro-os perdidos a favor do Estado. Notifique. Oportunamente devem as armas e munições ser entregues ao Comando Geral da PSP. (…)”.
Fundamentação de Direito:
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal aplicável por força do disposto no art.º 74.º, n.º 4, do RGCO).
A questão que importa conhecer:
- a de saber se após a prolação da sentença transitada em julgado (que foi totalmente omissa quanto ao destino a dar aos objetos apreendidos) podem ainda ser declarados perdidos a favor do Estado os bens apreendidos nos autos.
Vejamos.
Para a resolução da questão acima enunciada torna-se necessário analisar o disposto no art.º 374.º, n.º 3, al. c), em conjugação com o disposto no art.º 186.º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Penal.
Dispõe o art.º 374.º, sob a epígrafe “Requisitos da Sentença”, no n.º 3, al c), do Cód. Proc. Penal, que “A sentença termina pelo dispositivo que contém: (…); c) A indicação do destino a dar a animais, coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas; (…).
Por seu turno, o art.º 186.º, sob a epígrafe “Restituição de animais, coisas e objetos apreendidos”, no seu n.º 2, do Cód. Proc. Penal, estabelece que “Logo que transitar em julgado a sentença, os animais as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”. Estabelecendo no seu n.º 5 uma exceção a este princípio: os casos em que tiver sido decretado o arresto preventivo dos bens, nos termos do art.º 228.º do mesmo diploma legal.
Ora, da análise de ambos os normativos citados, resulta que o momento correto para dar destino aos objetos que até esse momento continuam apreendidos é a sentença, porque após a produção da prova, é na sentença que se fixam os factos, se procede ao seu enquadramento jurídico, e se decide a causa submetida a julgamento, e bem assim as consequências que daí possam advir. Uma delas poderá ser a perda dos instrumentos ou direitos relacionados com a prática de um crime. É na sentença, após fixação da matéria assente, que o Tribunal fica na posse de todos os elementos que permitem decidir, de acordo com o princípio da proporcionalidade, se determinado objeto serviu ou estava destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou se por este foi produzido e, bem assim, se o mesmo - pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso – oferece riscos sérios de ser utilizado no cometimento de novo facto ilícito, ou coloca em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, tal como dispõe o art.º 109.º, n.º 1, do Cód. Penal.
A norma do art.º 186.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal indica não só que, havendo sentença, é nela que a decisão da perda de bens é proferida, mas também as consequências do não perdimento dos bens: a restituição dos objetos apreendidos a quem de direito.
Mas se nada foi declarado na sentença sobre o perdimento a favor do Estado de determinado bem apreendido nos autos teremos que distinguir duas situações para a resolução da questão. Pela clareza pela sua explicação, passaremos a citar o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/4/2013, disponível em www.dgsi.pt: “Se o bem ou objeto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art.º 374.º, n.º 3, al. c),do Cód. Proc. Penal, se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art.º 186.º, n.º 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objeto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstrato a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.»
Consoante a natureza do bem, assim merece e deve a questão ter um tratamento diferenciado. Não pode tratar-se do mesmo modo, juridicamente, nomeadamente no que respeita à restituição de bens apreendidos, bens que têm natureza diferente. Se são diferentes, devem diferentemente ser tratados.
Sempre se consigna que se o Ministério Público entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria – no tempo certo – interpor recurso da sentença que tal não decidira. Como não o fez: sibi imputet!
Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objetos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art.º 186º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objetos.
Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso.
Assim, e considerando o caso dos presentes autos, verificamos que, de acordo com os factos considerados provados, as armas apreendidas, e cuja entrega é peticionada, são legais, encontram-se devidamente licenciadas, e o arguido/recorrente é titular de licença de uso e porte de arma.
Pelas razões expostas, o recurso interposto merece provimento e, em consequência tem que ser revogado o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que dê cumprimento ao disposto no art.º 186.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que dê cumprimento ao disposto no art.º 186.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
Sem custas.
Porto, 26 de maio de 2021
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)