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INSOLVÊNCIA
DIREITO DE HABITAÇÃO
PRINCÍPIO DO NUMERUS CLAUSUS
INOPONIBILIDADE
Sumário
I - A ausência de norma legal que expressamente preveja e regule o direito potestativo de constituição, em benefício do executado/insolvente, do direito de habitação sobre imóvel penhorado/apreendido para a massa insolvente, não corresponde a uma qualquer lacuna legal posto que a penhora/apreensão do imóvel que constitui a sua habitação está legalmente regulada no regime processual civil e insolvencial, e a ausência de norma legal que determine a cedência do direito dos credores perante a tutela do direito à habitação do executado ocorre, não por omissão, mas por vontade do legislador em não prever, regular e limitar nesses termos o direito de ação dos credores. II - À constituição do direito de habitação por analogia legal sempre obstaria liminarmente o princípio do numerus clausus previsto pelo artigo 1306º do CC, que impossibilita que a seu ‘bel-prazer’ as pessoas criem e estabeleçam na ordem jurídica direitos com oponibilidade erga omnes. III - O dever do Estado assegurar a todos uma habitação condigna, como direito social que é, recai sobre o domínio público, cabendo ao Estado, e não aos particulares, assegurar a sua proteção, conforme art. 65º da CRP e arts. 1º e 3º da Lei de Bases de habitação nº 83/2019 de 03.09, na qual expressamente se prevê que O Estado é o garante do direito à habitação. IV - Fora do âmbito das relações com o Estado, o direito à habitação do executado/insolvente não se sobrepõe ao direito do credor à satisfação do seu crédito à custa do património do devedor, que inclui a suscetibilidade da penhora do imóvel que constitui a casa de habitação do executado/insolvente, sem limitação da sua consistência económica prática e, assim, do seu valor. V - A limitação da venda da casa de habitação do executado que, nos termos previstos pelo art. 244º, nº 2 do CPPT, vigora no âmbito do processo de execução fiscal, é restrita às execuções fiscais e justificada pelo dever constitucional do Estado, ali exequente, de assegurar a todos uma habitação condigna, sem paralelismo com a natureza jurídico-privada dos interesses tutelados pelo direito de execução singular ou coletiva dos demais credores, aos quais aquela norma é inoponível. VI - A proteção consagrada pelo art. 1793º do CC em benefício de um dos ex-cônjuges traduz-se num direito potestativo ao arrendamento do imóvel que constituía a casa de morada de família do casal, direito que apenas pode ser reciprocamente invocado e oposto por cada um dos cônjuges contra o outro; o direito de habitação que nos termos do art. 5º da Lei nº 23/2010 de 30.08 a lei prevê e reconhece ao consorte sobrevivo sobre a casa de morada de família dos unidos de facto, para além do carácter temporário, tem como sujeito passivo os herdeiros do consorte falecido, os únicos contra os quais o consorte sobrevivo pode invocar, opor e pedir o reconhecimento daquele direito.
Texto Integral
Acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,
I – Relatório:
1 - No âmbito do processo de insolvência (por apresentação) de F…, declarada a insolvência, apresentado o relatório e anexos a que aludem os arts. 153º a 155º do CIRE, e proferido despacho de deferimento inicial do pedido de exoneração do passivo restante por aquela requerido, a devedora, invocando o art. 292º e ss. do CPC, ex vi art. 17º do CIRE, apresentou requerimento incidental pelo qual deduziu o seguinte pedido: Requer-se a V. Exª que, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 e 2 do artigo 1.484.º do C.C., declare constituído a favor da Insolvente o direito de habitação vitalício, sobre o prédio urbano sito em…, destinado a habitação própria e permanente da mesma, ordenando-se, em consequência, a respetiva inscrição predial, por averbamento ao prédio urbano descrito sob o n.º…, na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras e inscrito na matriz sob o artigo….
Alegou em fundamento do pedido que tem 67 anos de idade, que desde finais da década de 1970 vive no imóvel sito na Rua…, no qual permaneceu depois de há cerca de 25 anos ter sido abandonada pelo seu ex-marido e nele fixou a sua residência pessoal, própria e permanente depois de em maio de 2010, no âmbito da partilha do património conjugal outorgada na sequência do divórcio decretado em março de 2010, terem acordado na sua adjudicação à devedora, que no âmbito da vida corrente da sociedade na qual o casal detinha participação de capital e que foi adjudicada ao seu ex-cônjuge avalizou títulos de crédito em branco referente a obrigações bancárias por aquela sociedade contraídas, que após o divórcio foi informada da inexistência dessas obrigações e que a partir daí e ao longo de mais de dez anos viveu na convicção de que a casa lhe pertencia sem qualquer risco associado, ignorando que a sociedade avolumou dívidas de centenas de milhares de euros pelas quais a requerente respondia e com as quais foi muito tempo depois confrontada através de processos executivos que lhe foram movidos pela CGD com fundamento em obrigações cambiárias assumidas em 19.04.2000 e em 12.01.2005, que habitam no imóvel a sua filha e netas e não têm capacidade financeira para pagar uma renda, que por dívidas da sociedade parcialmente garantidas por hipoteca voluntária está em causa a perda da habitação da requerente quando, num juízo de normalidade, o risco de afetação pessoal seria mínimo, quer no momento da assunção da obrigação, quer da partilha do património conjugal.
Mais alegou que o Estado está obrigado à defesa do direito fundamental à habitação nos termos dos arts. 10º, 11º e 46º da Lei de Bases da habitação aprovada pela Lei nº 83/2019 de 03.09 e do art. 65º, nº 1 da CRP, e do que é manifestação a proteção do direito a habitação pelo art. 5º da Lei nº 7/2001 de 11.05 na redação conferida pela Lei nº 23/2010 de 30.08 em benefício do membro da união de facto sobrevivo, pelo art. 1793º do CC em caso de dissolução matrimonial, e pelo art. 244º, nº 2 do CPPT que, no processo de execução fiscal, proíbe a venda do imóvel destinado a habitação do devedor ou do seu agregado familiar, que estas são medidas de salvaguarda da morada pessoal a estabelecer por acordo e que, na ausência desse acordo, podem obrigar à definição judicial do direito, tendo como critério, não a propriedade registada ou a titularidade do direito, mas a necessidade de salvaguarda da morada pessoal em defesa da dignidade da pessoa humana, que não existe disposição expressa no CIRE que obrigue à entrega do imóvel próprio que o insolvente tenha afetado à sua casa de morada de família, que o direito à habitação constitui a disposição em contrário prevista no art. 46º, nº 1 do CIRE e ao que não obsta o nº 5 do art. 150º deste diploma, que tem como objetivo definir as regras de entrega pessoal e empossamento do Administrador da Insolvência e/ou a manutenção de depositários judiciais.
Concluiu que a obrigação bancária e a afetação do património pessoal para o seu pagamento não obriga à apreensão e venda de todos os seus bens com prejuízo da habitação efetiva da casa, prevalecendo o direito constitucional à habitação e impondo-se uma interpretação constitucionalmente conforme do art. 46º, nº 1 do CIRE, a determinar a redução da apreensão e a constituição, em benefício da devedora, do direito vitalício ao uso e habitação do imóvel.
Juntou documento e arrolou testemunhas.
2 - Sobre o requerimento recaiu a seguinte decisão, cujos termos, com exceção do respetivo relatório, se transcrevem:
I.1.a
Cumpre apreciar e decidir, nos termos do artigo 590.º/1, do Código de Processo Civil.
I.2
Pretende a Devedora a declaração judicial da constituição de direito real sobre imóvel apreendido para a Massa Insolvente.
I.2.a
Estamos perante ação declarativa constitutiva, de natureza real, para autorização de mudança na ordem jurídica existente. O meio processual próprio é a ação comum – artigos 10.º e 548.º do Código de Processo Civil.
I.2.b
Por outro lado, nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real – artigo 481.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Se bem interpretamos o articulado, a Requerente invoca direito real extraído de lacuna legal, preenchida por analogia.
É certo que o direito de uso de habitação se constitui por disposição legal – artigos 1440.º e 1485.º, ambos do Código Civil.
Resta saber se tal disposição pode ser analogicamente apurada.
Assim não entendemos, aqui se estendendo a proibição prevista no artigo 1306.º/1, do Código Civil: “Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei.”. Com efeito, “(…) a lei proíbe o recurso à analogia (…) sempre que (…) recorre a uma enumeração completa (numerus clausus, p. ex., no domínio dos direitos reais (…)”.
Destarte, na ausência da alegação de factos constitutivos a que corresponda expressa disposição legal, é manifesta a improcedência do requerido.
I.3
Pelo exposto, com fundamento na manifesta improcedência, indefiro liminarmente o requerimento incidental.
Notifique.
3 – Desta decisão foram notificados a devedora e os credores inscritos na lista de créditos.
4 - Inconformada, a devedora/requerente deduziu o presente recurso integrando na sua motivação as alegações que verteu no requerimento objeto de indeferimento, e formulando as seguintes conclusões: 1. O despacho recorrido rejeitou o incidente que a Apelante requereu nos autos. 2. Este incidente visa a atribuição de uso e habitação sobre a casa de morada de família à Recorrente, que se situa no prédio urbano, destinado a habitação, sito em C, descrito sob o n.º 8… da Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras, inscrito na matriz sob o artigo 3…, com o valor patrimonial de 27.217,67 €. 3. Contém a alegação de todos os factos pertinentes. 4. Alega a matéria de direito, incluindo no plano constitucional. 5. Os pedidos formulados são os adequados ao efeito jurídico pretendido pela Apelante. 6. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, o douto despacho faz errada aplicação do direito. 7. Aparentemente, o Tribunal entendeu que a Apelante não alegou «factos constitutivos a que corresponda expressa disposição legal» como condição de admissão do incidente e sua posterior tramitação. 8. Ora, por remissão do art.º 17.º do CIRE teremos de buscar a solução legal para a questão a decidir no CPC. 9. À matéria dos incidentes aplica-se o disposto nos arts. 292.º a 295.º do CPC, que contém meras regras gerais, que depois são desenvolvidas para os incidentes previstos pelo CPC nos arts. 296.º e ss., que no caso vertente não nos ajudam 10. O art.º 6.º do CPC prescreve o novo paradigma do Julgador, paradigma criado pelo NCPC, consubstanciado, genericamente, no poder-dever de o Juiz dirigir ativamente o processo, na senda de prolação de decisões de mérito e de atingir-se uma justiça material e não meramente processual (digamos assim). 11. Com base no 7.º/2/CPC, o juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, convidando a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes. 12. E, em matéria de articulados da ação declarativa, existem ainda os poderes deveres do art.º 590.º/3/CPC. 13. Mas não esqueçamos o disposto no art.º 590.º/1: «Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente […].» 14. Seguramente é este o fundamento legal do douto despacho aqui sob recurso, pois o despacho nem sequer invoca o fundamento legal… 15. Porém, este preceito foi mal aplicado. 16. Na realidade, o douto despacho não enunciou os pedidos nem, fundamentando, os julgou manifestamente improcedentes. 17. Ao invés, pelo menos se bem se entende o despacho, faz coisa diferente: parte da consideração de que, no articulado, existe «ausência da alegação de factos constitutivos a que corresponda expressa disposição legal» para, depois, firmar que «com fundamento na manifesta improcedência» (supõe-se que dos pedidos) indefere liminarmente o requerimento inicial. 18. Portanto, os pedidos não foram examinados, nem julgados, manifesta e evidentemente improcedentes (cfr. art.º 590.º/1/CPC): foi decidido que a matéria de facto era ausente. 19. O que o Tribunal tinha o dever de fazer era o de notificar a ora Apelante para que viesse concretizar os fundamentos fácticos da ação incidental – art.º 6.º do CPC. 20. O que nos parece de todo desnecessário, face à factologia alegada no requerimento inicial. 21. Donde, este fundamento para a rejeição não existe, compulsado o requerimento inicial. 22. Quanto à questão dos pedidos estes, nos termos em que o foram formulados, também não são manifestamente improcedentes. 23. Na verdade, os pedidos, correta e legalmente formulados, dependem da análise das questões de facto e de direito exaustivamente alegadas. 24. E o Tribunal, por força do princípio do pedido e do dever de decidir (cfr. arts. 3.º e 2.º/CPC), ouvindo os demais sujeitos processuais, terá de decidir a causa, mas não tem fundamento algum para a rejeição liminar. 25. Até porque a Apelante invocou o direito constitucional previsto pelo art.º 65.º/2/CRP. 26. Trata-se de um direito, liberdade e garantia invocável diretamente e que vincula entidades públicas e provadas, por força do disposto no art.º 18.º, n.º 1, da Lei Fundamental. 27. A interpretação subjacente ao despacho impugnado é inconstitucional. 28. De outra banda, a Apelante defende, de direito, a tutela (para além daquele preceito constitucional) comandada por diversos artigos, que discriminou, do Código Civil, da Lei de Bases da Habitação, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e do n.º 1 do artigo 84.º do CIRE. 29. Tudo como é seu direito processual de ver as questões suscitadas decididas judicialmente, para, com base nos factos, sustentar os pedidos formulados, que sumariamos como o de constituição do pretendido direito de habitação. 30. E o direito prescrito pelo art.º 2.º/CPC, decorrente do previsto pelo art.º 20.º/1/CRP também impõe a revogação do indeferimento liminar. 31. O despacho liminar deve ser proferido em face de inspeção da petição ou requerimento inicial. 32. Donde, há que verificar se existe autossuficiência do requerimento inicial, de modo a que esteja em condições de a causa prosseguir. 33. E este contém os requisitos do art.º 552.º do CPC: alega os factos pertinentes, a matéria de direito, e formula corretamente os pedidos. 34. Não se vislumbra como se pode assacar ao requerimento inicial que este sofre de «ausência da alegação de factos constitutivos a que corresponda expressa disposição legal» - em cujo caso se impunha o dever de aperfeiçoamento – e muito menos que padeça de vício no peticionado – matéria sobre a qual o douto despacho recorrido nem se pronunciou nem examinou os pedidos… 35. Em suma, o despacho faz erra aplicação do direito processual e deve ser revogado por outro que admita o incidente e o mande prosseguir. 36. Normas violadas: arts. 2.º, 3.º, 6.º, 552.º e 590.º, n.º 2, todos do CPC; arts. 20.º, n.º 1, e 65.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Terminou com o seguinte dispositivo: Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, deve o despacho sob recurso ser revogado, substituindo o indeferimento liminar do requerimento inicial por despacho proferido em sede de recurso que declare não haver obstáculo processual à admissão do incidente, ordenando a prossecução do mesmo até prolação de decisão final.
5 – O Ministério Publico respondeu ao recurso concluindo que [a] decisão recorrida ponderou devidamente a matéria submetida a apreciação, não enferma de qualquer vício, nem violou qualquer norma jurídica, designadamente o 10º e 548º do Código de Processo Civil, e requerendo seja negado provimento ao recurso e confirmada na íntegra a decisão recorrida.
6 – No despacho de apreciação do requerimento de recurso, o tribunal a quo apreciou a nulidade arguida na motivação do recurso consignando, sob a epígrafe Da nulidade por omissão que, Atentas as normas legais identificadas na decisão, consideramos inexistir a invocada nulidade.
II – Objeto do recurso – Questões a apreciar:
É consensual que, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha nos temos do art. 662º nº 2 e 608º, nº 2, este, ex vi art. 663º, nº 2, ambos do CPC, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da decisão recorrida, é definido pelas conclusões das alegações, que delimitam o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), pelo que as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões das alegações, consideram-se definitivamente decididas e, consequentemente, excluídas do objeto de conhecimento do Tribunal de recurso. Inversamente, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, destina-se apenas à reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo, pelo que mister também é que a matéria das conclusões correspondam ou se contenham no âmbito das questões cuja apreciação integram ou devam integrar o objeto da decisão objeto do recurso.
Acresce que o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa (ou do incidente), se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto.
Assim, considerando o teor da decisão recorrida e conforme conclusões enunciadas pelo recorrente, o objeto do presente recurso restringe-se à verificação dos pressupostos da possibilidade legal de indeferimento liminar da petição prevista pelo art. 590º, nº 1 do CPC com fundamento na manifesta improcedência do por ela pedido, verificação que passa pela apreciação, na fattispecie alegada pela recorrente, dos pressupostos legais constitutivos do direito de uso e de habitação que a devedora/recorrente para si reclama.
III – Fundamentação
A) De Facto
Com relevância na apreciação do recurso, para além dos factos descritos no relatório, do processado no apenso de apreensão resultam os seguintes factos:
1. Do auto de apreensão lavrado pela Sr.ª Administradora da Insolvência nomeada nos autos constam descritos dois prédios urbanos, correspondendo um deles ao prédio destinado a habitação sito em C…, descrito sob o n.º 8…., na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras e inscrito na matriz sob o artigo 3….
2. Da ficha predial daquele imóvel constam as seguintes inscrições:
i) por ap. de 29.11.1991, aquisição em benefício de A…, casado no regime de comunhão de adquiridos com a aqui insolvente, por compra a E…;
ii) por ap. De 14.05.2010, aquisição em benefício da insolvente por partilha subsequente a divórcio;
iii) por ap. de 22.06.2018, penhora realizada em benefício da Caixa Geral de Depósitos no âmbito da execução nº 11457/16.8T8LRS para garantia da quantia exequenda de € 372.902,28;
iv) por ap. de 26.11.2020, declaração de insolvência da devedora F… por sentença proferida no âmbito destes autos de insolvência.
3. Por sentença já transitada proferida no apenso de verificação e graduação de créditos foram reconhecidos créditos no montante total de € 975.682,74, todos comuns com exceção do crédito a título de IMI no montante de € 182,07, sendo € 130.100,75 sob condição em benefício do Banco BPI emergente de fiança prestada em contrato de mútuo com hipoteca, €181.745,92 em benefício da Caixa Económica do Montepio Geral com fundamento em livrança, e € 663.654,00 em beneficio de XYQ Luxco, S.A.R.L. com fundamento em avais prestados pela recorrente em dois contratos de abertura de crédito, sendo que um deles, do qual emerge crédito reconhecido no montante de € 195.641,12, foi celebrado com hipoteca (apenso …).
B) De Direito
1. A recorrente defende e requer a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que admita o incidente e que determine o seu prosseguimento até prolação de decisão final.
Ainda que em sede de conclusões não venha expressamente arguida a nulidade da decisão recorrida e respetivo fundamento legal, se bem se entende o alcance das alegações, delas é possível extrair que a recorrente alega que aquela foi proferida com preterição de formalidades processuais essenciais à sua validade e à boa decisão da causa, imputando-lhe ausência de indicação de fundamento legal para o indeferimento liminar do requerimento, o incumprimento dos arts. 6º e 590º, nº 2 do CPC (através da notificação da recorrente para concretização dos fundamentos de facto do pedido incidental que deduziu), ausência de apreciação fundamentada das questões de facto e de direito que fundamentam o pedido, e ausência de decisão sobre o pedido.
Sem curar, por desnecessário ao caso, da qualificação dos vícios correspondentes às alegadas omissões (como nulidades secundárias previstas pelo art. 195º do CPC, ou como nulidades da decisão nos termos previstos pelo art. 615º do CPC) e da admissibilidade da sua arguição e conhecimento em sede de recurso (atenta a diferenciação de regimes de impugnação previstos para umas e para outras nos termos dos arts. 199º e 630º, nº 2, e 615º, nº 4 e 617º do CPC), resulta das alegações, respetivas conclusões e dispositivo, que a recorrente fundamenta o recurso em dois pressupostos: o primeiro, que o tribunal recorrido se absteve de apreciar de mérito do pedido, e o segundo, que o fez com fundamento em razões de ordem processual, a saber, por «ausência da alegação de factos constitutivos a que corresponda expressa disposição legal[1].
Imputações e pressupostos manifestamente erróneos porque, por um lado, reconhece também a recorrente que o indeferimento liminar proferido pelo tribunal a quo tem como fundamento legal o art. 590º, nº 1 do CPC e que a sua notificação para concretização dos fundamentos de facto do pedido era desnecessária face à matéria factual que alegou no requerimento inicial; por outro lado porque, sob o ponto I.1.a da decisão recorrida, consta expressamente indicado o fundamento legal processual para a prolação de decisão de indeferimento liminar do requerimento – art. 590º, nº 1 do CPC – e, referindo-se ao pedido por ele deduzido – declaração judicial da constituição de direito real sobre imóvel apreendido para a massa insolvente -, do teor da decisão mais resulta que, de entre a alternativa prevista pela citada norma (manifesta improcedência do pedido, ou exceções dilatórias de conhecimento oficioso e insupríveis), o tribunal a quo suportou o indeferimento liminar na manifesta improcedência do pedido que, através de parcimoniosa mas metódica exposição, apreciou, começando por qualificar a ação por referência ao efeito por ela visado (constitutiva e de natureza real), por invocar o teor do art. 581º, nº 4 do CPC[2] e referir o fundamento jurídico do qual a recorrente faz derivar o direito de uso de habitação a que se arroga sobre imóvel apreendido para a massa (alegada lacuna legal a preencher por analogia), mais invocando as normas legais que preveem a constituição daquele direito (arts. 1440º e 1485º do CC), para, com assento legal no princípio do numerus clausus dos direitos reais previsto pelo art. 1306º, nº 1 do CC, concluir pela impossibilidade legal da sua constituição por recurso à analogia (conforme foi requerido pela recorrente) e, assim, pela ausência de factos aos quais corresponda disposição legal que expressamente preveja a constituição do direito a que a recorrente se arroga; que o mesmo é dizer, concluindo que os factos concretamente alegados não produzem o efeito jurídico que deles pretende extrair ou, por outras palavras, pela inadequação ou ausência de nexo lógico-jurídico legal entre a causa de pedir invocada e o pedido deduzido. Ausência e/ou inadequação que não se confunde com uma qualquer insuficiência ou imprecisão na exposição da matéria de facto a carecer de esclarecimento ou passível de correção ou suprimento nos termos pressupostos e previstos pelos arts. 590º, nº 2, al. b) e 4 e 591º, nº 1, al. c) do CPC, antes consubstanciando questão do mérito do pedido. Matéria de facto que, de resto, a recorrente alegou à saciedade, identificando e precisando cabalmente os termos da causa de pedir que invoca, correspondente, no essencial, à ausência de recursos financeiros da recorrente para suportar o pagamento de uma renda, em conjugação com o dever do Estado assegurar o direito constitucional à habitação e de proteger a casa de morada de família nos termos previstos por normas legais que tutelam aquele direito e preveem a sua constituição por decisão judicial, normas das quais, por aplicação analógica ao caso, resulta a prevalência daquele direito sobre o direito dos credores executarem integralmente o património penhorável do devedor carente daquela tutela.
Assim, contrariamente à tese defendida pela recorrente, que entende que os factos que alegou suportam o pedido que deduziu, o tribunal recorrido apreciou e julgou de mérito, concluindo em sentido contrário, ou seja que o conjunto dos factos (constitutivos) alegados pela recorrente não correspondem aos pressupostos legais constitutivos do direito que para si reclama, concluindo implicitamente pela desnecessidade de sujeitar o pedido ao contraditório dos demais interessados e pela desnecessidade de instrução dos factos alegados, ou seja, pela inutilidade do prosseguimento da ação e, expressamente, pela manifesta improcedência do pedido, com o que fundamentou a decisão de liminar indeferimento do requerimento nos termos previstos pelo art. 590º, nº 1 do CPC, que, por referência aos factos alegados pela recorrente, surge fundamentada de direito.
Com efeito, conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Sousa, [o]s casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais (…) de tal modo graves que permitem antever, logo nessa fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor (…).//Assim acontece quando seja manifesto que a ação nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação configurada pelo autor (…).
Neste contexto, e porque a recorrente reporta e assenta os fundamentos do recurso a sentido e vícios (de natureza processual) que imputa à decisão recorrida mas que nela não se verificam - nem os seus termos permitem aceitar como passíveis de assim serem interpretados/entendidos -, em rigor poderia considerar-se ausência de oposição à decisão recorrida por ausência de argumentos ou razões de discordância com os fundamentos desta. Sem embargo, e conforme questões objeto de apreciação acima enunciadas, adota-se uma visão e solução menos formalista para considerar e apreciar os fundamentos que a recorrente invocou no requerimento objeto de indeferimento e reproduziu nas alegações de recurso, também com o propósito de desde já obviar a eventual arguição de nulidade nesta instância com fundamento em omissão de pronuncia.
2. Trata-se de aferir se os factos alegados pela recorrente permitem antecipar o conhecimento de mérito do incidente (no sentido da sua improcedência), independentemente da confirmação dos mesmos em sede de instrução e da posição que, em sede de contraditório, viesse a ser adotada pela massa insolvente e pelos credores quanto aos fundamentos e o pedido formulado.
2.1. Conforme enunciado pela decisão recorrida, a recorrente pretende seja judicialmente decretada a constituição de um direito de habitação em seu benefício e sobre imóvel que, por dele ser proprietária e titular inscrita no registo, foi apreendido para a massa insolvente. Apreensão que consta formalizada em auto lavrado pelo Administrador da Insolvência e juridicamente cumprida através do registo definitivo da sentença de insolvência na ficha predial do imóvel, cfr. art. 150º, nº 4 do CIRE e art. 8º-B, nº 3, al. c) do Código de Registo Predial. Arroga-se assim à qualidade de titular de direito real/potestativo de aquisição de direito de gozo sobre imóvel posto que, sem outro fundamento que não a sua relação de facto e de direito com a coisa nos termos que descreve e a integração da mesma nas normas legais que convoca, à margem e contra a vontade dos seus credores e em oposição ao interesse destes, pretende opor-lhes e sujeitá-los à constituição de direito de habitação sobre imóvel apreendido para a massa insolvente e que, por dele a insolvente-recorrente ser proprietária, é objeto da garantia patrimonial geral dos direitos de crédito por aqueles detidos sobre a recorrente, como tal já conservada no âmbito do processo de insolvência através do registo da sua apreensão para a massa insolvente.
Conforme acima sintetizado, a causa de pedir invocada pela recorrente estriba-se em quatro vetores, dois de facto, e dois de direito. Os primeiros: o seu falso convencimento, incutido por declarações prestadas pelo seu ex-cônjuge aquando da partilha do património comum do casal, da inexistência das dívidas contraídas por sociedade da qual não era sócia mas que foram por si pessoalmente garantidas e com as quais e sem culpa sua se vê agora confrontada e a colocam em risco de perder a casa de habitação que, em sede de partilha do património comum, lhe foi adjudicada sem ónus e encargos; e ausência de recursos financeiros para suportar o pagamento de uma renda que assegure o seu alojamento e dos familiares que consigo residem (filha e netas). Os segundos: dever do Estado de assegurar o direito à habitação constitucionalmente imposto pelo artigo 65º da CRP e positivado pela Lei de Bases da Habitação; e, por aplicação analógica dos regimes legais de proteção do direito a habitação nas uniões de facto (nos termos previstos pelo art. 5º da Lei nº 7/2001 de 11.05), em sede de dissolução do casamento (nos termos previstos pelo art. 1793º do CC), e em sede de execução fiscal (nos termos previstos pelo art. 244º, nº 2 do CPPT), o dever de intervenção/ingerência corretiva do Estado na esfera privada para salvaguarda do direito à habitação através da sua ‘definição judicial’ quando em confronto com direitos de origem e natureza obrigacionais, com consequente prevalência daquele direito sobre o direito dos credores executarem integralmente o património penhorável do devedor carente daquela tutela constitucional. No caso, conforme reclama, mediante interpretação constitucionalmente conforme do art. 46º do CIRE através da redução da apreensão para a massa insolvente à nua propriedade do imóvel afeto à habitação da insolvente/recorrente, declarando em seu benefício a constituição do direito de habitação sobre o mesmo.
Inserido no Livro III do Código Civil – Direito das Coisas – o art. 1484º define os direitos de uso e de habitação, elevados à categoria de direito típico de carácter real - por constrição do conteúdo do direito de propriedade -, como direito de gozo limitado de casa de habitação, circunscrito à faculdade de nela morar e de para esse efeito a usar na estrita medida das necessidades pessoais e familiares do seu titular. De acordo com a definição dos direitos reais ‘menores’ ou limitados - por contraposição com o direito real pleno da propriedade (plena in re potestas) -, os direitos de usos e de habitação incidem necessariamente sobre imóvel alheio (iura in res aliena), não sendo possível a sua constituição em concorrência com o direito de propriedade na esfera jurídica do mesmo titular.
Prevê o art. 1485º do CC que os direitos de uso e de habitação se constituem e extinguem pelos mesmos modos que o usufruto, remissão que encontra total cabimento considerando que, no seu conteúdo, o direito de uso corresponde a um usufruto de conteúdo ou poderes mais restritos. Nas palavras de Álvaro Moreira e Carlos Fraga, os direitos de uso e de habitação são diminutivos do usufruto[3]. Remetendo para o art. 1440º do CC, mas sem prejuízo da exclusão prevista pelo art. 1293º, al. b) do CC, o direito de habitação pode ser constituído por contrato, testamento, ou disposição da lei; remetendo para o art. 1476º do CC, pode ser extinto, entre outras causas, pela reunião do direito de habitação e da propriedade na mesma pessoa.
Logo à cabeça, da definição do direito real de habitação - como direito constituído sobre bem alheio - resulta a impossibilidade jurídica da pretensão da recorrente pelo facto de ser ela a proprietária do imóvel sobre o qual reivindica a constituição daquele direito; qualidade – de proprietária - que não é prejudicada, antes é pressuposta, pela apreensão do imóvel dele objeto para a massa insolvente e pela consequente inibição do poder de dele dispor, cfr. art. 81º, nº 1 do CIRE.
2.2. Liminarmente o tribunal recorrido aferiu da ausência de disposição legal expressa a prever a constituição do direito de uso de habitação com fundamento nos factos invocados pela recorrente, inexistência que a recorrente não questiona, antes a admite como pressuposto da tese que defende, de constituição do direito por recurso à aplicação analógica de normas, assumindo a ausência de previsão, no nosso ordenamento jurídico, de norma – constitucional ou ordinária – que, no âmbito das relações jurídico-privadas, expressamente preveja o direito à constituição e atribuição do direito de uso de habitação sobre imóvel penhorado/apreendido com fundamento em ausência de recursos económico financeiros para suportar uma renda pela fruição de imóvel alheio ou para adquirir habitação própria.
2.3. O tribunal recorrido concluiu também, e bem, pela impossibilidade da constituição do direito de habitação por aplicação analógica de disposições legais por a tanto obstar, liminarmente, o disposto no art. 1306º, nº 1 do CC que, sob a epígrafe “Numerus Clausus”, proibe [a] constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei. Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, A letra e o espírito do nº 1 afastam inequivocamente a possibilidade de se admitirem, por integração analógica, figuras que não tenham regulamentação legal (…)[4][5]. Princípio que tem como fundamento razões de ordem publica, atinente com a natureza absoluta – erga omnes – dos direitos reais e a consequente restrição da liberdade de todas as outras pessoas relativamente à mesma coisa, a justificar a proibição da constituição de direitos por mera vontade dos particulares que resulte em agravamento daquela liberdade para além dos casos previstos pela lei. As pessoas não podem a seu ‘bel-prazer’ criar e estabelecer na ordem jurídica um direito com oponibilidade erga omnes. Por outro lado, previne-se o agravamento da conflitualidade emergente da proliferação de direitos reais cumulativamente constituídos sobre a mesma coisa, pela inerente contingência da partilha das respetivas utilidades posto que os direitos reais são funcionalmente dirigidos à afetação da coisa. Vigora assim o princípio da tipicidade dos direitos reais, princípio que [v]ale não apenas quanto às figuras dos direitos reais, como em relação aos negócios através dos quais se pode operar a sua constituição ou transferência.[6] Assim, se a lei prevê a constituição de determinado tipo de direito real com fonte contratual, a sua existência, reconhecimento e eficácia na ordem jurídica como tal impõe que derive de contrato (típico ou inominado). Se a lei prevê a constituição de direito real com fundamento na lei, impõe que exista norma legal expressa nesse sentido. Nas palavras de Oliveira Ascensão, [o] princípio da tipicidade não implica qualquer limitação do legislador. Este tem sempre as mãos livres para criar novos direitos reais. Apenas parece exigir, por aplicação dos princípios gerais sobre legiferação, que essa criação se faça através de lei em sentido formal[7].
2.4. Da descrita impossibilidade legal de constituição de direitos reais por analogia resulta prejudicada a apreciação da invocada pela recorrente. Mas, ainda que assim não fosse, conforme infra se justifica a sua pretensão não colheria enquadramento nas normas que invoca por não se verificar um quadro fático-jurídico de analogia entre a situação que as suas alegações de facto concretizam, e as situações reguladas pelos regimes legais que invoca como instrumentos da tutela que para si reclama.
Sob a epigrafe Integração das lacunas da lei prevê-se no art. 10º do CC: 1. Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.//2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei.//3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.
A analogia consiste na aplicação a uma situação de facto de regulamentação jurídica prevista para outra não regulada pela lei mas que, por serem juridicamente semelhantes, justifica a intervenção ‘criadora’ do julgador no sentido de regular uma situação nos termos em que o legislador o teria feito se a tivesse previsto, por referência aos fundamentos materiais da regulação que uma dada norma prevê. A aplicação analógica da lei justifica-se e é orientada e delimitada por princípios de coerência normativa e de justiça relativa emergentes do princípio maior da igualdade/semelhança jurídica dos factos: factos de igual natureza devem ter igual tratamento jurídico.
No caso pressuporia que a ausência de norma legal que expressamente preveja e regule o direito potestativo de constituição e aquisição do direito real de habitação ao qual a recorrente se arroga corresponda a uma lacuna legal, ou seja, a uma omissão involuntária do legislador; e que a situação para a qual a recorrente reclama aquela tutela encontre no ordenamento jurídico paralelismo com situação juridicamente semelhante por ele regulada. O que impõe definir e caracterizar aquela em que a recorrente se encontra ou contextualiza.
O imóvel em questão foi apreendido e integra a massa insolvente constituída com a declaração da insolvência da insolvente/recorrente. Como é por demais consabido, o processo de insolvência liquidatário traduz-se em processo de execução universal e concursal, que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação do património para afetação do respetivo produto na satisfação dos direitos dos credores. Execução universal porque, conforme definição de massa insolvente que consta do art. 46º do CIRE, com exceção dos bens isentos de penhora, abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo, em consonância com o princípio geral da garantia geral das obrigações previsto pelo art. 601º do CC, nos termos do qual Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora (…). Concursal porque, conforme arts. 90º, 128º e 146º do CIRE, visando a liquidação do passivo global do devedor, procede-se para o efeito à citação de todos os credores do devedor para concorrerem ao produto que resulte da liquidação dos bens que integram o património do devedor, na medida das forças deste e em função da hierarquia/graduação dos créditos de acordo com a respetiva natureza. Para cumprimento desse fim, a declaração da insolvência do devedor determina a apreensão material de todos os bens que integram a massa insolvente, incluindo o produto da venda desses bens, ainda que arrestados, penhorados, apreendidos ou por qualquer outra forma detidos, dos quais o Administrador da Insolvência, na qualidade de representante legal da massa insolvente, fica administrador, liquidatário e, em regra, depositário (cfr. arts. 46º, 149º, 150º, 81º, nº 1, 55º, nº 1 e 158º do CIRE).
Resumidamente, não obstante a complexidade do processo de insolvência, repartido por fases e procedimentos declarativos e executivos, teleológica e processualmente a insolvência liquidatáriaassume-se como uma ação executiva para pagamento de quantia certa, coletiva ou concursal (em contraposição com a execução singular) e genérica ou universal (porque abrange a totalidade do património penhorável do devedor), prosseguida através de um processo judicial especial (o processo de insolvência, entendido em termos amplos, abrangendo processo principal e apensos) que visa a satisfação de todos os direitos de crédito por recurso ao património do devedor com prévia adoção de medidas cautelares (correspondentes à imediata apreensão dos bens nos termos do art. 149º do CIRE) e, em sede de pagamentos, obedece a uma ordem especialmente prevista para a insolvência, designadamente, ao nível da qualificação dos créditos, com influência na ordem do seu pagamento. Corresponde a processo especial que, conforme art. 17º do CIRE, é regulado em primeira linha pelas disposições próprias deste diploma e, subsidiariamente, nos casos omissos, [p]elo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código.
Prevendo o art. 46º do CIRE que a massa insolvente abrange todo o património do devedor salvo disposição em contrário, dela ficam excluídos os bens que nos termos dos arts. 736º e 736º do CPC constam previstos como absoluta e relativamente impenhoráveis, exclusão que resulta da consideração de interesses do executado que o sistema jurídico ponderou e sobrepôs aos interesses dos credores. Nenhum dos ali previstos corresponde ao direito potestativo do executado onerar o imóvel objeto de penhora com a constituição de direito real de habitação para excluir este ultimo, e o correspetivo valor económico, do âmbito da penhora e da garantia patrimonial dos credores. Por outro lado, a característica da universalidade da insolvência positivada pelo art. 46º do CIRE afasta, por princípio, a aplicação das limitações à penhora da casa de habitação do executado previstas pelo art. 751º, nº 4 do CPC, sendo certo que no caso sequer se verificam os pressupostos do valor da quantia em execução posto que o passivo reconhecido da recorrente é superior ao dobro do valor da alçada do tribunal da 1ª instância, ainda que se desconsidere o crédito comum reconhecido sob condição.
Pretende a recorrente que a ressalva de disposição em contrário prevista pelo art. 46º do CIRE deve ser interpretada em termos constitucionalmente conformes ao art. 65º da CRP para daquela extrair o reconhecimento legal do direito à constituição judicial de direito de habitação vitalício em benefício do insolvente sobre o imóvel que constitui a sua habitação e que é objeto de apreensão para a massa insolvente e, assim, permitir ao julgador a salvaguarda do direito fundamental à habitação através da sua fixação judicial.
Interpretação que não colhe porque o dever de o Estado assegurar a todos uma habitação condigna, como direito social que é, recai sobre o domínio público, cabendo ao Estado, e não aos particulares, assegurar a sua proteção, conforme art. 65º da CRP e arts. 1º e 3º da Lei de Bases de habitação nº 83/2019 de 03.09, na qual expressamente se prevê que O Estado é o garante do direito à habitação. Só em situações excecionais de declarado estado de emergência ou de calamidade pública ou de declarado interesse publico e mediante o pagamento da justa contrapartida ou indemnização, o Estado pode recorrer à ablação ou oneração de direitos privados para dar cumprimento aos deveres sociais que constitucionalmente lhe compete tutelar. Fora dessas situações, e fora do âmbito das relações com o Estado, o direito à habitação do executado não se sobrepõe ao direito do credor à satisfação do seu crédito à custa do património do devedor, património que inclui o direito pleno de propriedade sobre o imóvel onde aquele detém a sua habitação. A tutela da habitação do executado apenas se faz por sacrifício do Estado, e não, dos demais credores. Nesse sentido, e com interesse na questão, acórdão do Tribunal Constitucional nº590/2004 de 06.10.2004 pelo qual, considerando que [o] principal destinatário (sujeito passivo) das imposições constitucionais em matéria de promoção do direito à habitação é o Estado (…), aconchegado nas considerações de Jorge Miranda e Bacelar Gouveia – “Sendo copiosas as normas e escassos os recursos, dessa apreciação [dos factores económicos] poderá resultar a necessidade de estabelecer diferentes tempos, graus e modos de efectivação dos direitos. Se nem todos os direitos económicos, sociais e culturais puderem ser tornados plenamente operativos em certo momento, então haverá que determinar com que prioridade e em que medida o deverão ser.” –, e salvaguardando como exceção à regra opções legislativas manifestamente desprovidas de base racional, reconhece a [l]iberdade do legislador na escolha das medidas concretizadoras de uma política de promoção do acesso à habitação; [e a] necessidade de concordância prática do direito à habitação com outros direitos e valores fundamentais; (…)[8].
A interpretação que a recorrente extrai do art. 46º do CIRE para obter a reclamada conformação do seu âmbito com o direito do devedor a habitação em imóvel próprio - no sentido de este prevalecer sobre o direito dos credores em caso de insuficiência económica do executado -, surge rebatida pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 612/2019 que, conforme consta de anotação ao art. 751º do CPC[9], concluiu pela constitucionalidade do nº 3 do art. 751º do CPC na redação anterior à alteração introduzida pela Lei nº 117/19 de 13.09, interpretado no sentido de admitir [a] penhora de imóvel que seja habitação própria permanente do executado e sua família, mesmo que esse imóvel não tenha sido dado em garantia para o pagamento da quantia exequenda, quando esteja em causa uma dívida superior a metade do valor da alçada do tribunal de 1ª instância e a penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de 19 meses. Com pertinência ao caso - e à juridicamente incompreensível alegação de ausência de culpa da recorrente pela atual existência de dívidas que a um tempo declaradamente assumiu e pelas quais o seu património é agora chamado a responder -, pelo acórdão nº 649/99 considerou o Tribunal Constitucional que, na ponderação da tutela constitucional da dignidade humana previsto pelo art. 1º e do direito de propriedade previsto pelo art. 62º nº 1, ambos da CRP, os artigos 822º e 823º do CPC então em vigor (correspondentes aos atuais arts. 736º e 737º) representam, [a] nível de direito ordinário, a consagração de uma forma de composição do conflito ou da colisão entre o direito do credor em receber a prestação que lhe seria devida pelo devedor relapso e o direito deste último a ver mantida na sua esfera de disponibilidade um conjunto de bens que lhe permitam, bem como ao seu agregado familiar, desfrutar de um mínimo de sobrevivência condigna. Mais considerou que pela penhora o executado não se vê arbitrariamente despojado do imóvel onde tem a sua casa de morada de família, posto que este só foi penhorado por um facto que lhe é exclusivamente imputável (o incumprimento das suas obrigações), que o direito à habitação não corresponde a direito a ter casa própria em detrimento dos interesses dos seus credores, que a impenhorabilidade da mesma colidiria com o direito à propriedade privada do credor também constitucionalmente tutelada pelo art. 62º, nº 1 da CRP, e que o direito a ter uma habitação própria ou de obter habitação por arrendamento em condições compatíveis com os rendimentos das famílias é uma obrigação que se impõe, não aos particulares, mas ao Estado, sobre o qual recai o dever de disponibilizar condições para que assim suceda. No mesmo sentido concluiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2015, de cujo sumário consta que O direito à habitação do cidadão e da família, consagrado no art. 65.º da CRP, não se confunde com o direito a ter casa própria, sendo que o legislador ordinário, não obstante estar ciente da sua importância, não estabeleceu, em homenagem àquele direito, a impenhorabilidade da casa de morada de família, mas apenas algumas defesas (art. 834.º, n.º 2, do CPC e atual art. 751.º, n.º 3, als. a) e b), do NCPC (2013)”.[10]
Por referência ao que seria a vontade do legislador nesta matéria, para além de a questão social da salvaguarda da casa de habitação dos devedores ter sido abordada pelas alterações que a Lei nº 117/2019 de 13.09 introduziu aos nºs 3 e 4 do art. 751º do CPC, introduzindo limitações à sua penhorabilidade, posteriormente àquele diploma a Assembleia da Republica rejeitou Projetos de Lei do PCP pelos quais era proposta a previsão da inadmissibilidade de penhora e de execução de hipoteca sobre imóvel que constitua a habitação própria e permanente do executado em situações em que se comprovasse a inexistência de rendimentos suficientes para assegurar a subsistência do executado e do seu agregado familiar, e isentar de penhora o imóvel habitação própria e permanente do executado com valor não superior a € 250.000,00, salvo quando fosse dado como garantia hipotecária e a execução se destinasse ao pagamento da dívida.[11]
Do exposto se conclui pela ausência de lacuna legal posto que, contrariamente ao alegado pela recorrente, a penhora/apreensão do imóvel que constitui a habitação do executado está legalmente regulada no regime processual civil e insolvencial, e a ausência de norma legal que determine a cedência do direito dos credores perante a tutela do direito à habitação do executado ocorre, não por omissão, mas por vontade do legislador em não prever, regular e limitar nesses termos o direito de ação dos credores.
Mais se conclui que a apreensão do imóvel que constitui a casa de habitação do executado/insolvente (para, através do valor do direito de propriedade do devedor tal qual como o mesmo existe na sua esfera jurídica à data a penhora/apreensão, dar satisfação ao direito dos credores) não atenta contra o direito constitucional à habitação, porque é ao Estado que o compete assegurar através de recursos e procedimentos de natureza pública que o tutelem.
Como urge ser o caso da limitação que vigora no âmbito do processo de execução fiscal nos termos previstos pelo art. 244º, nº 2 do CPPT introduzido pela Lei nº 13/2016 de 23.05, diploma que teve como objetivo proteger [a] casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado e que encontra fundamento constitucional, precisamente, na função social do Estado de assegurar o direito à habitação previsto pelo art. 65º da CRP que, conforme já referido e é jurisprudência consensual, não se confunde com direito a habitação própria e não se sobrepõe à proteção da propriedade privada; correspondendo esta aos direitos de crédito dos credores e o direito de, na ausência de cumprimento voluntário, os satisfazerem coercivamente por recurso ao valor económico do património do devedor, que inclui a suscetibilidade da penhora do imóvel habitado pelo executado, sem limitação da sua consistência económica prática e, assim, do seu valor[12]. Do sumariamente exposto resulta evidente que o art. 244º, nº 2 do CPPT corresponde a disposição especial restrita às execuções fiscais justificada por deveres constitucionais do Estado, que ali figura como exequente, e que não encontram paralelismo com a natureza jurídica dos interesses tutelados pelo direito de execução singular ou coletiva dos credores para satisfação de créditos emergentes de relações jurídico-privadas. Nestas, o imóvel que constitui a casa de habitação do devedor não só é penhorável como é ‘vendável’, e isso mesmo decorre logicamente do regime legal do processo executivo previsto nos arts. 751º, nº 4, 756º, nº 1, al. a) e 862º (ex vi art. 828º) do CPC para realização da penhora e desocupação do imóvel que constitui a casa de habitação do executado (e para os quais remete o art. 150º, nº 5 do CIRE) que, precisamente, pressupõe e expressamente prevê a sua penhorabilidade e subsequente venda para pagamento do crédito exequendo e, se for o caso, dos reclamados. Citando acórdão do TCA do Sul de 17.10.2019, A protecção da casa de morada de família no âmbito das execuções fiscais a que a Lei supra referida deu expressão, foi motivada, como resulta dos trabalhos parlamentares, da necessidade de acudir a um verdadeiro flagelo social resultante da afectação desse direito fundamental, afectação na qual o Estado, por via das execuções fiscais, tinha uma preponderante quota-parte de responsabilidade.//Ora, se ao Estado incumbe assegurar o direito à habitação, que mais não é do que a outra face do direito à reserva da vida privada, quer através de politicas que facilitem o seu acesso, quer abstendo-se de condutas que ponham em causa tal direito – como sucede quando actua nas vestes de credor executivo (…).[13]
Apesar de não termos detetado decisões jurisprudenciais que tenham por objeto a apreciação da questão da inaplicabilidade do art. 244º, nº 2 do CPPT à execução judicial (singular ou universal), é essa a posição unanimemente aceite por todos os Tribunais que, chamados a apreciar a questão da suspensão ou não da execução singular sobre a casa de morada do executado, nos termos do art. 794º, nº 1 do CPC e com fundamento na existência de penhora anteriormente realizada em execução fiscal e, assim, chamados a dirimir a questão da determinação do processo em que a venda do bem deve ser prosseguida, dão como adquirido e assente a inoponibilidade daquela norma aos credores comuns, com a consequente cessação da proibição da venda por aquela norma prevista quando esta seja realizada para, em concurso de credores, satisfazer conjuntamente créditos fiscais e créditos não fiscais[14]. Nesse sentido, acórdão do TC nº 329/2019 de 29.05.2019, onde se consignou que o art. 244º, nº 2 do CPP [c]onfigura um impedimento à venda judicial do imóvel penhorado no âmbito do processo de execução fiscal, mas não nos autos de execução comum[15]. No mesmo sentido, o supra citado acórdão da RP de 07.05.2019 que, na esteira do defendido por J. H. Delgado Carvalho[16], concluiu pelo prosseguimento da venda do imóvel no âmbito da execução fiscal pendente onde consta penhorado em primeiro lugar para, no âmbito do concurso com os credores reclamantes por apenso ao processo de execução fiscal (vg. crédito hipotecário), promover a satisfação dos créditos comuns, incluindo os que forem objeto de execução judicial singular sustada com fundamento naquela penhora, bem como dos próprios créditos fiscais objeto da execução fiscal se para tanto for suficiente o produto da venda. Igualmente, acórdão da RP de 08.03.2019, do qual consta expressamente sumariado que A proibição de venda a que se reporta o n.º2 do art.º 244.º do CPPT apenas se reporta à venda para o pagamento coercivo de créditos fiscais.[17]E ainda, acórdãos da RL de 22.10.2019[18] e da RC de 25.05.2020[19], do qual consta que Cabe salientar que esta Lei (Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio) não impede a venda da habitação no âmbito de execuções hipotecárias, por iniciativa de instituições bancárias, como a presente (cfr. art.º 4º), (…).//Por conseguinte, a tutela dos direitos dos restantes credores na cobrança coerciva continua a ser assegurada. Posição que é sustentada em dissertação apresentada por Inês da Mota Santos[20] pela qual, referindo-se a diplomas que visam promover uma maior proteção a situações em que os devedores, por via de incumprimento de créditos hipotecários e de dívidas fiscais, estão em risco de vir a perder os imóveis de que são titulares, conclui que aLei n.º 13/2016, de 23.05não é aplicável ao processo de execução judicial, nem impede a realização da penhora dos imóveis, precisamente, porque a tutela da habitação do executado por aquela Lei visada apenas se faz por sacrifício do Estado, e não com sacrifício dos interesses privados dos demais credores.
Por referência à proteção da casa de morada de família consagrada pelos regimes legais da união de facto e da dissolução matrimonial invocados pela recorrente, cumpre muito sinteticamente referir que a natureza das relações jurídicas por aquela pressupostas e o contexto fáctico-jurídico em que é concedida não encontram eco na situação fáctico-jurídica da recorrente, que aqui detém a qualidade de sujeito passivo de obrigações vencidas e não cumpridas.
Com efeito, a proteção consagrada pelo art. 1793º do CC em benefício de um dos ex-cônjuges (em função das necessidades de cada um deles e do interesse dos filhos do casal) traduz-se num direito potestativo ao arrendamento do imóvel que constituía a casa de morada de família do casal, direito que apenas pode ser reciprocamente invocado e oposto por cada um dos cônjuges contra o outro. O direito de habitação que nos termos do art. 5º da Lei nº 23/2010 de 30.08 a lei prevê e reconhece ao consorte sobrevivo sobre a casa de morada de família dos unidos de facto, para além do carácter temporário (cinco anos ou, se superior, o equivalente à duração da união de facto), tem como sujeitos ativo o consorte sobrevivo e como sujeito passivo os herdeiros do consorte falecido, contra os quais aquele pode invocar, opor e pedir o reconhecimento daquele direito. Num e outro caso é igualmente visada a proteção da casa de morada de família do cônjuge ou do unido de facto que seria atingido quanto à estabilidade da habitação familiar, não pela ação dos credores do proprietário do imóvel, mas por situações de crise provocadas quer pelo divórcio, quer pela morte de um dos consortes (tal qual como sucede na dissolução do casamento por morte de um dos cônjuges, nos termos do art. 2103º-A do CC), devendo assim o tribunal atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge que mais precise dela, e reconhecer o direito de habitação ao consorte sobrevivo pelo período de tempo que ao caso caiba. Num e outro caso tais direitos emergem de um vínculo conjugal ou para o efeito equiparado pela lei, e assenta na preocupação de minimizar as consequências sócio-familiares da crise provocada pela sua extinção no que respeita à estabilidade da casa de morada de família, mas sem prejuízo dos arts. 601º e 817º do Código Civil, ou seja, do direito de os credores executarem o imóvel sobre o qual incidem aqueles direitos para satisfação dos créditos detidos sobre o respetivo proprietário, tal qual como o poderiam executar na pendência do casamento ou da união de facto. Já a situação da recorrente emerge de relações jurídicas de natureza patrimonial e da sua responsabilização patrimonial perante os seus credores emergente do incumprimento das obrigações por aquela assumidas, e já reconhecidas nos autos por sentença transitada em julgado.
Conforme surge realçado no acórdão do Tribunal Constitucional de 27.02.2013, em sede de apreciação da constitucionalidade do art. 1793º do CC no confronto com a tutela constitucional do direito de propriedade, de acordo com o qual a proteção por aquela norma concedida [e]merge da relação conjugal e da constituição do bem como “casa de morada de família”, qualidade em que o sujeito que vê a sua esfera jurídica afectada voluntariamente ingressou e situação para que contribuiu, e que tem como beneficiários o outro cônjuge e os filhos.//De acordo com o regime legal em que o segmento normativo agora questionado se insere e da qual não pode ser isolado para compreensão da questão que neste recurso é colocada, esta específica vinculação da propriedade só existe por causa da família e poderá deixar de subsistir quando circunstâncias supervenientes o justificarem. Na verdade, é da essência do vínculo conjugal – só desse modo de constituição da família aqui cuidamos – afectar a situação pessoal e patrimonial dos cônjuges, gerando direitos e deveres que põem perdurar para além da sua dissolução, designadamente em matéria de alimentos, que é o efeito mais próximo daquele que agora analisamos. Nesta perspectiva, que é a que corresponde à razão determinante da medida legislativa em causa, trata-se de norma conformadora do estatuto jurídico de um bem (aquele em que a família estabeleceu o centro da vida familiar) por ter sido afectado pelos cônjuges a uma determinada finalidade que se entende exigir protecção especial, no contexto da relação familiar e por causa dela, mesmo depois da dissolução do vínculo. Não se trata de um sacrifício imposto ao titular em nome de uma genérica hipoteca social da propriedade, mas de manter uma situação emergente dos efeitos do casamento e que vai para além dele. Aliás, os direitos de cada um dos cônjuges sobre o bem em que o casal estabelece o centro da vida familiar sofrem compressão noutros aspectos, designadamente, na alienação ou oneração (artigo 1682.º-A do CCv), na disposição do direito ao arrendamento (1782.º-B) do CCv).[21]
Finalmente não deixamos de referir que, considerando que a apreensão do imóvel em questão beneficia já dos efeitos do registo da declaração da insolvência e que o direito real de habitação também está sujeito a registo (cfr. art. 2º, nº 1, al. a) do Código de Registo Predial), a pretensão da recorrente mais colidiria com o disposto nos arts. 819º do CC - nos termos da qual, Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados. – e 824º, nº 2 do CC – nos termos da qual Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo., normas que sempre determinariam a inoponibilidade e a caducidade do direito de habitação que a recorrente lograsse constituir sobre o imóvel posteriormente ao registo da sentença de declaração da insolvência[22]. Conforme sumariado por acórdão de 06.05.2010 do Supremo Tribunal de Justiça, O art.º 824º, n.º 2 do C.Civil é peremptório no sentido de que os bens são transmitidos livres dos direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente do registo.
De todo o exposto resulta a improcedência da apelação e da pretensão por ela deduzida.
IV – Decisão
Em face de todo o exposto, os juízes desta secção acordam em julgar a apelação totalmente improcedente, com consequente manutenção da sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente/insolvente (cfr. art. 527º, nº 1 e 2 do CPC).
Lisboa, 08.06.2021
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Fernando Barroso Cabanelas
_______________________________________________________ [1] Vd. conclusões 17º, 18º e 31º das alegações. [2] Por lapso manifesto de escrita da sentença ficou a constar a indicação do art. 481º. [3] Direitos Reais, Segundo as preleções do Prof. Doutor C. A. Mota Pinto ao 4º Ano Jurídio de 1970-71, Livraria Almedina, Coimbra, p. 419). [4] Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., p. 97. [5] Na jurisprudência, entre outros, acórdão do STJ de 27.09.2011, revista nº 360/005.7TBODM.E1.S1, disponível na página da dgsi. [6] Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, 1967, p. 49. [7] Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 5ª ed., p. 161. Autor que, divergindo da demais doutrina contemporânea e atual, defendeu o costume como fonte de direitos reais equiparável à lei, posição da qual discordamos e que, de resto, não se coloca no caso, por defendida por referência ao ordenamento rural e ao, atualmente inexistente, fenómeno e figura da colonização. [8] Diário da Republica nº 283 de 03.12.2004, III série, pág. 18229 e ss. [9] CPC Anotado de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Sousa, GPS, Vol. II, p. 134. [10] Revista nº 3762/12.9TBCSC-BL1.S1, disponível na página da dgsi. [11] Referência extraída do CPC Anotado, GPS, Vol. II, p. 134. [12] Nesse sentido, entre muitos outros, acórdãos da RL de 10.05.2018 (processo nº 989/15.5T8STB-B.E1) e de 27.04.2021 (processo nº 1102/07.8JDLSB-AR.L1), da RG de 21.03.2019 (processo nº 153/15.3T8CHV-C.G1), e do STJ de 05.03.2015 (processo n.º 3762/12.9TBCSC-B.L1.S1), todos disponível na página da dgsi. [13] Proferido no processo nº 32/19.5BESNT, disponível na página da dgsi. [14] A jurisprudência apenas diverge quanto a qual dos dois processos deve prosseguir, se o processo de execução fiscal, se o processo de execução singular, face ao disposto no art. 794º, nº 1 do CPC e à ausência de norma expressa no processo de execução fiscal equivalente ao art. 850º, nº 2 do CPC, questão que não se confunde com a aqui submetida a apreciação, desde logo por tratar-se de processo de insolvência, por natureza universal e concursal, e porque o que o recorrente reivindica é a aplicação daquela proibição de venda ao processo de insolvência. [15] Disponível na página do Tribunal Constitucional. [16] Em “As alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2016, de 23/5, no Código de Procedimento e de Processo Tributário e na Lei Geral Tributária e as suas repercussões no concurso de credores”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2016/07/as-alteracoes-introduzidas-pela-lei-n.html. [17] Proferido no processo nº 11128/11.1TBVNG-C.P1, disponível na página da dgsi. [18] Proferido no processo nº 2270/07.4TBVFX-B.L1-7, disponível na página Direito em Dia, de cuja fundamentação jurídica se surpreendem trechos reproduzidos ipsis verbis na motivação das alegações do recorrente (sem indicação da referida fonte), não obstante o objeto daquele acórdão seja distinto do aqui em apreciação pois, sem por em causa a realização da venda coerciva da casa de habitação para satisfação dos créditos dos demais credores, versa ‘apenas’ sobre a questão da determinação da execução que prossegue para esse efeito: se a fiscal onde o imóvel foi penhorado em primeiro lugar, se a judicial onde a penhora é posterior. [19] Proferido no processo nº 367/16.9T8CVL-C.C1, disponível na pagina da dgsi. [20] “A (IM)PENHORABILIDADE DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA//CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA LEI 13/2016, DE 23 DE MAIO”, dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2º Ciclo de Estudos em Direito, na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses, Coimbra, 2018, disponível em https://eg.uc.pt/bitstream/10316/85886/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20-%20A%20%28Im%29penhorabilidade%20da%20Casa%20de%20Morada%20de%20Fam%C3%ADlia.pdf [21] Processo nº 672/2012, disponível na página da pgdl. [22] Nesse sentido, acórdão da RE de 16.05.2019, proc. nº 3028/14.0TBSTB-D.E1, disponível na página da dgsi.