DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO DE SOCIEDADE COMERCIAL
IMPUGNAÇÃO CONTENCIOSA
EFEITO SUSPENSIVO
INSOLVÊNCIA
Sumário

1– O procedimento administrativo de dissolução e liquidação, é aplicável apenas a entidades sujeitas a registo comercial, ou seja, sociedades comerciais, sociedades civis sob forma comercial, cooperativas e estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, cuja competência pertence, em exclusivo aos serviços de registo comercial, a decidir pelo Conservador do Registo Comercial, dirigindo-se a finalidade sujeita a registo (dissolução/liquidação).

2–Tratando-se de uma decisão de conservador do registo comercial que defere ou indefere um registo (dissolução – cfr. art. 13º do RJPADLEC), tal tramitação só pode ser a prevista, em sede geral, para a impugnação das decisões de Conservador no Código do Registo Comercial, nos arts. 101º-A e 104º e ss., com as especialidades previstas na lei especial.

3– Atento o disposto nos arts. 12º nº1 do RJPADLEC e 106º nº1 do Código do Registo Comercial, a consequência a retirar do efeito suspensivo atribuído, quer à impugnação contenciosa da decisão do Conservador, quer ao recurso de apelação interposto da sentença proferida no âmbito daquela é de que, sendo interposto recurso de apelação de sentença que confirmou decisão do Conservador que decretou a dissolução e imediato encerramento da liquidação de sociedade comercial, o procedimento administrativo de dissolução respetivo se encontra ainda pendente.

4– O art. 3º do RJPADLEC estabelece uma total prevalência do processo de insolvência sobre o procedimento administrativo de dissolução e de liquidação, não se tendo limitado a extrair consequências da declaração de insolvência, ela própria causa de dissolução imediata no caso das sociedades comerciais, mas antes atribuindo relevância ao próprio pedido de declaração de insolvência, independentemente da respetiva proveniência e do respetivo sucesso.

5– Enquanto não estiver registado o encerramento da liquidação de determinada entidade comercial a lei “prefere” que, quer a dissolução, quer especialmente a liquidação se façam pela via judicial, por se revestir de maior solenidade, publicidade e eficácia, dado que os meios ao dispor do liquidatário são, em processo de insolvência, muito mais vastos, tal como muito mais amplas são as possibilidades de intervenção dos interessados.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa


1.–Relatório:


O Senhor Conservador da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, por despacho de 01/02/2018, declarou a dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade Quinta … – Investimentos, Lda., pessoa coletiva n.º xxxxxxxxx, com sede na Rua …, n.º 1, Quinta …, Torres Vedras.

Inconformada, SC II, S.A., interpôs recurso contencioso do despacho referido, pedindo a anulação da decisão de encerramento da liquidação da sociedade, e alegando, em síntese, ser credora da sociedade Quinta … – Investimentos, Lda., beneficiando de garantias reais sobre três imóveis desta sociedade e que a decisão proferida, encerrando a liquidação sem qualquer ato de liquidação dos ativos e de pagamento dos credores viola o artigo 9.º, n.º 1, alínea d) do RJPADLEC e os artigos 146.º, n.º 1 e 154.º do Código das Sociedades Comerciais, tornando a decisão nula por preterição de formalidades e por falta de fundamento. Alega a violação dos seus créditos e das normas respeitantes ao cumprimento dos contratos e direitos dos credores. Afirma ter comunicado informalmente ao Conservador a existência de bens e de dívidas fiscais. Mais alega que a sociedade se encontra insolvente.

Recebido o recurso o Ministério Público teve vista nos autos e absteve-se de emitir parecer.

Foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente o recurso e manteve a decisão recorrida que declarou a dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade Quinta … – Investimentos, Lda., pessoa coletiva n.º xxx xxx xxx, com sede na Rua …, n.º 1, Quinta …, Torres Vedras.

Inconformada, a recorrente SC II, S.A. interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação do despacho recorrido e:
a)-A extinção deste processo, por inutilidade superveniente, em resultado do pedido de insolvência da Quinta …, na medida em que a impugnação judicial da Decisão do Conservador tem efeito suspensivo (artigo 12.º, n.º 1 do RJPADL) – não sendo assim definitiva a decisão de encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula – mantendo, por isso, a Quinta … a sua personalidade jurídica, ficando sem qualquer efeito a decisão provisória e impugnada de encerrar a liquidação, o que requer, desde já;
b)-A título subsidiário, seja marcada a data para audiência de julgamento, sendo arrolado o Senhor Conservador CV como testemunha, devendo o mesmo ser notificado na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa; e
c)-Em qualquer caso, seja oficiosamente cancelado o registo provisório da decisão administrativa de dissolução e encerramento da liquidação, pela Conservatória, assim que (i) for declarada a insolvência da Quinta … ou (ii) for revogada a sentença por decisão do Tribunal da Relação, consoante o que ocorrer primeiro.

Formulando as seguintes conclusões:
1.–Vem a Autora recorrer da sentença, a qual julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela Autora da Decisão do Senhor Conservador da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa de 8.02.2018, de dissolução e encerramento da liquidação, com a consequente extinção, da sociedade Quinta … - Investimentos, Lda. (“Quinta …”) (“Decisão do Conservador”).
2.–A sentença manteve a Decisão do Conservador, que determinou a dissolução e o encerramento da liquidação, a qual, no entender da Autora, não respeitou nem o regime da liquidação previsto no Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e Liquidação (“RJPADL”), nem o regime das sociedades comerciais no Código das Sociedades Comerciais (“CSC”).
3.–Com efeito, a motivação da Sentença assenta, por um lado, no facto de o RJPADL não impor ao Conservador que efectue diligências para o apuramento de bens e, por outro lado, no facto de considerar que a Autora não fez a prova de que teria comunicado oralmente ao Senhor Conservador, antes de ser proferida a decisão final de dissolução e encerramento da liquidação, a qual foi registada em 8.02.2018, que a Quinta … detinha bens.
4.–A sentença é ilegal pelas seguintes razões, no entender da Autora:
5.–Em primeiro lugar, a sentença viola o direito ao contraditório, previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CSC, e que se reflecte no direito à prova, previsto no artigo 415.º do CPC, designadamente em matéria de provas constituendas, uma vez que a sentença não assegurou a pronúncia da Autora sobre a dispensa da audiência prévia e a imediata prolação de saneador-sentença, o que torna a sentença nula;
6.–É por essa razão que se tem entendido que, ainda que certa questão tenha sido debatida nos articulados – o que nem sequer é aqui o caso, uma vez que a Autora não podia antecipar que, para se pronunciar sobre a validade da Decisão do Conservador, seria essencial a prova da comunicação verbal, feita pelos mandatários da Autora, ao Senhor Conservador – “a decisão de dispensa da audiência prévia deve ser precedida da consulta das partes, ao abrigo do art.º 3-3” (cfr. Professor Lebre de Freitas in Código de Processo Civil Anotado - 2.º Volume, pág. 650).
7.–Com efeito, refere a jurisprudência que “assim se garantindo, não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.11.2015, proc. 4507/2013, disponível em www.dgsi.pt).
8.–A consequência resultante da determinação de uma dispensa da audiência prévia ilegal, ou seja, sem permitir às partes pronunciar-se sobre o exercício deste poder-dever no caso concreto, portanto, sem permitir o exercício do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, é a nulidade processual, a qual pode ser arguida em sede de recurso, como é o caso, com a consequente anulação da sentença.

9.–Neste sentido, decidiu o Tribunal da Relação do Porto o seguinte (acórdão de 24.09.2015, proferido no proc. 128/14.0T8PVZ.P1, disponível em www.dgsi.pt):
I-Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, deverá convocar audiência prévia para o fim previsto no artigo 591º, nº1, b) do Código de Processo Civil.
II-A não realização desse acto processual só será consentida no âmbito do exercício do dever de gestão processual, a título de adequação formal, se o juiz entender que a matéria a decidir foi objecto de suficiente debate nos articulados, justificando a dispensa dessa diligência. Sobre o propósito de dispensar a audiência prévia deverá, porém, ouvir as partes, de acordo com o disposto nos artigos 6º, nº1 e 3º, nº3, ambos do Código de Processo Civil.
III-A não realização de audiência prévia, impondo a lei a sua realização, constitui nulidade processual, podendo ser arguida em sede de recurso, conduzindo à anulação da decisão que dispensou a sua convocação e do saneador-sentença que se seguiu a essa decisão.

10.–Note-se que, no presente caso, há uma dupla razão que justifica esta nulidade processual: é que não só a questão da prova sobre a comunicação da existência de bens não foi debatida nos articulados – aliás, a Autora nem sequer foi notificada de qualquer resposta à petição inicial de impugnação judicial, se é que a há – como nunca o Tribunal havia suscitado a dúvida sobre a falta de prova deste facto – o qual, atenta a argumentação da sentença, foi claramente considerado determinante para o sentido da decisão.
11.–Em segundo lugar, e em resultado do exposto, a Autora viu o seu direito à prova, que é uma decorrência do direito de acção previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), ser coarctado, uma vez que não pôde requerer a produção de prova adicional – considerando que a comunicação verbal da existência de bens foi considerada um facto essencial para a decisão da causa – para a prova deste facto.
12.–Acresce que o próprio Tribunal poderia, no âmbito dos seus poderes oficiosos, ter determinado a realização de prova sobre este facto.
13.–É que, veja-se, este facto foi considerado determinante para o sentido da sentença, deveria o tribunal ter cumprido o dever decorrente do Princípio do inquisitório previsto no artigo 411.º do CPC:
Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
14.–No presente caso, não só não foi dada a oportunidade à Autora de se pronunciar sobre esta questão previamente, designadamente requerendo uma alteração ao seu requerimento probatório, como o douto Tribunal nem sequer ordenou ou indicou que pretendia saber se tinha sido efectivamente feita a prova de tal facto.
15.–Ora, decorre claramente dos autos a necessidade, por exemplo, de ser ouvido o Senhor Conservador sobre esta questão, uma vez que o Tribunal entendeu ser claramente relevante o facto alegado pela Autora no artigo 51.º da petição de impugnação judicial.

16.– Assim, atente-se na motivação da sentença:
Não se considerou provada a comunicação informal invocada pela Impugnante por não ter sido efectuada qualquer prova (pág. 7).
(…)
Não ignoramos que a Impugnante alega ter informado informalmente a Conservatória do Registo Comercial de Lisboa da existência de activo e passivo. Contudo, estas informações não resultam no processo (pág. 9).
17.–Pois bem, tais informações foram verbais e foram comunicadas pela própria mandatária ao Senhor Conservador, pelo que a forma de produção desta prova será, em primeiro lugar, testemunhal, sendo, assim, e conforme refere o artigo 415.º, n.º 2, uma prova constituenda, pelo que sempre requereria julgamento.
18.–Ora, não tendo sido dada a oportunidade à Autora de se pronunciar sobre a intenção do tribunal de dispensar a audiência prévia, não pôde esta acautelar o seu direito à prova.
19.–Mais, o próprio Tribunal deveria ter exercido o disposto no artigo 526.º do CPC, o qual prevê o seguinte:
Quando, no decurso da acção, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor.
20.–No caso da ora mandatária, tal seria mais difícil, na medida em que não pode, na qualidade de mandatária, depor como testemunha.
21.–Contudo, caso tivesse a Autora sido notificada de uma decisão do tribunal informando da intenção de dispensar a audiência prévia, a Autora teria podido obter provas alternativas e, eventualmente, revogar a procuração outorgada a favor da mandatária, para que esta pudesse – ainda que tal estivesse dependente de uma prévia decisão da Ordem dos Advogados de dispensa do sigilo – depor como testemunha.
22.–Mas nada disto lhe foi permitido, uma vez que o tribunal não informou a Autora da decisão da dispensa previamente.
23.–O saneador-sentença, por ter dispensado a audiência prévia, sem qualquer aviso prévio às partes, determinou uma limitação intolerável do direito de defesa da Autora, razão pela qual deve ser revogado.
24.–Em terceiro lugar, no entender da Recorrente, a decisão da matéria de facto é ilegal, por ter considerado não provado o facto constante do artigo 51.º da petição de impugnação judicial.
25.–Assim, impugna-se o seguinte facto não provado, constante da pág. 7 da sentença:
Com interesse para a decisão da causa, não resultou provado que no início de 2018, a Impugnante comunicou informalmente ao Conservador a existência de bens.
26.–Com efeito, tal facto, sendo essencial para a decisão da causa, conforme resulta da própria fundamentação de facto do saneador-sentença, deveria ter sido objecto de prova testemunhal.
27.–Ora, como o tribunal dispensou a audiência prévia e conheceu imediatamente do mérito da acção, impediu a produção de prova sobre um facto que – atenta a sua natureza –, é necessariamente testemunhal, por se tratar de uma comunicação verbal.
28.–Por essa razão, não consegue a Autora indicar os meios probatórios, constantes do processo que impunham decisão diversa, como refere o artigo 640.º, n.º 1, alínea b).
29.–Com efeito, o meio de prova que imporia decisão diversa é a produção de prova testemunhal, que não se realizou.
30.–Por essa razão, requer-se agora, ao abrigo do disposto no artigo 526.º e do artigo 598.º do CPC o arrolamento do Senhor Conservador CV, da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, para depor como testemunha.
31.–Em quarto lugar, a sentença violou o regime jurídico do procedimento administrativo de liquidação, previsto no artigo 15.º e seguintes do RJPADL e no artigo 146.º e seguintes do CSC, uma vez que o Senhor Conservador, tendo tido conhecimento da existência de bens – ainda que comunicado oralmente –, não procedeu à abertura deste procedimento, violando o dever constante do n.º 1 do artigo 15.º do RJPADL; e
32.–Segundo o Tribunal, não caberia ao Senhor Conservador fazer qualquer averiguação do património da Quinta …, no âmbito de um procedimento de dissolução administrativa, de iniciativa oficiosa.
33.–Ainda que assim fosse, tal não exonera o Senhor Conservador de instaurar um procedimento de liquidação oficiosamente, quando toma conhecimento de factos ou mesmo de indícios dosa quais resulte a existência de património.

34.–Assim, o artigo 15.º, n.º 5, alínea a) do RJPADL determina que “[o] procedimento administrativo de liquidação é instaurado oficiosamente pelo conservador, mediante auto que especifique as circunstâncias que determinaram a instauração de procedimento e no qual nomeie um ou mais liquidatários, quando:
a)-A dissolução tenha sido realizada em procedimento administrativo de dissolução instaurado oficiosamente pelo conservador”.

35.–Ou seja, aquilo que o Senhor Conservador deveria ter feito, após a notícia de que haveria bens e dívidas fiscais, era abrir imediatamente o procedimento de liquidação.
36.–Mas não o fez!
37.–Mais, o próprio n.º 1 desse artigo 15.º prevê que o procedimento deve ser aberto a pedido dos credores das sociedades comerciais, o que significa que, mesmo havendo uma comunicação verbal da parte de um representante de um credor, verifica-se um facto que determina ex lege a abertura desse procedimento.
38.–É que, note-se, o que está em causa não é de somenos: está em causa a garantia patrimonial dos credores e, por isso, perante a notícia de que existe activo e passivo, deveria ter sido aberto o procedimento de liquidação.
39.–Refere a sentença que, neste caso, deveria a Autora ter imediatamente fornecido os elementos que detinha.
40.–Pois bem: não imaginou a Autora que, tendo a informação de que existe activo e passivo, seria imediatamente determinado o encerramento da liquidação.
41.–Mais, se era uma questão de urgência, poderia o Senhor Conservador ter notificado a Autora para, em 10 dias, fornecer os elementos de que dispunha, sob pena de proferir a decisão final de encerramento da liquidação.
42.–Mas não foi o caso.
43.–Por fim, a sentença violou o direito à garantia patrimonial dos credores, previsto no artigo 601.º do Código Civil e assegurado constitucionalmente, no Artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que o procedimento administrativo de liquidação deve assegurar os interesses dos credores e não ser um mero pro forma, como foi o caso, para determinar a extinção de sociedades comerciais.
44.–A Decisão do Senhor Conservador inviabiliza qualquer acto de liquidação e, por conseguinte, de ressarcimento do direito de crédito da Autora.
45.–Mais, tal Decisão provoca uma situação forçada de “res nullius”, de onde decorrerá a perda dos bens imóveis a favor do Estado.
46.–Esta Decisão é, por isso, inaceitável, ao expropriar, na prática, a Quinta … dos seus bens e ao impedir o ressarcimento do direito de crédito da Autora.
47.–A Autora não se pode conformar com tal consequência, quando é o próprio RJPADL que prevê expressamente, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, alínea d), que “se dos elementos do processo resultar a existência de activo e passivo a liquidar, após a declaração da dissolução da entidade comercial pelo conservador, se segue o procedimento administrativo de liquidação, sem que ocorra qualquer outra notificação”.
48.–De igual modo, nos termos do artigo 146.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”), prevê-se que, “[s]alvo quando a lei disponha de forma diversa, a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação”.
49.–Esta sentença é, assim, altamente lesiva dos interesses da Autora, sobretudo porque, e ao contrário do que afirma a sentença, a Autora não tem à sua disposição um mecanismo de protecção, para o caso presente, correspondente ao artigo 163.º do CSC.
50.–Com efeito, tal artigo pressupõe que tenha havido partilha do activo societário pelos sócios, o que não é aqui o caso.
51.–Neste sentido, veja-se o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (proferido no proc. 2153/13.9TYLSB.L1.S2, em 18.01.2018, disponível em www.dgsi.pt):
A existência de imóveis (que têm como proprietária uma sociedade dissolvida administrativamente), que não foram objeto de liquidação nem de partilha (porque esta fase não existiu), mas que continuam a gerar passivo (dívidas ao condomínio) não se encontra expressamente prevista nos arts. 163.º e 164.º do CSC.
52.–Pois bem, no presente caso, os imóveis da Quinta … têm gerado dívidas fiscais e são ainda responsáveis por dívidas à Autora, o que significa que, tendo o Conservador descurado a fase de liquidação e não tendo havido partilha de imóveis, não pode a Autora lançar mão daquele mecanismo.
53.–Assim, e no limite, estamos a falar de res nullius, porque deixa de haver um proprietário dos imóveis, o que não é admissível pela ordem jurídica portuguesa, e poderá significar a perda de bens a favor do Estado.
54.–Esta Decisão é, por isso, inaceitável, ao expropriar, na prática, a Quinta … dos seus bens e ao impedir o ressarcimento do direito de crédito da Autora.
55.–Com efeito, aquele aresto afirma precisamente isto:
Sem serem objeto de liquidação e partilha, aquelas frações ficariam numa sui generis situação de quase “património de ninguém”, próximo de uma res nullius.
56.–No presente processo, existe ainda uma agravante: é que a Autora informou o Conservador de que havia bens e dívidas fiscais!!
57.–Não se pode, e com o devido respeito, entender que, pelo facto de essa informação ter sido comunicada verbalmente, o Conservador poderia legitimamente não abrir o procedimento de liquidação, quando a própria lei prevê que a Conservatória deve fazê-lo a pedido dos credores, no art.º 15.º do RJPADL.
58.–Em todo o caso, havendo dúvidas sobre a prestação desta informação à Conservatória, deveria o douto tribunal ter dado a oportunidade para a realização de prova sobre esta informação, na medida em que, conforme resulta da sentença, considerou que a inexistência de prova quanto a este facto foi determinante para julgar improcedente a impugnação judicial da Decisão do Conservador, sobretudo considerando os efeitos altamente lesivos para a Autora.
59.–Por fim, refira-se que, e conforme dispõe o aresto já citado, e decorre igualmente do artigo 3.º do RJPADL, a solução para o caso presente terá de passar sempre, no limite, pela liquidação judicial, razão pela qual a Autora requereu a declaração de insolvência da Quinta …, cfr. DOC. 1.

60.– Neste sentido:
11.–Admitindo-se, deste modo, o acesso dos credores à via judicial para promoverem a liquidação da extinta sociedade, algumas questões processuais, complementarmente, se levantam: saber qual o processo próprio; e se a ação pode correr no juízo de comércio.
61.–Conforme dispõe o artigo 3.º do RJPADL, se, “durante a tramitação dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais, for pedida a declaração de insolvência da entidade comercial, os actos praticados ao abrigo dos procedimentos ficam sem efeito, seguindo o processo de insolvência os termos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
62.–Ora, como a impugnação judicial da Decisão do Conservador tem efeito suspensivo (artigo 12.º, n.º 1 do RJPADL) – não sendo assim definitiva a decisão de encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula – mantendo, por isso, a Quinta … a sua personalidade jurídica, o presente processo judicial deverá cessar, por inutilidade superveniente, ficando sem qualquer efeito a decisão provisória e impugnada de encerrar a liquidação, o que SE REQUER, desde já.
63.–Termos em que se requer a revogação da sentença, sendo a mesma declara nula ou, pelo menos, ilegal.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

O recurso foi admitido por despacho de 22/10/20 (refª 399617400).
Recebido o recurso foi ordenada, por despacho da relatora, a notificação da recorrente para, em 10 dias, esclarecer se havia requerido ou iria requerer a declaração de insolvência de Quinta … – Investimentos, Lda, em conformidade como alegado na motivação e conclusões das alegações apresentadas e não documentado.

A recorrente informou ter requerido, em 04/01/2021, a insolvência de Quinta … – Investimentos, Lda, informando o tribunal e o número do processo.

Foi determinado o acompanhamento dos autos de insolvência identificados.

Por despacho da relatora de 26 de janeiro de 2021 foi confirmado o efeito suspensivo do recurso e decidido:
“Tendo em conta que foi já pedida a declaração de insolvência da entidade comercial objeto do procedimento de dissolução e liquidação de cuja decisão final foi interposto o presente recurso, admitido com efeito suspensivo, nos termos do disposto no nº1 do art. 106º do Código do Registo Comercial, há que aferir da aplicabilidade do art. 3º do RJPADLEC e respetivas consequências para o presente procedimento.

Prescreve o referido preceito:
«Se, durante a tramitação dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, for pedida a declaração de insolvência da entidade comercial, os atos praticados ao abrigo dos procedimentos ficam sem efeito, seguindo o processo de insolvência os termos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.»

Uma vez que, como já se referiu, o presente recurso de apelação foi (corretamente) admitido com efeito suspensivo, tal implica que o procedimento administrativo em causa se encontra ainda pendente, não sendo definitiva a decisão que determinou a dissolução e encerramento da liquidação da entidade comercial em causa (Quinta … – Investimentos, Lda).

Assim, antes de mais, e dado que se configura uma questão prévia com efeito na decisão a proferir – nomeadamente a ponderação da subsistência do ato recorrido e de todos os que o antecederam – por via de um facto superveniente, que seja, o pedido de declaração de insolvência da Quinta …, já apresentado em tribunal (o que se verificou pela consulta do processo respetivo), nos termos do disposto no at. 6º do CPC, determino a notificação das partes com legitimidade para a intervenção neste recurso – recorrente, Presidente do Instituto dos Registos e Notariado, IP e Ministério Público para, querendo se pronunciarem, em 10 dias.”
Não foi apresentada pronúncia tempestiva[1] por qualquer das partes com legitimidade para intervenção no recurso.

Cumpre apreciar.
*

2.–Objeto do recurso

Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.

Consideradas o relatório e conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- como questão prévia, por prejudicial à apreciação de todas as demais, a consequência da posterior interposição de ação pedindo a declaração de insolvência da sociedade cuja dissolução e liquidação foram determinadas pelo despacho em crise;
- se o processo comportava a realização de audiência prévia e, em caso afirmativo, se a não realização da mesma, antes da prolação de decisão de mérito, consubstancia violação do princípio do contraditório e do direito de defesa da recorrente, sendo causa de invalidade da decisão proferida;
-violação do direito à prova;
-impugnação da matéria de facto;
-violação dos arts. 15º e ss. do RJPADLEC e 146º e ss. do CSC;
-violação do direito à garantia patrimonial do recorrente enquanto credor da dissolvida e liquidada sociedade.
*

3.–Fundamentos de facto:

Foi proferida, na sentença recorrida, a seguinte decisão relativa à matéria de facto:
“Com interesse para a decisão da causa e com base na prova documental, estão provados os seguintes factos:
1.-Quinta … – Investimentos, Lda. é uma sociedade comercial por quotas, pessoa colectiva n.º xxxxxxxxx, com sede na Rua …, Quinta …, Torres Vedras, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Torres Vedras sob o mesmo número.
2.-Tem por objecto social a compra e venda e em espacial a compra para revenda, construção, comercialização, exploração e administração de imóveis e domínios privados, bem como todas as actividades e prestação de serviços conexos, podendo adquirir participações noutras sociedades com objecto igual ou diferente do seu e ainda de sociedades reguladas por leis especiais e em agrupamentos complementares de empresas.
3.-Tem o capital social de 5.000,00 €.
4.-Foi instaurado procedimento administrativo de dissolução da sociedade com fundamento na falta de registo da prestação de contas durante dois anos consecutivos.
5.-Pelo Av. 1 Of. de 24.07.2017 foi averbada na matrícula da … – …., Lda. a pendência da dissolução administrativa.

6.-Em 14.09.2017 foi publicado um aviso na página das publicações do Ministério da Justiça com o seguinte teor:
“Aviso/convocatória/anúncio relativamente à entidade:
NIPC: xxxxxxxxxxx
Firma: QUINTA …. – INVESTIMENTOS …, LDA.
Natureza Jurídica: SOCIEDADE POR QUOTAS
Sede: R do Celeiro, N.º… QUINTA …, TORRES VEDRAS
Distrito: Lisboa Concelho: Torres Vedras
Capital: 5.000,00 Euros
Matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Torres Vedras
(…)

NOTIFICAÇÃO
Aos credores, sociedade, sócios e administradores:
Pelo presente aviso, e em cumprimento do disposto no número 4 e 8 do artigo 8.º do RJPADLEC e n.º 1 do artigo 167.º do Código das Sociedades Comerciais ficam notificados os credores, a sociedade supra identificada, bem como os seus sócios e gerentes, de que teve início o procedimento administrativo de dissolução, pelo facto de durante dois anos consecutivos, a sociedade não proceder ao registo da prestação de contas, nos termos previstos na legislação tributária, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 5.º do RJPADLEC, procedimento que corre termos sob o n.º 7248/2017, encontrando-se os documentos disponíveis para consulta nesta Conservatória.
Ficam notificados os credores de que dispõem do prazo de dez dias a contar desta notificação para informar estes serviços sobre os créditos e os direitos que detenham sobre a sociedade, bem como se têm conhecimento de bens e direitos de que aquela seja titular. Informa-se ainda que a comunicação de existência de créditos e direitos que detenham sobre a sociedade, bem como a existência de bens e direitos de que esta seja titular, determina a sua responsabilidade pelo pagamento dos encargos com os liquidatários e peritos nomeados pelo Conservador, sem prejuízo de poderem exigir da sociedade o reembolso dos encargos pagos.
Ficam notificados os sócios, gerentes e a sociedade de que dispõem do prazo de dez dias a contar desta notificação para comunicar a este serviço a existência de activo e passivo da sociedade e de envio dos respectivos documentos comprovativos, bem como apresentando documentos úteis para a decisão. Dispõem ainda do prazo de 30 dias, a contar desta notificação, para regularizar a situação ou para demonstrar que já se encontra regularizada.
Constitui igualmente aviso que se resultar dos elementos do processo a inexistência de activo e passivo, ou se não for comunicado no prazo estipulado a sua existência, a Conservatória declara simultaneamente a dissolução e o encerramento da liquidação; se dos elementos do processo resultar a existência de activo e passivo a liquidar, depois da dissolução segue a liquidação sem qualquer outra notificação.

7.–Nos prazos indicados da notificação referida em 6. não foram recebidas na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa quaisquer comunicações quanto ao activo e passivo da sociedade, nem foi demonstrada a regularização do fundamento de dissolução.
8.–Em 1.02.2018 foi proferido despacho final, declarando a dissolução e encerramento da liquidação da Quinta ... – Investimentos, Lda.
9.–A Impugnante SC II, S.A. enviou, por carta registada datada de 16.02.2018, requerimento à Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, informando da existência de activo e de passivo da sociedade Quinta … – Investimentos, Lda. e requerendo a prosseguimento do procedimento para liquidação.
10.–Em 28.02.2018 foi publicado um aviso na página das publicações do Ministério da Justiça com o seguinte teor:
Aviso/convocatória/anúncio relativamente à entidade:
NIPC: xxxxxxxxx
Firma: QUINTA … – INVESTIMENTOS, LDA.
Natureza Jurídica: SOCIEDADE POR QUOTAS
Sede: R …, QUINTA …, TORRES VEDRAS
Distrito: Lisboa Concelho: Torres Vedras
Capital: 5.000,00 Euros
Matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Torres Vedras
(…)

NOTIFICAÇÃO
Aos credores, sociedade, accionistas, administradores e demais interessados:
Ficam V. Exas notificados que foi proferido o despacho final no procedimento administrativo de dissolução, autuado sob o n.º 7248/2017, referente à sociedade supra identificada, com a decisão de dissolução e encerramento da liquidação, e o consequente cancelamento da matrícula da mesma.
Mais ficam notificados de que dispõem do prazo de 10 dias a contar desta notificação para impugnar judicialmente, querendo, a referida decisão, nos termos do artigo 12.º do RJPADLEC.

11.–O presente recurso de impugnação deu entrada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa em 19.02.2018.
12.–A sociedade Quinta … – Investimentos, Lda. é proprietária dos seguintes imóveis:
a)-Prédio urbano, sito em Quinta …, lote n.º xx, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras, sob o n.º xxxx da freguesia do … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2800 da mesma freguesia;
b)-Prédio urbano, sito em Quinta …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras, sob o n.º xxxx da freguesia do … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2352 da mesma freguesia;
c)-Prédio urbano, sito em Quinta …, lote n.º xx, …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras, sob o n.º xxxx da freguesia do …. e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2355 da mesma freguesia;

13.–Sob os prédios referidos em 11 encontram-se registadas hipotecas a favor da Impugnante SC II, S.A. e penhoras a favor da Fazenda Nacional.
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Com interesse para a decisão da causa, não resultou provado que no início de 2018, a Impugnante comunicou informalmente ao Conservador a existência de bens.
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Os factos indicados sob os n.ºs 1 a 3 e 5 foram considerados provados com base na certidão do registo comercial da sociedade Quinta … – Investimentos, Lda. de fls. 97 e 98.
No que concerne aos factos indicados sob os n.ºs 4, 7 e 8, o Tribunal fundou a sua convicção no teor do despacho final do Senhor Conservador que expressamente alude a que o procedimento administrativo de dissolução da sociedade foi instaurado por falta de registo da prestação de contas durante dois anos consecutivos e que no prazo de contestação nem os membros da entidade comercial, nem os credores se pronunciaram. Não se considerou provada a comunicação informal invocada pela Impugnante por não ter sido efectuada qualquer prova.
O Tribunal deu como provado o teor das notificações indicadas sob os n.ºs 6 e 10, com base nas publicações constantes do portal do Ministério da Justiça e juntas a fls. 43, 44 e 45.
A factualidade descrita sob o n.º 9 foi considerada provada com base na carta de fls. 46 a 51. Relativamente ao património da sociedade e aos respectivos ónus (factos indicados sob os n.ºs 12 e 13), o Tribunal teve em consideração as certidões do registo predial e as cadernetas prediais de fls. 53 a 64.
Por último, o Tribunal deu como provada o facto indicado sob o n.º 11 face ao teor de fls. 94.
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Com interesse para a decisão do recurso, nos termos do disposto no art. 662º do CPC, consideram-se ainda os seguintes factos, resultantes da tramitação dos autos e da tramitação do processo de insolvência cujo seguimento foi determinado:
13.–A recorrente SC II, SA intentou contra Quinta … – Investimentos, Lda, ação especial pedindo a declaração de insolvência desta, ação que deu entrada no dia 04/01/2021 no Tribunal Judicial de Lisboa Norte, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira, onde corre termos sob o nº 21/21.0T8VFX
14.–Alega em síntese ser credora da requerida no montante de € 145.463,76, relativo a empréstimos, não cumpridos, montante garantido por hipoteca sobre os bens imóveis da devedora, onerados com hipotecas, também a favor de terceiros, e penhoras da Autoridade Tributária, estando verificadas as situações previstas nas alíneas b), g) e h) do nº1 do art. 20º do CIRE.
15.–O processo referido em “13” e “14” encontra-se na fase da citação da requerida.
16.–Da certidão do registo comercial da Quinta … – Investimentos, Lda, obtida e junta ao processo referido em”13” e “14” em 08/04/2021, consta que a mesma se encontra pendente de dissolução administrativa.
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4.–Fundamentos de direito:

4.1.-Questão prévia - consequências da interposição de ação pedindo a declaração de insolvência da sociedade cuja dissolução e liquidação foram determinadas pelo despacho recorrido

O presente recurso mostra-se interposto da sentença que, em 1ª instância, conheceu de mérito do recurso contencioso interposto por interessado da decisão final proferida pelo Sr. Conservador do Registo Comercial no âmbito de procedimento administrativo de dissolução e liquidação administrativa de entidade comercial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março.

Tratou-se de um dos aspetos da reforma societária de 2006 que visou “tornar, tanto quanto possível, desnecessário o recurso à via judicial sempre que a dissolução e a liquidação não possam ser realizadas pelos próprios sócios.”[2]

No caso tratou-se de um procedimento iniciado oficiosamente, nos termos do disposto no art. 5º, al. a) do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (doravante RJPADLEC).

Foi cumprido o disposto nos arts. 8º e 9º do Regime e veio a ser proferida decisão, nos termos do art. 11º, na qual o Sr. Conservador aplicou o disposto no nº4 do referido art. 11º, declarando a dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade objeto do procedimento, a Quinta … – Investimentos, Lda.

Inconformada, a aqui apelante, SC II, SA impugnou a decisão proferida, nos termos do disposto no art. 12º do RJPADLEC, de cujo nº1 resulta expressamente o efeito suspensivo de tal impugnação.

Por sentença proferida no Juízo de Comércio de Lisboa, veio a impugnação a ser julgada improcedente, decisão da qual apelou a SC II, SA, recurso admitido com efeito suspensivo.

Como já se referiu no despacho que verificou a correção do efeito atribuído ao recurso de apelação, “Este é um procedimento administrativo, aplicável apenas a entidades sujeitas a registo comercial (cfr. art. 2º nº1 e 1º nºs 1 e 2 do Código do Registo Comercial), ou seja, sociedades comerciais, sociedades civis sob forma comercial, cooperativas e estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, cuja competência pertence, em exclusivo aos serviços de registo comercial, a decidir pelo Conservador do Registo Comercial, dirigindo-se a finalidade sujeita a registo (dissolução/liquidação).

E tratando-se de uma decisão de conservador do registo comercial que defere ou indefere um registo (dissolução – cfr. art. 13º do RJPADLEC), tal tramitação só pode ser a prevista, em sede geral, para a impugnação das decisões de Conservador no Código do Registo Comercial, nos arts. 101º-A e 104º e ss., com as especialidades previstas na lei especial.

A assim não se entender ficaria por regular, por exemplo, a legitimidade para interposição de recurso, os graus de recurso ou o valor da ação – arts. 106º e 108º do CRCom.

Entende-se, assim, tal como decidido na 1ª instância, que o presente recurso de apelação tem efeito suspensivo, dada a aplicabilidade do disposto no nº1 do art. 106º do Código do Registo Comercial.”

Veja-se, aliás, neste sentido, da aplicabilidade das regras do Código de Registo Comercial aos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação, nomeadamente como passo na discussão, mais vasta, da aplicabilidade, como direito subsidiário, do Código de Processo Civil e não do Código de Procedimento Administrativo, os Acs. TRL de 28/04/2020 (Manuela Espadaneira Lopes), de 18/12/2019 (Vera Antunes), de 29/10/2019 (Isabel Fonseca) e TRP de 09/11/2020 (Pedro Damião Cunha)[3].

A consequência a retirar do efeito suspensivo atribuído, quer à impugnação contenciosa da decisão do Conservador (nos termos do nº1 do art. 12º do RJPADLEC), quer ao recurso de apelação interposto da sentença proferida no âmbito daquela (nos termos do nº1 do art. 106º do Código do Registo Comercial) é de que o procedimento administrativo de dissolução se encontra ainda pendente.

Aliás, por esse exato motivo, não está ainda registado o encerramento da liquidação desta sociedade comercial Quinta …, como resulta do facto dado como assente sob o nº 16, mas apenas o facto de estar pendente de dissolução administrativa.

Prescreve o art. 3º do RJPADLEC: «Se, durante a tramitação dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, for pedida a declaração de insolvência da entidade comercial, os atos praticados ao abrigo dos procedimentos ficam sem efeito, seguindo o processo de insolvência os termos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.»

A regra estabelece uma total prevalência do processo de insolvência sobre o procedimento administrativo de dissolução e de liquidação, não se tendo limitado a extrair consequências da declaração de insolvência, ela própria causa de dissolução imediata no caso das sociedades comerciais (cfr. art. 141º, nº1, al. e) do CSC), mas antes atribuindo relevância ao próprio pedido de declaração de insolvência, independentemente da respetiva proveniência e do respetivo sucesso.

Como escrevem Paula Costa e Silva, Rui Pinto e Maria Leonor Ruivo[4] “O estatuído no artigo é uma consequência da natureza universal do processo de insolvência (cf. 1º CIRE): todos os créditos e débitos devem ser apurados, incluindo os que sejam apurados em sede de liquidação societária administrativa, em ordem a determinar o património da sociedade tendo em vista a satisfação dos credores”, no termos previstos no art. 1º do CIRE, mediante plano de insolvência ou liquidação do património do devedor.

E bem se compreende, já que o processo de insolvência se reveste de publicidade, garantias e mecanismos que em muito excedem os disponibilizados em procedimento administrativo, no caso de liquidação. Sem entrar na discussão da questão primitivamente central deste recurso, a extensão da obrigação de pesquisa de bens pelo Conservador com vista à liquidação (ou “dispensa” da mesma), é notória a diferença entre o disposto no art. 19º do RJPADLEC e o leque de funções conferidas ao administrador de insolvência[5] em processo de insolvência.

Por essa razão a lei consagra uma solução aparentemente tão radical, mas auto-explicativa: enquanto não estiver registado o encerramento da liquidação de determinada entidade comercial a lei “prefere” que, quer a dissolução, quer especialmente a liquidação se façam pela via judicial, por se revestir de maior solenidade, publicidade e eficácia, dado que os meios ao dispor do liquidatário são, em processo de insolvência, muito mais vastos, tal como muito mais amplas são as possibilidades de intervenção dos interessados.

Assim, e anotando que, caso o pedido de declaração de insolvência venha a improceder, terá que ser iniciado novo procedimento administrativo de dissolução e liquidação (caso se mantenham os respetivos pressupostos), consequência assumida pela lei, há que julgar procedente a questão prévia e, e, em consequência prejudicada a apreciação do recurso interposto.
*

O resultado material da presente decisão equivale materialmente ao vencimento da pretensão da apelante – com o desaparecimento da ordem jurídica da decisão recorrida e da decisão sobre a qual a mesma se debruçou -, pelo que, e dada a isenção de custas do Ministério Público, que respondeu ao recurso, não há lugar a custas na presente instância recursiva.
*

5.–Decisão

Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em:
a)- Declarar sem efeito todos os atos praticados no procedimento administrativo de dissolução e liquidação da sociedade comercial Quinta … – Investimentos, Lda, pessoa coletiva n.º xxxxxxxxx, com sede na Rua …, Quinta …, Torres Vedras, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Torres Vedras sob o mesmo número, incluindo o despacho final proferido em 01.02.2018, que  declarou a dissolução e encerramento da liquidação da mesma sociedade;
b)-Julgar prejudicado o conhecimento do recurso de apelação interposto por SC II, SA da sentença que manteve a decisão referida na alínea a).
Sem custas na presente instância recursiva.
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Notifique.
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Lisboa, 25 de maio de 2021


Fátima Reis Silva
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes


[1]A recorrente pronunciou-se por requerimento de 07/05/2021, pedindo seja a declaração do Sr. Conservador dada sem efeito ao abrigo do disposto no art. 3º do RJPADLEC. Não revestindo os presentes autos natureza urgente, à data em que foi notificada a concessão do prazo de 10 dias para pronúncia dos interessados, por despacho de 26 de janeiro, notificado no dia 27 do mesmo mês, nos termos dos nºs 1, 7 e 5, al. a) do art. 6º-B da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na versão dada pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, o processo podia e devia ser tramitado pelo tribunal, mas os prazos para a prática de atos pelas partes encontravam-se suspensos, incluindo o prazo de pronúncia. No dia 5 de abril de 2021 foi publicada a Lei nº 13-B/2021 que revogou o art. 6º-B da Lei nº 1-A/2020 na versão referida pelo parágrafo anterior e aditou à mesma lei o art. 6º-E (Regime processual excecional e transitório) que já não contempla a suspensão de prazos processuais. Assim sendo, o prazo de 10 dias, teve o seu termo inicial no dia da entrada em vigor da versão da Lei nº 1-A/2020 dada pela Lei nº 13-B/2021, que se deu no dia 6 de abril de 2021, tendo há muito decorrido em 07/05/2021.
[2]Paula Costa e Silva, Rui Pinto e Maria Leonor Ruivo em Dissolução e Liquidação Administrativa, em Código das Sociedades Comerciais Anotado, Códigos Comentados da Clássica de Lisboa, 3ª edição, Almedina, 2020, pg. 1757.
[3]Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4]Em Dissolução…, previamente citado.
[5]O administrador da insolvência é o órgão da insolvência especialmente encarregue de proceder à administração da massa insolvente a quem está cometida uma miríade de funções além das elencadas no art. 55º do CIRE. Só para dar alguns exemplos, compete-lhe proceder à apreensão de bens (149º), decide o destino dos negócios em curso (102º e ss.), aprecia de forma determinante os créditos reclamados (128º e ss.), elabora o relatório e seus anexos (153º e ss.), proceder à liquidação (158º), elaborar parecer sobre a qualificação, sempre que seja entendido ou necessário (188º), elabora plano de insolvência se assim entender ou for determinado pela assembleia de credores (193º e 156º), pondera e efetua a resolução de atos em benefício da massa
(120º e ss.), entre outras.