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VALOR DA CAUSA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
VENDA DE QUOTA
Sumário
Sumário (da relatora):
. Tendo todas as partes se pronunciado sobre o valor da causa, o que fizeram, desde logo ao atribuir um valor à ação/incidente e ao inscrevê-lo no articulado respectivo e ainda, no caso das intervenientes X e Y e das apelantes RR., pronunciando-se expressamente sobre a questão, não há como não concluir que todas as partes já tomaram posição sobre o valor da causa, pelo que não se mostra violado o princípio do contraditório, nem a decisão recorrida constitui uma decisão surpresa. A questão do valor da causa já se encontrava debatido nos articulados e uma nova notificação das partes para se pronunciarem sobre o que se tinham pronunciado, constituiria um ato inútil. .Nas ações de preferência, para a determinação do valor da ação, é de convocar o critério consagrado no nº1, do art.º 301.º do CPC, sendo o valor da ação determinado por referência ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado entre as partes. .Nos caso em que, do lado ativo da ação de preferência, apenas existe um titular que pretende exercer o direito de preferência, não suscita dúvidas que o valor da ação de preferência corresponde ao do preço pelo qual a coisa foi vendida. Nestas situações que serão as mais comuns, haverá identidade de preço entre o preço constante do contrato e aquele pelo qual se pretende preferir e que representa a utilidade económica do pedido formulado. .No casos em que do lado ativo se posicionam vários sócios, concorrentes do direito de preferência, sendo que apenas a um dos sócios será atribuído esse direito, o valor do preço pelo qual se preferirá na cessão, poderá ser superior ao valor constante do contrato, uma vez que em consequência da pluralidade de titulares, o direito de preferência irá ser atribuído àquele que oferecer o melhor preço. Assim, nos casos particulares em que coexistem vários titulares, pretendendo exercer o direito de preferência, o valor do ato determinado pelo preço, não corresponderá ao preço constante do contrato, mas ao preço mais alto oferecido por um ou alguns dos preferentes. . A tal valor não há que somar o valor dos pedidos formulados pela A. e pelos demais intervenientes, porque a tal se opõe o disposto no artº 299º, nº 2 e 530º, nº 3 do CPC, porquanto qualquer dos intervenientes pretende conseguir em seu benefício o mesmo efeito jurídico que o autor – a aquisição da quota cedida.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I – Relatório
M. J. intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra W, SGPS, S.A. e K, S.A., pedindo, a título principal, que:
a) Seja reconhecido à autora, conjunta ou individualmente, o direito de preferência na cessão de quota com o valor nominal de € 994.625,95 no capital social da “OV.”, que a “W” fez à “K” pelo preço de € 1.500,00, substituindo-se a autora à ali cessionária no respetivo contrato; b) Seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que hajam sido feitos na sequência dessa cessão, nomeadamente a favor da ré “K”, pelo Dep. 123/2016.04.27 e a sua inscrição na titularidade daqueles que venham a exercer a preferência.
Ou, “a título alternativo”, quando se entenda dever aplicar-se a forma processual do art. 1037º, do C. P. Civil, que seja ordenada a alteração da forma de processo e aproveitados os atos praticados e: a) Seja reconhecido à autora o direito à licitação no exercício do direito de preferência na aquisição da identificada quota social; b) Seja ordenado a notificação dos intervenientes para comparecerem no Tribunal no dia e hora que sejam fixados, a fim de se proceder a licitação entre eles e a autora, no que respeita ao exercício daquele direito de preferência.
Para o efeito, a A. alegou, em síntese, que por escrito de 25.03.2016 e pelo preço de € 1.500,00, a 1ª ré cedeu à 2ª ré a quota social que aquela detinha na sociedade por quotas “OV., SGPS, Lda.”, da qual a autora e os identificados intervenientes são igualmente sócios, sendo que tal cessão foi operada sem o conhecimento e autorização da sociedade “OV.”, assim como da autora e dos demais sócios, violando assim o exercício de direito preferência que lhes assiste, o que a autora veio reivindicar pela presente ação.
Mais requereu a autora a intervenção principal dos demais sócios da referida “OV.”, na medida em que os mesmos são contitulares do referido direito de preferência relativo à transmissão da identificada participação social, a fim de, como associados da autora, prosseguirem os termos da presente demanda.
As rés contestaram, designadamente, excecionando a falta de verificação de condição sine qua non da ação (determinação prévia de preferente), assim como invocaram a caducidade do direito da autora. Defenderam-se ainda por impugnação, tendo concluído pela improcedência da ação, absolvendo-se as rés do pedido; pelo indeferimento do incidente de intervenção a título principal provocada requerida pela autora; pugnando ainda pela fixação do valor da presente causa em € 481.179,37.
Mediante despacho de 07.11.2018, foi indeferido o incidente de intervenção principal provocada dos restantes sócios da sociedade “OV.”. (cfr. fls. 126 e 127).
A autora veio responder à defesa por exceção apresentada pelas rés (cfr. fls. 128 a 130), tendo concluído pela improcedência das mesmas e, no mais, como na petição inicial.
Foi proferido despacho a 31.12.2018, no qual se dispensou a realização da audiência prévia e se fixou o valor da ação em € 481.179,37; após o que se proferiu despacho saneador, onde se julgou procedente a exceção dilatória inominada de falta de condição de procedibilidade da ação, por não ter arredado os demais sócios com direito de preferência na cessão de quotas.
A A. não se conformou e interpôs recurso de apelação, onde suscitou a nulidade do despacho saneador por ambiguidade e por omissão de pronúncia e pugnou pela revogação da decisão que não admitiu a intervenção principal dos demais sócios da R. W, pela revogação do despacho saneador que julgou procedente a exceção dilatória inonimada e pela revogação da decisão que fixou ovalor da causa em 481.179,37, a qual, em seu entender, deveria ser fixado no valor que indicou na petição inicial (1.750,00).
Em 06.06.2019 foi proferido acórdão que julgou procedente a apelação e, consequentemente, revogou os despachos proferidos a 07.11.2018 (cfr. fls. 126 e 127) e a 31.12.2018 (cfr. fls. 131 a 133) e, em consequência, decidiu admitir a intervenção principal provocada dos demais identificados sócios da sociedade “OV. – SGPS, Lda.”, com a subsequente citação dos mesmos para os termos da presente demanda (art. 319º, do C. P. Civil), seguindo-se os ulteriores termos processuais.
A propósito do valor da causa, consignou-se no acórdão recorrido o seguinte: “Por último, no que se refere ao valor da presente causa, a mesma deverá relegar-se para fase ulterior do processo, uma vez respeitado o princípio do contraditório, mormente no que à mesma refere, em relação aos demais sócios que irão intervir na presente ação, como associados da autora”.
Regressados os autos à primeira instância, por despacho de 19.09.2019 foi ordenada a citação dos demais sócios da OV., SGPS, Lda: A. SGPS, SA, F. P., SGPS, SA, X-Sociedade Gestora de Participações, Sociais, SA, … Investimentos- SGPS, SA, J. G. e M. J. para contestarem, querendo, os quais apresentaram articulado próprio, no qual declararam pretender exercer a preferência (1). A interveniente X formulou pedido de reconhecimento do direito de preferência pelo preço de 24.750.00 que depositou, acrescido de 250,00 para despesas e cada um dos restantes 5 intervenientes manifestou também a vontade de preferir pelo preço de 1.500,00 que depositaram, acrescido de 250,00 relativo a despesas.
As RR. por articulado de 03.09.2020, pronunciaram-se sobre os articulados oferecidos pelos intervenientes.
Em 2.11.2020 foi proferido despacho saneador, tendo sido fixado o valor da ação nos seguintes termos: “Nos termos do disposto no artigo 301º, nº1 do CPC, por ter sido pedido se declare o direito de preferência em cessão de quota da sociedade OV., fixo à causa o valor pelo qual o negócio foi realizado- € 1.500,00.”
Tanto a interveniente principal X-Sociedade Gestora de Participações Sociais, Lda., como as RR., vieram interpor recurso deste despacho.
São as seguintes as conclusões da interveniente principal:
1. Em 16 de Dezembro de 2019, a ora Recorrente apresentou o seu articulado próprio, no qual inter alia exerceu o seu direito de preferência quanto à cessão da quota da Ré W para a Ré K, desde logo, peticionando a prevalência do seu direito sobre os demais preferentes por um valor superior aos demais sócios da OV., SGPS, Lda., em particular, pelo montante de EUR 24.750,00, o qual depositou aquando da apresentação do seu articulado próprio. Nesse Por referência a este valor, no articulado próprio da ora Recorrente, foi indicado o valor da causa de EUR 24.750,00.
2. No articulado próprio da ora Recorrente, foram ainda suscitadas outras questões para além do exercício do direito de preferência, designadamente: (i) a ineficácia da cessão de quota entre as Rés, por falta de consentimento da OV., e a ineficácia entre a cessão de quota da Interveniente Principal A. para a Interveniente Principal Y - Investimentos; e (ii) nulidade da cessão de quota entre as Rés, por simulação.
3. A intervenção provocada da ora Recorrente no processo foi admitida, enquanto Interveniente Principal, pelo lado activo, tendo uma posição própria equivalente à posição processual da Autora, o que lhe conferiu a possibilidade de formular pedidos.
4. Em 2 de Novembro de 2020, conforme já referido, o Tribunal de 1.ª Instância proferiu o saneador sentença, no qual fixou o valor da presente causa em EUR 1.500,00.
5. Salvo o devido respeito, a ora Recorrente discorda do valor atribuído pela 1.ª Instância à presente causa, centrando-se o objecto do presente recurso nesta questão relativa à fixação do valor da presente causa, que deve ser fixado em valor superior à alçada da 1.ª Instância.
6. Assim, a decisão de fixar o valor da presente causa em EUR 1.500, no despacho saneador proferido em 2 de Novembro de 2020, é recorrível por força do disposto na al. b) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, cujo prazo é de 30 dias (artigo 638.º, n.º 1 - 1.ª parte, do CPC), cujo termo correspondeu a 9 de Dezembro de 2020, podendo o recurso ser interposto até 14 de Dezembro de 2020, mediante o pagamento de multa.
7. Existem três fundamentos distintos que suportam a procedência do presente recurso de apelação, sendo que cada um deles determina, por si só, que se atribua à presente causa um valor superior à alçada da 1.ª Instância.
8. EM PRIMEIRO LUGAR, haverá que considerar que a ora Recorrente “pediu que se declare o exercício da preferência” na cessão da quota em causa pelo montante de EUR 24.750.
9. A ora Recorrente, enquanto interveniente principal pelo lado passivo, tem uma posição processual que tem subjacente um direito próprio e que, neste caso, foi exercido através da formulação de pedidos próprios em articulado (também) próprios, tal como resulta da conjugação do disposto nos artigos 312.º, 316.º, n.º 1, e 319.º, n.º 3, do CPC.
10. Portanto, o pedido do exercício de preferência já exercido e formulado no articulado próprio da ora Recorrente, pelo valor de EUR 24.750, é relevante para efeitos de atribuição do valor da presente causa.
11. A este propósito, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14 de Março de 2019, foi entendido o seguinte: “Em caso de intervenção principal, em que o interveniente formula um pedido distinto do pedido do autor, a base tributável relevante para efeitos de cálculo de taxa de justiça suplementar, a que se reporta o artigo 530º, nº 2, do CPC, é o que resulta do valor do pedido do interveniente” (processo n.º 749/08.0TBTNV-C.E1, www.dgsi.pt).
12. Isto é assim até porque podem ser suscitadas divergências entre os próprios autores e os intervenientes principais pelo lado activo, pelo que a posição autónoma assumida pelo interveniente principal é determinante para fixar o valor da causa.
13. Atendendo a que a ora Recorrente já deduziu no seu articulado próprio o pedido autónomo de preferência por um valor superior à alçada da 1.ª Instância, então o valor a atribuir à presente causa deve, igualmente, ser superior à alçada da 1.ª Instância.
14. Até porque, em rigor, a ora Recorrente alegou que o seu direito de preferência deve, desde já, prevalecer sobre o direito de preferência alegado pela Autora e, ainda, pelos demais Intervenientes Principais pelo lado activo, o que torna as posições da Autora e da ora Recorrente, inclusivamente, conflituantes.
15. Isto independentemente de concordar, ou não, com o mérito ou o fundo da pretensão formulada pela ora Recorrente, enquanto Interveniente Principal pelo lado activo.
16. Isto porque a atribuição do valor da causa não trata de avaliar se assiste, ou não, razão à parte que formula pretensão.
17. Ora, no caso concreto e por referência ao pedido formulado pela ora Recorrente, afigura-se claro que a pretensão económica do seu pedido e o preço pelo qual esta pretende que lhe seja declarada a cessão da quota em causa, a seu favor, corresponde a EUR 24.750.
18. Assim, é forçoso concluir que a decisão recorrida violou o artigo 301.º, n.º 1, do CPC e ainda os artigos 312.º, 316.º, n.º 1, e 319.º, n.º 3, do CPC e, portanto, o valor da presente causa deve ser fixado um valor superior à alçada da 1.ª Instância, designadamente EUR 24.750,00, por referência ao pedido de preferência autonomamente formulado pela ora Recorrente.
19. EM SEGUNDO LUGAR, resulta da conjugação do artigo 301.º, n.º 1, do CPC com o artigo 1410.º do Código Civil (ex vi artigo 421.º, n.º 2, do Código Civil) que o valor da acção deve corresponder ao valor depositado pelo(s) preferente(s), atento ser este valor que representa a utilidade economia do pedido, em linha com o disposto no artigo 296.º, n.º 1, do CPC.
20. É certo que, normalmente, o preço depositado na acção de preferência corresponde ao preço pactado no negócio sobre o qual se pretende preferir. No entanto, pode ser não necessariamente assim, como, aliás, sucede neste caso concreto.
21. Tanto assim é que, como já referido, a pretensão autónoma da ora Recorrente é exercer a preferência sobre a cessão de quotas entre as Rés, mas – e isto é que traduz a especificidade do caso concreto – com prevalência, desde já, sobre o direito de preferência invocado pela Autora e demais Intervenientes Principais pelo lado activo.
22. Ora, salvo o devido respeito, a decisão recorrida não tomou em linha de conta esta especificidade do caso concreto, face a uma “normal” acção de preferência, em que, por regra, apenas há um preferente que pretende exercer um único direito de preferência. No entanto, a presente acção é, precisamente, uma situação que foge à “normal acção de preferência”.
23. No caso concreto, deve ser considerado o preço pelo qual a ora Recorrente exerceu a preferência e, em linha com o seu pedido e causa de pedir, é “devido” corresponde a EUR 24.750. Portanto, o valor da presente causa deve ser fixado em montante superior ao valor da alçada da 1.ª Instância.
24. Isto é assim, repita-se, independentemente de se concordar, ou não, com o mérito da pretensão da ora Recorrente, porquanto o critério de atribuição do valor da causa não depende, por definição, da procedência ou improcedência dos pedidos.
25. Assim, é forçoso concluir que a decisão recorrida violou o artigo 301.º, n.º 1, do CPC, conjugado com o artigo 1410.º do Código Civil (ex vi artigo 421.º, n.º 2, do Código Civil) e o artigo 296.º, n.º 1, do CPC.
26. EM TERCEIRO LUGAR, acresce que, no caso concreto, a ora Recorrente deduziu outros pedidos autónomo, que relevam na fixação do valor da presente causa.
27. Desde logo, a ora Recorrente formulou – a título principal – o pedido de ineficácia da cessão de uma outra quota representativa de parte do capital social da OV., a favor da Y - Investimentos, Lda. Este pedido até já foi apreciado em sede de saneador sentença.
28. Por outro lado, a Autora formulou, ainda, o pedido de ineficácia de cessão quota da OV. entre as próprias Rés, o qual, não obstante ter sido deduzido a título subsidiária, já foi decidido mesmo antes de o pedido principal ter sido apreciado (uma vez que, bem ou mal, a 1.ª Instância, terá entendido que isto teria implicações na apreciação da legitimidade), pelo que a parte final do n.º 3 do artigo 297.º do CPC não pode ser aplicada tout court, visto que o pedido subsidiário já foi apreciado antes do pedido principal.
29. De resto, acresce que a ora Recorrente formulou, ainda, o pedido de nulidade da cessão de quotas entre as Rés, por simulação, que é um pedido autónomo face ao pedido de preferência.
30. Saliente-se também que, não obstante a subsidiariedade deste pedido de nulidade, por simulação, a verdade é que a nulidade consubstancia uma questão de conhecimento oficioso e este pedido foi deduzido de forma subsidiária face um pedido principal de preferência formulado pela ora Recorrente, que é autónomo face ao pedido de preferência da Autora.
31. Tanto assim é que, nos termos do pedido de nulidade por simulação formulado pela ora Recorrente, o que foi peticionado foi que, caso se entenda que a ora Recorrente não tem o direito de preferência nos termos peticionados, então a cessão de quotas entre as Rés deve ser declarada nula.
32. Por conseguinte, também por aqui se conclui que o direito peticionado pela ora Recorrente é um direito próprio e autónomo, pelo que o valor da presente causa deve ser fixado em montante superior à alçada da 1.ª Instância, designadamente em EUR 24.750,00. Também por isto se conclui que, salvo melhor opinião, a decisão recorrida violou o artigo 301.º, n.º 1, do CPC.
33. Em face do exposto, o presente recurso de apelação deve ser julgado integralmente procedente e a decisão recorrida que fixou o valor da causa em EUR 1.500,00 deve ser revogada e substituída por outra que fixe o valor da presente causa em montante superior à alçada da 1.ª Instância, designadamente em EUR 24.750,00. Em face do exposto, o presente recurso de apelação deve ser julgado integralmente procedente e a decisão recorrida que fixou o valor da causa em EUR 1.500,00 deve ser revogada e substituída por outra que fixe o valor da presente causa em montante superior à alçada da 1.ª Instância, designadamente em EUR 24.750,00. Junta: comprovativo de taxa de justiça e liquidação de multa de 1.º dia útil.
E são as seguintes as conclusões das RR.:
1. Nos termos do disposto no art. 306.º, n.º 1, do CPC, compete ao juiz, oficiosamente, a fixação do valor à causa, sem prejuízo do dever de indicação pelas partes.
2. Quando a fixação do valor da causa é determinada por iniciativa do juiz, as partes devem ser ouvidas, nos termos do disposto no art. 3.º, n.º 3, do CPC, sob pena de violação do contraditório, princípio com valor axial no ordenamento jurídico-processual.
3. De resto, o exercício do contraditório é um direito fundamental de acesso aos tribunais, à tutela jurisdicional efectiva e ao processo equitativo consagrado no art. 20.º da Constituição, como tem sido uniformemente decidido pelo Tribunal Constitucional.
4. O enunciado princípio tem sido densificado pelo Tribunal Constitucional, como nos dá nota, v.g., o Ac. TC n.º 675/2018, como uma “garantiadeparticipaçãoefectivadaspartesemtodoolitígio,medianteapossibilidadede,emplenaigualdade,influírememtodososelementos(factos,provas,questõesdedireito)queseencontrememligaçãocomoobjectodacausaequeemqualquerfasedoprocesso,apareçamcomopotencialmenterelevantesparaadecisão(LebredeFreitas,IntroduçãoaoProcessoCivil,4.ªed.,2017,pg.127)”.
5. Entre as principais dimensões do princípio do contraditório encontra-se a proibição de indefesa, traduzida não só no direito a impugnar uma decisão, como também na possibilidade de ser apresentada argumentação antes de uma decisão judicial ser tomada.
6. Actualmente, em decorrência do princípio do processo justo e equitativo, a noção de contraditório assume uma dimensão mais lata, no sentido em que é entendida como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa, devendo ser ouvidas antes de ser tomada qualquer decisão, assim se evitando decisões surpresa.
7. No caso subiuditio, em face das vicissitudes processuais ocorridas após o termo da fase dos articulados, a audição das partes antes da prolação da decisão sobre o valor da causa, antolha-se manifestamente necessária.
8. Com efeito, a Senhora Juíza aquo fixou inicialmente à acção o valor propugnado pelas Rés; contudo, no âmbito do recurso de apelação interposto pela Autora M. J., o Tribunal da Relação de Guimarães, por douto acórdão de fls. …, decidiu, nesse particular, que a fixação do valor da causa estava dependente da posição que viesse a ser assumida pelos intervenientes principais do lado activo, relegando a decisão sobre essa questão para um momento ulterior em que fossem conhecidos esses novos elementos fáctico-jurídicos.
9. Tendo os intervenientes principais deduzido a pretensão de lhes ser reconhecido e atribuído o direito de preferência, daí resulta a verificação de uma nova perspectiva e abordagem jurídica da questão do valor da causa sobre a qual as partes, nomeadamente a aqui recorrente, não teve a oportunidade de se pronunciar.
10. Acresce que o acto omitido (idest, a audiência prévia das partes) é, a todas as luzes, susceptível de influir no exame e decisão da causa, uma vez que o valor da causa releva, nomeadamente, para efeitos tributários (art. 296.º, n.º 3, do CC, e art. 11.º do RCP), para determinar a competência do tribunal nas acções de processo declarativo comum (art. 310.º, n.º 1, do CPC, e arts. 66.º, 117.º, n.º 1, al. a) e 130.º, n.º 1, da LOSJ), em matéria de recorribilidade (art. 629.º, n.º 1, do CPC), no número de testemunhas (art. 511.º, n.º 1, do CPC), duração das alegações orais (art. 604.º, n.º 5, do CPC) e termos posteriores aos articulados (art. 597.º do CPC).
11. Quando a nulidade em apreço está coberta por decisão judicial deve ser apreciada e julgada em sede de recurso.
12.Pese embora as hipóteses típicas de nulidade da sentença não constarem literalmente os vícios relativos à prática de actos processuais não legalmente admitidos ou à omissão de actos ou formalidades que a lei prescreve, a orientação jurisprudencial mais recente vai no sentido de caberem na previsão do art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC os casos em que o acto ou omissão afectados de nulidade se encontram cobertos por despacho ou sentença subsequente (cfr., v.g., Ac. RG de 9.7.2020, Proc. n.º 115/16.3T8VNC-C.G1; Ac. RG de 12.3.2020, Proc. n.º 1072/18.7I8VNF-D.G1; Ac. RG de 6.2.2020, Proc. n.º 1002/19.9T8VNF-A.G1).
13. Quando o Tribunal, ao proferir a decisão, omite o respeito pelo contraditório, ocorre excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, vício esse que conduz à nulidade do despacho em crise (art. 615.º, n.º 1, al. d) aplicável exvi do disposto no art. 613. º, n.º 3, ambos do CPC).
14. Uma vez que não se aplica a regra da substituição do tribunal recorrido, deve ser anulada a decisão em crise e, consequentemente, ordenar-se a baixa dos autos ao Tribunal da 1.ª instância para aí ser proferido despacho a ordenar a notificação da recorrente (e demais partes) para exercício do contraditório.
15. Preceitua o n.º 1 do art. 296.º do CPC que “atodaacausadeveseratribuídoumvalorcerto,expressoemmoedalegal,oqualrepresentaautilidadeeconómicaimediatadopedido”, ao passo que o n.º 2 acrescenta que é em função do valor da causa que se determina a competência do tribunal e a relação da causa com a alçada do tribunal.
16. Também aos incidentes deve ser fixado um valor e, tendo em conta que estes surgem no contexto de uma causa, o seu valor corresponde, em regra, ao valor dessa causa (art. 304.º, n.º 1, CPC); é por isso que no requerimento em que se deduz o incidente deve o requerente indicar o respectivo valor, sob pena de se considerar que aceita o valor dado à causa (art. 307.º, n.º 1, CPC), sem prejuízo da sua impugnação pela parte e da intervenção do juiz.
17. Cumulando-se na mesma acção vários pedidos, o valor da causa é o correspondente à soma de todos eles (art. 297.º, n.º 2, CPC); tratando-se, ao invés, de pedidos alternativos, atende-se unicamente ao pedido de maior valor e, no caso de pedidos subsidiários, ao pedido formulado em primeiro lugar (art. 297.º, n.º 3, CPC).
18. A regra é a de que se deve atender ao momento em que a acção é proposta para determinar o valor da acção; todavia, existem desvios a esta regra, nomeadamente quando se verifica uma modificação da instância, quer objectiva (o caso da reconvenção – art. 266.º do CPC), quer subjectiva (o caso da intervenção principal – arts. 311.º a 320.º do CPC), situações em que o valor do pedido formulado pelo réu-reconvinte ou pelo interveniente é somado ao valor do pedido formulado pelo autor (art. 299.º, n.º 2, CPC).
19. No que respeita aos incidentes, também a simples dedução do incidente de intervenção principal activa (tal como a reconvenção) determina o aumento do valor da causa, mesmo que depois o incidente venha a ser rejeitado ou julgado improcedente.
20. A ampliação do valor da causa dá-se por mero efeito da lei e, como tal, não tem de ser acolhida por despacho; opera instantaneamente logo que é apresentado o articulado em que o interveniente principal activo deduz a sua pretensão, – cfr., v.g., Ac. STJ de 8.11.79, BMJ, 291.º - 403; Ac. STJ de 7.6.74, BMJ, 238.º - 184; Ac. RG de 17.5.2006, Proc. n.º 813/06-1; Ac. RP de 29.3.2007, Proc. n.º 0731392; Ac. RP de 8.2.2001, Proc. n.º 0130057, e Lopes Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância, 1992, pgs. 35-36.
21. Dito de outro modo, o aumento do valor da causa tem eficácia imediata em relação aos actos e termos posteriores (art. 299.º, n.º 3, CPC) e estabiliza-se nesse momento, mesmo que os pedidos formulados na intervenção principal activa venham a ser reduzidos ou objecto de desistência ou de decisão de improcedência, como se tivesse havido lugar a cumulação inicial de pedidos.
22. No caso dos autos, temos que cada um dos intervenientes principais apresentou articulado próprio, no qual declaram pretender exercer a preferência, isto é, cada um dos intervenientes formula uma pretensão substantiva própria (a atribuição do direito de preferência), pelo que se verifica uma cumulação de pedidos.
23. Com efeito, a interveniente X formulou o pedido de reconhecimento do direito de preferência pelo valor de € 25.000,00, que depositou, e cada um dos restantes cinco intervenientes manifestou também a vontade de preferir pelo valor unitário de € 1.750,00, igualmente depositado, o que significa que o valor da causa é o correspondente ao somatório dos valores dos pedidos formulados pelos intervenientes e do pedido formulado pela Autora.
24. Somado o valor dos pedidos dos intervenientes (€ 33.750,00, correspondendo € 25.000,00 à interveniente X, e € 8.750,00 € aos demais cinco intervenientes) ao valor do pedido formulado pela Autora (€ 1.750,00), alcança-se o valor global de € 35.55,00, que é o valor da acção.
25. O n.º 2 do art. 306.º do CPC estatui a regra de que o juiz deve fixar o valor da causa no despacho saneador, comportando, porém, duas excepções, relativas, por um lado, aos processos em que não haja lugar a despacho saneador e, por outro, aos processos a que se refere o n.º 4 do art. 299.º do CPC, ou seja, aqueles em que a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção (nessas duas hipóteses, expressamente ressalvadas no n.º 2 do art. 306.º do CPC, a sentença será, pois, o lugar próprio para a fixação do valor da causa).
27. Incasu, por despacho de 11.12.2019, foi determinada a realização de licitação para preferência entre a A. e os intervenientes principais, que, porém, não se realizou até à data presente ainda não se encontra fixada a utilidade económica do pedido em termos definitivos; só no momento da licitação é, corporizada na realização do maior lanço, se poderá proceder à correcção e fixação definitiva do valor da causa, que até aí terá um valor meramente provisório.
28. Aplica-se, portanto, o disposto no n.º 4 do art. 299.º do CPC, segundo o qual “nosprocessosdeliquidaçãoounoutrosemque,analogamente,autilidadeeconómicadopedidosósedefinenasequênciadaacção,ovalorinicialmenteaceiteécorrigidologoqueoprocessoforneçaoselementosnecessários”, o que vale por dizer que valor a ter em conta não pode ser aquele que lhe é atribuído na acção, devendo, ao invés, tal valor ser corrigido de acordo com o resultado da licitação ordenada.
29. Para o caso de se entender que o valor da causa não é o resultante da soma dos pedidos formulados pelos intervenientes e do pedido formulado pela Autora, terá de se concluir que o Tribunal aquo não pode fixar em definitivo o valor da causa, pois tal implicaria que o mesmo não mais poderia ser corrigido em função do valor da licitação.
30. Em derradeira alternativa, deve ser atribuído à causa o valor de € 481.197,37 indicado pelas Rés.
31. O direito de preferência tem como pressuposto a correspondência entre o preço real da venda e o preço declarado, pelo que quando o preço declarado não corresponda ao preço da transmissão (v.g. simulação de preço) o direito de preferência só poderá ser atribuído se o preferente pagar o preço real – cfr., Ac. STJ de 25.11.86 (BMJ, 361.º- 534).
32. No caso em apreço, a quantia de € 1.500,00 declarada na cessão de quota não pode ser tomada como preço, nos estritos termos referidos na lei substantiva para a compra e venda (art. 874.º do CC), pois, consoante alegado pelas Rés e sustentado num primeiro momento pelo Tribunal aquo, trata-se de um preço simbólico muitíssimo inferior ao valor real da quota transmitida, que não pode ser estimado em montante inferior a € 481.179, 37.
33. Tendo sido suscitadas nos autos as questões do chamado “preço vil” (alegações das Rés) e da simulação (alegações da interveniente X), está-se perante um caso paralelo ao previsto no n.º 3 do art. 301.º do CC e, como tal, em última instância, deve prevalecer, para efeitos de fixação do valor da causa, o valor indicado pelas Rés, por corresponder ao maior dos dois valores em discussão entre as partes (cfr., citado art. 301.º, n.º 3, CPC).
34. Por outro lado, a Autora e os intervenientes principais, ao indicarem como valor da acção um valor (€ 1.750,00) que sabem ser muitíssimo inferior ao valor real da quota (no mínimo € 481.179. 37), incorrem numa conduta processualmente abusiva, que, traduzindo-se numa clamorosa ofensa da justiça, torna ilícita e ineficaz tamanha indicação – cfr., neste sentido, Ac. STJ de 25.11.86 (BMJ, 361.º - 534).
35. A sentença recorrida violou as disposições legais supra citadas.
TERMOSEMQUESEREQUERQUE, na procedência do recurso, seja decidido anular a decisão recorrida e ordenar-se a baixa dos autos para aí se cumprir o contraditório;
No caso de se entender que esse Venerando Tribunal da Relação pode, substituindo-se à primeira instância, conhecer e julgar da questão de fundo, requer-se que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que (i) fixe à acção o valor de35.500,00, (ii) ou, subsidiariamente, o valor de €481.179,37 (iii) ou, em derradeira, relegue a determinação do valor da causa para o momento ulterior em que se realize a licitação parapreferência, em conformidade com o valor do maiorlanço.
II – Objeto do recurso
Considerando que:
. o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
as questões a decidir são as seguintes:
De acordo com as conclusões da apelante X – Sociedade Gestora de Participações Sociais, Lda.:
. se o valor da causa deve ser fixado em euros 24.750,00,
De acordo com as conclusões das apelantes W,SGPS,S.A. e K,S.A.:
. se o despacho recorrido é nulo por violação do princípio do contraditório;
. se o valor da causa deve ser fixado em 35.500,00 correspondente à soma do pedido da A. com cada um dos pedidos formulados pelos intervenientes principais;
. se, assim não se entender, se o valor da causa deve ser fixado no valor de 481.197,37.. indicado pelas rés;
.e, caso assim não se entenda também, se o valor da causa só deve ser fixado a final em obediência ao disposto no artº 299º, nº 4 do CPC.
III – Fundamentação
A situação factual é a supra descrita.
Da nulidade da decisão por violação do princípio do contraditório
Vêm as apelantes W,SGPS,S.A. e K,S.A defender que não foi observado o princípio do contraditório, conforme determinado no acórdão do TRG de 06.06.2019 que apreciou diversas questões, tendo se pronunciado designadamente sobre o valor da causa fixado na ocasião do despacho saneador, nos seguintes termos, já acima referidos: “Por último, no que se refere ao valor da presente causa, a mesma deverá relegar-se para fase ulterior do processo, uma vez respeitado o princípio do contraditório, mormente no que à mesma refere, em relação aos demais sócios que irão intervir na presente ação, como associados da autora”.
Ora, não se vislumbra que tenha ocorrido tal violação.
Todos os seis intervenientes atribuíram um valor à causa, tendo na generalidade fundamentando essa indicação, fazendo referência à norma legal em que se apoiavam – artº 301º do CPC (apenas o interveniente F.P. SGPS, SA. não fez referência a qualquer preceito legal), como pela pronúncia mais detalhada sobre a questão, conforme foi o caso da interveniente principal X e da interveniente Y Investimentos, Lda.
Por sua vez, as apelantes Rés tanto na contestação à petição inicial apresentada pela A. M. J., como na contestação aos articulados apresentados pelos intervenientes, tomaram expressamente posição sobre a questão do valor da causa.
Assim, na contestação apresentada em 05.07.2018, as oras apelantes pronunciaram-se nos artigos 284 a 293º expressamente sobre o valor da causa, pugnando pela sua fixação no valor de € 481.179,37., nos seguintes termos:
“ 284. A utilidade económica imediata do pedido constitui o critério geral para a determinação do valor da causa – cfr., art. 296.º, n.º 1, NCPC.
285. “As disposições sobre o valor da causa que consagram critérios especiais (arts. 298,300 a 304) representam a concretização e a adaptação deste critério geral, em função da modalidade do pedido formulado” – cfr., J. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. I, 3.ª ed., pg. 586.
286. O n.º 1 do art. 297.º do NCPC explicita o critério geral do art. 296.º, distinguindo os casos em que o pedido tem por objecto uma quantia pecuniária líquida e os restantes.
287. Quando o pedido não tenha por objecto quantia certa em dinheiro, o valor da causa é aferido pelo benefício que pela acção se pretende obter – cfr., Ac TRC de 12.3.2013, P. 186/12.1YHLSB-A.L1-7.
Revertendo à hipótese dos autos.
288. A acção de preferência é uma acção constitutiva, visto ter por fim autorizar uma mudança na ordem jurídica existente – concretamente, a aquisição pela A. do direito de propriedade da quota alienada, em substituição da 2.ª Ré (art. 10.º, n.º 3, al. c) do NCPC e art. 1410.º, n.º 1, do CC).
289. Traduzindo-se o direito de preferência num direito real de aquisição, a transmissão da propriedade da quota envolve uma utilidade económica imediata a que deve ser atribuído um valor pecuniário equivalente ao benefício.
290. Na espécie, o valor pecuniário equivalente ao benefício ou utilidade económica que a A. se propõe alcançar através da presente acção, há-de corresponder ao valor real da quota.
291. O qual, como se alegou supra, é de € 481.179,37 (quatrocentos e oitenta e um mil, cento e setenta e nove euros e trinta e sete cêntimos).
292. É, pois, esse o valor que deve ser atribuído à causa.
293. Sendo certo que o Réu pode impugnar na contestação o valor da causa indicado na petição inicial.”
E na resposta aos articulados dos intervenientes (resposta de 03.09.2020), oferecida ao abrigo do disposto no artº 319º, nº 3 do CPC, apresentado já depois da prolação do acórdão de 06.06.2019, as apelantes vieram expressamente pronunciar-se sobre o valor da ação indicado pelos intervenientes, referindo a propósito “Impugna-se o valor dado aos incidentes pelos intervenientes, remetendo-se, brevitatis causa, para o que, neste particular se alegou na contestação à ação”(artº 108 da resposta).
Dispõe o artº 3º nº 3 do CPC que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Este normativo pretende impedir que o tribunal emita pronúncia ou profira decisão nova sem que, previamente, accione o contraditório. Este princípio é corolário ou consequência do princípio do dispositivo, emergente, para além de outras disposições, do nº1 deste preceito, destinando-se a proteger o exercício do direito de ação e de defesa.
O princípio do contraditório, consagrado no artº 3º nº 3, é um dos princípios basilares que enformam o processo civil.
Escreveu-se a propósito no Ac. deste Tribunal da Relação de 19.04.2018, processo 75/08.4TBFAF.G1 (2), “ no atual vigente processo civil, nele adoptou-se uma conceção ampla de contrariedade ao estatuir-se no art. 3º, n.º 3 do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem”. Mediante a consagração desta norma consagra-se no âmbito do processo civil o princípio constitucional da proibição da indefesa, associada à regra do contraditório, visando-se conferir às partes uma efetiva participação no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão, proibindo-se ao juiz a prolação de qualquer decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferido às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar (3).
Nesta conceção ampla do princípio da igualdade, em que se proíbe a indefesa e, nessa medida, a prolação de decisões-surpresa, visando-se assegurar às partes o direito de influenciarem o rumo do processo e a decisão nele a proferir, o escopo principal do princípio do contraditório, contrariamente ao que acontece na conceção tradicional deste princípio, deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito das partes de influírem ativa e decididamente no desenvolvimento e no êxito do processo (4).
Esta vertente positiva do princípio do contraditório, tal como todos os outros princípios, não tem, no entanto, um sentido absoluto e inuletável.
Na verdade é o próprio art. 3º, n.º 3 do CPC que admite que esse princípio possa ser afastado nos casos de “manifesta desnecessidade””.
O que deve entender-se por manifesta desnecessidade, caso em que a audição das partes não será necessária, constitui-se como o cerne da questão e só a jurisprudência e a doutrina podem ajudar a esclarecer, dependendo do caso concreto em apreciação.
Abrantes Geraldes entende que são limitadas as situações enquadráveis nesse conceito genérico de “manifesta desnecessidade”, apontando como exemplos do afastamento legítimo do mesmo: a) o indeferimento de qualquer nulidade invocada por uma das partes; b) em matéria de procedimentos cautelares, quando seja necessário prevenir a violação do direito ou garantir o resultado útil da demanda (Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, 2006, pág. 82).
Por sua vez, Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto consideram que o contraditório prévio pode ser dispensado em procedimentos cautelares, na execução, em que a penhora é, em certos casos, realizada sem audiência prévia do executado, propugnando que igualmente não deve ter lugar o convite dirigido às partes para discutirem uma questão de direito quando as mesmas “embora não tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente o tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente, por ter sido apresentada uma versão fáctica não contrariada que manifestamente não consentia outra qualificação” ( Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto, “Código de processo Civil Anotado”, vol. 1º, 1999, pág. 10).
A jurisprudência tem considerado que a decisão-surpresa a que se reporta o art. 3º, n.º 3 do CPC, pressupõe que a parte seja apanhada em falta por uma decisão que embora pudesse ser juridicamente possível, não estivesse prevista nem tivesse sido configurada por aquela (Acs. STJ. de 14/05/2002, Proc. 02A1353; de 24/02/2015, Proc. 116/14.6YLSB).
A decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito. Estaremos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou, no mínimo, quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que a parte o havia feito.
Tendo todas as partes se pronunciado sobre o valor da causa, o que fizeram, desde logo ao atribuir um valor à ação/incidente e ao inscrevê-lo no articulado respectivo e ainda, no caso das intervenientes X e Y e das apelantes RR., pronunciando-se expressamente sobre a questão, não há como não concluir que todas as partes já tomaram posição sobre o valor da causa, pelo que não se mostra violado o princípio do contraditório, nem a decisão recorrida constitui uma decisão surpresa. A questão do valor da causa já se encontrava debatido nos articulados e uma nova notificação das partes para se pronunciarem sobre o que se tinham pronunciado, constituiria um ato inútil.
Improcede assim a alegada nulidade da decisão por violação do princípio do contraditório.
Do valor da causa
Nos presentes autos a A. e os intervenientes pretendem exercer o direito de preferência na venda de uma quota no capital da sociedade OV., SGPS, Lda. que a sócia, ora R. W SGPS, S.A. transmitiu à também R. K, S.A., pelo preço de 1.500,00, sem que, na sua versão dos factos, lhes tivesse sido dada a oportunidade de exercerem o direito de preferência que lhes assiste de acordo com o pacto social da OV. (artº 6º).
Nas ações de preferência, para a determinação do valor da ação, é de convocar o critério consagrado no nº1, do art.º 301.º do CPC. Este preceito cobre todos os casos em que a decisão se deva pronunciar sobre a existência, a validade, o cumprimento, a modificação ou a resolução de um negócio jurídico, sendo o valor da ação determinado por referência ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado entre as partes, permitindo a formulação legal que se abarquem outras figuras, além da ação para o exercício do direito de preferência, tais como a impugnação pauliana ou a ação de execução específica (Abrantes Geraldes e outros, obra citada, pag.349 e 350).
Nos caso em que, do lado ativo da ação de preferência, apenas existe um titular que pretende exercer o direito de preferência, não suscita dúvidas que o valor da ação de preferência corresponde ao do preço pelo qual a coisa foi vendida. Nestas situações que serão as mais comuns, haverá identidade de preço entre o preço constante do contrato e aquele pelo qual se pretende preferir e que representa a utilidade económica do pedido formulado.
No caso presente, os sócios que pretendem exercer o direito de preferência são sete e apenas a um deles pode ser adjudicada a quota. Estamos em presença de direitos de preferência concorrentes.
Como se decidiu já no Ac. de 06.06.2019 proferido nestes autos que revogou o despacho saneador que julgou procedente a exceção dilatória inominada de falta de condição de procedibilidade da ação, por não ter arredado os demais sócios com direito de preferência na cessão de quotas, “o direito de preferência em presença não pertence simultaneamente a vários titulares, necessitando de ser exercido em conjunto (art. 419º, n.º 1, do C. Civil), mas antes pertence a mais de um titular, competindo apenas a um deles o exercício de tal direito de preferência (art. 419º, n.º 2, do C. Civil)” (sublinhado nosso).
E competindo apenas a um dos sócios esse direito, o valor do preço pelo qual se preferirá na cessão, poderá ser superior ao valor constante do contrato, uma vez que em consequência da pluralidade de titulares, o direito de preferência irá ser atribuído àquele que oferecer o melhor preço. Nos casos particulares como o que nos ocupa, em que coexistem vários titulares pretendendo exercer o direito de preferência, o valor do ato determinado pelo preço, não corresponderá ao preço constante do contrato, mas ao preço mais alto oferecido por um dos titulares, sendo que, no caso, é o preço apresentado pela interveniente X – 24.750,00. É este o valor do ato determinado pelo preço a que alude o artº 301º, nº 1 do CPC e não apenas o valor constante do contrato.
E a este valor não há que somar o valor dos pedidos formulados pela A. e pelos demais intervenientes, como pretendem as apelantes RR., fixando-se à casa o valor de 35.500,00.
O artº 299º, nº 1 do CPC determina que se atenda para a fixação do valor da causa, ao momento em que a ação é proposta, mas excepciona desta norma os casos em que haja reconvenção ou intervenção principal. No entanto, de acordo com o seu nº 2 o valor do pedido formulado pelo réu ou pelo interveniente só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto do artº 530º, nº 3. E de acordo com este preceito legal, não se considera distinto o pedido, designadamente quando a parte pretenda conseguir em seu benefício o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter ou quando a parte pretenda obter a mera compensação de créditos.
Ora, qualquer dos intervenientes pretende conseguir em seu benefício o mesmo efeito jurídico que o autor – a aquisição da quota cedida, pelo que não há que proceder à soma de todos os pedidos.
E também não é de fixar o valor de 481.179,37 que a R. indicou na contestação e que agora vem defender, em segunda linha, reclamando em primeira, o valor assaz inferior de 35.500,00.
Na sua contestação a apelante fundamentando-se no artº 297º, nº 1, 2ª parte do CPC, defendeu a fixação do valor da causa no montante de 481.179,37 por ser esse o valor pecuniário equivalente ao benefício ou utilidade económica que a A. se propõe alcançar através da presente acção, correspondendo ao valor real da quota.
No recurso mantém a atribuição desse valor à causa, caso não se entenda ser o de 35.500,00, mas agora fundamentando-se no disposto no artº 301º, nº 2 CPC, que defende ser aplicável ao caso, por se tratar de um caso paralelo ao previsto nessa norma. Em seu entender, o preço de 1.500,00 é um preço simbólico, muito inferior ao valor real da quota transmitida que não pode ser estimado em montante inferior ao indicado, devendo prevalecer o valor mais elevado.
Havendo disposição especial que se aplica à ação de preferência, dentro dos consagrados nos arts. 298º, 300º a 304º, do CPC, é essa que deverá ser aplicada, em detrimento da regra genérica contida no artº 297º do CPC (cfr. se defende no Ac. desta Relação 14.06.2018, proc. 2269/17.2T8BRG-A.G1).
O disposto no artº 301º, nº 2 do CPC contém uma disposição especialíssima aplicável às ações de declaração de nulidade do contrato que tenham por fundamento a simulação do preço, o que não é o caso da presente.
A admitir-se a aplicação do disposto neste artigo a situações paralelas como defendem as apelantes RR., não é este o caso dos presentes autos. As RR., não vieram alegar em qualquer momento que o preço pago foi superior ao declarado e que o preço real correspondeu a 481.179,37. As RR. vêm, outrossim, defender que a cessão da quota constituiu um negócio indirecto já que envolveu uma transmissão que só na aparência foi onerosa, traduzindo-se em termos materiais, numa simples transferência de património pelos sócios das sociedades Rés.
Fundamentam-se ainda as RR., na defesa da aplicação ao caso do disposto no artº 301º, nº 2 do CPC, no facto da interveniente X ter também suscitado a questão da nulidade do contrato por simulação. Efetivamente, a interveniente X formula um pedido subsidiário “em terceira linha”, ou seja para ser atendido, caso não o sejam os pedidos principais que formula nem o pedido subsidiário que deduz em primeiro lugar, de nulidade do contrato de cessão por simulação absoluta. Desde logo, o valor deste pedido subsidiário nunca poderia ser considerado para efeitos de fixação do valor da causa, atento o disposto no artigo 297º, nº 3 do CPC. Acresce que a interveniente não veio alegar que tenha havido qualquer simulação do preço, no sentido de que o preço real foi mais elevado, mas sim a simulação do próprio negócio, porquanto as partes não pretenderam, em substância, uma cessão da Ré W para um verdadeiro terceiro, no caso da Ré K ser, efetivamente, detida e controlada pelos mesmos sócios da Ré W (no limite, inclusivamente, por desconsideração da personalidade jurídica) - cfr. artº 115º da contestação.
Não é pois caso de aplicação do disposto no artº 301º, nº 2 do CPC.
Por último, defendem ainda as apelantes RR. que, embora o artº 306º, nº 2 do CPC estabeleça como regra que o juiz deve fixar o valor da causa no despacho saneador, esta regra comporta duas exceções, designadamente quando a utilidade económica do pedido só se define na sequência da ação, o que se verifica nos presentes autos, em que só com a licitação entre os preferentes é que ficará definida a utilidade económica do pedido. Em seu entender, só nessa altura, com a realização do maior lanço se poderá proceder à fixação definitiva do valor da causa que até aí terá um valor meramente provisório.
Atendendo à existência de processos cujas características ou especificações dificultam ou impeçam a assunção de um valor determinado na ocasião em que é apresentada a petição inicial, a lei apresenta alguma flexibilidade e permite que o valor inicialmente indicado tenha natureza provisória e seja corrigido logo que o processo revele os elementos para tal. Tal pode ocorrer nos processos a que alude o nº 4 do artº 299º do CPC: os processos de liquidação e outros cuja utilidade económica do pedido só se defina na sequência da ação. Constituem exemplo de processos de liquidação o processo especial de liquidação de herança vaga em benefício do Estado (artº 938º e ss) e o processo de insolvência (artº 15º do CIRE) e constituem exemplo da segunda categoria, o processo de prestação de contas e o processo de inventário (cfr. Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, 2019 Reimpressão, Almedina, pág. 348).
Destina-se a situações em que, aquando da propositura da ação, o valor processual admitido é ilíquido ou indeterminado, sendo o valor determinado no decurso da ação. O critério nestes casos para fixar o valor é o da probabilidade, assente num juízo de prognose póstuma, com apelo aos dados de facto disponíveis e às regras da experiência (cfr.Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 6ª edição, Almedina, 2013, p.36). Ora, não é esta a situação em apreço. Se todos os interessados tivessem oferecido o mesmo preço – seria esse o valor da causa. Tendo um dos interessados manifestado pretender preferir por um preço mais alto, é a este que se deve atender.
Ficam prejudicadas as demais questões suscitadas.
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar procedente a apelação da interveniente X e parcialmente procedente a apelação das RR. W, SGPS, S. A. e K, S. A., revogando o despacho que fixa à causa o valor de 1.500,00, fixando-o em 24.750,00.
Custas pelas apelantes RR. que decaíram parcialmente, fixando-se em 30%.
Not.
Guimarães, 6 de maio de 2021
1. A Y Investimentos, Lda. apresentou articulado próprio, alegando ter sucedido na posição passiva e ativa da A. SGPS, S.A.
2. Acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação da fonte.