MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA
SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
INOPONIBILIDADE
LESADO
Sumário

I) O seguro de responsabilidade civil da actividade profissional de mediação imobiliária é um seguro obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, alínea b), e 7.º da Lei 15/2013, de 8 de Fevereiro.

II) A seguradora não pode opor ao lesado a cláusula contratual que estabelece que o seguro apenas responderá pelos danos ocorridos no decurso da vigência do contrato de seguro reclamados pelo segurado até um ano após a data da sua resolução.

Texto Integral

ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I) RELATÓRIO


B…, com os sinais dos autos, veio instaurar a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra V.., G.. e I.. – MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, Lda., todos com sinais dos autos, pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhe indemnização por danos sofridos, em razão de dolo na venda de um imóvel pelos primeiros Réus, sendo mediadora imobiliária a terceira Ré.
Os Réus invocaram excepção da sua ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário, decorrente de não estar demandada a seguradora com quem a Ré mediadora havia celebrado contrato de seguro obrigatório quanto a responsabilidade civil que lhe fosse assacada por actuação no exercício da mediação.
Após vicissitudes várias sem repercussão no presente recurso, foi admitida a intervenção principal provocada de CARAVELA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., que, citada, veio apresentar contestação em que, para além do mais, que agora não está em causa, invocou a caducidade do direito que funda a demanda por não ter ocorrido reclamação no prazo de um ano decorrido após a cessação do contrato, nos termos previstos no n.º 7 da cláusula artigo 7.º da Condição Especial aplicável ao contrato de seguro em causa nos presentes autos que expressamente convencionou nesse sentido.
Cumprido o demais legal, foi designada audiência prévia e, nesta, foi decidida a improcedência da excepção peremptória de caducidade.
O Autor interpôs o presente recurso dessa decisão e, alegando, concluiu como segue as suas alegações:
a. Vem o Recurso interposto da decisão que considerou improcedente a “exceção de caducidade alegada pela interveniente com o objectivo de afastar a sua responsabilidade pela absolvição do pedido ou pedidos pugnados”, uma vez que mal andou o Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez.
b. Na Contestação a Recorrente invocou a caducidade do direito do Autor, aqui Recorrido, em virtude da cessação do contrato de seguro celebrado entre a Recorrente e a Terceira Ré, aqui Recorrida, por resolução, sustentando, em suma, o seguinte.
c. Que celebrou um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil, nos termos da Lei n.º 15/2013, de 08/02, para garantia da actividade da Terceira Ré relativamente ao qual foi emitida a Apólice n.º 81.00104886, contrato que tinha como limite o capital de € 150.000,00, franquia de 10% do valor do sinistro, com o limite mínimo de € 500,00 e máximo de € 1.000,00.
d. Que ao contrato de seguro em causa são aplicáveis as Condições Gerais e Especiais, em particular a Condição Especial Entidades Mediadoras Imobiliárias e que o mesmo se destina ao ressarcimento dos danos patrimoniais causados a terceiros, decorrentes de acções ou omissões de empresas, dos seus representantes e dos seus colaboradores, conforme artigo 4.º da Condição Especial.
e. Que o contrato de seguro teve início no dia 01/04/2016, tendo cessado no dia 31/03/2018, por falta de pagamento do prémio, considerando-se como data de resolução da Apólice o dia 01/04/2018.
f. Que o contrato de mediação imobiliária aqui em causa terá sido celebrado no dia 20/03/2017 e que o negócio jurídico também aqui em causa terá sido celebrado 22/09/2017, estando o contrato de seguro celebrado com a Recorrente em vigor.
g. Que a Recorrente apenas teve conhecimento da situação jurídica controvertida nos presentes Autos, através da citação, concretizada no dia 29/01/2020 e que até esta data não existiu qualquer reclamação junto da Recorrente, por parte do Autor nem por parte da Terceira Ré, aqui Recorridos.
h. Que o n.º 1 do art. 7.º da Lei n.º 15/2013, de 08/02, determina que “para garantia da responsabilidade emergente da sua atividade, as empresas de mediação imobiliária estabelecidas em território nacional devem ser titulares de seguro de responsabilidade civil, no montante mínimo de € 150.000”; e que o n.º 3 do artigo 7.º determina que “o seguro previsto no n.º 1 deve satisfazer as condições mínimas fixadas no anexo I à presente lei, que dela faz parte integrante”.
i. Que resulta das condições fixadas no Anexo I que “da apólice de seguro deve constar expressamente que, nos casos previstos nas alíneas do número anterior e independentemente da respetiva causa, o seguro responderá pelos danos ocorridos no decurso da vigência do contrato e reclamados até um ano após a data da cessação da atividade, da caducidade ou do cancelamento da licença ou da resolução do contrato de seguro”.
j. Que tal previsão se encontra plasmada no n.º 7 do artigo 7.º da Condição Especial aplicável ao contrato de seguro em causa, mais concretamente que “nos casos previstos nas alíneas a), b), e c) do Artº 4º, independentemente da respectiva causa, o seguro responderá pelos danos ocorridos no decurso da vigência do contrato e reclamados até um ano após a data da cessação da actividade, da caducidade ou do cancelamento da licença ou da resolução do contrato de seguro”.
k. Concluindo que, tendo o contrato de seguro celebrado cessado em 31/03/2018, considerando-se a resolução a 01/04/2018, e tendo a Recorrente sido citada para os presentes Autos em 29/01/2020, o prazo de um ano para reclamação junto da Recorrente há muito havia decorrido, pelo que não poderá ser assacada qualquer responsabilidade à Recorrente, seja por parte do Autor, seja por parte da Terceira Ré, aqui Recorridos, devendo ser a Recorrente integralmente absolvida de todo e qualquer pedido.
l. Que nos termos do n.º 2 do art. 298.º do CC, “quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição” e nos termos do n.º 1 do art. 331.º do CC, “só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo”.
m. Que o Autor, ou a Terceira Ré, aqui Recorridos, não praticaram qualquer acto que tenha impedido a caducidade de exercerem qualquer direito contra a Recorrente, pelo que caducou qualquer direito que eventualmente pudesse ser exercido contra a Interveniente.
n. Peticionando a sua integral absolvição de qualquer pedido, nos presentes Autos, ou em Autos futuros nos quais se discuta a situação controvertida nos presentes Autos.
o. O Tribunal notificou os sujeitos processuais para, querendo, exercerem o direito de se pronunciarem sobre a excepção invocada, não tendo os mesmos nada dito, requerido ou alegado, pelo que, por despacho de 14/09/2020, citius 398644332, foi decidido pelo Tribunal a quo que “a falta de resposta à excepção alegada pela interveniente a título principal – Caravela – Companhia de Seguros, S.A., tem o efeito previsto no art.º 574.º do CPC por via do consignado no art.º 587.º n.º 1 do mesmo Código”.
p. Considerou o Tribunal a quo que os factos alegados quanto à excepção invocada seriam considerados factos provados por acordo entre todos os intervenientes processuais, não tendo tal despacho sido objecto de Recurso, tendo transitado em julgado!
q. Todos os factos alegados para fundamentação da invocada excepção de caducidade foram considerados provados por acordo, por aplicação do art. 574.º e n.º 1 do art. 587.º do CPC.
r. Não poderia o Tribunal a quo ter deixado de daí extrair a necessária consequência jurídica que, in casu, apenas poderia ser a verificação da invocada excepção de caducidade.
s. Contudo, o Tribunal a quo, em sede de Audiência Prévia, considerou a excepção invocada improcedente, com os argumentos transcritos em sede de Alegações, para as quais se remete, com os quais a Recorrente não se conforma.
t. De facto, como alegado e demonstrado na Contestação, a Recorrente celebrou um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil, nos termos da Lei n.º 15/2003, de 08/02, para garantia da actividade da Terceira Ré, relativamente ao qual foi emitida a Apólice n.º 81.00104886.
u. Ao contrato de seguro são aplicáveis, para além das disposições legais aplicáveis, as Condições Gerais e Especiais, em particular a Condição Especial Entidades Mediadoras Imobiliárias.
v. A vigência do contrato de seguro iniciou-se no dia 01/04/016, tendo cessado no dia 31/03/2018, por falta de pagamento do prémio, considerando-se como data de resolução o dia 01/04/2018.
w. A Recorrente apenas teve conhecimento da situação jurídica controvertida nos presentes Autos através da citação, concretizada no dia 29/01/2020, sendo que até tal data não houve qualquer reclamação junto da Recorrente por parte dos aqui Recorridos – Autor e Terceira Ré.
x. Tal factualidade, foi considerada provada pelo Tribunal a quo, face à ausência de impugnação por parte dos demais sujeitos processuais.
y. Determina o n.º 1 do art. 7.º da Lei n.º 15/2013, de 08/02, que “para garantia da responsabilidade emergente da sua atividade, as empresas de mediação imobiliária estabelecidas em território nacional devem ser titulares de seguro de responsabilidade civil, no montante mínimo de (euro) 150 000”.
z. Determina o n.º 3 do art. 7.º que “o seguro previsto no n.º 1 deve satisfazer as condições mínimas fixadas no anexo i à presente lei, que dela faz parte integrante”.
aa. Dispondo tais condições, no n.º 2, que “o contrato de seguro assegura, no mínimo, o pagamento de indemnizações para ressarcimento dos danos patrimoniais, causados a terceiros, decorrentes de ações ou omissões das empresas de mediação imobiliária ou dos seus representantes legais e colaboradores, ou do incumprimento de outras obrigações resultantes do exercício da atividade, ainda que, sem prejuízo do disposto no número seguinte, se verifique (…) c) A resolução do contrato de seguro de responsabilidade civil.”.
bb. No entanto, no mesmo seguimento, ressalva, no n.º 3, que “da apólice de seguro deve constar expressamente que, nos casos previstos nas alíneas do número anterior e independentemente da respetiva causa, o seguro responderá pelos danos ocorridos no decurso da vigência do contrato e reclamados até um ano após a data da cessação da atividade, da caducidade ou do cancelamento da licença ou da resolução do contrato de seguro”.
cc. De resto, tal previsão encontra-se plasmada no n.º 7 do art. 7.º da Condição Especial aplicável ao contrato de seguro aqui em causa, aí se determinando que “nos casos previstos nas alíneas a), b), e c) do Artº 4º, independentemente da respectiva causa, o seguro responderá pelos danos ocorridos no decurso da vigência do contrato e reclamados até um ano após a data da cessação da actividade, da caducidade ou do cancelamento da licença ou da resolução do contrato de seguro”.
dd. Tendo o contrato de seguro sido resolvido e deixando de produzir efeitos a 01/04/2018 e tendo a Recorrente sido citada a 29/01/2020, conforme se encontra demonstrado e provado nos Autos, há muito que decorreu o prazo de 1 (um) ano para reclamação junto da Recorrente.
ee. Pelo que não poderá ser assacada à Recorrente qualquer responsabilidade, seja por parte da Terceira Ré, seja por parte Autor, ambos aqui Recorridos.
ff. Quanto à oponibilidade da resolução do contrato de seguro ao Recorrido-Autor, o disposto no Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, rege o seguinte:
gg. É certo que o n.º 2 do artigo 106.º, como referido pelo Tribunal a quo, determina que “a cessação do contrato não prejudica a obrigação do segurador de efectuar a prestação decorrente da cobertura do risco, desde que o sinistro seja anterior ou concomitante com a cessação e ainda que este tenha sido a causa da cessação do contrato”, e que os n.ºs 1 e 2 do artigo 108.º determinam que “a cessação do contrato de seguro não prejudica os direitos adquiridos por terceiros durante a vigência do contrato” e que “da natureza e das condições do seguro pode resultar que terceiros beneficiem da cobertura de sinistro reclamado depois da cessação do contrato”,
hh. Contudo, o Despacho recorrido peca por não considerar a natureza supletiva das normas vindas de citar.
ii. De facto, nos termos do artigo 11.º Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, “o contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime, com os limites indicados na presente secção e os decorrentes da lei geral”.
jj. As mencionadas disposições legais não integram nenhuma das excepções de imperatividade previstas nos artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, de onde se conclui que a previsão contratual expressa da oponibilidade a terceiros do prazo para reclamação prevalece sobre aquele normativo.
kk. Ademais, o Despacho recorrido não considera a norma expressa do n.º 2 do artigo 147.º Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, que determina que “são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato”.
ll. Ao invés do que sucede relativamente aos preceitos invocados no Despacho recorrido, esta norma, na ausência de regime convencional mais favorável ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário, é imperativa, conforme resulta do n.º 1 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04.
mm. Nos termos do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, “as normas estabelecidas no presente regime aplicam-se aos contratos de seguro com regimes especiais constantes de outros diplomas, desde que não sejam incompatíveis com esses regimes”.
nn. Assim, o citado normativo aplica-se ao caso dos Autos, a não ser que seja incompatível com o regime consagrado na Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro.
oo. No que respeita a direitos de terceiros, conforme resulta das disposições dos n.ºs 2 e 3 do seu Anexo I, o regime especial aplicável determina expressamente a obrigatoriedade de o contrato de seguro assegurar o ressarcimento dos danos patrimoniais causados a terceiros, ainda que se verifique a resolução do contrato de seguro, desde que esses danos sejam reclamados no prazo de um ano a contar da cessação do contrato.
pp. O direito de terceiro ao ressarcimento, pela seguradora, dos danos patrimoniais na sua esfera causados, apenas subsiste, perante a resolução do contrato de seguro, se os danos forem reclamados até um ano após a data de resolução do contrato de seguro.
qq. Direito esse acautelado, como supra referido, no n.º 7 do art. 7.º da Condição Especial aplicável ao contrato de seguro em causa nos presentes Autos.
rr. Pelo que o regime do art. 147.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, não é incompatível com o da Lei n.º 15/2013, de 08/02.
ss. Pelo contrário, no que concerne à oponibilidade da resolução perante terceiros, em particular, é até idêntico (salvo na parte em que aquela Lei prevê o direito de demandar a seguradora dentro do prazo de um ano após a resolução).
tt. Embora se trate de contrato de seguro obrigatório, o regime especial não afasta a aplicação da norma geral do art. 147.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, que de resto se insere sistematicamente na subsecção relativa a “disposições especiais de seguro obrigatório”.
uu. A este respeito se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 3 de Maio 2016, proferido no âmbito do Processo n.º 613/08.2TBSSB.E1.S1, no qual se discutia da oponibilidade de uma cláusula de exclusão de cobertura contratual de seguro obrigatório face a terceiros, transcrito em sede de Alegações.
vv. Assim, o Autor, aqui Recorrido, não poderá assacar qualquer responsabilidade à Recorrente, em virtude de o prazo de 1 (um) ano previsto para o efeito há muito ter decorrido.
ww. Em face de tudo quanto se expôs, é inexorável concluir que mal andou o Tribunal a quo a decidir nos termos em que o fez, devendo a excepção de caducidade ter sido considerada procedente, por provada, com a consequente absolvição da Recorrente do pedido.
xx. Nos termos do n.º 2 do art. 298.º do CC, “quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição”.
yy. Nos termos do n.º 1 do art. 331.º do Código Civil, “só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo”.
zz. Os Recorridos não praticaram qualquer acto que tenha impedido a caducidade do direito a serem indemnizados pela Recorrente, pelo que o mesmo caducou.
aaa. O que deve determinar, consequentemente, a integral absolvição da Recorrente de qualquer pedido, tanto nos presentes Autos, como em Autos futuros nos quais a situação controvertida aqui em causa se discuta.
bbb. Conclui-se, pois, repita-se, que mal andou o Tribunal a quo a decidir nos termos em que o fez, devendo o Despacho proferido ser revogado e substituído por um outro que, considerando procedente a excepção invocada, determine a absolvição da Recorrente do pedido.

O Autor apresentou contra-alegações defendendo o julgado.

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II) OBJECTO DO RECURSO

Tendo em atenção as conclusões da Recorrente e os deveres de oficiosidade - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre apreciar se procede a excepção de caducidade deduzida pela Interveniente.

III) FUNDAMENTAÇÃO

1.-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

São pertinentes à decisão os factos que constam do relatório supra e os seguintes que resultam dos autos e do acordo das partes:
1–A escritura de compra e venda do imóvel a que se refere o pedido do Autor foi outorgada em 22 de Setembro de 2017.
2–A Ré Imoving mediou a relação entre os demais Réus, vendedores do imóvel, e o Autor, comprador, no exercício da sua actividade profissional de mediadora imobiliária e nos termos de acordo celebrado com os co-Réus em 20 de Março de 2017.
3–Entre a Ré Imoving e a Interveniente havia sido acordado que a segunda assumia a responsabilidade civil emergente de actos praticados pela Ré no exercício da sua actividade de mediadora imobiliária, nos termos da Lei n.º 15/2013, de 8 de Fevereiro, titulado pela apólice 81.00104886, junto aos autos como documento 1 da contestação da Interveniente.
4–O contrato referido em 3 teve início no dia 1 de Abril de 2016 e cessou no dia 31 de Março de 2018.
5–Da cláusula 7.ª, n.º 7, das condições especiais do acordo referido em 3 consta que nos casos previstos nas alíneas a), b), e c) do Artº 4º [cessação da actividade de mediação imobiliária, caducidade da licença ou resolução do contrato de seguro], independentemente da respectiva causa, o seguro responderá pelos danos ocorridos no decurso da vigência do contrato e reclamados até um ano após a data da cessação da actividade, da caducidade ou do cancelamento da licença ou da resolução do contrato de seguro.
6– À Interveniente apenas foi dado conhecimento do contrato de compra e venda e da pretensão do Autor com a citação para contestar a presente acção, ocorrida em 29 de Janeiro de 2020.

2.–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1.- O contrato de seguro em causa foi celebrado em 1 de Abril de 2016 pelo que lhe é aplicável o regime do Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril (doravante RJCS).
2.- É pacífico que o acordo estabelecido entre a Ré Imoving e a Interveniente constitui um contrato de seguro, como resulta das suas cláusulas, confrontadas com o disposto no artigo 1.º do RJCS.
Tal contrato foi celebrado, como do próprio texto resulta, nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, alínea b)[1], e 7.º[2] da Lei 15/2013, de 8 de Fevereiro.
Importa apreciar da sua natureza obrigatória, entendendo-se como seguro obrigatório aquele a que estão obrigadas certas categorias de pessoas em razão de factores definidos pela lei que consagra a obrigação de o celebrar.
Em consequência, a obrigatoriedade de celebrar o seguro, derroga na mesma medida a regra geral de liberdade contratual, consagrada no artigo 405.º, n.º 1, do CC, a qual inclui a liberdade de contratar ou de não contratar.
Aos seguros obrigatórios refere-se o artigo 10.º do RJCS, referindo-se especificamente ao seguro de responsabilidade civil, entre os quais o presente se insere, as normas dos artigos 137.º a 145.º e aos seguros obrigatórios os artigos 10.º e 146.º a 148.º, todos do RJCS.
A natureza obrigatória do seguro é claramente enunciada pela expressão devem utilizada pela lei, decorrendo ademais do teor da Directiva 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro[3], maxime o seu artigo 13.º, n.º 1. O que não é polémico nos autos, dispensando-nos de outras considerações.
3.- A consagração da obrigatoriedade deste seguro profissional tem em consideração a potencialidade de risco da actividade de mediação imobiliária, nomeadamente de risco causado a quem contrata com as empresas que a tal se dedicam ou a terceiros participantes nos negócios promovidos.
Tendo em conta essa potencialidade de risco e o desamparo a que seriam votados terceiros, face a impossibilidade de cumprimento de indemnizações por parte das mediadoras, é estabelecido o regime de seguro obrigatório que “normaliza” o risco em termos socialmente “suportáveis”, garantindo a indemnização[4].
Na verdade, a expressa finalidade de protecção dos terceiros que recorrem aos serviços de mediação imobiliária, apenas pode ser adequadamente prosseguida pela imposição da obrigação, não pela previsão de uma faculdade, que sempre existiria nos termos da lei geral que estabelece a liberdade de contratar.
4.- É igualmente pacífico nos autos que o evento em que se funda o pedido indemnizatório ocorreu na vigência do contrato de seguro em causa. Também se encontra assente que a Seguradora recorrente apenas com a citação teve conhecimento dos factos, ou seja, que a reclamação junto da seguradora não ocorreu no prazo de um ano contado após a data da cessação do contrato.
É esta a questão que a Recorrente coloca, defendendo que nos termos da cláusula 7.ª, n.º 7, das condições especiais do contrato de seguro, da legislação que a autoriza e do disposto no artigo 147.º, n.º 2, do RJCS, caducou o direito a pedir-lhe indemnização.
5.- A cláusula 7.ª, n.º 7, estabelece que o seguro responderá pelos danos ocorridos no decurso da vigência do contrato e reclamados até um ano após a data da cessação da actividade, da caducidade ou do cancelamento da licença ou da resolução do contrato de seguro.
Em resultado desta estipulação, defende a Recorrente que não responde pelos danos eventualmente decorrentes de um evento ocorrido na vigência do contrato mas do qual (e da sua eventual danosidade) apenas teve conhecimento mais de um ano depois de o contrato cessar.
6.- A mencionada cláusula consagra no programa do contrato a estipulação autorizada no anexo I à Lei 15/2013, sobre as condições mínimas do seguro obrigatório de responsabilidade civil das mediadoras imobiliárias, estando ademais em consonância com o regime do artigo 139.º, n.º 3, do RJCS.
Entende a Recorrente que dela decorre a possibilidade de opor ao lesado a cessação do contrato e a ausência de reclamação no prazo indicado, não se conformando com a aplicação na sentença recorrida das normas dos artigos 106.º, n.º 1, e 108.º, n.ºs 1 e 2, por entender que as mesmas não são imperativas e o seu regime é excepcionado pelo do artigo 147.º, n.º 2, todos do RJCS.
O artigo 106.º, n.º 1, estabelece que a cessação do contrato não prejudica a obrigação do segurador de efectuar a prestação decorrente da cobertura do risco, desde que o sinistro seja anterior ou concomitante com a cessação e ainda que este tenha sido a causa da cessação do contrato.
Nos n.ºs 1 e 2 do artigo 108.º lê-se que a cessação do contrato de seguro não prejudica os direitos adquiridos por terceiros durante a vigência do contrato e da natureza e das condições do seguro pode resultar que terceiros beneficiem da cobertura de sinistro reclamado depois da cessação do contrato.
O artigo 147.º, n.º 1, dispõe que o segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro enquanto o n.º 2 estabelece que para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato.
É claro que  artigo 147.º, do RJCS, estabelece um regime mais abrangente no que toca aos meios de defesa das seguradoras nos regimes de seguros obrigatórios não automóvel, face ao regime imposto pelo artigo 22.º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto[5](Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), reduzindo este último as hipóteses de oponibilidade da cessação do contrato nesta concreta modalidade de seguro obrigatório.
Mas não se extrai daqui a conclusão que a Recorrente pretende. A cessação do contrato que pode ser oposta ao terceiro é a que ocorra antes do sinistro, não a que tenha lugar depois de ele ter ocorrido.
Opor a cessação do contrato significa poder opor ao lesado que o contrato cessou antes do sinistro (o que em certos casos o regime relativo aos acidentes de viação não permite), não significa retroagir os efeitos da cessação do contrato a um sinistro ocorrido na sua vigência.
Assim, neste aspecto, inexiste qualquer contradição entre o regime do artigo 147.º, n.º 2, e o do artigo 106.º, n.º 1, e é congruente o regime do 147.º, n.º 2, com o do artigo 108.º, n.º 2.
7.-Contudo, ao invocar a cessação do contrato, o que efectivamente a Recorrente defende é que é oponível ao lesado a “não reclamação no prazo contratual”, ou seja, mais do que convocar a oponibilidade da cessação do contrato a recorrente defende a oponibilidade das “condições contratuais” a que o artigo 147.º, n.º 2, do RJCS também alude.
Em suma, a seguradora poderia opor ao eventual lesado que não responde por danos reclamados mais de um ano depois da cessação do contrato, uma vez que consta da cláusula 7.ª, n.º 7, do contrato de seguro essa exclusão de responsabilidade, no caso de o tomador do seguro ou o segurado não reclamarem o sinistro em prazo.
Mas a conclusão excede as premissas. A cláusula contratual estabelece que a seguradora não responde perante o segurado nessas circunstâncias, não estabelece que não responde perante o lesado. A cláusula convive sem dificuldade com um regime, que cremos ser o da lei, em que a seguradora satisfaz a pretensão do lesado (vindo ela a ser demonstrada), ressarcindo-se posteriormente a expensas do segurado que não reclamou em prazo. Vejamos porque assim é.
Para além do que já se adiantou – considerar-se que a cláusula apenas estabelece que o segurado que não reclamou em prazo vê precludido o direito de repercutir os danos na seguradora – diga-se ainda que a própria norma do artigo 147.º, do RJCS, se opõe a que se considere que a caducidade do direito do segurado impõe a caducidade do direito do lesado, beneficiário da prestação de seguro.
Na verdade, o n.º 1, lugar próximo interpretativo a que podemos recorrer, determina essa conclusão. Recordemos que esse n.º 1 estatui que o segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro.
Se a oponibilidade das condições contratuais implicasse a oponibilidade ao lesado da cláusula 7.ª, n.º 7, do contrato de seguro, alcançar-se-ia o resultado de a seguradora poder opor ao lesado meios de defesa derivados de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido posteriormente ao sinistro.
Outra coisa não pode entender-se quando a seguradora opõe ao lesado o facto imputável ao tomador do seguro de não ter reclamado tempestivamente o sinistro. Ou seja, alcançar-se-ia o resultado que o n.º 1 expressamente proíbe.
Ora, o artigo é claro ao estabelecer a previsão do seu n.º 2 como subsidiária da do n.º 1, a que se reporta e que exemplifica: para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado.
Nem se invoque a liberdade contratual e a sua consagração no artigo 11.º do RJCS. Desde logo porque a liberdade contratual não existe para quem não contrata, como acontece com o lesado. Mas, sobretudo, porque ao afirmar a liberdade contratual, o artigo 11.º alude de imediato às suas restrições, particularmente importantes nos seguros obrigatórios (desde logo a de contratar ou não), previstas dos artigos 12.º e 13.º como resultantes da imperatividade absoluta e relativa, respectivamente, de normas que elencam, caracterizando-se esta última por poder ser afastada por regime mais favorável ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário da prestação de seguro.
Uma das normas que não pode ser afastada por regimes menos favoráveis ao beneficiário da prestação do seguro (imperatividade relativa, como decorre do artigo 13.º, n.º 1) é a do artigo 147.º que acima interpretámos.
Ao que acresce, na busca da harmonia do sistema jurídico a que o legislador vincula o intérprete (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), que este regime é o acolhido pelo legislador no artigo 101.º, n.º 4, do RJCS, quando se verifica a omissão de participação do sinistro por parte do tomador do seguro, no que constitui um lugar paralelo do que nos ocupa.

Diz esta norma:
1 - O contrato pode prever a redução da prestação do segurador atendendo ao dano que o incumprimento dos deveres fixados no artigo anterior lhe cause.
2 - O contrato pode igualmente prever a perda da cobertura se a falta de cumprimento ou o cumprimento incorrecto dos deveres enunciados no artigo anterior for doloso e tiver determinado dano significativo para o segurador.
3 - O disposto nos números anteriores não é aplicável quando o segurador tenha tido conhecimento do sinistro por outro meio durante o prazo previsto no n.º 1 do artigo anterior, ou o obrigado prove que não poderia razoavelmente ter procedido à comunicação devida em momento anterior àquele em que o fez.
4 - O disposto nos n.os 1 e 2 não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações que efectuar, com os limites referidos naqueles números.
Regime em tudo idêntico ao que entendemos decorrer dos artigos 106.º, 108.º e 147.º do mesmo diploma, para situação similar de incumprimento de uma obrigação/ónus contratual pelo segurado e/ou tomador do seguro.
Tenha-se ainda em consideração que uma das características fundamentais do regime de seguro obrigatório é a possibilidade de o lesado demandar directamente a seguradora – artigo 146.º, n.º 1, do RJCS. Sendo que, dispondo o terceiro de acção contra a seguradora, deverá esta indemnizar baseada na reclamação de terceiro[6], o que se encontra em consonância com o regime de oponibilidade estabelecido na lei.

Em conclusão do que improcede o recurso.

IV) DECISÃO

Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente – artigo 527.º, n.º 2, do CPC.
*


Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): supra transcrito
 (AAC)


Data constante das assinaturas electrónicas 
(Ana de Azeredo Coelho)
(Eduardo Petersen Silva)
(Cristina Neves)


[1]O licenciamento para o exercício da atividade de mediação imobiliária depende do preenchimento cumulativo, pelos requerentes, dos seguintes requisitos:
(…)
b) Ser detentor de seguro de responsabilidade civil ou garantia financeira ou instrumento equivalente que o substitua, nos termos do disposto no artigo 7.º
[2]1 - Para garantia da responsabilidade emergente da sua atividade, as empresas de mediação imobiliária estabelecidas em território nacional devem ser titulares de seguro de responsabilidade civil, no montante mínimo de (euro) 150 000.
2 - O seguro previsto no número anterior, tal como a garantia financeira ou instrumento equivalente que o substituam, podem ser contratados noutro Estado do Espaço Económico Europeu, nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de julho.
3 - O seguro previsto no n.º 1 deve satisfazer as condições mínimas fixadas no anexo i à presente lei, que dela faz parte integrante.
4 - O seguro de responsabilidade civil destina-se ao ressarcimento dos danos patrimoniais causados a terceiros, decorrentes de ações ou omissões das empresas, dos seus representantes e dos seus colaboradores.
5 - Para efeitos do presente artigo, consideram-se terceiros todos os que, em resultado de um ato de mediação imobiliária, venham a sofrer danos patrimoniais, ainda que não tenham sido parte no contrato de mediação imobiliária.
[3]Transposta pelo Decreto-Lei 92/2010, de 26 de Julho, a cujo regime pretende a Lei 15/2013 conformar o exercício da actividade de mediação imobiliária.
[4]Vejam-se os termos do considerando 98 da Directiva citada: Qualquer operador que preste serviços que apresentem um risco directo e específico para a saúde e a segurança ou um risco financeiro específico para o destinatário ou para terceiros deverá em princípio estar coberto por um seguro de responsabilidade profissional adequado ou por uma garantia equivalente ou comparável, o que implica nomeadamente que esse operador, regra geral, deverá também estar segurado de modo adequado para o serviço que presta num ou mais Estados-Membros, para além do de estabelecimento.
[5]Diz o artigo 22.º: Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente.
[6]José Vasques in Contrato de seguro - notas para uma teoria geral, Coimbra Editora, 1999, p. 300.