HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEIO INSIDIOSO
CRUELDADE
CIÚME
MEDIDA DA PENA
Sumário


I - Dos autos resulta não apenas a altíssima gravidade dos factos, reveladora de grande desprezo pela vida humana, e mesmo pela dor humana (dada a forma cruel por que foi perpetrado o homicídio na pessoa do companheiro da arguida), como ainda uma frieza de ânimo capaz de inverter ficticiamente a situação, encenando uma factualidade alternativa, em que perseverou, na qual seria a vítima. Assim se compreendendo a atitude de se ter apresentado motu proprio em posto da GNR.
II - A proteção de um bem jurídico é importante fator de legitimação do ius puniendi na nossa ordem jurídico-constitucional, como se encontra desde logo expresso no art. 18.º, n.º 3, da CRP, que consagra o respetivo princípio, o qual é recebido no art. 40.º do CP (Cf. Acórdão deste STJ, de 01-04-2020, proferido no Proc.º n.º 89/18.6JELSB.L1.S1).
III - Aquele artigo constitucional é, aliás, chave para a substancial constitucionalidade do Direito Penal. No caso, está em causa o bem vida humana, barbaramente violado, aproveitando a circunstância de o companheiro estar a dormir, atirando-lhe primeiro com óleo a ferver para o rosto e corpo, de forma a inibir a sua capacidade de defesa, e vindo depois a desferir quatro facadas na vítima, causando-lhe a morte.
IV.- A arguida denuncia clara impreparação atual para gerir sentimentos exacerbados de controlo e ciúme sobre terceiros, reclamando apertadas necessidades de prevenção especial, apesar da primariedade. Não se pode avaliar como pessoa pacata e cumpridora, sem perigo de reincidência quem evidenciou uma incapacidade de autocontrole tão acentuada. Estamos perante um crime no âmbito de “criminalidade especialmente violenta” (art 1.º, n.º l, do CPP). Além da culpa (com dolo intenso), não se pode esquecer que avultam preocupações de política criminal (L n.º 96/17, de 23-08, arts 2.º, e) e f), e 3.º, b). Releva não só o alarme atual provocado imediatamente pelo conhecimento social dos crimes, como o alarme e comoção sociais normais neste tipo de casos, com uma potencialidade de crise das próprias instituições, da banda social (ou “sociológica”), que precisamente se pretende prevenir, e não apenas constatar a posteriori, quando essa dimensão de anomia social já foi atingida.
V - Não foi posto validamente em causa nenhum dos contornos específicos da incriminação. Não se vislumbram quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, devendo, como foi feito, haver uma condenação da arguida pela prática de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, nºs 1 e 2, als. b), d) e i), do CP.
VI - Como se sabe, a pena a aplicar deve ser fixada por forma a servir as finalidades de proteção dos bens jurídicos (no caso a Vida, de altíssimo valor) e reintegração do agente na sociedade (que não parece totalmente pacífica, dados os traços de personalidade evidenciados), tendo sempre como limite a medida da culpa (que é também intensa) – art. 40, n.ºs 1 e 2 do CP. Para determinação da medida concreta da pena são critérios os do art. 71 do CP, devidamente ponderados no Acórdão recorrido.
VII - O crime de homicídio qualificado é punível com pena de prisão de 12 a 25 anos. A pena aplicada foi de 20 anos de prisão. Ou seja, encontra-se no máximo das penas “médias” nesta moldura penal (que seriam entre 17 a 20 anos), o que, por si só, e não tendo em consideração os contornos particularmente gravosos da situação, revela não severidade, mas equilíbrio, o qual, atenta a situação concreta, poderá mesmo ser tido por alguma benevolência.
VIII - Sem prejuízo do direito constitucional ao recurso, é pacífico que a intervenção do STJ no controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena tem de ser necessariamente parcimoniosa (cf., v.g., Acórdão deste STJ, de 2010-09-23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1). E, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido.
IX - No caso do concreto crime em apreço, o homicídio, perpetrado como o foi e com as motivações que o determinaram, não parecem ser controversas as elevadas necessidades de prevenção geral, dada a sensibilidade social generalizada ao ataque ao bem jurídico violado, cuja violação é geradora de escândalo, alarme e intranquilidade. Ao tomarem conhecimento deste tipo de eventos, as pessoas legitimamente temem pelas suas vidas, ou um bellum omnium contra omnes, podendo perder a confiança (cf. Acórdão de 2010-09-2, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1).
X - O quantum da pena deve manter-se quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (v.g. Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1, 19-09-2019). É o que ocorre no caso, em que a malha hermenêutica utilizada se revelou consistente com os seus pressupostos, que foram proficientemente explicitados, com recurso a uma motivação lógica e pertinente (cf. Acórdão STJ, de 08-01-2020, proferido no Proc.º n.º 1654.17.4JAPRT.C1.S1 e Ac. STJ, Proc.º n.º14/15.6SULSB.L1.S1, de 19-09-2019).”
XI - Pelo que se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente o Acórdão recorrido, que fixou a pena em 20 (vinte) anos de prisão.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça





I
Relatório


1. AA foi em … .10.2020 condenada pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.s 131 e 132 n.ºs 1 e 2 als. b), d) e i) do Código Penal, na pena de 20 (vinte) anos de prisão.


2. De tal acórdão condenatório interpôs a arguida  recurso, endereçado ao Tribunal da Relação, em 19.11.2020, pondo apenas em crise a medida da pena de prisão aplicada, considerando-a excessiva e desajustada, e pugnando pela aplicação de uma pena mais próxima “dos limites mínimos, de 16 anos de prisão.”. Foram as seguintes as suas Conclusões:

“1. A Recorrente foi submetido a julgamento em Processo Comum, perante Tribunal Colectivo, imputando-se lhe a prática, em autoria material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artºs 131.º e 132.º, nºs 1 e 2, als. b), d) e i) do Código Penal, na pena de 20 (vinte) anos de prisão.

2. Salvo o devido respeito, que é muito, e melhor opinião, a pena aplicada revela se excessiva, nomeadamente por entender o Recorrente, que, o Tribunal recorrido não teve em consideração e em consequência, violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto nos Arts.40º e 71º do C.P.

3. A Recorrente entregou-se voluntariamente à Justiça. 4. - A Recorrente confessou, os factos;

5. - Encontra-se inserida social, familiar e profissionalmente;

6. - Do certificado do registo criminal da arguida nada consta;

7. - Que a arguida sempre teve um comportamento adequado no espaço familiar, quer com o marido, quer com os três filhos, mantendo uma grande proximidade, também, com os restantes familiares (mãe, irmã, cunhado e sobrinha).

8. - Que no plano laboral, a arguida começou a trabalhar com cerca de 31 anos de idade, como operária numa fábrica de …, tendo ingressado posteriormente no “……”, da Santa casa da Misericórdia ……, como …, onde apesar se encontrar de baixa era efectiva.

9. - Que a arguida é tida como trabalhadora, responsável, e com uma relação adequada, com colegas e superiores.

10.- Que a irmã e o cunhado se dispõem a acolhê-la em casa própria, tipo moradia, como tendo boas condições de habitabilidade. Do agregado faz parte a mãe da arguida de 81 anos que se encontra em processo demencial e dependente da família, pelo que a arguida seria um auxílio fundamental.

11.- Que a Recorrente nasceu a …/01/1965! Tendo actualmente 55 (cinquenta e cinco) anos de idade;

12.- Que a vítima tinha cabelos nas mãos, conforme relatório pericial da Autópsia.

13.- Que as necessidades de prevenção especial são diminutas;

14.– Que durante o casamento, nomeadamente com o seu segundo marido apresentava um comportamento adequado no espaço familiar, quer com o marido, quer com os três filhos, mantendo uma grande proximidade, também, com os restantes familiares (mãe, irmã, cunhado e sobrinho).

15.- A relação conjugal perdurou por cerca de treze anos, até à altura em que a arguida se envolveu amorosamente com a vítima.

16.- O relacionamento de AA e BB não foi “bem visto” pelos familiares da arguida (irmã e filhos mais velhos), considerando um deles que a mãe/arguida “largou tudo para viver uma aventura”.

17.- No plano laboral parece-nos importante salientar que a arguida começou a trabalhar com cerca de 31 anos de idade, como operária numa fábrica de …, tendo ingressado posteriormente no “...”, da Santa casa da Misericórdia da ..., como … .

18.- Apesar dos períodos de baixa, registados pela arguida no último ano, são-lhe reconhecidos hábitos de trabalho, quer enquanto operária na fábrica de …, quer como … no lar da Santa Casa de Misericórdia da ..., onde terá trabalhado durante cerca de vinte anos, sendo descrita como uma funcionária responsável, com uma relação adequada, com colegas e superiores.

19.- Segundo a arguida a dinâmica do relacionamento com o companheiro apresentava-se prejudicada pela atitude de inércia do mesmo face ao trabalho e de isenção das responsabilidades socioeconómicas e de cooperação familiar.

20.- Neste contexto a arguida assumia uma atitude de uma certa orientação e controlo do companheiro, procurando providenciar-lhe trabalho e coagindo-o ao cumprimento de horários, ocorrendo neste âmbito alguns conflitos na relação entre o casal, alegando a mesma algumas situações de maus tratos.

21.- AA mantinha forte laços afetivos e de coesão com os familiares, nomeadamente, com a irmã com quem conservava grande afinidade, não apresentando outras relações de convivência ou proximidade com amigos/conhecidos, para além dos familiares e do ex-marido com quem tinha uma relação adequada.

22.- Na sequência da prisão preventiva, AA perdeu o acesso à casa que tinha arrendada e o seu acolhimento só será viável em casa da irmã e do cunhado, que residem em casa própria, tipo moradia, como tendo boas condições de habitabilidade. Do agregado faz parte a mãe da arguida de 81 anos que se encontra em processo demencial e dependente da família.

23.- A família é conhecida na região onde vive, sendo do conhecimento da população próxima a identidade da arguida, a sua acusação, prisão preventiva e actual condenação.

24.- Não obstante a gravidade dos factos o impacto e alarme social dos mesmos na comunidade, bem como uma comunicação social foram diminutos não existindo reações negativas no meio onde vivia.

25.- No E.P. ... recebe visitas regulares dos familiares, nomeadamente filhos irmãos e cunhados bem assim do ex-companheiro que também a tem apoiado.

26.- AA, apresenta-se como uma pessoa simples, com um raciocínio essencialmente pragmático e orientado para as questões práticas da vida diária. Revela uma atitude muito adequada na interação com os serviços e os pares, apresentando um comportamento assertivo, não apresentando qualquer registo do ponto de vista disciplinar.

27.- Apesar de tudo o que sucedeu, a arguida não apresenta perigosidade de maior, sendo que no caso em concreto, conforme consta do Acórdão, arguida agiu sob “forte emoção”.

28.- Dir-se-á, mesmo que a severa punição a que foi condenada, é mais produto do combate à tipologia do crime, que ao subjectivo de perigosidade ou habitualidade perigosa da Recorrente.

29.- Quanto se acaba de dizer, repercute-se significativamente no antigo e actual pensamento da Recorrente.

30.- Não fora o tipo de acção e o impacto actual que os crimes, deste tipo têm na Sociedade, e a Recorrente, ficaria longe de ser merecedora de tal punição tão gravosa.

31.- Sendo que, no caso em concreto o alarme social foi diminuto, quer na comunidade onde a arguida se encontrava inserida, quer em termos de comunicação social.

32.- A Recorrente não possui antecedentes criminais.

33.- Conforme já referido está social, profissional e familiarmente inserida.

34.- Ora, considerando todos os factos supra expostos, entende-se que deve ser aplicada à Recorrente, uma pena de prisão de 16! (dezasseis) anos de prisão, pela prática do crime de homicídio qualificado.

35.- Período de tempo, por se entender tratar-se da pena adequada e suficiente para acautelar as finalidades da prevenção do crime.

36.- O Tribunal recorrido, ao fixar a pena à Arguida, no seu modesto entender, fê-lo! sem ter em atenção a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial, que se verificam no caso concreto, ultrapassando em larga medida a culpa desta no que concerne aos factos praticados.

37.- Face a todo o circunstancialismo supra descrito, deverá a pena em que veio a ser condenada, ser substituída por outra de quantum inferior, nomeadamente, de 16 (dezasseis) anos de prisão, período de tempo, que se nos afigura adequado e necessário às finalidades da punição.

38.- Em suma, deverá o Tribunal condenar a Recorrente em pena que se situe mais perto dos seus limites mínimo, aplicando-lhe uma pena mais harmoniosa, proporcional e justa, face às circunstâncias supra expostas, tendo em consideração o vertido nos Art.s 40.º, n.ºs 1) e) 2, 70.º e 71.º do C.P. e Art.13.º da C.R.P..

39.- Somente agindo dessa forma, realizar-se-ão, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, a protecção dos bens jurídicos ofendidos e a reintegração da agente na sociedade, de acordo com o disposto nos Arts. 40.º, 43.º, 50.º, 70.º e 71.º, todos do C.P.


Termos em que,


Deve o presente Recurso merecer provimento, e em consequência:

i) ser revogado o Acórdão recorrido que condenou a Recorrente na pena de 20 (vinte anos) de prisão, por se afigurar desproporcional às finalidades da punição, sendo-lhe aplicada pena mais justas e mais próxima dos limites mínimos, consequentemente mais harmoniosa, justa e adequada;

Por ser de elementar Justiça!”


3. Remetidos os autos ao Tribunal da Relação, considerou este ser da competência material do Supremo Tribunal de Justiça apreciar o recurso em causa, uma vez que apenas a medida da pena de prisão vinha impugnada, nos termos do art. 432 do CPP.


4.O Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo pronunciou-se douta e diretamente, tendo apresentado as seguintes Conclusões:

“1ª

A arguida foi condenada por ser autora dum crime de homicídio qualificado (arts 131º/132º, 2, b), d) e i), CP), cuja fundamentação impugnou, limitando-se a divergir do “quantum” aplicado (20A), que considera desajustado à sua culpa e aos fins da punição, sugerindo uma redução de 4 A (passando a 16 A).


Não compreendemos, apenas por mero podemos entendê-la, a menção dos arts 43º, 50 e 70º, CP, consignada na suas Conclusões finais (art 39), passando a analisar a pretensa inobservância ou defeituosa aplicação dos arts 40 e 71º, CP, verdadeiro núcleo recursivo.


Os factos (não impugnados, voltamos a destacar) são de extrema crueldade sobre a vítima (FPs 4, 5, 6 e 9), acrescendo-lhe o método (traiçoeiro: FP 5 e 13) a que deitou mão, num alarde de “vingança passional”, que culminou um processo controlador que imprimiu ao companheiro no quotidiano do casal, monitorizando os passos e os contactos sociais ao “milímetro” (fundamentação, a fls 10, “in fine”, e 11).


Após limpar vestígios sanguíneos (no chão e na faca utilizada), e de arrastar o cadáver, ensaiou criar uma versão de legítima defesa, que levou de imediato ao conhecimento policial, onde se apresentou já de roupa trocada, versão e tese que transportou e sustentou na Audiência, e que, mais timidamente, perpassa pelas Motivações de Recurso (onde a vítima surge como o “vilão”), evidenciando ausência de juízo auto-crítico e de sentimento perante o “outro”.


Tal culpa, manifestada nos factos cometidos, com aqueles contornos, a dimensão dessa gravidade, e a forte rejeição social do fenómeno e a sua recorrência, concretamente protagonizados por quem insiste em desculpabilizar-se e nenhuma preocupação com a vítima exibe ou corporiza, levam à necessidade indeclinável de recolocar a validade da Ordem Jurídica no seu intocável lugar, incutindo a indispensável confiança da comunidade na protecção do Direito aos bens jurídicos fundamentais, o maior dos quais a Vida, desprezada de modo tão precoce, abrupto e brutal pela arguida, que continua a persistir numa visão auto-centrada, insensível à dor do “outro”.


A punição deliberada traduz um judicioso equilíbrio de interesses, em que os fins ressocializadores não surgem descurados, assim a arguida logre convencer da sua capacitação futura para agir em meio livre, perante o TEP (art 61º, CP), mas não podendo deixar de publicitar a tutela eficaz do mais digno bem jurídico que a sociedade instituíu, o que torna “inegociável” qualquer alteração na dosimetria recorrida, só assim se cumprindo o disposto nos arts 40 e 71º, CP.”


5. Acompanhando a “amplitude e rigor” da peça elaborada pelo Ministério Público já referida, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta igualmente se pronunciou, no seu estruturado parecer, pela improcedência do recurso.


6. Foi cumprido o disposto no art. 417, n.º 2 do CPP, não tendo havido reação nem da recorrente nem da assistente.


Sem vistos, dada a presente situação pandémica, na vigência de estado de emergência, cumpre apreciar e decidir em conferência.



II

Do Acórdão recorrido



Particularmente relevantes se afigura o seguinte segmento fáctico-decisório do Acórdão recorrido, sem prejuízo, como é óbvio, da atenção que merece a integralidade do mesmo:


“A matéria de facto provada é a seguinte:

1.   A arguida AA e a vítima BB viveram um com o outro desde 2016, como se de marido e mulher se tratassem, na residência comum de ambos sita na Rua ..., Lote … …, ....

2.   Por ter tido acesso à conta de WhatsApp do seu companheiro BB, a arguida apercebeu-se que este último trocou diversas mensagens com uma colega de trabalho, CC, em que ambos confessavam a atracção que sentiam um pelo outro, chegando a falar de um futuro relacionamento e a equacionar irem residir para a zona norte do país.

3.  Além disso, verificou que em mensagem dirigida à referida colega, em …/11/2019 (domingo), BB afirmou que lhe “iria roubar um beijinho” na segunda-feira seguinte.

4.         Dominada pelos ciúmes, no dia …/11/2020, por volta das 8h30, após ter ido levar o filho à escola, a arguida retornou à casa de morada da família, dirigindo-se à cozinha, onde aqueceu óleo de fritura.

5.   De seguida, transportando o óleo no interior de um fervedor em alumínio, e utilizando, para o efeito e para não se queimar, uma luva térmica de cozinha, dirigiu-se ao quarto do casal onde o seu companheiro ainda se encontrava a dormir, deitado na cama do casal, altura em que projectou todo o óleo a ferver sobre a face de BB.

6.     Em consequência directa e necessária, BB sofreu dores intensas e queimaduras de 2º grau na face, pescoço, nos membros superiores e membro inferior esquerdo, ocupando cerca de 13,5 % da superfície corporal.

7.   A arguida agiu deste modo para neutralizar a diferença de força física existente entre ambos e, deste modo, incapacitar o BB de se defender cabalmente de qualquer ataque posterior.

8.   Desesperado, com a pele da face e das mãos a soltar-se, BB levantou-se e, cambaleando, foi percorrendo o corredor em direcção ao hall de entrada.

9.     Já no hall de entrada, a arguida, utilizando para o efeito uma faca de cozinha com 20 centímetros de comprimento de lâmina, de que, entretanto, se munira, desferiu-lhe quatro facadas, duas superficiais, na face e no pescoço do lado direito, e duas profundas: uma primeira que atingiu BB na região abdominopélvica; e a segunda, quando este se encontrava já de joelhos à frente da arguida, no lado esquerdo do pescoço.

10. Deste modo a arguida provocou a BB:

- duas feridas incisas superficiais a nível da face e do pescoço;

- duas escoriações na região trocantérica do membro inferior esquerdo;

- uma ferida cortoperfurante no hipogastro, à esquerda da linha média, com um trajecto, em profundidade, da esquerda para a direita, de superior para inferior e de anterior para posterior, condicionando lacerações das partes moles, do mesentério, do grande epíploon, do músculo psoas-ilíaco direito e da artéria ilíaca interna direita, lesão esta que foi a causa directa e necessária da sua morte.

- uma ferida cortoperfurante na face lateral esquerda do pescoço, com um trajecto, em profundidade, da esquerda para a direita, de superior para inferior e ligeiramente de posterior para anterior, condicionando lacerações do tecido celular subcutâneo, do músculo esternocleidomastoideu esquerdo e na parede posterior do esófago.

11. De seguida, puxando-o pelos pés, a arguida arrastou o cadáver de BB para o interior da casa de banho.

12. Após lavou a faca que utilizara bem como limpou com água e lixívia o sangue de BB que se encontrava no hall de entrada.

13. A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, nos termos descritos em 1 a 9, (ou seja, ciente de que actuava contra o companheiro para com quem tinha especiais deveres de cuidado e respeito; usando óleo a ferver que sabia aumentar o sofrimento da vítima; e iniciando o ataque quando aquele dormia aproveitando-se da reduzida capacidade de reacção) com o propósito de causar a morte a BB, como de facto causou.

14. A arguida tinha perfeito conhecimento que sua conduta era censurável e punida por lei e que a fazia incorrer em responsabilidade criminal.

Provou-se ainda:

15. A assistente DD é mãe de BB, o qual nasceu em …/12/1991, contando, à data da morte, 27 anos de idade.

16. Era saudável, e alegre, optimista e feliz, tendo a expectativa de uma vida ainda longa pela frente.

17. À data do seu óbito trabalhava, como …, na firma ... sita no...

18. Estava bem integrado socialmente, era uma pessoa respeitada e querida onde nasceu e cresceu, onde trabalhou e nos meios em que vivia.

19. Dava-se bem com vizinhos e colegas, era afectuoso com a família (primos, cunhados e irmãos), mantinha uma relação de carinho, afeição e ternura com a mãe.

20. Para além das intensas dores físicas decorrentes das queimaduras e facadas sofridas, antes de falecer BB percebeu que se encontrava indefeso, sem esperança de socorro, sofrendo o medo, a revolta e a angústia de saber que a sua vida ia terminar, como terminou e de que deixava a mãe, irmãos e demais familiares.

21. A morte inesperada de BB, nas circunstâncias em que ocorreu, provocou elevada angústia, ansiedade, incompreensão, revolta e sofrimento na assistente.

22. Na sequência da morte do filho, a assistente viu agravar-se o seu estado psicológico já fragilizado por anterior depressão, sofrendo actualmente de síndrome de ansiedade depressiva grave, necessitando de acompanhamento psiquiátrico e psicológico.

23. A assistente tem insónias, pesadelos, ataques de ansiedade e choro.

24. As despesas do funeral e trasladação do corpo suportadas pela assistente, ascenderam a € 3.000,00.

Mais se provou que:

25. Do certificado do registo criminal da arguida nada consta.

26. O processo de socialização de AA decorreu num ambiente familiar estruturado e harmonioso, caracterizado pela união/coesão entre pais e os avós.

27. Cresceu em ..., onde a mãe se dedicou durante parte significativa da infância da arguida à agricultura, até começar a prestar cuidados a idosos no domicilio, e o pai desempenhava funções de … nas embarcações …... A situação económica era modesta, mas respondia às necessidades básicas da família.

28. A arguida revelava pouco interesse pelas actividades escolares, acabando por abandonar os estudos após a conclusão do ensino primário, com a anuência dos pais, permanecendo em casa a colaborar nas tarefas domésticas, até casar aos 18 anos de idade, assinalando neste contexto o nascimento de dois filhos.

29. A dinâmica do casamento seria estruturada e funcional, ocorrendo a separação aos 31 anos, pelo afastamento e desinteresse progressivo que já manifestava relativamente ao marido. Nessa altura a arguida já manteria o relacionamento afectivo com EE, o seu segundo marido, tendo este casamento durado cerca de 13 anos, e dele tendo resultado um filho, actualmente com cerca de 15 anos de idade.

30. Existia um relacionamento estável e gratificante com o cônjuge, o filho mais novo e os mais velhos, sendo EE caracterizado como bom pai e marido e apresentando a arguida um comportamento adequado no espaço familiar, quer com o marido, quer com os três filhos, mantendo uma grande proximidade, também, com os restantes familiares (mãe, irmã, cunhado e sobrinha).

31. A relação conjugal perdurou até à altura em que a arguida se envolveu amorosamente com a vítima BB, com quem travou conhecimento através das redes sociais, tendo dado conhecimento ao marido da intenção de se separar, quando se deslocou a ... para casa do BB, onde viveu alguns meses, até regressar à ... na companhia deste último.

32. O relacionamento de AA e BB não foi aceite pelos familiares da arguida, designadamente a irmã e os filhos mais velhos, que evitavam convívios com o casal (arguida e vítima), sendo raros os contactos.

33. No plano laboral, a arguida começou a trabalhar com cerca de 31 anos de idade, como operária numa fábrica de …, tendo ingressado posteriormente no “...”, da Santa casa da Misericórdia da ..., como … .

34. À data dos factos, a arguida vivia com BB numa casa arredada por € 270,00 mensais. O filho mais novo residia com a arguida durante a semana e com o pai aos fins-de-semana, pois apesar de ser este último o detentor da guarda do mesmo, a residência da arguida ficava mais próxima da escola.

35. O agregado vivenciava algumas dificuldades económicas, já que BB teve períodos sem ocupação laboral e a arguida, após alguns períodos de baixa, trabalhava algumas horas num lar, o que complementava com outras horas no … de uma familiar. Beneficiavam do apoio da irmã da arguida.

36. A arguida é tida como trabalhadora, responsável, e com uma relação adequada, com colegas e superiores.

37. A arguida mantém fortes laços afectivos e de coesão com os familiares (nomeadamente, com a irmã com quem conserva grande afinidade) e com o ex-marido, com quem tem uma relação adequada, sendo que este, por seu turno, também mantém uma ligação próxima e cordial com a família da arguida, constituindo-se como elemento conciliador e promotor desta proximidade afectiva, estabelecendo também ele uma relação ajustada com os enteados e ex-cunhados.

38. Na sequência da prisão preventiva, a arguida perdeu o acesso à casa que tinha arrendada, dispondo-se a irmã e o cunhado a acolhê-la em casa própria, tipo moradia, como tendo boas condições de habitabilidade. Do agregado faz parte a mãe da arguida de 81 anos que se encontra em processo demencial e dependente da família.

39. A irmã, … num lar de idosos, encontra-se de baixa-médica desde abril de 2019, na sequência do falecimento de um … com … anos de idade. O cunhado está reformado e recebe a título de pensão 525,00 euros. A mãe de AA, também pensionista, recebe por mês cerca de 470,00 euros.

40. No E.P. ..., a arguida recebe visitas regulares dos familiares, nomeadamente filhos irmãos e cunhados bem assim do ex-companheiro que também a tem apoiado. Revela uma atitude adequada na interacção com os serviços e os pares, apresentando um comportamento assertivo, não apresentando qualquer registo do ponto de vista disciplinar.



*


Factos não provados:

a) que a escoriação a nível da região coccígea tivesse sido provocada pela arguida;

b) que foi a última das quatro facadas que tirou a vida a BB;

c) que BB mantinha contactos diários com a mãe;

d) que desde a morte do filho, a assistente faz medicação, designadamente Fluoxetina Sandox 20mg e Imovane Zopiclone 3,75mg.

e) que a assistente não dormiu nem fez refeições nos 2 meses subsequentes à morte do seu filho.



*


Motivação:

A convicção do tribunal assentou no conjunto da prova produzida nos autos, criticamente analisada à luz de regras de experiência e segundo juízos de normalidade.

Assim, no tocante ao ponto 1. dos factos provados, atendeu-se às declarações da arguida, que situou o início do namoro com BB em 2015, afirmando que desde 2016 passaram a viver juntos na .... O relacionamento entre ambos foi também confirmado unanimemente pelas demais testemunhas familiares da arguida e de BB, pelos colegas de trabalho deste último e até pelas vizinhas do casal.

Quanto aos pontos 2. a 5. dos factos provados, respeitantes ao circunstancialismo subjacente aos factos ocorridos no dia …/11/2020, atendeu-se ao conjunto da prova recolhida nos autos e produzida em audiência, por confronto com as declarações da arguida.

Efectivamente, esta última atribuiu a ocorrência dos factos ao culminar de uma discussão em que, tal como noutras ocasiões sucedera, o arguido tinha sido verbalmente agressivo com a própria, insultando-a a si e à sua irmã. Descreveu uma vivência conjugal pautada pela inércia do arguido, que não queria trabalhar, o que colocava o agregado numa situação de dificuldades económicas, sendo a irmã da declarante que muitas vezes os ajudava. Assim, referiu que na data dos factos, depois de ter ido deixar o filho à escola, e estando o arguido ainda deitado, a declarante foi ao quarto dizer-lhe que ia preparar para ele levar para o almoço dele, comida que trouxera no dia anterior de casa da irmã, altura em que, tal como noutras ocasiões, o arguido começou a ofendê-la, dizendo que era sempre restos, só porcaria, que tanto ela como a irmã eram umas porcas, ao que lhe respondeu que não queria discussões, e que por isso lhe ia fritar uns rissóis, razão pela qual ligou a fritadeira. Referiu ainda que apesar disso, o arguido continuou a insultá-la, dizendo-lhe que “só servia para foder”, que era uma “puta”, uma “porca”, o que a levou a perder a cabeça, tendo tirado o óleo da fritadeira com um púcaro, tendo-o transportado até ao quarto com a ajuda de uma luva (por estar quente) e, chegada ao quarto, disse: “porca é a tua mãe”, ao mesmo tempo que lhe atirava o óleo para cima.

Sucede que esta versão é contrariada pelos demais elementos probatórios recolhidos nos autos.

Desde logo, porque as alegadas discussões frequentes entre o casal, ou as agressões verbais e físicas de que a arguida afirma que era vítima, nunca foram relatadas por esta a qualquer elemento da família: DD, mãe da vítima, que afirmou que era confidente da arguida, negou que alguma vez a mesma lhe tivesse relatado agressões por parte do filho, antes se queixando que o mesmo não a procurava; FF, irmã da arguida, referiu que esta apenas se queixava de que era ela que tinha de o sustentar, tendo até sugerido que o mandasse embora, ao que aquela referiu que já lhe tinha dito para fazer as malas, mas ele chorava e não queria ir; a sobrinha GG, os filhos HH e LL, e o Ex-marido NN, também não referiram qualquer queixa por parte da arguida; e MM, filho da arguida, embora referisse que por vezes os ouvia discutir, afirmou desconhecer o tema dessas discussões, porque colocava os fones, referindo apenas que a mãe se queixava de que ele não queria trabalhar e que estava sempre em casa.

Ora, se é certo que resultou dos depoimentos dos familiares da arguida (irmã, sobrinha e dois filhos mais velhos) que o relacionamento com BB não era bem visto por estes, evitando contactos, não é menos certo que se a arguida tinha à-vontade para se queixar da inércia do companheiro em termos laborais, era expectável que num relacionamento de 5 anos, alguma vez tivesse comentado as ofensas de que agora se afirma vítima.

Acresce que também nenhuma das vizinhas do casal (OO e PP) afirmou ter-se apercebido de quaisquer discussões entre o casal, descrevendo BB como um jovem calmo e discreto, e relatando até que, na data dos factos, a única coisa que estranharam, foi ouvir o cão ladrar muito.

Não pode ainda deixar de referir-se que a versão da arguida quanto à existência de uma discussão em momento imediatamente anterior à agressão com óleo na cara, é contrariada pelas regras da experiência, quando confrontados os demais elementos probatórios. É que, de acordo com a versão da arguida, o seu companheiro, embora deitado na cama, estaria acordado desde antes de ter ido levar o filho à escola (pois que a arguida refere que falou com ele antes de sair), e a discussão ainda teria de ter durado o tempo necessário para a arguida ligar a fritadeira, colocar o óleo a aquecer ao ponto de ter de recorrer a uma luva de cozinha para segurar o fervedor em que o transportou. Contudo, o que decorre do auto de diligência de fls. 170 a 182 e do relatório de autópsia de fls. 429 a 431, é que no exame ao cadáver, verificou-se que a bexiga continha ainda “abundante urina”, denotando que a vítima ainda não estaria acordada. Por outro lado, ditam as regras da experiência que se tivesse ocorrido uma discussão nos termos descritos, a circunstância de o arguido ver a arguida entrar no quarto com um fervedor na mão, e a segurá-lo com uma luva de cozinha, de “cabeça perdida” como a arguida afirma que estava, seria suficiente para espoletar como reacção imediata e espontânea, que a vítima se erguesse da cama, o que claramente não sucedeu, atentos os vestígios de óleo e pele humana que foram encontrados nos lençóis e almofada, no âmbito da inspecção judiciária e do exame pericial ao local levados a cabo pela Polícia Judiciária e documentados nas fotografias de fls. 28 a 30, 39, 45, 64 e 66. Tanto estes vestígios, como a própria localização das queimaduras mais extensas (na face, pescoço e membros superiores – cfr. auto de fls. 170 182 e relatório de autópsia de fls. 429 a 431), antes sustentam que BB foi apanhado de surpresa, enquanto estava na cama ainda a dormir.

Afastada que fica, deste modo, a versão da arguida, o que se verifica, por outro lado é que a troca de mensagens entre a vítima e a colega de trabalho CC, mostra-se documentada a fls. 196 e ss., sendo patente que entre o dia 09/11/2019 (sábado), pelas 17:00 horas, e a data dos factos (na manhã de 11/11/2019, segunda-feira), ambos trocaram diversas mensagens através da aplicação WhatsApp, de cariz marcadamente amoroso, confessando a atracção existente entre ambos, aludindo a uma possível futura relação (resolvidos que fossem os relacionamentos que ambos mantinham com outras pessoas) e manifestando o arguido, de forma inequívoca, a vontade de beijar a colega logo que a ocasião se proporcionasse no regresso ao trabalho após o fim-de-semana.

Essa troca de mensagens foi ainda confirmada em audiência pela própria testemunha CC e a existência de uma certa cumplicidade e de conversas de cariz amoroso entre esta e BB foram corroboradas pelas testemunhas QQ e RR, amigas daquela e colegas de ambos.

Resulta ainda do depoimento de CC que esta estava segura de que as mensagens tinham sido vistas por terceiros, na medida em que, na noite de sábado para domingo adormeceu antes de ver as últimas mensagens enviadas por BB, pelas 06:00 horas de domingo respondeu a essas mensagens, e as mensagens de resposta foram assinaladas como vistas muito cedo, vindo depois a constatar – em troca de mensagens mais tarde com BB, que haviam sido apagadas do telemóvel deste. Tudo em consonância com o que se mostra documentado a fls. 219 e 230, verificando-se a fls. 219 que, após ver assinalado o visionamento das mensagens que enviara durante a madrugada, pelas 07:56h, CC manda mensagem a dizer “bom dia”, “acordas cedo”.

Nessa sequência, conforme a testemunha também refere e se mostra documentado a fls. 196, logo às 08:01h. esta recebe no seu telemóvel dois “toques”/chamadas não atendidas, provenientes do telemóvel da arguida com o n.º .... E não restam dúvidas de que é o telemóvel da arguida, não só porque tal é confirmado pela vítima nas mensagens documentadas a fls. 228 e 229, como porque a utilização desse cartão no telemóvel entregue pela própria arguida e apreendido a fls. 160 é confirmada no exame pericial remetido aos autos sob o ofício de fls. 579 e constante do correspondente DVD-R apenso à contra-capa.

Se dúvidas restassem quanto ao conhecimento pela arguida do teor das mensagens trocadas entre ambos, sempre as mesmas sairiam resolvidas em face da mensagem por esta remetida a CC às 20:29 horas do dia …/11/2019 (domingo) e constante de fls. 197, na qual a avisa para ter cuidado com os olhares que troca com BB. Mais uma vez, muito embora a mensagem surgisse para CC como de remetente anónimo, não restam dúvidas de que foi enviada pela arguida, atento o registo de trace-back da mensagem recebida por CC a fls. 322 e o registo de mensagens enviadas do cartão da arguida, junto a fls. 330.

No tocante a esta mensagem, afirma a arguida que foi por si enviada, mas que foi ditada pelo próprio companheiro BB, o qual se queixava que havia “uma menina” que olhava muito para ele no trabalho, e que disse que estava como medo do namorado dela, bem como porque essa pessoa era chefe dele e ele tinha medo de ser despedido.

Contudo, tal versão é mais uma vez desprovida de sentido lógico, não só porque contrariada pelo teor de todas as mensagens que antes e depois desse momento BB trocou com CC através do WhatsApp, como porque à hora a que foi enviada (20:29 horas), o BB estava precisamente a trocar mensagens via WhatsApp com CC, nas quais afirmava estar sozinho em casa (a arguida teria saído para trabalhar), chegando a enviar-lhe uma fotografia (cfr. fls. 227 a 229).

Ou seja, mais uma vez caem por terra as declarações da arguida ao afirmar que desconhecia o envolvimento de BB com qualquer colega, acrescentado que este nunca deu a entender que tivesse qualquer outra pessoa.

Em sentido totalmente oposto, o carácter controlador e ciumento da arguida é patente:

- nos depoimentos dos colegas de BB, que relatam que a arguida ia sempre busca-lo ao trabalho, descrevem a presença da arguida em pelo menos um dia, no horário em que todos iam tomar café a seguir ao almoço, data a partir da qual BB passou a evitar acompanhá-los, contam que este evitava apanhar boleia com colegas para evitar confusões, nem que tivesse que andar quilómetros a pé até casa, chegando este a falar com TT sobre a intenção de sair de casa e o receio da reacção da arguida (que seria muito dependente dele) e com este e com as colegas SS e RR sobre a intenção de alugar um quarto para ir viver.

- na troca de mensagens entre BB e CC (onde a fls. 229 escreve “vês como sou vigiado?”)

- nas comunicações telefónicas registadas no exame pericial ao telemóvel da arguida (…) constante do DVD apenso, das quais resulta que desde há vários meses a arguida mantinha comunicações com o arguido acusando-o de falar com outras mulheres e mantinha comunicações com essas mulheres dizendo-lhes para largarem o seu marido, insultando-as e advertindo-as para o que lhes poderia acontecer – cfr. a título de exemplo, fls. 537 a 540, fls. 604, fls. 659 e 660, 662, 666, 680 a 687, 718 e 719 desse mesmo exame.

De todo o exposto resulta que não só a arguida sofria com ciúmes da vítima, como que estava bastante atenta às conversas que o seu companheiro mantinha com outras mulheres.

O que conduziu o Tribunal à conclusão segura de que os factos ocorridos a …/11/2020 tiveram subjacente não uma discussão momentânea entre o casal, mas os ciúmes incontroláveis da arguida relativamente à vítima.

Tem-se por provado, à luz das considerações supra, que após aceder às mensagens que a vítima foi trocando com CC ao longo do fim-de-semana (dias .... e ... de Novembro), antecipando a concretização da traição no dia …de Novembro, segunda-feira, a arguida acordou, foi levar o filho à escola, e quando regressou a casa colocou o óleo a aquecer e de seguida transportou-o, com a ajuda de uma luva de cozinha, dentro de um fervedor, até ao quarto onde o arguido ainda estava deitado na cama a dormir projectando-o em direcção à face daquele.

Muito embora a arguida afirme que o óleo estava a aquecer para fritar uns rissóis, tendo tido a ideia momentânea de o usar nos termos descritos, tal afirmação também não colhe, pois não só não é de crer que a arguida estivesse a cozinhar àquela hora, quando o  almoço de BB já estava no interior de um tupperware dentro da mochila (conforme depoimentos dos inspectores UU e VV), como resulta das mensagens trocadas com CC no dia anterior que seria este a tratar do seu almoço (cfr. fls. 227), e o depoimento da inspectora UU, conjugado com o relatório de exame pericial de fls. 326 e 327 sustentam que o óleo transportado no fervedor não seria proveniente da fritadeira. Efectivamente, a inspectora UU salienta que o fervedor não apresentava, no exterior, quaisquer resíduos ou vestígios no sentido de que tivesse sido – como afirma a arguida – mergulhado na fritadeira. E mais acrescenta que o óleo existente na fritadeira era já usado, com resíduos de anteriores frituras, enquanto o óleo encontrado na vítima seria novo/limpo. E o relatório pericial do exame comparativo entre o óleo do fervedor e o óleo da fritadeira (fls. 326 e 327), também conclui que estes materiais não apresentam características espectrais semelhantes que permitam concluir tratar-se da mesma substância.

Ou seja, contrariamente ao que a arguida pretendeu fazer crer, não se tratou de um acto impensado, de uma ideia surgida perante as circunstâncias do momento (estar a cozinhar), mas antes de um acto deliberado, levado a cabo com frieza e paciência, colocando a arguida o óleo no fervedor, levando-o ao lume e esperando que o mesmo aquecesse para, com a ajuda de uma luva de cozinha, o transportar até ao quarto onde a vítima estava a ainda a dormir e lho despejar na face.

Relativamente ao descrito em 8. e 9. dos factos provados, a convicção do Tribunal assentou mais uma vez na análise conjugada dos diversos elementos probatórios recolhidos, em termos que infirmaram as declarações da arguida.

Afirmou a arguida que após lhe deitar o óleo para a cara, o companheiro BB “saltou para cima dela” desferindo-lhe socos no ombro, puxando o braço, fazendo-a cair ao chão onde lhe deu pontapés. Tentou fugir (sendo sua intenção sair para a rua) e a meio do corredor, ele puxou-lhe os cabelos. Foi à cozinha, sempre com o companheiro atrás de si, com as mãos nos seus cabelos, continuando a dizer-lhe “tu és uma puta, não prestas para nada, nem para foder tu prestas”, altura em que a declarante viu a faca em cima da bancada, agarrou-a, e espetou-lha na barriga. Nessa altura, ele puxou-a para o corredor e a faca cai. Ele baixa-se, ajoelha-se e apanha a faca, dizendo “eu vou-te matar, puta de merda”. A declarante baixou-se e conseguiu tirar a faca ao companheiro, cortando o dedo, mas ele agarrou-lhe a perna, dizendo-lhe “eu mato-te, eu mato-te, eu vou-te matar”. Quando a declarante lhe conseguiu tirar a faca, espetou-lha no pescoço. Nesse momento ficou em pânico; o cão que estava dentro de casa, não parava de ladrar; queria ir entregar-se, mas tinha de tirar dali o cão. Como a vítima tinha a cabeça junto à porta de entrada, puxou-o por um braço para a casa-de-banho, limpando apenas o sangue que estava na entrada para poder sair, levar o cão para casa da irmã e entregar-se à GNR. Como tinha muito sangue na mão (por se ter cortado), lavou as mãos e altura em que também a faca, por estar no lava-loiças, ficou limpa.

Ora, a versão da arguida no sentido de que foi agredida pelo companheiro, foi também aquela que a arguida apresentou à irmã e sobrinha, bem como ao militar da GNR perante quem se apresentou pelas 10:15 horas desse dia (sendo certo que em sede de primeiro interrogatório judicial a arguida referiu que os factos ocorreram logo que regressou a casa, pelas 08:30/08:40 horas). Tanto FF, como GG afirmam que a arguida apareceu na casa da primeira muito queixosa com dores no braço, afirmando que o companheiro BB lhe tinha dado uma grande tareia, e XX (militar da GNR) também confirmou as queixas de dores no ombro e que a história que lhe fora relatada pela irmã da arguida era a de que a mesma tinha sido agredida pelo companheiro.

É verdade que, conforme decorre do relatório de inspecção judiciária de fls. 17 a 19, das fotografias de fls. 58, do exame de fls. 79 e 80 e da documentação clínica de fls. 86 a 90 e 549 a 552, a arguida apresentava na data dos factos um ferimento na palma da mão direita junto ao indicador, um hematoma no terço médio do braço esquerdo e luxação do ombro esquerdo.

Contudo, e embora a arguida afirme que no dia seguinte estava “toda negra”, nenhum outro elemento probatório sustenta que a arguida apresentasse quaisquer outras lesões que pudessem compatibilizar-se com a agressão a murro e pontapé de que a arguida afirma ter sido vítima.

Por seu turno, o ferimento cortante, pelo local em causa, é ainda compatível (até mais do que com a alegada tentativa de retirar a faca à vítima) com o acto de desferir em outrem golpes com uma faca cuja lâmina tem uma significativa dimensão (20 cm, como decorre de fls. 249, sendo certo que a própria arguida admite ter usado a faca maior das duas apreendidas nos autos), e a luxação no ombro esquerdo e hematoma no mesmo braço, mais facilmente se compatibilizam com um eventual encontrão que a arguida tenha dado num dos móveis ou ombreiras das portas de casa (eventualmente a tentar seguir a vítima, a tentar evitar que esta saísse de casa ou mesmo a arrastar o corpo da vítima para a casa-de-banho), do que com os murros que esta afirma terem-lhe sido desferidos pelo companheiro. É que, resultando patente nos autos (quer pelas fotografias juntas, quer pelo relatório de autópsia) que logo após ser atingido com o óleo, a pele das mãos da vítima começou a soltar-se, não só é difícil equacionar um ataque desferido por este com as mãos como, a ter existido, nenhuma razão haveria para não terem sido encontrados vestígios de pele humana ou óleo na roupa da arguida (e a ausência de vestígios é afirmada pela inspectora UU), quando é certo que aquela afirma peremptoriamente não ter trocado a blusa até ao momento em que se apresentou na GNR.

Será ainda de referir que ofende as regras da lógica e experiência comum que alguém que acaba de ser atingido com óleo a ferver na cara e nas mãos, tenha ainda tido o ensejo e a energia para começar a agredir a arguida ao murro (com as mãos queimadas e a pele a sair) e ao pontapé, nos termos descritos por esta. Antes pelo contrário, a existência de pedaços de pele da vítima na parede do quarto, junto à saída (conforme fotos de fls. 31, 40, 68 e 70), denota que se terá tentado dirigir, cambaleando, ao corredor e à porta da rua, procurando ajuda.

Do mesmo modo, a afirmação da arguida no sentido de que a vítima a perseguira até à cozinha, sendo aí agredida com uma facada na zona abdominal, é infirmada pela circunstância de aí inexistirem vestígios hemáticos (sendo certo que a arguida também refere que apenas limpou a zona do hall), tanto mais que, iniciando-se nesse momento o processo de evisceração que é visível nas fotografias colhidas durante a autópsia (fls. 179), necessariamente teriam de existir vestígios de sangramento.

Daí que a sucessão de factos que encontra sustento probatório nos vestígios recolhidos no interior da residência, é aquela que consta da acusação, ou seja, que desesperado e fragilizado pelas intensas dores provocadas pelas queimaduras sofridas, a vítima tentou dirigir-se à saída para procurar ajuda, sendo interceptada pela arguida que entretanto se munira da faca, com ela desferindo 4 golpes (dois superficiais no lado direito da face e pescoço, e dois mais profundos, respectivamente na zona abdominal e no lado esquerdo do pescoço) no companheiro, já no hall de entrada.

Será ainda de referir que, ainda que dúvidas houvesse acerca do intuito homicida (e não de defesa) da arguida, sempre as mesmas cairiam por terra perante a natureza e sucessão dos golpes sofridos pela vítima.

Na verdade, tendo presente a diferença de alturas da arguida e da vítima (a primeira com cerca de 1,50 mt – fls. 79 – e a segunda com 1,92 mt – fls. 23), só uma posição de total submissão da vítima permitiria à arguida desferir um golpe no pescoço do seu companheiro.

Aliás, é a própria arguida que afirma que a vítima estava de joelhos quando lhe desferiu a última facada no pescoço.

Portanto o que temos é uma vítima que, após sofrer queimaduras de 2.º grau na face, pescoço e membros superiores com o óleo atirado pela arguida, e depois de ser atingido com uma facada profunda na zona abdominal, estando prostrado de joelhos à frente da arguida, é por esta atingida com outra facada profunda no pescoço. O que sustenta um estado tal de fragilidade e de incapacidade de reacção da vítima que afasta, por completo, qualquer cenário de legítima defesa.

Finalmente não pode deixar de referir-se que a atitude da arguida nos momentos posteriores aos factos apenas vem reforçar que a sua actuação não foi determinada por um acto desesperado de defesa e de luta pela vida (caso em que a primeira reacção seria contactar telefonicamente as autoridades solicitando a presença destas e de assistência para si e para a vítima no local), mas antes pela intenção concretizada de tirar a vida ao seu companheiro (o que melhor se compatibiliza com a frieza de ânimo e presença de espírito que teve para puxar o cadáver para a casa de banho, limpar o hall, limpar a faca e trocar de roupa, dirigindo-se primeiro a casa da irmã e só depois à GNR).

Por tudo o que se deixou dito, não teve o Tribunal dúvidas em dar como provados os factos descritos em 7., 13. e 14.

No respeitante aos factos descritos em 6. e 10., atendeu-se ao teor do relatório de autópsia de fls. 429 a 431.

E o descrito nos pontos 11. e 12. dos factos provados resultou das próprias declarações da arguida, em consonância com as fotografias colhidas no âmbito da inspecção judiciária e exame ao local e com os depoimentos dos inspectores UU e VV e do militar da GNR XX quanto ao cenário encontrado à chegada ao local dos factos.

Quanto aos pontos 15. a 24. dos factos provados (respeitantes ao pedido de indemnização civil deduzido pela assistente), tomaram-se em consideração:

- o assento de nascimento de fls. 506, quanto ao descrito em 15.;

- os recibos de vencimento de fls. 480 a 484, quanto ao descrito em 17.; - o atestado médico de fls. 502 a 504, quanto ao referido em 22 e 23;

- o orçamento de fls. 185, quanto ao aludido em 24; e

- quanto aos factos vertidos nos pontos 16. e 18. a 20., bem como para os demais em conjugação com os documentos mencionados, as declarações da assistente, os depoimentos dos colegas de trabalho da vítima (TT, CC, QQ, SS e RR) e os familiares da vítima (os irmãos ZZ e AAA, as tias BBB e CCC, e a vizinha DDD).

Todos, sem excepção, descreveram BB como uma pessoa pacífica, pacata e brincalhona, respeitadora, sociável, alegre, mas reservado quanto à sua vida.

Muito embora resulte até das mensagens trocadas com CC (fls. 198 a 236) que BB vivia sozinho desde tenra idade, numa altura em que a mãe emigrou, a verdade é que a assistente revelou estar a par do dia-a-dia do filho, conhecendo e sendo amiga da arguida e por isso mantendo-se presente na vida do filho. Do mesmo modo, os irmãos ZZ e AAA, bem como as tias, aludiram a encontros familiares que continuavam a existir na aldeia de Pegarinhos, onde BB viveu até se juntar com a arguida e denotaram conhecer e ter alguma intimidade com o casal, do que são exemplo as afirmações:

- de ZZ, no sentido de que o irmão ligava ou mandava mensagem quando se chateava com a arguida e por vezes comentava que queria sair de casa; e que a arguida se queixava de ele falar com outras raparigas;

- de AAA, no sentido de que o irmão desabafava com a mãe, a quem contou que a arguida o vigiava; e

- de CCC, que referiu que a arguida se queixava de que ele não queria trabalhar e que estava no telemóvel até às tantas da madrugada, sendo certo que a depoente adiantou que desde cedo BB cozinhava e tratava de tudo na casa, trabalhando quando havia trabalho (o que nem sempre acontecia na aldeia onde vivia).

Tais depoimentos denotam que, não obstante a distância física, BB continuava a manter com a assistente e com os demais elementos da família, uma relação próxima e afectiva.

Os efeitos da morte de BB no estado emocional da assistente foram também descritos pelos filhos ZZ e AAA (designadamente a necessidade de recurso a apoio psicológico e toma de medicação, o choro fácil, a ansiedade que sente se algum filho não atende logo o telefone, e o medo profundo de sofrer nova perda), pela vizinha DDD (que afirmou que a assistente não é a mesma pessoa, tendo-a visto abatida, cabisbaixa e com falta de alegria) e pela tia CCC (que confirmou ter a assistente ficado muito chocada com a morte do filho).

O descrito em 25. dos factos provados é o que resulta do certificado de registo criminal de fls. 565.

E os factos dados como provados em 26. a 40. decorrem directamente do teor do relatório social de fls. 587 a 590, corroborado pelos depoimentos de EEE e FFF quanto às competências profissionais da arguida, pelos depoimentos destas e de GGG que a descreveram como uma pessoa sociável, disponível e amiga, e pelos depoimentos da irmã FF, da sobrinha GG, dos filhos MM, HH e LL e do ex-marido NN quanto à integração familiar da arguida e aos laços existentes entre todos.

Os factos dados como não provados, assim se consideraram por não ter sido feita prova suficientemente segura e devidamente circunstanciada acerca dos mesmos.

No tocante ao descrito em a), constata-se que a fls. 429 v.º, na descrição da zona do abdómen, se faz referência a “Escoriação não recente, coberta por crosta acastanhada…”, o que suscita dúvidas quanto a ter sido produzida na data dos factos.

O descrito na alínea b), embora alegado no pedido de indemnização civil não é corroborado pela prova produzida, na medida em que tudo leva a crer que primeiro foi desferida a facada no abdómen, e só quando fragilizado por esta e prostrado de joelhos à frente da arguida é que esta terá desferido a facada no pescoço, sendo certo que resulta das conclusões do relatório de autópsia (ponto 3) a fls. 431) que foi a lesão traumática abdominal que constituiu causa adequada da morte.

E quanto ao descrito nas alíneas c) a e), nem as declarações da assistente nem os depoimentos das testemunhas por si arroladas permitiram formar uma convicção segura nem quanto ao facto de os contactos serem diários (embora descritos como frequentes), nem quanto ao tipo de medicação feita pela assistente ou a saber se só passou a ser tomada após a morte do filho (sendo certo que o atestado médico de fls. 502 a 504 alude a uma depressão pré-existente), nem quanto ao facto de assistente não dormir nem tomar refeições durante dois meses.

*** (…)”



III

Fundamentação

A

Questões Processuais Prévias



1. Não se vislumbram quaisquer motivos que impeçam o conhecimento do recurso, em tempo bem remetido para este Supremo Tribunal de Justiça pelo Tribunal da Relação, conforme o disposto no art. 432, n.º 1, al. c), do CPP. Nada obstando, pois, ao conhecimento do recurso por parte deste STJ, e tendo a arguida pago a multa por interposição do recurso no 3.º dia útil subsequente ao termo do prazo legal, deverá o recurso ser apreciado, em sede de conferência, como já referido.

2. É consensual que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos).

3. O thema decidendum no presente recurso é tão somente a questão, de direito, de reexame da decisão determinativa da pena.



B

Dos Factos ao Direito



1. A arguida foi condenada por um único crime (homicídio qualificado, p. e p. pelos art.s 131 e 132,  n.ºs 1 e 2 als. b), d) e i) do Código Penal), numa pena significativa, embora não a mais alta legalmente possível (25 anos) para a moldura penal do crime cometido (e em geral) – que é, efetivamente, de homicídio qualificado e não qualquer outro crime, designadamente homicídio simples, por exemplo.

2. Dos autos resulta não apenas a altíssima gravidade dos factos, reveladora de um grande desprezo pela vida humana, e mesmo pela dor humana (dada a forma cruel por que foi perpetrado o homicídio na pessoa do seu companheiro), como ainda uma frieza de ânimo capaz de inverter ficticiamente a situação, encenando uma factualidade alternativa, em que perseverou, na qual seria a vítima. Assim se compreendendo, como bem assinala, de forma eloquente, o Digno Magistrado do Ministério Público, a atitude de se ter apresentado em posto da GNR. Com efeito,

“Ou seja, actou de forma superior e exuberantemente censurável (agravativas b),d) e i), do art 132º, 2, CP), o que não é superável por qualquer das alegadas circunstâncias, sendo altura de sublinhar que a comparência/deslocação imediata no posto da GNR enquadrou-se numa encenação de que reagira a agressões da vítima, no exercício de legítima defesa inadiável, procurando “branquear” o crime acabado de cometer, não hesitando imputar ao companheiro a agressividade e ascendente que, afinal, caracterizaram o seu próprio comportamento, versão que, prestada nos imediatos momentos que se seguiram à conduta homicida, aquando da sua presença no OPC, fez transitar até ao Julgamento, revelador de uma arrepiante ausência de arrependimento e de capacidade auto-crítica, absolutamente incapaz de interiorizar o desvalor da acção (cfr “Fundamentação da matéria de facto”, entre fls 7 a 15 do Acórdão), encaixando, na perfeição, na frieza e calculismo com que agiu ao ferver o óleo, sabendo que iria alvejar pessoa durante o sono, na multiplicidade de golpes corto-perfurantes desferidos e zonas corporais eleitas, no arrastamento do cadáver até ao WC, na limpeza que fez dos rastos hemorrágicosno chão e da faca usada, além do cuidado que teve em mudar de vestuário antes de sair a caminho do posto policial, exibindo uma personalidade muito auto-centrada e nada empática com o “outro”.”.


3. A dogmática do Direito Penal hodierno, como é bem sabido, alicerça-se nalguns fundamentos, pressupostos, ou paradigmas de que o Bem jurídico será, certamente, o mais relevante na aplicação prática (outros aqui não terão pertinência imediata - cf. P. Ferreira da Cunha, A Constituição do Crime, Coimbra, Coimbra editora, 1988, máx. p. 41 ss. e Idem, Ultima Ratio. Uma (Re)Visão Filosófico-Constitucional da Ciência do Direito Penal, editado no volume Direito Penal, Fundamentos Dogmáticos e Político-Criminais. Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 141-183 ou Crimes & Penas, Coimbra, Almedina, 2020, p. 35 ss.).

A proteção de um bem jurídico (implicitamente jurídico-criminal, pois há-os de vária índole, e nem todos com a dignidade e gravidade dos penais) é importante fator de legitimação do ius puniendi na nossa ordem jurídico-constitucional, como se encontra desde logo expresso no art. 18, n.º 3, da CRP, que consagra o respetivo princípio, o qual é recebido no art. 40 do Código Penal (Cf. Acórdão deste STJ de 01/04/2020, proferido no Proc.º n.º 89/18.6JELSB.L1.S1). Aquele artigo constitucional é, aliás, chave para a substancial constitucionalidade do Direito Penal.

No caso concreto, não é complexo, antes de meridiana evidência, verificar-se que o bem violado é, antes de mais, a vida humana, certamente o mais alto de todos os bens, ao ponto até de alguns pretenderem alçá-lo à categoria (de outra índole, axiológica), de verdadeiro valor. Além de que os contornos específicos de crueldade e os deveres concretos de relacionamento com a concreta vítima evidenciam mais violações, ainda que subsidiárias, de outros bens jurídicos.

Na exemplar síntese da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, trata-se de: “aproveitando a circunstância de mesmo estar ainda a dormir, atirando-lhe previamente com óleo a ferver para o rosto e corpo, de forma a inibir a sua capacidade de defesa e vindo as desferir quatro facadas na vítima, causando a morte da mesma.”.

Mais especificamente, depois dos preliminares de tortura / imobilização com óleo a ferver, recorde-se o Acórdão revidendo:

“Resulta, pois, provado, que a arguida, munindo-se de faca com uma lâmina de 20 cm, desferiu com a mesma 4 golpes em BB, dois dos quais em zonas do corpo que alojam órgãos vitais (abdómen e pescoço), assim causando àquela lesão (ferida cortoperfurante no hipogastro, à esquerda da linha média, condicionando lacerações das partes moles, do mesentério, do grande epíploon, do músculo psoas-ilíaco direito e da artéria ilíaca interna direita) que foi a causa directa e necessária da sua morte. Não restam, pois, dúvidas em estabelecer um nexo causal entre o comportamento da arguida e a produção do resultado morte, assim se mostrando preenchido o elemento objectivo do crime de homicídio.”


4. Atendo-nos, porém, ao essencial, e seguindo a máxima de Loysel (Qui mieux abreuve, mieux preuve), as razões aduzidas pela recorrente (para cujas conclusões se remete) consistem essencialmente em alegar que é primária, inserida familiar, social e laboralmente (neste caso, a afirmação deve, pelo menos, matizar-se), e no meio prisional agora, teria agido sob forte emoção, o ato não terá tido significativas repercussões no meio (o que, contudo, deveria ser mais explicitado), etc.

Perante uma ação com os contornos que já foram traçados, tais elementos, já ponderados na sentença da 1.ª Instância, não poderão avultar para uma redução de pena – para mais de 4 (quatro) anos, como pretende a arguida.

Pelo contrário, estamos perante um crime no âmbito de “criminalidade especialmente violenta” (art 1.º, n.º l, CPP). Além da necessária atenção à culpa (com dolo intenso), não se pode esquecer que prevalecem ainda particulares preocupações de política criminal (L 96/17, 23.08, arts 2.º, e) e f), e 3.º, b). Cumpre sublinhar que o alarme social de um crime deste tipo, mesmo a admitir-se um não muito grande impacto social (e na comunicação social, como invoca) no momento da sua prática e primeiro julgamento, não morre nessa ocasião. Sendo logicamente de prever que se pudesse vir a agigantar acaso viesse a ocorrer uma decisão desculpatória ou laxista. O que releva, nesta dimensão da questão, é não só o alarme atual, como o alarme e comoção sociais normais neste tipo de casos, como uma potencialidade de crise das próprias instituições da banda social (ou “sociológica”) que precisamente se pretende prevenir, e não constatar a posteriori, quando essa dimensão de anomia social já foi atingida.

 Citando de novo o Ministério Público, há uma “clara demonstração da impreparação actual que tem para gerir sentimentos exacerbados de controlo e ciúme sobre terceiros, reclamando apertadas necessidades de prevenção especial, também, pese a primariedade.”

Não se pode conceber, certamente, como uma pessoa pacata e cumpridora, sem perigo de reincidência quem evidenciou uma incapacidade de autocontrole tão acentuada.

5. Não foi posto validamente em causa nenhum dos contornos específicos da incriminação. Apenas o quantum, com os argumentos que aliás se citaram supra. Não será por isso necessário insistir nos argumentos legais, doutrinais e jurisprudenciais que levaram à mesma, e que se acolhem.

Longe de se laborar numa narrativa condenatória, incriminante, o Acórdão recorrido não deixa de ponderar alguns aspetos que ignora, e que não pesaram, assim, negativamente. Por exemplo:

“os factos que resultaram provados nos autos não se mostram suficientes para a ter por preenchida, na medida em que não foi possível identificar o momento da efectiva decisão de matar (desconhecendo-se se persistiu ou não por período equiparável a 24 horas), inexistem factos que denotem uma reflexão ponderada e séria sobre os meios a empregar e (não obstante os actos subsequentemente levados a cabo pela arguida), nada permite concluir que, no momento em que desferiu os ataques que viriam a conduzir à morte do ofendido, a arguida assumiu uma postura reveladora de total frieza de actuação.”

6. Não se vislumbram quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, devendo, como foi feito, haver uma condenação da arguida pela prática de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.os 131 e 132, nºs 1 e 2 als. b), d) e i) do CP.

7. O crime de homicídio qualificado é punível com pena de prisão de 12 a 25 anos. A pena aplicada foi de 20 anos de prisão. Ou seja, encontra-se no máximo das penas “médias” nesta moldura penal (que seriam entre 17 a 20 anos), o que, por si só, e não tendo em consideração os contornos particularmente gravosos da situação, revela não severidade, mas equilíbrio, o qual, atenta a situação concreta, poderá mesmo ser tido por alguma benevolência.

Porquanto, como se sabe, pena a aplicar deve ser fixada por forma a servir as finalidades de proteção dos bens jurídicos (no caso a Vida, de altíssimo valor) e reintegração do agente na sociedade (que não parece totalmente pacífica, dados os traços de personalidade evidenciados), tendo sempre como limite, a medida da culpa (que é também intensa) – art. 40, nºs 1 e 2 do CP.

Para determinação da medida concreta da pena são critérios os do art. 71 do CP. E assim, tal como o Acórdão recorrido apontou (e integramos brevemente, pari passu, dada a agudeza do texto):

-“As exigências de prevenção geral que são muito elevadas já no respeitante ao crime de homicídio (que tutela o bem jurídico supremo que é a vida humana), e mais ainda quando consideradas as circunstâncias qualificativas, designadamente o cometimento do crime em contexto conjugal (com o peso que esse tipo de violência assume na realidade social portuguesa) e o recurso a meio especialmente cruel e insidioso (com o consequente alarme social que lhe é inerente)”.

- “As exigências de prevenção especial, relevando neste âmbito, a favor da arguida, a sua integração social e ausência de antecedentes criminais”; contudo, perguntando-nos se o seu ciúme incontido não pode ser um traço de caráter preocupante.

- “O grau de ilicitude, o modo de execução e gravidade das consequências do facto, relevando a este propósito a gravidade das lesões causadas ao ofendido em momento anterior e contemporâneo com o da produção do resultado morte, e a circunstância de a conduta da arguida preencher várias circunstâncias qualificativas, com a escolha de meio que aumentou significativamente o sofrimento da vítima;

- A intensidade do dolo, que é muito elevada, revelando a arguida uma fortíssima energia criminosa ao vencer todas as contra-motivações éticas que são de equacionar ao longo da concretização do ataque”; essa “energia criminosa”, a par de cauterização ou laxismo ético (não nos cumpre qualificar em concreto o estado no caso: apenas ver os factos), assim como o sangue-frio da narrativa alternativa que desenvolveu, podem potenciar apreensão sobre o seu comportamento futuro; certamente não em situações plácidas, mas frente a contrariedades – não necessariamente apenas passionais, mais de obstáculos a uma tendência de controlo, que foi referida nos autos.

- “Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, relevando, por um lado, a forte emoção inerente aos sentimentos de ciúme que presidiram à decisão de matar, mas por outro a frieza e persistência nessa intenção ao longo de todo o processo que conduziu à morte da vítima, desde o momento em que aqueceu o óleo até ao desferimento de 4 golpes de faca no corpo daquela;

- As condições pessoais e económicas do agente, relevando a este propósito a circunstância de a arguida beneficiar do apoio dos seus familiares (irmã, sobrinha, filhos e ex-marido), mas também a instabilidade em termos de integração laboral e a sua precária situação económica”.

- “A conduta posterior aos factos, sendo de atender neste âmbito à circunstância de, tendo optado por prestar declarações, delas não ser possível extrair uma capacidade séria de juízo crítico sobre os seus comportamentos e sobre a gravidade concreta dos factos. Tentou a arguida transmitir uma imagem desfavorável a vítima, e situou os acontecimentos num contexto de defesa relativamente a agressões verbais por parte daquela, numa versão que não encontrou qualquer sustento probatório, assim procurando justificar a sua actuação e desvalorizar a gravidade do seu comportamento”.

8. Obviamente sem qualquer prejuízo do direito constitucional ao recurso, é pacífico que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na concretização da medida da pena, ou melhor, no controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, e de forma alguma ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cf. Acs. de 09-11-2000, Proc. n.º 2693/00 - 5.ª; de 23-11-2000, Proc. n.º 2766/00 - 5.ª; de 30-11-2000, Proc. n.º 2808/00 - 5.ª; de 28-06-2001, Procs. n.ºs 1674/01 - 5.ª, 1169/01 - 5.ª e 1552/01 - 5.ª; de 30-08-2001, Proc. n.º 2806/01 - 5.ª; de 15-11-2001, Proc. n.º 2622/01 - 5.ª; de 06-12-2001, Proc. n.º 3340/01 - 5.ª; de 17-01-2002, Proc. n.º 2132/01 - 5.ª; de 09-05-2002, Proc. n.º 628/02 - 5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, Proc. n.º 585/02 - 5.ª; de 23-05-2002, Proc. n.º 1205/02 - 5.ª; de 26-09-2002, Proc. n.º 2360/02 - 5.ª; de 14-11-2002, Proc. n.º 3316/02 - 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, Proc. n.º 3399/03 - 5.ª; de 04-03-2004, Proc. n.º 456/04 - 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 220; de 11-11-2004, Proc. n.º 3182/04 - 5.ª; de 23-06-2005, Proc. n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, Proc. n.º 2521/05 - 5.ª; de 03-11-2005, Proc. n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, Proc. n.º 2555/06 - 3.ª; de 14-02-2007, Proc. n.º 249/07 - 3.ª; de 08-03-2007, Proc. n.º 4590/06 - 5.ª; de 12-04-2007, Proc. n.º 1228/07 - 5.ª; de 19-04-2007, Proc. n.º 445/07 - 5.ª; de 10-05-2007, Proc. n.º 1500/07 - 5.ª; de 14-06-2007, Proc. n.º 1580/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, Proc. n.º 1775/07 - 3.ª; de 05-07-2007, Proc. n.º 1766/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, Proc. n.º 3321/07 - 3.ª; de 10-01-2008, Proc. n.º 907/07 - 5.ª; de 16-01-2008, Proc. n.º 4571/07 - 3.ª; de 20-02-2008, Procs. n.ºs 4639/07 - 3.ª e 4832/07 - 3.ª; de 05-03-2008, Proc. n.º 437/08 - 3.ª; de 02-04-2008, Proc. n.º 4730/07 - 3.ª; de 03-04-2008, Proc. n.º 3228/07 - 5.ª; de 09-04-2008, Proc. n.º 1491/07 - 5.ª e Proc. n.º 999/08 - 3.ª; de 17-04-2008, Procs. n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, Proc. n.º 4723/07 - 3.ª; de 21-05-2008, Procs. n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, Proc. n.º 1001/08 - 5.ª; de 03-09-2008, no Proc. n.º 3982/07 - 3.ª; de 10-09-2008, Proc. n.º 2506/08 - 3.ª; de 08-10-2008, nos Procs. n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, Proc. n.º 1964/08 - 3.ª; de 29-10-2008, Proc. n.º 1309/08 - 3.ª; de 21-01-2009, Proc. n.º 2387/08 - 3.ª; de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª; de 18-06-2009, Proc. n.º 8523/06.1TDLSB - 3.ª; de 01-10-2009, Proc. n.º 185/06.2SULSB.L1.S1 - 3.ª; de 25-11-2009, Proc. n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1 - 3.ª; de 03-12-2009, Proc. n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1 - 3.ª; e de 28-04-2010, Proc. n.º 126/07.0PCPRT.S1” (cf. Acórdão deste STJ de 2010-09-23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1).

Assim, como é sabido, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente enfatizado que, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido.

Como assinala o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, “(2) a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite, máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (Direito Penal, vol. I, p. 84 e Direito Penal, vol. II, pp. 227-228” (sendo importante o diálogo que com estas ideias encetam os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, 7.ª ed., Lx., Rei dos Livros, p. 192).

No caso do concreto crime em apreço, o homicídio, perpetrado como o foi e com as motivações que o determinaram, não parecem ser controversas as elevadas necessidades de prevenção geral, dada a sensibilidade social generalizada ao ataque ao bem jurídico violado, cuja violação é geradora de escândalo, alarme e intranquilidade – como vimos e nos termos que se aduziram. E muito profundas. Porque as pessoas, ao tomarem conhecimento deste tipo de eventos, legitimamente temem pelas suas vidas, ou um bellum omnium contra omnes.

Atente-se neste passo do Acórdão de 2010-09-2, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1:

 “Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. Cf. ainda os Acórdãos deste STJ de 08-10-97, Proc. n.º 976/97, e de 17-12-97, Proc. n.º 1186/97, (in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132, e n.º s 15/16, novembro/dezembro 1997, pág. 214).

Importará ainda salientar que a jurisprudência deste Supremo Tribunal sublinha que a sua intervenção no controle da proporcionalidade com que há que pesar os crimes e as penas não é ilimitada e que o quantum da pena se deve manter quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (v.g. Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019).

Ora é precisamente o que ocorre no caso, em que a malha hermenêutica utilizada se revelou consistente com os seus pressupostos, que foram proficientemente explicitados, com recurso a uma motivação lógica e pertinente.

Como consta, nomeadamente, do Sumário do Acórdão de 08/01/2020, proferido no Proc.º n.º 1654.17.4JAPRT.C1.S1, “é  jurisprudência deste Supremo Tribunal que o quantum da pena se deve manter quando “o procedimento adoptado na determinação da medida das penas se mostre correctamente efectuado, se tenham registado os factores a ter em conta para a respectiva quantificação, se tenha feito a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos” (Ac. STJ, Proc.º n.º14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019).” É o que aqui ocorre, como vimos, nomeadamente, do acompanhar pari passu da fundamentação final do Acórdão revidendo.



IV

Dispositivo



 Termos em que, decidindo em conferência, a 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça acorda em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente o Acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

Taxa de Justiça:6 UCs


Supremo Tribunal de Justiça, 21 de abril de 2021

Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida.

Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)