TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
MEDIDA DA PENA
BEM JURÍDICO
SAÚDE PÚBLICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PENA DE PRISÃO
Sumário


I - O crime em apreço é o de tráfico de estupefacientes, que viola o bem jurídico saúde, entre eventualmente outros (cf. Ac. STJ de 10/10/2018, Proc.º n.º 5/16.0GAAMT.S1; Ac. 5/16.0GAAMT.S1), como “a estabilidade económica, financeira, cultural e política da sociedade e a segurança e soberania do Estado” (cf. Ac. 89/18.6JELSB.L1.S1), dependendo a verificação da sua mais concreta e mais vultuosa lesão dos contornos específicos do caso.
II - É ainda um crime de trato sucessivo, de execução permanente, em que a incriminação se completa nos primeiros atos de execução, equiparando-se assim a tentativa à consumação (Ac. STJ de 3/09/2015). Ou seja, é um crime de perigo comum abstrato, preenchendo-se o tipo com a mera detenção de produto estupefaciente. No caso, a conduta do agente constitui, efetivamente, um perigo potencial para a saúde pública de um muito alargado número de pessoas. A simples atividade criminosa preparatória e de nível internacional já atenta contra a paz jurídica e o respeito pelo Direito e não pode deixar de configurar lesão de bens jurídicos independentemente do facto de uma disseminação ulterior se efetuar ou não (cf. Ac. 89/18.6JELSB.L1.S1).
III - A moldura penal abstrata que corresponde a este tipo de crime situa-se entre os 4 anos a 12 anos de prisão, de acordo com o art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22-01, com referência à tabela I.B, anexa ao mesmo diploma. Sendo que o Tribunal a quo condenou o arguido em 5 anos e 6 meses de prisão, ou seja, abaixo do valor médio, que seriam 8 anos de prisão, e um pouco acima do valor mínimo: pouco acima da barreira dos 5 anos, fundamental para a questão da suspensão ou não da pena. Contudo, aqueles valores da pena (entre 4 e 12 anos) são um espectro alargado para aplicação a uma infinidade de situações, desde a mais leve à mais severa.
IV - A determinação da pena deve ser feita à luz do art. 40.º e do art. 71.º, n.º 1, do CP e nomeadamente dos fatores de medida da pena aí consagrados, numa “tópica” que inclui, precisamente, o bem jurídico, a reintegração social, a culpa e a sua medida e as exigências de prevenção, pela forma articulada como o CP as imbrica. Sendo necessário manter coerência e equidade entre o sentenciado por este STJ, contribuindo-se para uma aplicação uniforme do direito (art. 8.º, n.º 3, do CC). Nomeadamente, importa a consideração do volume de drogas (assim como a motivação do ganho), que são explicitamente considerados em algumas “Guidelines” de agravação e atenuação no estrangeiro. As penas, como salienta o art. 49.º, n.º 3, da CDFUE, “não devem ser desproporcionadas em relação à infração”. E tal proporcionalidade deve atender a todos os contornos da infração. A quantia apreendida foram ao todo 4. 495 g. de cocaína.
V - Havendo factualidade criminosa provada e confessa, existindo culpa, dolo direto, atendendo à necessidade de prevenção geral e especial e dada a potenciação de alarme social proveniente de situações de tráfico internacional e estando em causa pelo menos o magno bem da saúde pública, não restam dúvidas de que a ordem jurídica precisa de dar uma resposta que não desça a um limiar de baixar das guardas face ao crime, dissolvendo a sua força normativa.
VI - Porém, apesar da gravidade dos factos, da culpa e das exigências de prevenção geral, crê-se que a ausência de condenações no seu CRC, a confissão dos factos e o arrependimento demonstrado em audiência de julgamento; a boa inserção familiar e o apoio dos pais, a escolaridade e experiência profissional indiciam razoavelmente (e outros elementos não indiciam o contrário) a possibilidade de uma regeneração (de uma única, embora grave, infração). Recorde-se o relatório social. Crê-se, assim, que a pena de 5 anos de prisão, será já adequada à finalidade da pena, no caso vertente.
VII - Sendo a pena de 5 anos de prisão efetiva proporcional, não coloca em risco nem o critério de barreira da culpa, nem a paz social e a segurança jurídica. Não se poderá, porém, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não se encontrando consequentemente preenchidos os requisitos para a suspensão da execução da pena. A intensidade da culpa e a quantidade e qualidade da droga apreendida e ainda a existente na residência do arguido reclamam punição adequada (efetiva), atentas as exigências de prevenção especial. Acorda-se, pois, em prover parcialmente o recurso relativamente ao quantum da pena, decidindo atribuir ao Recorrente uma pena de 5 (cinco) anos de prisão efetiva.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça





I

Relatório



1. AA, identificado nos autos, foi, pelo Juízo Central Criminal …, do Tribunal Judicial da Comarca …, em 21 de setembro de 2020, condenado:

- pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, pp. pelo art. 21, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I.B, anexa ao mesmo diploma na pena de 5 anos e 6 meses de prisão efetiva.

- na perda a favor do Estado das malas apreendidas e da droga apreendida no processo.


2. Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por decisão sumária de 12/12/2020, entendeu ser competente para conhecer o recurso este Supremo Tribunal de Justiça, com base no disposto no art. 432, n.º 1, al. c), do CPP, porquanto o Recorrente pretende apenas o reexame da decisão de direito, no que respeita à escolha e determinação da pena.


3. Com efeito, nas Conclusões da sua Motivação de Recurso, o Recorrente considera:

“A) O arguido foi condenado, por acórdão proferido a 21 de Setembro de 2020, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão efectiva.

B) O arguido discorda do quantum da pena e o facto de ser efectiva; daí o presente recurso.

C) O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos que importar verter:

1. Em … .11.2019, o arguido AA embarcou no voo ..., com partida de ... e destino a ... onde, no mesmo dia, embarcou no voo ..., com destino a …, transportando duas malas, tipo trolley, de cor azul, uma de marca “…” e outra de marca “…” que ocultavam, nas respectivas estruturas, em fundos falsos, um total de três embalagens contendo cocaína.

2. O arguido chegou ao aeroporto ..., em …, no dia … .11.2019.

3. Nestas circunstâncias o arguido recolheu a mala tipo Trolley de marca “...” que apresentava a etiqueta de bagagem sob o registo ..., em nome de AA.

4. Porém a mala tipo trolley de marca “...”, com etiqueta sob o registo ... ..., foi extraviada, não estando neste momento disponível para recolha no tapete de bagagem.

5. Assim, ainda no dia … .11.2019, o arguido AA deslocou-se ao balcão “Lost and Found” ... do aeroporto ..., comunicando o extravio da sua bagagem de porão, iniciando assim um incidente, registado sob o nº ..., e solicitando que fosse contactado quando a bagagem viesse a ser localizada, para o que facultou os números de telemóvel … e ….

6. Mais uma vez, no dia … .11.2019, AA contactou aquele serviço da ... do Aeroporto de ..., solicitando que a mala de bagagem de porão extraviada lhe fosse entregue na loja … do Centro Comercial …, sito na Avenida ..., nºs … e …, na ..., facultando par ao contacto o número de telemóvel ….

7. Entretanto, a mala de bagagem supramencionada identificada com o registo ..., foi localizada pela ..., sendo-lhe aposta a etiqueta “Rush”, características das bagagens extraviadas ou desacompanhadas, após o que, cumprindo os procedimentos regulares, foi apresentada à Autoridade Tributária e Aduaneira para exame radiológico.

8. A mala foi encaminhada para transporte pela empresa “…” responsável pelas entregas da “...” em situações de extravio de bagagem.

9. Deste modo, no dia … .11.2019, conforme solicitado pelo arguido, a mala foi-lhe entregue à entrada do Centro Comercial ..., na ....

10. No interior da mala, sob dois fundos falsos, um na parte superior e outro na parte inferior, encontravam-se duas embalagens envoltas em plástico de cor preta, contendo cocaína com o peso líquido de 3.004,500 gramas.

11. Na mesma data o arguido AA guardava na sua residência, sita na R. das ..., nº   ..., ..., Quinta ..., em ..., no quarto onde pernoitava, a já mencionada mala de viagem de marca “...”, com etiqueta ......, em nome de AA fechada a cadeado que ocultava na estrutura, sob fundo falso uma embalagem envolta em plástico contendo 1.490,500 gramas;

12. O arguido tinha ainda em seu poder designadamente um telemóvel marca …, modelo …, dual SIM, com cartões SIM das operadoras móveis … e …, um telemóvel de marca …, modelo …, com cartão SIM da operadora ….

13. O arguido tinha sido abordado por indivíduos cuja identidade não foi esclarecida que lhe propuseram que transportasse por via aérea, do ... para Portugal, as malas de cocaína nas circunstâncias acima referidas.

14. Por esse transporte, o arguido iria receber o valor de dez mil euros.

15. O arguido conhecia a natureza e características estupefacientes do produto que transportava consigo, bem como do produto que cultivava na sua residência, ciente de que incorria em responsabilidade criminal.

16. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

17. Na sala de arrumos da residência do arguido foram encontrados quatro vasos com sementes de canábis geminadas apresentando resíduos desse produto.

18. O arguido não tem condenações averbadas no certificado de registo criminal.

19. Sob o percurso de vida do arguido e as suas actuais condições de vida resulta do relatório social que:

D) O processo de socialização do arguido decorreu em ambiente familiar estruturado, com dinâmica funcional e situação económica equilibrada (os pais eram sócio-gerentes de uma empresa na área da metalurgia);

E) Concluiu o 12º ano de escolaridade tendo conciliado os estudos com o exercício de uma actividade laboral, na empresa dos pais, primeiro como aprendiz de serralharia e depois na área administrativa e de gestão;

F) No ... explorou, juntamente com a mãe, uma loja de artigos de caça, pesca e campismo e depois na loja encerrar trabalhos como técnico de instalação de “internet”;

G) Em 2017 emigrou com os pais para a ... à procura de melhores condições de vida;

H) Nesse país, concluiu cursos de línguas estrangeiras, designadamente para conseguir adquirir a dupla nacionalidade luxemburguesa – o pai do arguido tem ascendência luxemburguesa – o que veio a conseguir;

I) À data dos factos habitava um apartamento com outros concidadãos brasileiros, alguns deles seus assalariados numa empresa, em nome individual, que lhe pertence e que intervém na área de serviços de transportes, mudanças e montagens;

J) Dispõe do apoio dos pais, que vieram para Portugal pouco tempo depois da detenção do filho passando, desde então a residir no ... e a assumir a gestão da empresa do arguido;

K) Mostrou-se arrependido e revela percepção da gravidade e consequências da sua conduta;

L) O presente processo causou ao arguido grande instabilidade emocional.

M) O Tribunal teve em conta a prova produzida em audiência, nomeadamente as declarações do arguido, corroboradas com a restante prova.

N) È nosso entendimento que o arguido praticou o crime que vem acusado. Porém o mesmo fê-lo como mero correio de droga.

O) O Tribunal deveria ter atendido ao facto do arguido ter confessado os factos e explicar tudo como aconteceu, sendo a sua versão corroborada pelas outras provas e mostrar arrependimento. O arguido confessou sem reservas.

P) O arguido colaborou e quanto ao “extravio” da mala, o mesmo deu sempre a cara e foi à procura todos os dias até aparecer.

Q) O arguido não abriu a outra mala que tinha em casa mesmo sabendo que tinha produto estupefaciente.

R) Os “correios de droga” são normalmente pessoas em estado de carência económica (por isso dispostos a correr riscos em troca de uma compensação remuneratória significativa) sem referências policiais ou antecedentes criminais), para não levantarem suspeitas.

S) Estes factos têm que ser analisados caso a caso e há que atender que o arguido confessou integral e sem reservas, as suas condições económicas à data dos factos, ao facto do arguido nada esconder e enfrentar a situação insólita de extravio de uma mala (que transportava produto estupefaciente) e andar todos os dias a procurar a referida mala e o facto de manter a outra mala sem a abrir.

T) Assim, a pena deveria se situar entre os 4 anos e 3 meses ou mesmo 4 anos e 6 meses.

U) A pena de 5 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido é por regra aplicada a situações de tráfico com grandes lucros, com práticas reiteradas; não para casos como o do arguido que não passa de um mero “correio de droga”

V) O Artº 71º, nº 2 do Cód. Proc. Penal consagra que na determinação da medida da pena, devem ser consideradas todas as circunstâncias atenuantes/agravantes, consagrando um elenco de situações de serem aplicadas.

W) O Tribunal recorrido ao não actuar desta forma, violou o disposto no art° 71 °, n° 2 do CP., bem como os art°s 127° e 355° do Cód. Proc. Penal.

X) O arguido perante todos os factos, circunstâncias atenuante pretende que a sua pena seja fixada a um “quantum” próximo do limite mínimo, ou seja 4 anos e 3 meses, até 4 anos e 6 meses, a partir do circunstancialismo atenuativo que concerne em seu favor e que o tribunal de condenação não valorou em toda a sua amplitude

Y) E nessa conformidade deveria suspender a pena na sua execução, dando chance ao arguido, que é primário, foi uma única viagem, tem vida estabilizada em Portugal, a nível profissional e agora também a nível pessoal. Quer, portanto, dizer, que o arguido está perfeitamente enquadrado familiar, laboral e socialmente.

Z) Senhores s Desembargadores num país em que o excesso de presos preventivos continua a ser preocupante e atendendo às circunstâncias excepcionais em que vivemos motivadas pela Pandemia COVID 19, os tribunais deveriam ser mais flexíveis e aplicar penas suspensas na sua execução, pois como se sabe o meio prisional é um meio de contágio.

Termos em que:

Deve o presente acórdão ser revogado e em sua substituição proferido outro que condene o arguido numa pena que se situe entre os 4 anos e 3 meses e os 4 anos e 6 meses, suspensa na sua execução.”


4. Na sua resposta, o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo, apresentou as seguintes Conclusões:

“1 – Carece de razão o recorrente, nos fundamentos de facto e de direito aduzidos na sua douta motivação;

2 – Com efeito, a decisão recorrida fez uma criteriosa apreciação e valoração da matéria de facto e uma judiciosa aplicação do direito, encontrando-se mais do que suficientemente fundamentada;

3 – Designadamente, está em conformidade com os normativos dimanados dos artºs 40º nº1, 50º, 71º e 72º, todos do Código Penal e sendo que menciona com clareza, não só as razões da não aplicação in casu do instituto da suspensão da execução da pena, como também no concernente à aplicação do quantum da pena; ademais, estamos perante um ato de tráfico internacional por via aérea e que se repete constantemente, apesar das inúmeras detenções e apreensões nos aeroportos portugueses, por idênticos motivos;

4 – Sendo manifesto que a decisão sob recurso não violou qualquer das normas mencionadas nas conclusões da motivação e, inclusivamente, aplicou ao recorrente uma pena próxima do seu limite mínimo;

5 – Por último, entendemos que o acórdão recorrido aplicou uma pena proporcional, atendendo aos critérios jurisprudenciais geralmente seguidos pelo S.T.J. em casos afins, pelo que deve ser negado provimento ao recurso interposto.

Contudo e como sempre, V.Exas farão a costumada JUSTIÇA!”


5. Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, pronunciou-se pela improcedência do recurso.

6. Foi cumprido o disposto no art. 417, n.º 2 CPP, não tendo havido qualquer manifestação em consequência.


Sem Vistos, atenta a situação de pandemia em curso, e na vigência do estado de emergência, cumpre, em conferência, apreciar e decidir.



II

Do Acórdão Recorrido



Releva especialmente nesta sede o seguinte segmento do Acórdão recorrido:

“II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO FACTOS PROVADOS

Provou-se que:

1. Em … .11.2019 o arguido AA embarcou no voo..., com partida de ... e destino a ... onde, no mesmo dia, embarcou no voo ..., com destino ..., transportando duas malas, tipo trolley, de cor azul, uma de marca “...” e outra de marca “...” que ocultavam, nas respectivas estruturas, em fundos falsos, um total de três embalagens contendo cocaína.

2. O arguido chegou ao aeroporto ..., ..., no dia … .11.2019.

3. Nessas circunstâncias o arguido recolheu a mala tipo trolley de marca “...” que apresentava a etiqueta de bagagem sob registo ... ..., em nome de AA.

4. Porém, a mala tipo trolley de marca “...”, com etiqueta de bagagem sob registo ... ..., foi extraviada, não estando nesse momento disponível para recolha no tapete de bagagem.

5. Assim, ainda no dia … .11.2019, pelas 12h.26, o arguido AA deslocou-se ao balcão “Lost and Found” da ... do aeroporto de ..., comunicando o extravio da sua bagagem de porão, iniciando assim um incidente, registado sob o nº ..., e solicitando que fosse contactado quando a bagagem viesse a ser localizada, para o que facultou os números de telemóvel … e ….

6. Mais uma vez, no dia … .11.2019, AA contactou aquele serviço da ... do Aeroporto de ..., solicitando que a mala de bagagem de porão extraviada lhe fosse entregue na loja ... do Centro Comercial ..., sito na Avenida ..., nºs. … e …, na ..., facultando para contacto o número de telemóvel ….

7. Entretanto, a mala de bagagem supramencionada, identificada com o registo …, foi localizada pela ..., sendo-lhe aposta etiqueta “Rush”, característica das bagagens extraviadas ou desacompanhadas, após o que, cumprindo os procedimentos regulares, foi apresentada à Autoridade Tributária e Aduaneira para exame radiológico.

8. A mala foi encaminhada para transporte pela empresa “...” responsável pelas entregas da “...” em situações de extravio de bagagem.

9. Deste modo, no dia … .11.2019, conforme solicitado pelo arguido, a mala foi -lhe entregue à entrada do Centro Comercial ..., na ....

10. No interior da mala, sob dois fundos falsos, um na parte superior e outro na parte inferior, encontravam-se duas embalagens envoltas em plástico de cor preta, contendo cocaína com o peso líquido de 3.004, 500 gramas.

11. Na mesma data o arguido AA guardava na sua residência, sita na R. das ..., nº …, … dto. na Quinta ..., em ..., no quarto onde pernoitava, a já mencionada mala de viagem, de marca “...”, com etiqueta ... ..., em nome de AA fechada a cadeado que ocultava na estrutura, sob fundo falso uma embalagem envolta em plástico contendo 1.490, 500 gramas;

12. O arguido tinha ainda em seu poder designadamente um telemóvel de marca …, modelo …, dual SIM, com cartões SIM das operadoras móveis … e …, um telemóvel de marca …, modelo …, com cartão SIM da operadora ….

13. O arguido tinha sido abordado por indivíduos cuja identidade não foi esclarecida que lhe propuseram que transportasse por via aérea, do ... para Portugal, as malas de cocaína nas circunstâncias acima referidas.

14. Por esse transporte o arguido iria receber o valor de dez mil euros.

15. O arguido conhecia a natureza e características estupefacientes do produto que transportava consigo, bem como do produto que cultivava na sua residência, ciente de que incorria em responsabilidade criminal.

16. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

17. Na sala de arrumos da residência do arguido foram encontrados quatro vasos com sementes de canábis geminadas apresentando resíduos desse produto.

18. O arguido não tem condenações averbadas no certificado de registo criminal.

19. Sobre o percurso de vida do arguido e as suas actuais condições de vida resulta do relatório social que:

O processo de socialização do arguido decorreu em ambiente familiar estruturado, com dinâmica funcional e situação económica equilibrada (pais eram sócio-gerentes de uma empresa na área da metalurgia).

Concluiu o 12º ano de escolaridade tendo conciliado os estudos com o exercício de uma actividade laboral, na empresa dos pais, primeiro como aprendiz de serralharia e depois na área administrativa e de gestão;

No ... explorou, juntamente com a mãe, uma loja de artigos de caça, pesca e campismo e depois da loja encerrar trabalhou como técnico de instalação de “internet”;

É praticante de artes marciais;

Em 2017 emigrou com os pais para a ... à procura de melhores condições de vida;

Nesse país, concluiu cursos de línguas estrangeiras designadamente para conseguir adquirir a dupla nacionalidade luxemburguesa - o pai do arguido tinha ascendência luxemburguesa - o que veio a conseguir;

Veio para Portugal em fevereiro de 2019;

À data dos factos habitava um apartamento com outros concidadãos …, alguns deles seus assalariados numa empresa, em nome individual, que lhe pertence e que intervém na área de serviços de transportes, mudanças e montagens;

Dispõe do apoio dos pais, que vieram para Portugal pouco tempo depois da detenção do filho passando, desde então, a residir no ... e a assumir a gestão da empresa do arguido;

Mostrou-se arrependido e revela percepção da gravidade e consequências da sua conduta;

O presente processo causou ao arguido grande instabilidade emocional;

FACTOS NÃO PROVADOS

Com interesse para a decisão da causa não se provaram outros factos e designadamente não se provou que:

• os vasos com sementes de canábis pertencessem ao arguido e que este cultivasse esse produto estupefaciente.

MOTIVAÇÃO

A convicção do tribunal formou-se com base  na apreciação crítica e conjugada da prova produzida em julgamento analisada à luz das regras da experiência comum.

Destacam-se os seguintes elementos probatórios:

Declarações de arguido

Declarações confessórias do arguido;

Prova testemunhal

BB (inspectora da Polícia Judiciária); CC e DD (amigos do arguido) EE e FF (pais do arguido);

Prova pericial

Relatório de exame pericial (fls.242);

Prova documental

Autos de apreensão (fls. 25 e 26; 51);

Fotos (fls.31 a 37; 42 e 43; 53 a 58);

“print” de pesquisa em base de dados da Segurança Social (fls. 85);

Registo de contribuinte do arguido (fls. 14 e 15);

CRC (fls. 86);

Cópias de documentos de identificação e do passaporte do arguido (fls. 21 a 24);

Análise crítica da prova produzida:

O arguido confessou integralmente o transporte da cocaína, nas circunstâncias dadas como provadas nos pontos 1 a 11. Explicou que aceitou realizar o transporte por estar a atravessar um mau período na sua empresa – aa carrinha dos transportes avariou - e precisar de dinheiro. Mostrou-se arrependido.

Já quanto aos vasos com sementes de canábis encontrados na sala de arrumos no apartamento onde vivia com outros cidadãos brasileiros negou peremptoriamente que fossem seus e que tivesse tido qualquer tipo de contacto com a canábis.

As declarações do arguido, no tocante ao transporte da cocaína do ... para Portugal encontram-se inteiramente corroboradas pela prova documental supramencionada e pelo exame pericial à substância estupefaciente apreendida.

Quanto aos restantes factos, relacionados com os vasos de sementes de canábis, a prova produzida foi escassa e totalmente inconclusiva. Na verdade, o exame pericial é totalmente omisso quanto a quantidades de substância estupefaciente encontrada e a testemunha BB admitiu que o apartamento onde o arguido residia era partilhado por outros cidadãos …, que os vasos foram encontrados numa sala de arrumos a que todos os ocupantes do apartamento tinham acesso.

Relativamente às condições pessoais, sociais e económicas do arguido valoraram-se as suas declarações, o relatório social e os depoimentos das testemunhas de defesa com especial destaque para os depoimentos dos pais dos arguidos, que enalteceram as qualidades do filho e manifestaram a sua surpresa e mágoa por o verem preso e envolvido na actividade de tráfico de estupefacientes.

Por último, no tocante à ausência de antecedentes criminais foi tido em atenção o CRC.



III

Fundamentação

A

Pressupostos Processuais



1. Não se vislumbram quaisquer motivos que impeçam o conhecimento do recurso, em tempo bem remetido para este Supremo Tribunal de Justiça pelo Tribunal da Relação, conforme o disposto no art. 432, n.º 1, al. c), do CPP.

2. É consensual que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos).


3. O thema decidendum no presente recurso é tão somente a questão, de direito, de reexame da decisão determinativa da pena.



B

Do Direito



1. A construção do Direito Penal hodierno, como é bem sabido, assenta nalguns fundamentos, pressupostos, ou paradigmas de que o Bem jurídico será, certamente, o mais relevante na aplicação prática (outros aqui não terão pertinência imediata - cf. P. Ferreira da Cunha, A Constituição do Crime, Coimbra, Coimbra editora, 1988, máx. p. 41 ss. e Idem, Ultima Ratio. Uma (Re)Visão Filosófico-Constitucional da Ciência do Direito Penal, editado no volume Direito Penal, Fundamentos Dogmáticos e Político-Criminais. Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 141-183 ou Crimes & Penas, Coimbra, Almedina, 2020, p. 35 ss.).

A proteção de um bem jurídico (implicitamente jurídico-criminal, pois há-os de vária índole, e nem todos com a dignidade e gravidade dos penais) é importante fator de legitimação do ius puniendi na nossa ordem jurídico-constitucional, como se encontra desde logo expresso no art. 18, n.º 3, da CRP, que consagra o respetivo princípio, o qual é recebido no art. 40 do Código Penal (Cf. Acórdão deste STJ de 01/04/2020, proferido no Proc.º n.º 89/18.6JELSB.L1.S1).

2. Está em causa saber se o arguido, presentemente preso preventivamente, atentou contra a ordem jurídica através da lesão de um ou mais bem jurídicos.

No caso, o crime em apreço é o de tráfico de estupefacientes, pp. pelo art. 21, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I.B, anexa ao mesmo diploma. Que bem ou bens jurídicos foram lesados com a sua conduta criminosa?

3. Embora a categoria “bem jurídico” se encontre, naturalmente, em processo de revisão e crítica, continua a ser importantíssimo parâmetro norteador e de enorme relevância prática.

Desde logo, pela sua presença no art. 40, n.º 1 do Código Penal, como a primeira finalidade protetiva aí referida (cf., por todos, para referir apenas doutrina nacional, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral, 3.ª ed., tomo I, p. 153 ss.; Maria João Antunes, Constituição, Lei Penal e Controlo da Constitucionalidade, Coimbra, Almedina, 2019, p. 54 ss.; M. Miguez Garcia, O Direito Penal Passo a Passo, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 13 ss.; Paulo Ferreira da Cunha, Crimes & Penas, Coimbra, Almedina, 2020, máx. pp. 85 ss., 235 ss.).

Para o caso concreto do crime em apreço, atente-se, nomeadamente, na explicitação do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10 de outubro de 2018, Proc.º n.º 5/16.0GAAMT.S1:

“Tem assinalado a jurisprudência que o bem jurídico protegido com a incriminação é a saúde pública, num sentido amplo que abarca as suas componentes física e mental “em ordem a garantir um desenvolvimento são, seguro e livre dos cidadãos e da sociedade face aos perigos representados pelo consumo e tráfico de droga, atentatória da dignidade humana” (Fernando Gama Lobo, Droga ― Legislação: notas, doutrina e jurisprudência, Quid Iuris? − Sociedade Editora, Lda., 2006, pág. 41; no mesmo sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.1995, Boletim do Ministério da Justiça, 447, pág. 178; de 1.03.2001, Coletânea de Jurisprudência, I, pág. 236; de 21.03.2007, Coletânea de Jurisprudência, I, pág. 220; considerando, todavia, que a lei visa proteger diversos bens jurídicos ― a saber: a saúde pública da população, a estabilidade económica, financeira, cultural e política da sociedade e a segurança e soberania do Estado ― sem que, sequer, se possa eleger um bem jurídico prevalente, pode ver-se João Luís de Moraes Rocha, Tráfico de estupefacientes e liberdade condicional, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 10, Fasc. 1.º, jan.-mar. de 2000, Coimbra Editora, pág. 107 a 109).”

E ainda com interesse para a caracterização e natureza do crime em causa:

o crime de tráfico de estupefacientes constitui um crime de trato sucessivo, de execução permanente, mais comummente denominado de crime exaurido, em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros atos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto e em que a imputação dos atos múltiplos é atribuída a uma realização única, sendo a estrutura básica fundamental nestes crimes de empreendimento, a equiparação da tentativa à consumação” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.09.2015, apud Ac. previamente citado) – sublinhados nossos.


3. O crime em apreço é de perigo comum abstrato, preenchendo-se o tipo com a mera detenção de produto estupefaciente. Como bem enquadrou a sentença na 1.ª Instância:

“Nestes crimes a protecção é recuada a momentos iniciais da acção, independentemente da produção de qualquer resultado danoso concreto. Não exige o dano mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos.

Não é pois necessário que se prove que a substância era destinada à sua cedência a terceiros mediante contrapartida económica embora esta, a existir, não seja indiferente, nomeadamente, na medida da pena.”

Contudo, a conduta do agente constitui, efetivamente, um perigo potencial para a saúde pública de um muito alargado número de pessoas, como o Digno Magistrado o Ministério Público enfatizou:

“Em suma, não pode, pois, esquecer-se que o arguido se preparava para transportar no território português uma quantidade significativa de cocaína, que abasteceria decerto muitos consumidores, manifestando assim elevada insensibilidade pelo destino trágico de tantos jovens, responsáveis, por força do preço da sua dependência, pela sua própria degradação física e moral e pela vaga de crimes contra o património que tanto alarme social causa na nossa sociedade, e tanto mais que estamos em presença de uma das chamadas “drogas duras”.”

A simples atividade criminosa preparatória e de nível internacional, como esta, no sentido de violar a lei e de cometer culposamente crimes, como este, já atenta contra a paz jurídica e o respeito pelo Direito e não pode deixar de configurar lesão de bens jurídicos independentemente do facto de uma disseminação ulterior se efetuar ou não (cf. Ac. 89/18.6JELSB.L1.S1).

No caso de tráfico de substâncias estupefacientes, o bem jurídico mais evidente e mais consensualmente considerado (de consideração óbvia, ao que parece) é a saúde pública, mas também (cf. Ac. 5/16.0GAAMT.S1) outros podem encontrar-se presentes, como “a estabilidade económica, financeira, cultural e política da sociedade e a segurança e soberania do Estado” (cf. Ac. 89/18.6JELSB.L1.S1), dependendo a verificação da sua mais concreta e mais vultuosa lesão dos contornos específicos do caso.


4. A moldura penal abstrata que corresponde a este tipo de crime situa-se entre os 4 anos a 12 anos de prisão, de acordo com o referido art. 21, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I.B, anexa ao mesmo diploma. Sendo que o Tribunal a quo condenou o arguido em 5 anos e 6 meses de prisão, ou seja, abaixo do valor médio, que seriam 8 anos de prisão, e um pouco acima do valor mínimo: pouco mais que acima da barreira dos 5 anos, fundamental para a questão da suspensão ou não da pena. Contudo, aqueles valores da pena (entre 4 e 12 anos) são um espectro alargado para aplicação a uma infinidade de situações, desde a mais leve à mais severa.


5. Como se sabe, a determinação concreta da pena deve ter presente o critério do art. 71 do CP, “... em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial.”, atendendo “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia deponham a favor do agente ou contra ele”, sem esquecer que o disposto no art. 70 do mesmo Código: “se ao crime forem aplicáveis , em alternativa, pena privativa ou não privativa da liberdade, o tribunal deverá dar preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Muito bem afirma o Tribunal a quo, teorização que sintetiza a doutrina e jurisprudência em curso, com base na lei em vigor, e a que aderimos:

“As ideias base que devemos ter presentes são as de que as finalidades da aplicação de uma pena residem, primordialmente, na tutela dos bens jurídicos, na reinserção do arguido na comunidade e a de que a pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.

Assim, em primeiro lugar, a medida da pena há-de ser aferida pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados. Teremos que encontrar, como ponto de referência, o limiar mínimo abaixo do qual já não será comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a tutela de tais bens jurídicos, respondendo às expectativas da comunidade na reposição da norma jurídica violada.

Este ponto será o limite mínimo da moldura penal concreta.

Por outro lado, a culpa do arguido fornecer-nos-á o limite absolutamente inultrapassável na medida da pena, mesmo atendendo a considerações de carácter preventivo.

Finalmente, considerando o ponto fundamental das necessidades de tutela dos bens jurídicos e o limite inultrapassável fixado pela culpa do arguido, há que encontrar a medida da pena que melhor responde às necessidades da prevenção especial de socialização.”


6. Começa o mesmo Tribunal por apontar os aspetos negativos e penalizadores:

- o dolo directo, é integrado na modalidade mais grave;

- é verdade que o grau de ilicitude é considerável, face à natureza da substância (das mais nocivas para a saúde dos consumidores e para a saúde pública) mas a quantidade de droga transportada, nas próprias palavras do Tribunal a quo, está apenas “um pouco acima do habitual neste tipo de transportes”;

- o modo de execução do ilícito, o usual neste tipo de ilícito praticado pelos chamados “correios de droga” (assim chamados por não serem os donos do negócio e se limitarem a transportar o produto estupefaciente, de modo a ser colocado no mercado alvo, que, neste caso, seria Portugal) – este facto é, significativamente, considerado do lado positivo, por parte da defesa, porquanto o “correio de droga” não é quem mais lucra com o negócio, mas quem está pode detrás desse tráfico;

- é inegável que as consequências teriam “gravidade, atentas as doses que podiam ser comercializadas e as penosas consequências daí decorrentes para os diversos consumidores”;

- também é certo que “as motivações do arguido, o transporte da cocaína foi ditado por necessidades económicas, facto que é comum à grande maioria dos denominados “correios de droga” e que neste caso concreto estavam longe de ser urgentes ou prementes, ou seja, não estavam em causa necessidades de subsistência graves e insuperáveis do arguido e familiares” – porém, também se dirá que (como sugere a defesa), concomitantemente, há uma relativamente sólida integração social do Recorrente, que se abalançou uma vez na vida (é delinquente primário) a uma ação temerária, que assumiu, confessou, de que se arrependeu, nem sequer tendo fugido à responsabilidade relativamente à mala extraviada.

- Sobre o seu percurso laboral do Recorrente, decerto algo instável, o Tribunal reconhece que não se imputará, contudo, ao arguido essa possível instabilidade, que parece “estar relacionada com oscilações e crises no mercado”. Aliás, quantas pessoas sem percurso criminal, nos nossos dias, não terão instabilidade no percurso laboral…

Também tem plena razão o Tribunal quando, mais adiante, considera:

“- as elevadas e intensas exigências de prevenção geral tendo em atenção que a prática de crimes de tráfico de estupefacientes provoca sempre uma acentuada reprovação social, dadas as consequências que o consumo de tais substâncias provoca principalmente nas camadas mais jovens da nossa sociedade”


7. Em contrapartida, o Tribunal recorrido sem reticências reconhece vários circunstancialismos que militam em favor do Recorrente:

- a ausência de condenações no seu CRC;

- a confissão dos factos e o arrependimento demonstrado em audiência de julgamento;

- a seu favor ainda a boa inserção familiar e o apoio dos pais;


8. Assim conclui o Tribunal recorrido, tudo havendo ponderado:

“considerando as circunstâncias atenuantes e agravantes acima referidas, e em particular a quantidade de droga transportada, mostra-se adequada, proporcionada e justa uma pena de 5 anos de prisão e 6 meses de prisão - próxima do mínimo legal -, pena esta que satisfaz de forma adequada as finalidades da punição.”. E obviamente não suspende a execução da pena com base na letra do art. 50 do CP, o que se tornou impossível por uma pena que excede em 6 meses a simples possibilidade da sua ponderação.


9. A intervenção do STJ, no controle da proporcionalidade, não pode exercer-se ad libitum, devendo manter-se o quantum da pena quando o procedimento na determinação da sua medida se tiver revelado correto, com enunciação dos fatores que estiveram na génese da concreta quantificação, ponderação do grau de culpa e apreciação das necessidades de prevenção. Ora, embora em geral a douta decisão recorrida seja impecável, em geral, colocam-se, porém, alguns problemas que se nos afigura poderem e deverem merecer reponderação. Por tudo quanto se aduziu, além de uma assunção dos factos, e a condição pessoal do arguido, poderão colocar em dúvida a plena justeza in casu e a necessidade de uma pena de 5 anos e meio de prisão efetiva.

A determinação da pena deve ser feita à luz do art. 40 e do art. 71, n.º 1, do CP e nomeadamente dos fatores de medida da pena aí consagrados, numa “tópica” que inclui, precisamente, o bem jurídico, a reintegração social, a culpa e a sua medida e as exigências de prevenção, pela forma articulada como o Código Penal as imbrica.


10. Sendo necessário manter coerência e equidade entre o sentenciado por este Supremo Tribunal de Justiça, contribuindo-se para uma aplicação uniforme do direito (art. 8.º, n.º 3 do Código Civil).  Nomeadamente, importa a consideração do volume de drogas (assim como a motivação do ganho – no caso, uma comissão, embora de certo montante: dez mil euros) são explicitamente considerados em algumas “Guidelines” de agravação e atenuação no estrangeiro, o que conflui com o nosso entendimento (cf. Warren Young / Andrea King, “Addressing problematic sentencing factors in the development of guidelines”, in Mitigation and Aggravation at Sentencing, ed. por Julian V. Roberts, Cambridge et al., Cambridge University Press, 2011, p. 208 ss., máx. p. 218).

As penas, como salienta o art. 49, n.º 3, da CDFUE, “não devem ser desproporcionadas em relação à infração”. E tal proporcionalidade deve atender a todos os contornos da infração.

A quantia apreendida foram ao todo 4. 495 gramas de cocaína. A decisão recorrida fala em quantidade um pouco acima do habitual neste tipo de transporte.


11. Indo ao cerne prático da decisão em apreço, não se nos afigura que os elementos supra enunciados, e tendo presente toda a global factualidade, justifiquem especialmente os cinco anos e (mais concretamente) seis meses de prisão. Cremos que esses seis meses (neste caso, de um delinquente nomeadamente sem carreira criminosa, com outra forma de vida, portanto que delinquiu uniocasionalmente) poderão ser reapreciados à luz do princípio da proporcionalidade.

Evidentemente que havendo factualidade criminosa provada e além do mais confessa, existindo culpa, dolo direto, atendendo à necessidade de prevenção geral e especial e dada a potenciação de alarme social proveniente de situações de tráfico internacional  e estando em causa pelo menos o magno bem da saúde pública, não restam dúvidas de que a ordem jurídica precisa de dar uma resposta que não desça a um limiar de baixar das guardas face ao crime, dissolvendo a sua força normativa.

Porém, apesar da gravidade dos factos, da culpa e das exigências de prevenção geral, crê-se que a ausência de condenações no seu CRC, a confissão dos factos e o arrependimento demonstrado em audiência de julgamento; a boa inserção familiar e o apoio dos pais, a escolaridade e experiência profissional indiciam razoavelmente (e outros elementos não indiciam o contrário) a possibilidade de uma regeneração (de uma única embora grave infração). Recorde-se o relatório social, enfatizado pelo Recorrente:

“O processo de socialização do arguido decorreu em ambiente familiar estruturado, com dinâmica funcional e situação económica equilibrada (os pais eram sócio-gerentes de uma empresa na área da metalurgia);

Concluiu o 12º ano de escolaridade tendo conciliado os estudos com o exercício de uma actividade laboral, na empresa dos pais, primeiro como aprendiz de serralharia e depois na área administrativa e de gestão;

No ... explorou, juntamente com a mãe, uma loja de artigos de caça, pesca e campismo e depois na loja encerrar trabalhos como técnico de instalação de “internet”;

Em 2017 emigrou com os pais para a ... à procura de melhores condições de vida;

Nesse país, concluiu cursos de línguas estrangeiras, designadamente para conseguir adquirir a dupla nacionalidade … – o pai do arguido tem ascendência luxemburguesa – o que veio a conseguir;

À data dos factos habitava um apartamento com outros concidadãos brasileiros, alguns deles seus assalariados numa empresa, em nome individual, que lhe pertence e que intervém na área de serviços de transportes, mudanças e montagens;

Dispõe do apoio dos pais, que vieram para Portugal pouco tempo depois da detenção do filho passando, desde então a residir no ... e a assumir a gestão da empresa do arguido;

Mostrou-se arrependido e revela percepção da gravidade e consequências da sua conduta;

O presente processo causou ao arguido grande instabilidade emocional.”


12. Crê-se, assim, que a pena de 5 anos de prisão, será já adequada à finalidade da pena, no caso vertente.

Sendo que o tribunal poderá suspender a execução da pena de prisão não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, e ainda à própria idade (no caso, o arguido nasceu em 22 de abril de 1996), não se poderá, porém, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não se encontrando consequentemente preenchidos os requisitos para a suspensão da execução da pena.

Sendo a pena de 5 anos de prisão efetiva proporcional, não coloca em risco nem o critério de barreira da culpa, nem a paz social e a segurança jurídica.

Em crimes de tráfico de estupefacientes p. e p. no art. 21 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, afigura-se, só por si, muito difícil a possibilidade de suspensão da execução da pena, desde logo porque, face às exigências de prevenção geral atinente a tal tipo de crime, que põe em causa a salubridade pública, é de presumir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sendo, pelo contrário, de reclamar o cumprimento de pena de prisão efetiva.

Por outro lado, no caso, a intensidade da culpa e a quantidade e qualidade da droga apreendida e ainda a existente na residência do arguido reclamam punição adequada (efetiva), atentas as exigências de prevenção especial.



IV

Dispositivo



Termos em que, decidindo em conferência, a 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça acorda em prover parcialmente o recurso relativamente ao quantum da pena, decidindo atribuir ao Recorrente uma pena de 5 (cinco) anos de prisão efetiva (nos termos do art. 21, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I.B, anexa ao mesmo diploma), e confirmando no demais, integralmente, o Acórdão recorrido.       

Sem Custas          


Supremo Tribunal de Justiça, 21 de abril de 2021

Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida.

Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)