HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
MEDIDA DE INTERNAMENTO
REJEIÇÃO
Sumário


I - À medida de segurança de internamento é aplicável, por analogia, a providência de habeas corpus.
II - Contudo, o internamento, em cumprimento de uma medida de segurança, de um inimputável perigoso num hospital prisional, que não em estabelecimento de saúde não prisional, não justifica a providência de habeas corpus.

Texto Integral

Acordam nesta 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


 A) AA, melhor identificado nos autos, requereu a presente providência de habeas corpus em benefício de BB, em documento onde afirma, em síntese, que este

- é doente do foro psiquiátrico desde 2002, tendo várias recaídas e internamentos psiquiátricos e comprovadamente incapaz, quando descompensado, de perceber a sua culpa, incapaz de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar por essa avaliação, “pelo que é igualmente inimputável perante as regras de conduta impostas pela manutenção da suspensão da medida de segurança de internamento em estabelecimento psiquiátrico, referente ao processo n.º …”;

- no processo de Internamento Compulsivo n.º ..., iniciado em 24/02/2021, “na data de 09/03/2021 existe alta médica, mas persiste o processo de Internamento Compulsivo, fundamentado com confirmação judicial de que é possível efetuar os tratamentos seguintes do doente na forma ambulatória de modo compulsivo, sem privação da Liberdade”;

- o tratamento estava a ser cumprido, o doente “teve a consulta agendada na data de 26/03/2021 e seguia-se uma outra presencial na data de 15/04/2021, tomava a medicação elencada pelos profissionais de saúde de forma presencial injetável e oral, era acompanhado pela Equipa Comunitária Familiar mais próxima e pelo irmão”;

- No dia 14/04/2021 foi detido em ….. e conduzido pela PSP para o Hospital …..“no cumprimento da decisão judicial transitada após o Internamento Compulsivo”;

- O artigo 126.º, n. 2º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade indica que o internamento é executado preferencialmente em unidade de saúde mental não prisional;

- “A decisão de internamento era inicialmente o internamento no Hospital ..., sendo alterada minutos antes da sua lá entrada e emendada enfim para o Hospital Prisional ...”;

- “O doente viu o tratamento ambulatório compulsivo decretado por decisão judicial com efeitos a 09/03/2021 e sem motivação razoável na data de 14/04/2021, ficou cumulativo com outro internamento psiquiátrico, com agravo na sua privação de Liberdade e até modificado para uma situação limite da lei que é o internamento em Hospital Prisão em detrimento até de um Hospital não Prisional”;

- “O tribunal atempadamente comunicou ao processo n.º …… a existência do processo Internamento Compulsivo n.º …..., porque este último já sabia da revogação da suspensão da medida de segurança de internamento em estabelecimento psiquiátrico para tratamento, nos termos do artigo 28.º da Lei Saúde Mental”;

- “Podia o tribunal ter aplicado a todo o tempo o Código Penal e de ter evitado a sobreposição/duplicação do internamento psiquiátrico para tratamento, a fim de evitar a repetição dos pressupostos do internamento para tratamento, todas as perícias e tratamentos repetidos na mesma substância e para o efeito que se espera, o cumprimento da medicação por tempo indeterminado de forma compulsiva;

- “O processo Internamento Compulsivo n.º ... pode prolongar por mais tempo a forma como de modo compulsivo o doente tem de cumprir medicação, e seja até indeterminado no tempo, mas já o tratamento psiquiátrico do processo n.º … tem prazo máximo que o faz extinguir”;

- “O desenvolvimento do processo n.º … na parte da revogação da medida de segurança de internamento psiquiátrico e que conduziu ao internamento em Hospital Prisão, foi ocultado ao doente de forma propositada a ferir a dignidade humana”;

 - “O homem médio tem a perceção que incide neste momento e simultaneamente duas decisões judiciais na mesma pessoa do doente psiquiátrico, uma decisão para internamento compulsivo seguida de tratamento ambulatório compulsivo em Liberdade e outra decisão para internamento em estabelecimento psiquiátrico para tratamento em Hospital Prisional com privação de Liberdade. Colocado em causa o princípio " non bis in idem ", faz transparecer o inseparável e terrível abuso de poder em manter a dupla decisão”.


 B) O Mº juiz do Juízo local criminal ….... (J…...) prestou a informação a que alude o artº 223º, nº 1 do CPP, nos seguintes termos:

«Nos termos do nº 1 do artigo 223º do Código de Processo Penal, informa-se esse Colendo Tribunal que a prisão foi efectuada na sequência do trânsito em julgado de decisão proferida (sem recurso) que revogou a suspensão da medida de segurança aplicada em sede de sentença, tendo sido determinado o internamento do arguido em estabelecimento psiquiátrico adequado pelo período máximo de 3 (três) anos.

A escolha do local onde é executada a medida de segurança não compete a este Tribunal, que, não obstante diligenciou pela agilização da execução através de contacto da Secção com a DGRSP, do qual resultou o email de 12/02/2021, razão pela qual os mandados foram emitidos por referência ao Hospital ....

Quanto ao local onde o condenado se encontra, remete-se para a informação da PSP de 19/04/2021, sendo de novo alheia a este Tribunal a concreta escolha do local para a execução da medida de segurança.

No que concerne ao internamento compulsivo invocado pelo requerente, nada podemos informar, pois é nosso conhecimento funcional que o mesmo é tramitado pelo J… da ILC deste Tribunal.

Reputa-se, pois, salvo melhor entendimento, que não há quaisquer razões para considerar ilegal a prisão do arguido, a qual se mantém».


 C) Convocada a Secção Criminal deste Supremo Tribunal e efectuadas as devidas notificações, realizou-se a audiência pública, nos termos legais.

   A Secção Criminal reuniu seguidamente para deliberação, a qual imediatamente se torna pública.

  “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente”, assim se dispõe no artº 31º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

 E, nos termos do estatuído no artº 222º, nº 1 do CPP, “a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus”.

 A petição, como se prescreve no nº 3 do mesmo dispositivo, deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

 “a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

 b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

 c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

  À informação prestada pelo Mº juiz do Juízo local criminal do … (J...) resta acrescentar o seguinte:

 1. Por sentença proferida no Proc. … do Juízo local criminal de ..., J..., em 2 de Setembro de 2019, transitada em julgado em 2 de Outubro seguinte, foi determinado que BB cometeu factos que integram a prática, pelo mesmo, de um crime de dano, um crime de ameaça e um crime de importunação sexual, p.p. pelos artºs 212º, nºs 1 e 3, 153º, nº 1 e 170º, todos do Cod. Penal, respectivamente.

 2. Tendo aí sido o arguido declarado inimputável perigoso – artºs 20º e 91º, nº 1 do Cod. Penal – foi decretada a medida de segurança de internamento do arguido em estabelecimento psiquiátrico adequado pelo período máximo de 3 anos, “cuja execução se suspende por idêntico período (três anos), nos termos dos artºs 92º, nº 2, ex vi 98º, nº 6, al. a) do Cód. Penal, mediante o estrito cumprimento” de determinadas condições, aí fixadas.

 3. Agendada para 15/12/2020 a audição do arguido, este – apesar de notificado – não compareceu.

 4. Por decisão proferida em 2/2/2021, notificada ao arguido em 24 do mesmo mês e ano e transitada em julgado no dia 26 de Março seguinte, considerando que “o comportamento do arguido se tem pautado pela inobservância das regras de conduta e do dever de sujeição a tratamentos durante a liberdade para prova, a que acresce a manifesta impossibilidade de realização de um juízo de prognose favorável quanto ao seu futuro, representando o arguido um risco para terceiros e para si próprio”, foi revogada a suspensão da medida de segurança e determinado “o internamento do arguido em estabelecimento psiquiátrico adequado pelo período máximo de 3 (três) anos”.

 5. Em 12 de Fevereiro de 2021, a DGRSP informou o Juízo local criminal de ... que o internamento em unidade de saúde não prisional “carece de um procedimento prévio a efectuar apenas junto de três unidades: o Centro Hospitalar Psiquiátrico …... (CH.…) – Pólo ..., em ….., o Centro Hospitalar e Universitário…... (CH.…) – Pólo Hospital..., em ……. e o Hospital ..., no …”, razão pela qual “tendo em vista dar início aos procedimentos relativos ao agendamento do seu internamento em unidade de saúde não prisional”, solicitou a remessa de diversas peças processuais.

  6. Em 14 de Abril de 2021, em cumprimento dos mandados de detenção para o efeito emitidos, a PSP contactou o Centro Hospitalar Psiquiátrico ….... (Pólo …...), tendo obtido a informação de que “não recebiam o indivíduo nesta situação uma vez que não se tratava de internamento compulsivo”, razão pela qual foi o mesmo conduzido ao Hospital Prisional …...., onde deu entrada pelas 13h40 desse mesmo dia.

 7. Segundo a liquidação provisória de pena já homologada, o arguido termina o cumprimento da medida de internamento no dia 14 de Abril de 2024.

 

   Posto isto:

 Como já se sublinhou no Acórdão deste Supremo Tribunal, proferido no Proc. 48/08.7P6PRT-J.S1, da 3ª secção, o habeas corpus é uma providência “destinada a responder a situações de gravidade extrema visando reagir, de modo imediato, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação”.

 Mas “não constitui um recurso sobre actos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (artigos 399.º e segs., do CPP). A providência não se destina a apreciar erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade” – Ac. deste STJ, proferido no Proc. 1084/19.3PWLSB-A.S1, da 5ª secção.

 Ou, dito de outro modo: “A providência excepcional de habeas corpus não se substitui nem pode substituir‑se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere — mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art. 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal — aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite». Não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e a correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele expediente só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários: justamente, os casos indiscutíveis ou de flagrante ilegalidade, que, por serem‑no, permitem e impõem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal, e, por isso, sem remédio” - Ac. STJ de 1/2/2007, Proc. 07P353, rel. Pereira Madeira).

  Posto isto:

 Não se mostra questionada – nem vemos que, no caso, o pudesse ter sido – a competência da entidade que ordenou a detenção (um tribunal, na sequência e em consequência de uma decisão judicial transitada em julgado) – artº 222º, nº 2, al. a) do CPP.

  Como, de igual modo, é inegável que a privação de liberdade do cidadão BB se contém no prazo fixado naquela decisão judicial – artº 222º, nº 2, al. c) do mesmo diploma.

  Estriba o requerente a sua pretensão na al. b) do nº 2 do artº 222º do CPP (ser a privação de liberdade “motivada por facto pelo qual a lei a não permite”).

 Porém, salvo o devido respeito por melhor opinião, sem qualquer razão.

 O cidadão em causa está internado no Hospital Prisional …... em cumprimento de uma decisão judicial transitada em julgado: constatando-se que o arguido cometeu factos que integram a prática dos crimes de dano, ameaça e importunação sexual, declarado o mesmo inimputável perigoso, foi determinado que cumpriria a medida de segurança de internamento em estabelecimento psiquiátrico adequado pelo período máximo de 3 anos. Inicialmente suspensa a execução dessa medida, foi tal suspensão revogada por decisão transitada em julgado, sendo no mínimo despropositado afirmar-se, como o faz o requerente, que este processo, na parte relativa à dita revogação da suspensão da execução da medida de internamento “foi ocultado ao doente de forma propositada a ferir a dignidade humana”: o arguido foi notificado para comparecer numa diligência que tinha em vista a sua audição, não tendo comparecido.

 Como decorre dos autos, não estará ainda concluído o procedimento encetado pela DGRSP tendo em vista o internamento do cidadão BB em unidade de saúde não prisional, razão pela qual ainda não foi aí admitido.

 Ora, a colocação de um inimputável perigoso num hospital prisional, em cumprimento de uma medida de segurança não justifica, como nos parece claro, a providência de habeas corpus.

Como se decidiu no Ac. STJ de 11/7/2019, Proc. 1609/18.1T9AMD-D.S1, “A providência de habeas corpus configura um incidente que visa assegurar o direito à liberdade, com o sentido de pôr termo às situações de prisão ilegal, designadamente motivada por facto pelo qual a lei a não permite ou mantida para além dos prazos fixados na lei ou por decisão judicial. A providência de habeas corpus não cuida da reanálise do caso trazido à sua apreciação, mas tão só pretende almejar a constatação de uma ilegalidade patente, em forma de erro grosseiro ou de manifesto abuso de poder. À medida de segurança de internamento é aplicável, por analogia, a providência de habeas corpus. Não existe privação da liberdade ilegal quando o condenado se encontra num EP, após trânsito em julgado da decisão que o sujeitou a uma medida de segurança de internamento, que se encontra a cumprir, ainda que não em estabelecimento adequado por se aguardar a sua colocação”.

   No mesmo sentido, assim se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 20/9/2017, Proc. 626/16.0PIPRT-C.S1: “Para efeitos de providência de “habeas corpus” não se enquadra em qualquer das alíneas do n.º 2 do art. 222.º, do CPP, que são de enumeração taxativa, a discordância do requerente - ao qual foi aplicada a medida de internamento em anexo psiquiátrico para tratamento e segurança – quanto ao lugar de cumprimento da medida que foi decretada pelo tribunal” [1].

 Certamente que a entidade judiciária oficiará oportunamente à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e à Direcção de Serviços de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, no sentido de providenciarem, com urgência, pela transferência do recluso para o hospital psiquiátrico adequado.


  Atento o exposto, acordam os Juízes desta 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus apresentado pelo requerente AA, por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, alínea a) do CPP).

   Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, nos termos da tabela anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

   Lisboa, 21 de Abril de 2021 (processado e revisto pelo relator)


Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

 Atesto o voto de conformidade da Exmª Srª Juíza Conselheira Ana Maria Barata de Brito – artº 15º do DL 10-A/2020, de 13/3

Pires da Graça (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)

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[1] Ainda no mesmo sentido, cfr. Ac. STJ de 21/8/2018, Proc. 187/13.2TBVZL-A.S1: “O fundamento invocado da al. b) do n.º 2 do art. 222.º do CPPP não subsiste, dado que em causa está uma medida privativa de liberdade (internamento) para ser executada no estabelecimento ou unidade a ser considerada mais adequada à situação do requerente e a determinar pelos serviços respectivos. Assim a privação da liberdade foi ordenada por entidade competente (tribunal da condenação) e motivada por facto pela qual a lei permite e em prazo consentâneo com a sua duração”.