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DIREITO À HERANÇA
REPÚDIO
CESSAÇÃO ANTECIPADA DO PROCEDIMENTO DE EXONERAÇÃO
Sumário
Sumário (da relatora):
. As hipóteses previstas nas alíneas b), e) e f) do nº 1 do artº 238º, a que se refere o 243º, nº 1, alínea b)) são algumas das que dão causa ao indeferimento liminar, constituindo situações que teriam justificado o indeferimento liminar do pedido de exoneração, mas que não foram oportunamente atendidas por a sua verificação ou o seu conhecimento só ter ocorrido supervenientemente que poderão assim ser objeto de nova apreciação, mas agora com vista à cessação antecipada do procedimento de exoneração. No caso em que a verificação não é superveniente, mas sim o conhecimento, a superveniência é aferida em função do conhecimento de quem requer a cessação antecipada do procedimento e as referidas circunstâncias só podem ser arguidas no caso do seu conhecimento pelo requerente ter sido adquirido após o despacho inicial. . A utilização do advérbio sempre no nº 2 do artº 186º tem por fim modificar o núcleo dos pressupostos ou condições exigíveis pelo nº 2, dispensando a verificação dos em geral enunciados no nº 1 – dolo ou culpa grave, nexo de causalidade e resultado - bastando-se com os de seguida tipificados nas suas diferentes alíneas, não pretendendo alterar o período temporal em que, para relevarem, eles devem acontecer, mencionado no nº 1 (situação ocorrida nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência). . A falta de menção pelo apelante tanto na relação de bens que deve acompanhar a petição inicial, como posteriormente, do direito na herança por óbito dos seus pais e o seu repúdio na pendência do período de cessão a favor dos seus filhos, constitui causa de cessação antecipada do procedimento de exoneração, de acordo com o disposto no artigo 243.º, n.º 1, al. b), alínea e) do nº 1 do artigo 238º e alíneas a) e d) do nº 2 e nº 4 do artigo 186º, todos do CIRE.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I – Relatório
Nos autos em que foi declarada insolvente N. C., foi determinado o encerramento do processo nos termos do artigo 232.º do CIRE em Setembro de 2016, tendo sido proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, onde se fixou em 1,5 SMN o valor razoavelmente necessário para o sustento digno do devedor.
Em 4 de março de 2020, veio o fiduciário, após expor a factualidade que considerou relevante, requerer a cessação antecipada do procedimento de exoneração por violação do disposto no artigo 243.º, n.º 1, al. b), alínea e) do nº 1 do artigo 238º e alíneas a) e d) do nº 2 e nº 4 do artigo 186º, todos do CIRE.
Notificou-se a devedora e, bem assim, os credores, em conformidade com o disposto no artigo 243.º, n.º 3 do CIRE.
Pronunciou-se a devedora e foi produzida prova, inquirindo-se em audiência as testemunhas por si arroladas. A insolvente também prestou declarações.
A final foi proferida decisão que decidiu deferir o pedido de recusa da exoneração, nos termos peticionados pelo sr. fiduciário.
A insolvente, inconformada, veio interpor recurso deste despacho, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
a) A decisão do Tribunal “a quo”, não aplicou o direito ajustadamente aos factos que deu como provados. Desde logo quando não se refere aos efeitos do repúdio à herança e às circunstâncias e ao momento em que tal repúdio é confirmado pela Recorrente;
b) Porquanto muito antes da declaração de Insolvência e do despacho favorável à exoneração do passivo restante, a Insolvente tinha perfeita consciência que nada tinha a receber da herança dos seus falecidos pais. Logo não tinha que informar o Tribunal dum direito inexistente na sua esfera pessoal.
c) Apesar disso e independentemente da data da outoga da escritura do Repúdio, escritura só outorgada quando o comprador do bem imóvel pertença da massa de bens da herança dos seus falecidos pais, certo é que se cumprida a vontade dos falecidos pais da insolvente esta NÃO tinha qualquer direito sobre essa herança, porque em vida dos mesmos o seu quinhão hereditário estava destinado aos seus filhos pelas razões provadas (factos aditados e a considerar como provados l) e m));
d) Factos que se requer sejam aditados aos factos provados, face à prova testemunhal produzida e reconhecida como credível pelo Tribunal “a quo”, devendo assim consignar-se como factos provados mais os seguintes:
Facto provado l): A escritura dos bens da herança só aconteceu passados seis anos depois da morte do autor da herança quando o comprador teve meios financeiros para pagar o preço;
Facto provado m): O valor das tornas da Insolvente, foram entregues aos eus sobrinhos que intervieram na escritura de compra e venda.
e) Sendo certo que como ficou provado a herança aberta por óbito dos eus falecidos pais a insolvente não recebia qualquer valor a título de tornas ou a qualquer outro título;
f) O momento da abertura da sucessão (o pai faleceu aos 01-12-2014) acontece muito ante das declaração de insolvência (10-03-2016) da aqui Recorrente e muito antes da prolação do despacho favorável à exoneração do passivo restante, pelo que o momento da outorga da escritura pública é inócuo na justa medida em que os seus efeitos retroagem a momento anterior ao pedido de insolvência da aqui Recorrente.
g) Assim, a insolvente não sendo titular de qualquer quinhão hereditário, este nunca poderia ser apreendido pela Massa Insolvente, nem a mesma tinha a obrigação de informar o Tribunal da sua existência.
h) Assim, não se pode aceitar a conclusão do Tribunal “ a quo” que o Repúdio de per si importou um prejuízo para a massa insolvente no valor de 15.000,00€. A massa nem os credores da Recorrente não sofreram qualquer prejuízo, porquanto a insolvente não arrecadou qualquer valor do pretenso quinhão hereditário que o Sr. Administrador de Insolvência defendia pertencer à insolvente.
i) Não ficou provado qualquer facto culposo que se possa imputar à devedora/insolvente. Tal reflecte-se na sua conduta de colaboração com o Sr. Fiduciário nos mais de 4 anos em que decorre o período de exoneração e da sua plena consciência de que algum valor teria da herança dos seus falecidos pais, cuja consumação da partilha aconteceu anos mais tarde, como sucede de resto muitas veze, seria a primeira a informar o Tribunal, logo no pedido de insolvência.
j) Com a consumação formal – outorga da escritura pública – nenhum valor a Recorrente receberia da Herança, como não recebeu.
k) Não resultou provado que com isso tivesse prejudicado os seus credores, antes, cumpriu com a vontade dos autores da herança e demais co-herdeiros como ficou provado.
l) Pelo que não poderia o Tribunal “ a quo” atribuir poderes à Recorrente sobre um direito que a mesma não detinha desde a morte do autor da herança, o seu pai, morte ocorrida anos antes da sua apresentação à insolvência, não tendo esta qualquer responsabilidade no facto da escritura de pública de compra e venda do bem da herança ó ter sido vendido anos mais tarde pela Cabeça de Casal, como também ficou provado.
Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve a sentença ser revogada.
Não foram oferecidas contra-alegações.
II – Objeto do recurso
Considerando que:
. o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
as questão a decidir são as seguintes:
.se devem ser aditados dois novos pontos à matéria de facto; e,
.se não devia ter sido recusada antecipadamente a exoneração do passivo restante à insolvente.
III - Fundamentação
Na primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:
a. A devedora apresentou-se à insolvência em março de 2016 e foi declarada insolvente em 10/3/2016;
b. O processo foi encerrado por insuficiência da massa insolvente em setembro de 2016;
c. Foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante;
d. O fiduciário verificou que a insolvente declarou rendimentos prediais resultantes de arrendamento de um imóvel que resultava da herança aberta por óbito de seus pais;
e. A mãe da devedora, R. O., faleceu no dia - de Julho de 2008, na situação de casada com A. C. e o pai, A. C., faleceu no dia 1 de Dezembro de 2014, na situação de viúvo;
f. Eram herdeiros, juntamente com a devedora, os seus três irmãos, pelo que, o direito da devedora na herança seria de ¼;
g. No dia 8 de Maio de 2018, a devedora repudiou a herança aberta por óbito de ambos os pais, tendo sucedido à mesma no seu direito os seus dois filhos, H. D. e B. R.;
h. Esta herança era composta, pelo menos, pelo seguinte bem imóvel: fracção autónoma designada pela letra “I” que faz parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … da freguesia de ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …º de ...; composta por apartamento no 1º andar esquerdo, com um lugar na cave para aparcamento com o nº 9;
i. No dia 18 de Janeiro de 2019, este bem imóvel foi vendido pelo preço de Euros 60.000,00,
j. Caso a devedora não tivesse repudiado à sua herança, a mesma teria recebido desta venda o montante de Euros 15.000,00;
k. Na sua petição inicial, a devedora refere que não é titular de qualquer bem ou direito e, em momento algum, informa ser titular do quinhão hereditário por morte dos seus pais.
l. Ainda antes de morte dos pais, avós maternos dos filhos da devedora, aqueles manifestaram a vontade de que, após o seu falecimento, o seu quinhão hereditário fosse adjudicado aos netos, dado que estes haviam passado a residir com o pai, sem que a insolvente tivesse contribuído com qualquer pensão de alimentos, fruto da sua precária situação económico financeira;
m. Essa vontade dos avós maternos pretendia compensar o pai dos netos pelos encargos que este suportou na educação e sustento dos mesmos, dado que a insolvente em nada contribuíra para esse fim;
n. Passados seis anos desde a morte do avô materno, autor da herança, a cabeça de casal informou que iria proceder à venda do imóvel que fazia parte do acervo da herança, o que fez.
Da ampliação da matéria de facto
Entende a apelante que devem ser aditados à matéria de facto os seguintes factos:
.A escritura dos bens da herança só aconteceu passados seis anos depois da morte do autor da herança quando o comprador teve meios financeiros para pagar o preço.
.O valor das tornas do insolvente foram entregues aos seus filhos (1) que intervieram na escritura de compra e venda.
Fundamenta-se no depoimento da sua irmã A. O..
Entendemos não ser caso de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto. O Tribunal deve abster-se de o fazer “quando os factos impugnados não interfiram de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível de questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados” (2).
Não se vislumbra como é que o aditamento que se pretende seja efetuado, possa alterar a decisão, pelo que não há que conhecer do pedido de ampliação.
Como melhor desenvolveremos infra, foi declarada cessado o procedimento de exoneração por se ter entendido que a conduta da insolvente preenchia o disposto na alínea e) do artº 238º do CIRE (3) ex vi do artº 243º, nº 1 alínea b). E preenchia o disposto na mencionada alínea porque a insolvência, caso tivessem sido apurados os factos agora apurados, teria sido considerada culposa por força do disposto no artº 186º, nº 1 e 2º, alíneas a) e d), aplicável também às pessoas singulares, conforme preceitua o nº 4.
Considerando que está em causa a ocultação de um bem e a sua disposição a favor de terceiros, é totalmente irrelevante, a prova de que a insolvente nada recebeu, pois que a alínea d) do nº 2 do artº 186º igualmente censura a disposição de um bem ou direito a favor de terceiros, pelo que é indiferente a prova de que a apelante nada recebeu em contrapartida da venda..
Por outro lado, ainda que a escritura de compra e venda tivesse sido realizada em data anterior e mesmo antes da apresentação à insolvência, por ter sempre de ser realizada após a morte do pai da insolvente, ocorrida em 2014, sempre se localizaria dentro do período temporal a que alude o nº 1 do artº 186º - nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência - pois que este se iniciou em março de 2016, sendo pois irrelevante o aditamento da seguinte factualidade ”A escritura dos bens da herança só aconteceu passados seis anos depois da morte do autor da herança quando o comprador teve meios financeiros para pagar o preço” que pretendia demonstrar que a escritura só foi feita na pendência da insolvência, por motivo não imputável à apelante.
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Pelo exposto, não se conhece da impugnação.
Do Direito
Na decisão recorrida entendeu-se ser de cessar antecipadamente o procedimento de exoneração.
Constituem causas possíveis da cessação antecipada:
. o incumprimento pelo devedor com dolo ou culpa grave de alguma das obrigações impostas pelo artº 239º, com prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência (artº 243º, nº 1, alínea a));
. o apuramento, no incidente de qualificação de insolvência, da contribuição culposa do devedor para a criação ou agravamento da situação de insolvência (artº 243º,nº 1, alínea c));
. as hipóteses previstas nas alíneas b), e) e f) do nº 1 do artº 238º (artº 243º, nº 1, alínea b)) que são algumas das que dão causa ao indeferimento liminar. Estas constituem situações que teriam justificado o indeferimento liminar do pedido de exoneração, mas que não foram oportunamente atendidas por a sua verificação ou o seu conhecimento só ter ocorrido supervenientemente que poderão assim ser objeto de nova apreciação, mas agora com vista à cessação antecipada do procedimento de exoneração. No segundo caso, a superveniência é aferida em função do conhecimento de quem requer a cessação antecipada do procedimento e as referidas circunstâncias só podem ser arguidas no caso do seu conhecimento pelo requerente ter sido adquirido após o despacho inicial.
Autores há que não concordam que a referida remição para o artº 238º do CIRE se restrinja às causas mencionadas, tanto mais que o nº 1 do artº 246º, aplicável à revogação da exoneração, opera uma remissão para quase todas as alíneas que se encontram previstas no nº 1 do artº 238º, com excepção, como bem se compreende, da relativa à alínea a) que diz respeito à extemporaneidade de apresentação do pedido e defendem a interpretação extensiva ou enunciativa do disposto sobre a revogação à recusa antecipada, constituindo assim causa de recusa antecipada qualquer dos fundamentos previstos para a revogação (neste sentido Maria de Assunção Oliveira Cristas, Exoneração do passivo restante, p. 171, citada por Catarina Serra, em Lições do Direito da Insolvência, 2ª edição, 2021, Almedina, p. 624).
As causas de cessação configuram como uma sanção imposta ao devedor por comportamentos indevidos por ele adotados antes ou na pendência da exoneração.
Relativamente à causa de recusa de exoneração com fundamento na alínea c) do nº 1 do artº 243º, a redação desta alínea, quando confrontada com a noção geral de insolvência culposa, suscita algumas dúvidas relativamente à qualificação que o legislador quis efectivamente abranger. Efetivamente, para além do requisito temporal a que também atende o nº 1 do artº 186º, alínea c) do nº 1 do artº 243º, ao referir-se a culpa, se entendida esta expressão no seu sentido lato, abrangeria situações que não correspondem ao dolo ou culpa grave que qualificam a insolvência culposa, pelo que se podia suscitar a questão se a alínea c) do nº 1 do artº 243º abrangeria também casos de insolvência fortuita.
Esta interpretação literal do preceito conduz a uma solução dissonante da que resulta das duas outras alíneas, impondo-se uma interpretação restritiva que limite a aplicação da alínea c) aos casos de insolvência culposa (cfr. defende Luis Carvalho Fernandes, “A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares no direito português”, Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, Lisboa, 2009, p. 291).
Como se referiu já, o fiduciário requereu a cessação antecipada com fundamento na violação do disposto no artigo 243.º, n.º 1, al. b), alínea e) do nº 1 do artigo 238º e alíneas a) e d) do nº 2 e nº 4 do artigo 186º, todos do CIRE, enquadramento normativo que, de acordo com a interpretação que fizemos, foi mantido na decisão recorrida.
Dispõe a referida alínea e) do nº 1 do artº 238º que o pedido de exoneração não deve ser concedido se “constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artº 186º”.
No caso dos autos verifica-se que a insolvente não informou os autos da existência da titularidade de um direito à herança por óbito dos seus pais, nem quando requereu a sua insolvência, nem posteriormente, tendo repudiado a herança em 03.05.2018, já depois da prolação do despacho liminar proferido no procedimento, em 15.09.2016. Tendo o bem imóvel que integrava a herança sido vendido por 60.000,00 e sendo quatro os filhos dos autores da herança, a insolvente, caso não tivesse repudiado a herança, iria receber a quantia de 15.000,00.
Entende a apelante que não estava obrigada a declarar o referido direito porque sabia que não tinha qualquer direito à herança, cumprindo a vontade dos autores da herança seus pais e dos demais co-herdeiros, que pretendiam que a sua parte fosse entregue aos seus filhos, o que demonstra também a sua ausência de culpa.
Nos autos foram reclamados créditos em valor superior a 12.500,00.
Os autos foram encerrados em 15.09.2016 por falta de bens, apenas prosseguindo para efeitos do procedimento de exoneração.
O período de 5 anos da cessão iniciou-se após o despacho de encerramento e em virtude do valor dos rendimentos auferidos pela insolvente, serem inferiores ao valor subtraído à cessão, correspondente a 1,5 o salário mínimo nacional, a insolvente até ao momento nada entregou ao fiduciário.
O nº 1 do artº 186º prevê que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (nº 1). Uma vez que o preceito nada dispõe de particular sobre a noção de dolo ou culpa grave, estas deverão ser entendidas nos termos gerais de Direito (cfr. defendem Luis Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão, 209, Quid Juris, p. 610).
Por sua vez, o nº 2 do artº 186º estabelece uma presunção inilidível que completa a noção do nº1 e o nº 3, mediante uma presunção ilidível, dá por verificada a culpa grave quando se verifiquem determinadas circunstâncias (cfr. defendem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, p.610).
Assim, no seu nº 2, estabelece-se que a insolvência é “sempre culposa” quando o devedor pessoa singular, tenha praticado ou omitido certos factos e, entre eles, conforme aí referido, ocultado ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor (alínea a) ou dispondo dos mesmos em proveito pessoal ou de terceiros (alínea d).
Ao dizer-se, no nº 2, que é ou se considera “sempre” culposa a insolvência “quando” ocorram os factos a seguir objectivados, tal advérbio não visa modificar aquela relação temporal, antes referida no nº 1 como a relevante (os três últimos anos anteriores).
O utilização do advérbio sempre tem por fim modificar o núcleo dos aludidos pressupostos ou condições exigíveis pelo nº 2, dispensando a verificação dos em geral enunciados no nº 1 – dolo ou culpa grave, nexo de causalidade e resultado - bastando-se com os de seguida tipificados nas suas diferentes alíneas (presumindo a sua ocorrência e dispensando a demonstração). Não pretende alterar o período temporal em que, para relevarem, eles devem acontecer ( cfr. sustentam Luis Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, p.610 e se defende no Ac. deste Tribunal de 15.03.2018, processo 2434/16.0T8VNF.G1 – 1.ª , relatado pelo Desembargador José Amaral, em que a relatora interveio como adjunta, mas que não se encontra publicado e que temos vindo a seguir de perto).
Assim o nº 2 elimina a exigência, para que o conceito de insolvência culposa se preencha e opere, de que, comprovadamente, uma certa conduta do devedor seja efectivamente censurável segundo qualquer das modalidades e graus admitidos (dolo – directo, necessário ou eventual – ou negligência grave) e causadora do estado de insolvência ou do agravamento deste, considerando verificados estes elementos e, por isso, dever ser reprovado o devedor sempre que e desde que ocorra qualquer dos factos indicados em qualquer das alíneas.
Nas diversas hipóteses previstas no nº 2, em função de cuja verificação se considera sempre culposa a insolvência (ou seja, sempre preenchido o conceito do nº 1), além de inilidível (jure et jure), por força da parte final daquela norma civilística, tal presunção abarca todos os demais elementos.
Não tem, portanto, sentido, quanto a elas, discutir-se se o nexo de causalidade deve ser provado como requisito autónomo, uma vez que na presunção ele está compreendido. Provados aqueles factos base e, obviamente, a situação de insolvência, a culpa dos administradores da pessoa colectiva ou da pessoa singular (nº 4 do artº 186º) e a relação causal entre a sua conduta censurável e aquele resultado presumem-se “sempre”, não podendo ser afastados por prova em contrário.
Neste sentido, designadamente, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 07-02-2012 (4), de cujo sumário destacamos:
“II - A insolvência é culposa quando esse estado tiver criado ou agravado em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 186 nº 1 do CIRE).
III - A qualificação da insolvência como culposa reclama, portanto, uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores.
IV - A ilicitude do comportamento do devedor ou dos seus administradores reparte-se por elementos objectivos e subjectivos.
V - A culpa do devedor ou dos seus administradores decorre de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura.
VI - A censurabilidade da conduta é uma apreciação de desvalor que resulta do reconhecimento de que o devedor, ou os seus administradores, nas circunstâncias concretas em que actuaram, podiam ter conformado a sua conduta de molde a evitar a queda do primeiro na situação de insolvência ou agravamento do estado correspondente.
VII - A censurabilidade do comportamento do devedor ou dos seus administradores é um juízo feito pelo tribunal sobre a atitude ou motivação de um e de outros, segundo o que pode ser deduzido dos factos provados.
VIII - A lei considera sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja pessoa singular, designadamente quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham destruído ou descaminhado, no todo ou em parte, o património do devedor ou tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada (artº 186 nº 2 a) e h), 1ª parte, do CIRE).
IX - Trata-se, nitidamente, de uma presunção absoluta, inilidível ou iuris et de iure, dado que impõe um regime, não admitindo prova em contrário (artº 350 nº 2, in fine, do Código Civil).” (5)
E igualmente com interesse, designadamente, o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 15-10-2015 (6):
“2. É uniforme a interpretação de que o n.º 2 do artº 186 do CIRE elenca diversas situações em que o legislador presume, de forma taxativa e inilidível, ou seja, sem possibilidade de prova em contrário, que a insolvência é culposa.
3. E o legislador fê-lo porque a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Fê-lo para facilitar essa qualificação mas concretizou-o a partir de factos graves e de situações que exigem uma ponderação casuística, temporalmente balizadas pelo período correspondente aos três anos anteriores à entrada em juízo do processo de insolvência.
4.Lidando com uma presunção, sabemos que ela vai perdendo sustentação com um tempo excessivo decorrido entre o ato e o processo. Já se o ato ocorre próximo do processo ou durante o mesmo, a sua ligação à criação ou agravamento da insolvência é mais forte, sustentando melhor a presunção de culpa e o nexo de causalidade.”
Ora, não se vê como não considerar que a apelante ocultou o seu direito na herança por óbito dos seus pais, sendo irrelevante a intenção com que agiu, nos termos e para os efeitos do artº 186º, nº 2. Incumbia-lhe ter declarado esse direito, logo quando se apresentou à insolvência (artº 24º, nº 1, alínea e), o que não fez. E não só o ocultou, como dispôs dele em benefício de terceiros – os seus filhos.
O repúdio só teve lugar em 8 de maio de 2018, durante o período de cessão.
Se a apelante tivesse informado o tribunal como lhe competia da existência do direito à herança aberta por óbito dos seus pais, o mesmo teria sido apreendido para a massa insolvente. Declarada a insolvência o insolvente fica privado dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente. Apenas ficam subtraídos a este efeito, os bens insusceptíveis de apreensão para a massa insolvente que correspondem genericamente aos bens insusceptíveis de penhora (artº 736º e s do CPC) - o que não é o caso do direito a quinhão em património autónomo - e o eventual subsídio de alimentos (artº 84º, nº 1).
Se a apelante tivesse declarado como lhe incumbia o direito à herança, ficaria privada do direito de dispor desses bens, o que inclui o repúdio da herança.
E com a venda desse direito, muito provavelmente ficariam liquidadas ou liquidadas quase na íntegra as dívidas da insolvente, atento o valor das dívidas reclamadas e o valor que representava o quinhão da insolvente.
Diz a apelante que o repúdio poderia ter sido feito antes do início do processo da insolvência, não lhe podendo ser imputável o facto de ter sido feito só em 2018, dado que a escritura só foi feita em Janeiro de 2019 porque foi quando o comprador adquiriu meios económicos para o comprar.
Ora, desde logo o repúdio é independente da venda. Nada impedia que a escritura de repúdio tivesse tido lugar em momento anterior.
Face aos factos apurados é manifesto que a apelante ocultou do tribunal e do fiduciário o seu direito à herança e que dispôs desse direito em benefício de terceiros, ocultação de que o requerente só teve conhecimento após o despacho inicial de exoneração, desde logo porque, relativamente ao repúdio, a escritura só foi realizada em 8 de maio de 2018, já depois da insolvente ter sido notificada, em 16.10.2017 pelo fiduciário para juntar a declaração para efeitos de IRS relativa ao ano de 2016 e demais elementos que considerou necessários para a elaboração do relatório relativo ao 1º ano de cessão – outubro de 2016 setembro de 2017 (carta junta com o requerimento do fiduciário de 1303.2018), o que levou o fiduciário a afirmar que o repúdio teve lugar porque inquiriu a apelante sobre as rendas declaradas na declaração para efeitos de IRS. Tratam-se pois de factos não só de conhecimento superveniente, como de verificação superveniente.
O facto dos efeitos do repúdio retroagirem à data da abertura da sucessão (artº 2062º do CC) não altera o que ficou dito. Independentemente da data a que retroagem os seus efeitos, o repúdio ocorreu na pendência do processo de insolvência. Mas ainda que a apelante tivesse repudiado a herança imediatamente após a morte do seu pai, ainda assim tal ato relevaria porque praticado nos três anos que antecedem o início do processo de insolvência, o que não afastaria a aplicação ao caso do disposto no artº 186º, nº 2.
O despacho recorrido é pois de manter.
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 20 de maio de 2021
1. A apelante refere os seus sobrinhos, mas trata-se de um evidente lapso, uma vez que de acordo com a sua versão quem beneficiou da venda foram os seus filhos.
2. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil Novo Regime , 3ª edição revista e actualizada, Almedina, 2010, p. 337.
3. Diploma a que pertencem todos os preceitos legais que venham a ser citados sem indicação de outra fonte.
4. Citado no referido Ac. do TRG.de 15.03.2018.
5. Relatado pelo Desemb. Henrique Antunes. Ainda: Acórdãos do STJ, de 06-10-2011 (Serra Baptista); da Relação do Porto, de 12-10-2009 (Cecília Agante), de 16-10-2012 (Rui Moreira) e de 16-04-2013 (Rodrigues Pires); e da Relação de Coimbra, de 04-05-2010 (Carlos Moreira), de 05-12-2012 e 21-01-2014 (Moreira do Carmo) e de 06-11-2012 (Fernando Monteiro), todos acessíveis em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados e demais Jurisprudência e Doutrina em cada um deles citada.
6. Proferido no processo nº 938/14.8TBGMR-D.G1 (Maria da Purificação Carvalho) e também citado no Ac. do TRG de 15.03.2018.