ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE MANUTENÇÃO
INCOMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA PARCIAL
Sumário


I- A generalidade das exceções dilatórias são supríveis, quer por iniciativa do autor, quer por determinação oficiosa do Tribunal.
II- No caso de dedução de pedidos substancialmente incompatíveis por aplicação analógica da solução contida no artigo 38º do Código de Processo Civil deve o tribunal facultar à parte a escolha do pedido com o qual o processo deve prosseguir.
III- Nestes casos deve prevalecer o entendimento de «impor o aproveitamento da instância, em conjugação com todo um conjunto de princípios que sempre devem orientar o intérprete na busca das melhores soluções – economia processual, prevalência da substância sobre a forma, eficiência do sistema, cooperação mútua.

Texto Integral


- Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães –

I. RELATÓRIO

Nos autos supra identificados em que figuram como autora CAIXA ... e réus X – IMOBILIÁRIA, S.A. e S. M. foi proferida a seguinte decisão:

Por despacho datado de 28/09/2020, foram as partes notificadas para se pronunciarem, em 10 dias, e ao abrigo do princípio do contraditório, sobre a existência de uma eventual incompatibilidade substancial de pedidos (pedidos cumulados de demarcação e de reivindicação), o que originaria a ineptidão da petição inicial.
Através de requerimento datado de 12/10/2020, veio a autora alegar, em síntese, que, correspondendo à ação de demarcação a forma de processo comum, nada obsta que, no mesmo processo, se cumule o pedido de reconhecimento do direito de propriedade (ação real) com o de demarcação (ação pessoal), pois os pedidos não são incompatíveis.
Ademais, afirma que não foram formulados pela autora dois pedidos típicos da reivindicação – reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio e condenação do réu na sua entrega -, mas apenas o segundo, pugnando que os pedidos formulados são compatíveis entre si, substancial e processualmente.
Todavia, e para o caso do Tribunal assim não entender, a autora declara que mantém o pedido formulado na alínea a) e desiste da instância quanto aos demais pedidos tidos por com ele incompatíveis.
Os réus, por seu turno, por requerimento datado de 13/10/2020, arguem que a autora não coloca em causa nem o seu direito de propriedade nem o direito de propriedade do réu sobre os prédios confinantes, sendo que o direito em si não é a causa de pedir, mas uma das condições de legitimidade da autora para instaurar a acção de demarcação.
Acrescentam que, a autora não se limitou a pedir a demarcação do seu prédio, mas também a cumular um pedido característico do exercício do direito de reivindicação, pese embora se tenha limitado a pedir a restituição da coisa, pois que o pedido de reconhecimento se encontra implícito no pedido de restituição.
Mais, afirmam que a autora, no primeiro pedido implicitamente reconhece o seu direito de propriedade e ao mesmo tempo que este não se encontra afetado pois apenas pede a demarcação do seu prédio, todavia, num segundo momento (pedido) já coloca em causa esse mesmo direito de propriedade.
Entendem, assim, que se está perante uma cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, que gera a ineptidão da petição inicial e a nulidade de todo o processado, pugnado pela sua absolvição da instância.

Cumpre apreciar e decidir.

Antes de atentarmos aos pedidos formulados pela autora, diremos que a forma de processo adequada tem de ser determinada em função do pedido (ou pedidos) deduzidos pelo autor em sede de petição inicial e a(s) causa(s) de pedir que invoca para sustentar esse(s) pedido(s).
Dito isto, e com a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12, foi eliminado o processo especial de arbitramento, passando a ação de demarcação, tal como a ação de reivindicação, a seguir a mesma forma de processo – o processo comum de declaração.
Pugna a autora pela compatibilidade dos pedidos formulados em sede de petição inicial. Por seu turno, a ré defende a incompatibilidade substancial dos mesmos, peticionando a sua absolvição da instância.

Dispõe o artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, al. c) do Código de Processo Civil que:

1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
(…)
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.

Esclarece Abrantes Geraldes (em Temas da Reforma do Processo Civil, volume I, 1999, página 131) que “serão incompatíveis os pedidos que mutuamente se excluam ou que assentem em causas de pedir inconciliáveis”.
Ou seja, ocorre ineptidão da petição inicial com fundamento em cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis quando, em cumulação real, são deduzidos pedidos cujos efeitos jurídicos mutuamente se repelem, isto é, pedidos que mutuamente se excluem ou que assentam em causas de pedir inconciliáveis.
O primeiro pedido formulado pela autora é um pedido típico de uma ação de demarcação: “Condenados os réus a concorrerem com a autora para a demarcação do prédio desta acima identificado, no confronto com o prédio da 1.ª ré com ele confinante”.
A ação de demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas definir as estremas entre dois prédios contíguos, propriedade de donos distintos, perante o estado de incerteza das respetivas estremas.
A incerteza ou indefinição sobre os limites dos prédios tanto pode resultar do desconhecimento sobre os limites dos prédios como do desacordo sobre os mesmos.
O direito de propriedade de autor e réu sobre os respetivos prédios, a demarcar, não integra a causa de pedir da ação de demarcação, mas funciona como mera condição de legitimidade ativa e passiva para a ação de demarcação.
A causa de pedir na ação de demarcação é complexa e desdobra-se na existência de prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos, cujas estremas são duvidosas ou se tornaram duvidosas. O pedido é a fixação da linha divisória entre os prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos.
A questão controversa, in casu, é se os restantes pedidos podem ou não ser cumulados com o supra citado pedido de demarcação.

Vejamos.

Peticiona, também, a autora que a ré seja condenada a entregar-lhe a totalidade de determinada área (que se arroga proprietária), livre e desocupada de quaisquer bens ou parcelas de edifícios e condenados ambos os réus a pagarem à autora a importância correspondente à diferença entre o valor do prédio antes e depois da demolição do edifício, tendo como limite o valor do crédito da autora sobre o 2.º réu.
Ora, salvo melhor opinião, entendemos que o segundo pedido formulado pela autora configura um pedido típico de uma ação de reivindicação (e o terceiro pedido um seu desenvolvimento ou consequência)
A acção de reivindicação é uma ação real, petitória e condenatória, destinada à defesa da propriedade, sendo a respetiva causa de pedir integrada pelo direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e pela violação desse direito pelo reivindicado (que detém a posse ou a mera detenção desta)
Não obstante a autora alegar que apenas peticiona a entrega da coisa, é pacífico que o pedido de reconhecimento da propriedade é um pedido implícito do pedido de restituição, não tendo de ser expressamente peticionado (neste sentido, vide, Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, página 113 e, entre vários, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/03/2019, processo n.º 61/17.3T8VRL.G1, disponível em www.dgsi.pt).
Diremos, contudo, que nem sempre é fácil distinguir a ação de reivindicação da ação de demarcação, porque, em qualquer dos casos, se discute uma questão de domínio, relativamente a uma faixa de terra. Mas, podemos dizer que na primeira daquelas ações, está em causa o próprio título de aquisição, enquanto que na outra, discute-se a extensão do prédio possuído.
Na ação de reivindicação do direito de propriedade, o autor tem que alegar os factos constitutivos do direito de propriedade de que se arroga, devendo caracterizar da forma mais precisa possível o objeto a que respeita o seu direito e descrever a ofensa que lhe foi feita ou está a ser feita, delimitando a medida desse ataque ao seu direito, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que afirma pertencer-lhe.
Na reivindicação não é possível requerer que se delimite ou se determine confrontações de terrenos. Estes já estão devidamente definidos, pretendendo-se a sua restituição aos legítimos proprietários, se a ocupação for ilegal (neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/06/2011, processo n.º 406/09.0TBCMN.G1, disponível em www.dgsi).
Ou seja, na ação de reivindicação é pressuposto a certeza sobre os limites do prédio e na demarcação, pelo contrário, é pressuposto a incerteza dos limites, seja por desconhecimento ou por desacordo, como supra se referiu.
Ora, facto é que as partes se encontram em desacordo quanto aos limites dos respetivos prédios.
Ora face aos pedidos formulados pela autora, entendemos que gera ineptidão da petição inicial e nulidade de todo o processado, a formulação, em cumulação de pedidos próprios da ação de reivindicação, como é o pedido de “ (…) entregar-lhe a totalidade dessa área, livre e desocupada de quaisquer bens ou parcelas de edifícios” que constituiu um pedido de restituição de propriedade, com o pedido de “ (…) concorrerem com a autora para a demarcação do prédio acima identificado, no confronto com o prédio da 1.ª ré com ele confinante”, próprio da ação de demarcação, por se tratarem de pedidos substancialmente incompatíveis.
Ineptidão que, em princípio, não é sanável.
Todavia, uma vez que a autora, alertada, manifestou, caso o Tribunal entendesse que a cumulação de pedidos se revelasse incompatível, a sua vontade em prosseguir a ação para conhecimento do pedido formulado na al. a) da petição inicial, desistindo dos julgados incompatíveis, e sendo a desistência livre, podendo a autora desistir a todo o tempo, entendemos, que desta forma, se encontra suprida a exceção verificada.
Face a todo o exposto, homologa-se a desistência dos pedidos formulados nas alíneas b) e c) (pois este último é um desenvolvimento ou consequência do pedido formulado em b)) da petição inicial, ao abrigo do disposto nos artigos 283.º, n.º 1, 285.º, n.º 2, 286.º, n.º 3 e 290.º do Código de Processo Civil.
Custas pela autora, nos termos do artigo 537.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Notifique, sendo a autora nos termos e para os efeitos do artigo 291.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

*
Registe e notifique.
Aguardem os autos o trânsito da presente sentença e após, conclua.
Seguiu-se requerimento dos réus X – IMOBILIÁRIA, S.A. e S. M. com o seguinte teor:
X – IMOBILIÁRIA, S.A. e S. M.,
réus nos autos à margem referenciados e aí melhor identificados, tendo sido notificados da douta sentença proferida nos presentes autos, vem, quanto ao teor da mesma se pronunciar nos seguintes termos:
1.º Encontra-se a decorrer prazo de recurso da sentença proferida, pelo que a mesma
ainda não transitou em julgado.
2.º Entendem os Réus que a mesma se encontra ferida de nulidade.
3.º Não obstante, os réus consideram que a mesma poderá ser reformada antes do termo do prazo de recurso ordinário.
4.º Evitando-se, desse modo, a necessidade de apresentação de recursos da sentença proferida.
5.º O que iria acarretar atrasos no normal andamento do processo com a abertura de novo prazo para contra-alegações.
6.º Além de que poderiam vir a ser praticados atos inúteis/anuláveis durante a pendência do recurso.

Assim:
7.º No douto despacho judicial, com data de 28/09/2020, foi aflorada a questão da ineptidão da petição inicial.
8.º Dele foram as partes notificadas para, querendo, se pronunciarem quanto ao eventual vício.
9.º Ambas as partes ofereceram os respetivos articulados onde expuseram as suas diferentes posições.
10.º No que à autora diz respeito, esta veio pugnar pela inexistência de qualquer vício
que torne inepta a petição inicial, alegando que: “Os pedidos formulados são, pois, compatíveis entre si, substancial e processualmente.”
11.º Não obstante, declarou: “No entanto e para o caso de assim se não entender, a autora declara que, mantendo o pedido da alínea a) desiste da instância quanto aos demais pedidos tidos por com ele incompatíveis.”
12.º Após, veio a ser proferida a sentença, da qual os réus ora vêm apresentar reclamação, de onde resulta que o douto Tribunal homologou “a desistência dos pedidos formulados nas alíneas b) e c) (pois este último é um desenvolvimento ou consequência do pedido formulado em b)) da petição inicial, ao abrigo do disposto nos artigos 283.º, n.º 1, 285.º, n.º 2, 286.º, n.º 3 e 290.º do Código de Processo Civil.”
Ora,
13.º Nos termos do disposto no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Civil “A desistência da instância depende da aceitação do réu desde que seja requerida depois do oferecimento da contestação.” (Sublinhado nosso).
14.º Os réus não foram notificados para virem dizer se aceitavam, ou não, a desistência da instância por parte da autora quanto aos pedidos formulados nas alíneas b) e c).
15.º Pelo que não poderia o Tribunal ter homologado a desistência da autora, nos termos formulados, sem antes dar o contraditório aos réus, em cumprimento do normativo supramencionado.
16.º Assim, ou o Tribunal notificava a autora para vir esclarecer se efetivamente queria dizer que desistia dos pedidos ou, mantendo-se a já manifestada vontade de desistir da instância, deveria o Tribunal notificar os réus para virem dizer se aceitavam a desistência da instância quanto aqueles dois pedidos.
17.º Facto que não se verificou.
18.º A violação do contraditório fará incorrer a douta sentença no vício da nulidade.
19.º Nulidade essa que é passível de ser corrigida pelo douto Tribunal nos termos do
disposto no artigo 613.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

TERMOS EM QUE, se requer que seja suprimida a nulidade da sentença.

Tal requerimento mereceu decisão com o seguinte teor:

Notificados da sentença proferida a 14/10/2020, por requerimento datado de 04/11/2020, vieram os réus X – IMOBILIÁRIA, S.A. e S. M., invocar que a decisão supra referida se encontra ferida de nulidade, pugnando pela reforma da mesma nos termos do artigo 613.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Alegam, em síntese, que o douto Tribunal homologou “a desistência dos pedidos formulados nas alíneas b) e c) (pois este último é um desenvolvimento ou consequência do pedido formulado em b)) da petição inicial, ao abrigo do disposto nos artigos 283.º, n.º 1, 285.º, n.º 2, 286.º, n.º 3 e 290.º do Código de Processo Civil”.
Invocam que, nos termos do disposto no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Civil “A desistência da instância depende da aceitação do réu desde que seja requerida depois do oferecimento da contestação”, sendo que os réus não foram notificados para virem dizer se aceitavam, ou não, a desistência da instância por parte da autora quanto aos pedidos formulados nas alíneas b) e c), pelo que não poderia o Tribunal ter homologado a desistência da autora, incorrendo, assim, a sentença no vício da nulidade.
Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 613.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil que:

1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”.
Vejamos se a decisão proferida padece do vício alegado pelos réus.

Nos termos do artigo 286.º do referido diploma legal:

1 - A desistência da instância depende da aceitação do réu desde que seja requerida depois do oferecimento da contestação.
2 - A desistência do pedido é livre mas não prejudica a reconvenção, a não ser que o pedido reconvencional seja dependente do formulado pelo autor”.

Ora, nos presentes autos, a autora veio desistir dos pedidos incompatíveis com o formulado na alínea a), não obstante a sua formulação, na nossa opinião, errónea, ao referir-se à desistência da instância quanto aos pedidos julgados incompatíveis com o da alínea a).
Com efeito, a autora não veio desistir da instância, ou seja, não veio declarar expressamente que pretendia renunciar à ação proposta, mas sim dos pedidos que com o pedido formulado na alínea a) se revelassem incompatíveis. Ou seja, a autora escolheu prosseguir a ação com um objeto processual reduzido, dando conta ao Tribunal dos pedidos que pretendia ver apreciados na presente lide.
Assim, e face à posição assumida pela autora, o Tribunal homologou a desistência dos pedidos que considerou incompatíveis com o formulado na alínea a), que, de acordo com o normativo citado, é livre, não carecendo de aceitação dos réus, motivo pelo qual não os notificou para virem aos autos pronunciar-se sobre tal pretensão.
Pelo exposto, indefere-se a pretensão dos réus relativamente à reforma da sentença proferida nos presentes autos.
Não obstante, e melhor compulsada a decisão proferida, constatamos que a mesma contém lapsos de escrita, pelos quais desde já nos penitenciamos, nomeadamente no segmento decisório aquando da indicação dos normativos em que se funda para homologar a desistência, o que, poderá ter induzido os réus em erro (só assim se compreendendo a ora pretensão formulada).

Assim, e ao abrigo do disposto nos artigos 613.º e 614.º do Código de Processo Civil, proceder-se-á à retificação dos lapsos de escrita constatados, devendo o segmento decisório, nomeadamente no referente aos normativos citados, passar a ter a seguinte formulação:
“Face a todo o exposto, homologa-se a desistência dos pedidos formulados nas alíneas b) e c) (pois este último é um desenvolvimento ou consequência do pedido formulado em b)) da petição inicial, ao abrigo do disposto nos artigos 283.º, n.º 1, 285.º, n.º 1, 286.º, n.º 2 e 290.º do Código de Processo Civil
Retifique e anote em local próprio.
Notifique.

Inconformada a autora CAIXA …, apresenta recurso de ambas as decisões que termina com as seguintes conclusões:

1) A autora concluiu a petição inicial formulando três pedidos: demarcação, entrega do prédio demarcado, indemnização; na contestação os réus não puseram em causa esta cumulação;
2) Em resposta ao douto despacho de 28/09/2020l a autora sustentou a compatibilidade dos pedidos: mas, para o caso de assim se não entender, deveria a ação prosseguir para apreciação do pedido da alínea a), desistindo da instância em relação aos julgados incompatíveis;
3) Por despacho de 14/10/2020 a M. Juiz a quo após mencionar a posição subsidiária da autora de desistência da instância homologou “a desistência dos pedidos formulados nas alíneas b) e c)”;
4) No seu requerimento de 04/11/2020 os réus invocaram a nulidade da sentença pelo facto de ser homologada a desistência sem que a tivessem aceitado – interpretando-a, pois, como sendo da instância;
5) No despacho de 06/11/2020 a M. Juiz a quo refere que a autora veio desistir dos pedidos e que, na sentença, se limitou a homologar essa desistência;
6) A douta sentença incorreu em nulidade:
- por oposição entre os fundamentos (desistência da instância relativamente a dois dos três pedidos formulados na p.i.) e a decisão (homologação da desistência desses pedidos) – artº 615 nº 1 al c) do CPC;
- por condenação em objeto diverso do pedido: foi pedida a desistência da instância e foi decidida desistência do pedido;
7) O reconhecimento da nulidade da sentença abrange o despacho da aclaração, a não ser que se considere que este decidiu em sentido diverso da sentença;
8) Neste caso, deve considerar-se que a sentença se mantém válida, mas devendo ser interpretada como desistência da instância e não dos pedidos;
9) Os pedidos formulados na p. i. são compatíveis entre si;
10) Ainda que assim se não entendesse, competiria ao Tribunal sanar a (eventual) nulidade, designadamente por absolvição dos pedidos incompatíveis;
11) A decisão em sentido contrário interpretou erradamente e violou o nº 2 do art. 6 e os nºs 2 e 3 do artigo 590, ambos do CPC;
12) Deve, pois, ser decretada a nulidade da sentença e/ou despacho de aclaração e proferida decisão que reconheça a compatibilidade dos pedidos ou caso assim se não entenda, que decrete a absolvição da instância em relação aos pedidos das alíneas b) e c) da p. i.

Os réus X – IMOBILIÁRIA, S.A. e S. M.,

Contra-alegam apresentando as seguintes conclusões:

1.ª) Notificada da douta sentença com data de 06-11-2020, veio a autora dela recorrer e pedir que seja “decretada a nulidade da sentença e/ou despacho de aclaração e proferida decisão que reconheça a compatibilidade dos pedidos ou caso assim se não entenda, que decrete a absolvição da instância em relação aos pedidos das alíneas b) e c) da p. i.”
2.ª) A recorrente com a sua petição inicial veio formular e cumular pedidos de demarcação e de reivindicação.
3.ª) Os pedidos formulados são substancialmente incompatíveis entre si, fazendo incorrer a petição inicial no vício da ineptidão, prevista no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, al. c) do Código de Processo Civil.
4.ª) A ineptidão da petição inicial gera a nulidade de todo o processado, subsistindo a nulidade ainda que um dos pedidos fique sem efeito, conforme resulta do artigo 186.º, n.ºs 1, 2, al. c) e 4 do Código de Processo Civil.
5.ª) A ineptidão da petição inicial apenas poderá ser ultrapassada (a ser admissível nesta fase) por meio da desistência por parte da autora dos pedidos que se mostram incompatíveis entre si ou através da desistência da instância quanto aos mesmos.
Sendo que esta última via exige que seja respeitado o princípio do contraditório em relação aos réus.
6.ª) O princípio do contraditório não foi respeitado, nem nunca foram os réus notificados para se pronunciarem no sentido de aceitarem, ou não, a pretendida desistência da instância por parte da autora em relação a pedidos determinados.
7.ª) O Tribunal não se pode substituir aos réus neste ato, sob pena de fazer incorrer a decisão no vício da nulidade por violação do contraditório.
TERMOS EM QUE, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso interposto pela autora ser julgado improcedente, pelos motivos expendidos.
Assim decidindo, mais uma vez, Venerandos Desembargadores, será feita a ACOSTUMADA E NECESSÁRIA JUSTIÇA.

O recurso foi admitido como de apelação a subir em separado, com efeito devolutivo, nos termos dos artigos 644.º, n.º 1, alínea b) e 3, 645.º, n.º 2, e 647.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Seguiu-se decisão singular proferida por este Tribunal e datada de 25.01.2021 com o seguinte teor:

De Direito

●. Nulidade da decisão recorrida

Nas conclusões de recurso suscita a apelante a nulidade da sentença por violação do disposto nas alíneas c) e e) do art.º 615º do CPC.
O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre a nulidade da decisão, nos termos do art.º 617º/1 CPC.
Atenta a simplicidade das questões suscitadas e face aos elementos que constam dos autos, não se mostra indispensável ordenar a baixa dos autos para a apreciação das nulidades, nos termos do art.º 617º/5 CPC, passando-se a conhecer desde já das mesmas.
A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites.
As nulidades da sentença incluem-se nos vícios de limites considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do art.º 668º CPC, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia.
Vejamos, pois, se ocorrem as invocadas nulidades.

▪. Alíneas c) e e) do art.º 615/1

Consubstancia a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C. a oposição entre a decisão e os fundamentos em que assenta.
A sentença enfermará do primeiro vício se na fundamentação o juiz seguir uma determinada linha de raciocínio, que aponta para uma determinada conclusão, mas acaba por decidir em sentido oposto ou, pelo menos, divergente.
Também se o juiz condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido acarreta a nulidade da decisão.
A Recorrente considera verificarem-se as apontadas nulidade porque Não restam – não podem restar – quaisquer dúvidas de que a autora, no seu requerimento de 12/10/2010 (refª 36759243) apenas desistiu da instância em relação a dois pedidos e não dos próprios pedidos: o art.º 8º e a e segunda das conclusões são, a este respeito, inequívocos.

Pelo contrário, a douta sentença é, a este respeito, equívoca:
- na 1ª página, parágrafo 4º, refere expressamente em desistência da instância;
- na 5ª página, parágrafo 3º, usa o termo desistência mas sem qualquer qualificativo;
- nessa mesma página, parágrafo declara: “… homologa-se a desistência dos pedidos das alíneas b) e c);
- ainda na mesma página, quanto à fundamentação de direito, menciona as seguintes disposições do CPC:
- o art.º 283 nº 1 que menciona a desistência do pedido;
- o art.º 285 nº 2 que menciona a desistência da instância;
- o nº 3 do art.º 286 que não existe, sendo certo que o nº 1 impõe a aceitação do réu para a desistência da instância e o nº 2 determina que a desistência do pedido é livre.
(…) Os réus no seu requerimento de 04/11/2020 interpretaram a desistência e a sua homologação como sendo da instância e não do pedido: e bem porque os termos utilizados pela autora são inequívocos.
Essa interpretação é comum à autora e pelas mesmas razões.
Assim, só quando da notificação do douto despacho de 06/11/2020 (Refª 170422807) é que a autora se apercebeu que foi outra a decisão: de homologação da (inexistente) desistência dos pedidos.
Daqui decorre a evidência da nulidade: - por oposição entre os fundamentos (desistência da instância relativamente a dois dos três pedidos formulados na p.i.) e a decisão (homologação da desistência desses pedidos) – art.º 615 nº 1 al c) do CPC; - por condenação em objeto diverso do pedido: foi pedida a desistência da instância e foi decidida desistência do pedido.
Reconhecemos razão à recorrente. Verificam-se as apontadas e descritas nulidades por oposição entre os fundamentos (desistência da instância relativamente a dois dos três pedidos formulados na p.i.) e a decisão (homologação da desistência desses pedidos) – art.º 615 nº 1 al c) do CPC; e por condenação em objecto diverso do pedido: foi pedida a desistência da instância e foi decidida desistência do pedido.
Em suma esta decisão não cumpriu adequadamente a tarefa que lhe estava cometida, pelo que merece censura.
Nada mais nos cumpre apreciar e decidir pois não será caso de aplicação da regra da substituição prevista no art.º 665º do CPC.
De efeito considerando que a desistência da instância quanto aos pedidos supra referidos ocorreu após a apresentação da contestação admitindo o Tribunal recorrido essa desistência da instância como legalmente possível terá dar cumprimento ao disposto no nº1 do art.º 286º do CPC. Ou seja, tendo sido apresentado no tribunal recorrido o requerimento a desistir da instância no relativo aos pedidos ali identificados terá esse tribunal de apreciar esse requerimento nos seus precisos termos proferindo uma decisão que posteriormente poderá ser reapreciado pelo tribunal superior a quem cabe reapreciar decisões e não decidir de novo.
***
Concluindo:
A sentença enfermará da nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C. - a oposição entre a decisão e os fundamentos em que assenta - se na fundamentação o juiz seguir uma determinada linha de raciocínio, que aponta para uma determinada conclusão, mas acaba por decidir em sentido oposto ou, pelo menos, divergente.
***
V. DECISÃO

Em face do exposto, julga-se procedente a apelação, anulando-se as decisões recorridas na parte em apreciação neste recurso- homologatória da desistência dos pedidos- devendo providenciar-se pela prolação de uma decisão nos termos supra referidos.
Em consequência fica prejudicado o conhecimento do mérito das decisões impugnadas.
Sem custas
Notifique.
Remetido o processo ao Tribunal recorrido após cumprimento do determinado por este Tribunal foi proferida a seguinte decisão:
Face ao decidido pelo Venerando Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, tendo em consideração a posição manifestada pelos réus no sentido da não aceitação da desistência da instância quanto aos pedidos formulados nas alíneas b) e c) da petição inicial, os requerimentos das partes de 12/10/2020 e de 13/10/2020 e o despacho proferido a 14/10/2020, cumpre proferir o seguinte (reproduzindo parte do teor do supra referido despacho):
Como já havíamos deixado expresso, a forma de processo adequada tem de ser determinada em função do pedido (ou pedidos) deduzidos pelo autor em sede de petição inicial e a(s) causa(s) de pedir que invoca para sustentar esse(s) pedido(s).
Com a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12, foi eliminado o processo especial de arbitramento, passando a ação de demarcação, tal como a ação de reivindicação, a seguir a mesma forma de processo – o processo comum de declaração.
Pugnou a autora pela compatibilidade dos pedidos formulados em sede de petição inicial. Por seu turno, os réus defenderam a incompatibilidade substancial dos mesmos, peticionando a sua absolvição da instância.
Determina o artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do Código de Processo Civil que: “1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição: (…)
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”. Esclarece Abrantes Geraldes (em Temas da Reforma do Processo Civil, volume I,
1999, página 131) que “serão incompatíveis os pedidos que mutuamente se excluam ou que assentem em causas de pedir inconciliáveis”.
Ou seja, ocorre ineptidão da petição inicial com fundamento em cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis quando, em cumulação real, são deduzidos pedidos cujos efeitos jurídicos mutuamente se repelem, isto é, pedidos que mutuamente se excluem ou que assentam em causas de pedir inconciliáveis.
O primeiro pedido formulado pela autora é um pedido típico de uma ação de demarcação: “Condenados os réus a concorrerem com a autora para a demarcação do prédio desta acima identificado, no confronto com o prédio da 1.ª com ele confinante”.
A ação de demarcação (cfr. artigos 1353.º a 1355.º do Código Civil) não visa a declaração do direito real, mas apenas definir as estremas entre dois prédios contíguos, propriedade de donos distintos, perante o estado de incerteza das respetivas estremas.
A incerteza ou indefinição sobre os limites dos prédios tanto pode resultar do desconhecimento sobre os limites dos prédios como do desacordo sobre os mesmos.
O direito de propriedade de autor e réu sobre os respetivos prédios, a demarcar, não integra a causa de pedir da ação de demarcação, mas funciona como mera condição de legitimidade ativa e passiva para a ação de demarcação.
A causa de pedir na ação de demarcação é complexa e desdobra-se na existência de prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos, cujas estremas são duvidosas ou se tornaram duvidosas. O pedido é a fixação da linha divisória entre os prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos.
A questão controversa, in casu, é se os restantes pedidos podem ou não ser cumulados com o supra citado pedido de demarcação.
Atentemos.
Peticiona, também, a autora que a 1.ª ré seja condenada a entregar-lhe a totalidade de determinada área (que se arroga proprietária), livre e desocupada de quaisquer bens ou parcelas de edifícios e condenados ambos os réus a pagarem à autora a importância correspondente à diferença entre o valor do prédio antes e depois da demolição do edifício, tendo como limite o valor do crédito da autora sobre o 2.º réu.
Ora, salvo melhor opinião, entendemos que o segundo pedido formulado pela autora configura um pedido típico de uma ação de reivindicação (e o terceiro pedido um seu desenvolvimento ou consequência).
A ação de reivindicação, prevista no artigo 1311.º do Código Civil, é uma ação real, petitória e condenatória, destinada à defesa da propriedade, sendo a respetiva causa de pedir integrada pelo direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada ee pela violação desse direito pelo reivindicado (que detém a posse ou a mera detenção desta).
Não obstante a autora alegar que apenas peticiona a entrega da coisa, é pacífico que o pedido de reconhecimento da propriedade é um pedido implícito do pedido de restituição tendo de ser expressamente peticionado (neste sentido, vide, Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, página 113 e, entre vários, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/03/2019, processo n.º 61/17.3T8VRL.G1, disponível em www.dgsi.pt).
Diremos, contudo, que nem sempre é fácil distinguir a ação de reivindicação da ação de demarcação, porque, em qualquer dos casos, se discute uma questão de domínio, relativamente a uma faixa de terra. Mas, podemos dizer que na primeira daquelas ações, está em causa o próprio título de aquisição, enquanto que na outra, discute-se a extensão do prédio possuído.
Na ação de reivindicação do direito de propriedade, o autor tem que alegar os factos constitutivos do direito de propriedade de que se arroga, devendo caracterizar da forma mais precisa possível o objeto a que respeita o seu direito e descrever a ofensa que lhe foi feita ou está a ser feita, delimitando a medida desse ataque ao seu direito, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que afirma pertencer-lhe.
Na reivindicação não é possível requerer que se delimite ou se determine confrontações de terrenos. Estes já estão devidamente definidos, pretendendo-se a sua restituição aos legítimos proprietários, se a ocupação for ilegal (neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/06/2011, processo n.º 406/09.0TBCMN.G1, disponível em www.dgsi).
Ou seja, na ação de reivindicação é pressuposto a certeza sobre os limites do prédio e na demarcação, pelo contrário, é pressuposto a incerteza dos limites, seja por desconhecimento ou por desacordo, como acima se referiu.
Ora, facto é que as partes se encontram em desacordo quanto aos limites dos respetivos prédios.
E face aos pedidos formulados pela autora, entendemos que gera ineptidão da petição inicial e nulidade de todo o processado, a formulação, em cumulação de pedidos próprios da ação de reivindicação, como é o pedido de “(…) entregar-lhe a totalidade dessa área, livre e desocupada de quaisquer bens ou parcelas de edifícios” que constituiu um pedido de restituição de propriedade, com o pedido de “(…) concorrerem com a autora para a demarcação do prédio acima identificado, no confronto com o prédio da 1.ª com ele confinante”, próprio da ação de demarcação, por se tratarem de pedidos substancialmente incompatíveis (no mesmo sentido, vide, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça de 20/11/2001, processo n.º 02A1029, de 21/06/2006, processo n.º 06A363, do Tribunal da Relação de Guimarães de 01/06/2005, processo n.º 980/05-2, de 13/10/2014, processo n.º 220/12.0TBGAF.G1, de 05/04/2018, processo n.º 75/15.8T8TMC.G1, do Tribunal da Relação de Évora de 09/10/2008, processo n.º 1192/08.3, de 30/06/2011, processo n.º 360/08.5TVVC-C, de 31/10/2013, processo n.º 98/11.6TBNIS.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Não obstante a autora ter manifestado nos autos a sua vontade em prosseguir a ação para conhecimento do pedido formulado na alínea a) da petição inicial, desistindo dos considerados incompatíveis, tal conhecimento dependeria da aceitação dos réus, nos termos do disposto no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Todavia, os réus, expressamente opuseram-se a tal pretensão (cfr. requerimento com a referência Citius n.º 11154226).
A nulidade por ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis é do conhecimento oficioso do Tribunal e obsta ao conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição dos réus da instância, nos termos do disposto nos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), 196.º, 577.º, alínea b) e 578.º do Código de Processo Civil.
Face a todo o exposto, e ao abrigo das disposições legais citada, impõe-se, pois, julgar verificada a nulidade de todo o processado, decorrente da ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolver os réus da instância, o que se decide.
Custas pela autora nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil. *
Registe e notifique.

Inconformada com o assim decidido, a autora apresentou o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:

1) A autora concluiu a sua petição inicial, formulando três pedidos: de demarcação, de condenação de entrega à autora da área do seu prédio, livre e desocupada de quaisquer bens ou parcelas de edifícios; de condenação no pagamento da diferença entre o valor do seu prédio antes e depois da demolição do edifício.
2) Os réus, na sua contestação, não invocaram a nulidade da p. i. por
incompatibilidade substancial dos pedidos.
3) Apesar disso, a douta sentença recorrida, com esse fundamento, decidiu verificar-se a nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial
4) Não restam dúvidas de que, havendo dois prédios contíguos pertencentes a donos diferentes e divergência quanto à linha divisória entre eles, estão reunidas as condições para a ação de demarcação – o pedido da alínea a) não levanta quaisquer dúvidas.
5) O pedido da alínea b) é a consequência direta do da alínea a) e está subjacente à ação de demarcação: não faz sentido obrigar a autora a, finda esta ação, ter de propor outra, de reivindicação, para que lhe seja entregue a parcela do seu prédio objeto dessa ação.
6) O pedido da alínea c) – indemnização em dinheiro como sucedâneo da reconstituição natural – decorre da impossibilidade da parcela em disputa ser entregue com tudo o que nela se continha: é, pois, também admissível.
7) A douta sentença recorrida ao considerar como substancialmente incompatíveis os pedidos formulados, interpretou erradamente e violou o disposto no art. 186 nº 1 al. c) do CPC.
8) Mas ainda que assim se não entenda deve dar-se ao autor a faculdade de escolha do(s) pedido(s) com o qual o processo deve prosseguir.
10) Por aplicação desta faculdade, a autora considera como ordem de
prioridade a que consta da ordenação dos pedidos; e assim escolhe: - como primeira hipótese o primeiro e segundo pedidos; - como segunda hipótese apenas o primeiro.
11) Ao decidir de modo diferente, a douta sentença recorrida interpretou erradamente e violou o nº 2 do art. 6, 38 e 590 nºs 2 e 3 do CPC.

Deve, pois, na procedência deste recurso:
- ser revogada a douta sentença recorrida; e
- proferida decisão que admita a cumulação dos pedidos formulados na petição inicial; ou caso assim se não entenda
- admitida a escolha pela autora:
- como primeira hipótese o primeiro e segundo pedidos;
- como segunda hipótese apenas o primeiro.

Os réus apresentam contra-alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1.ª) A recorrente formulou e cumulou pedidos de demarcação e de reivindicação de
um imóvel.
2.ª) Os pedidos formulados pela autora são substancialmente incompatíveis entre si,
fazendo incorrer a petição inicial no vício da ineptidão, prevista no artigo 186.º, n.ºs
1 e 2, al. c) do Código de Processo Civil.
3.ª) A ineptidão da petição inicial gera a nulidade de todo o processado, subsistindo a nulidade ainda que um dos pedidos fique sem efeito, conforme resulta do artigo 186.º, n.ºs 1, 2, al. c) e 4 do Código de Processo Civil.
4.ª) O pedido de escolha de pedidos para prosseguimentos dos autos viola o disposto
no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

TERMOS EM QUE, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso interposto pela autora ser julgado improcedente, pelos motivos expendidos.
Assim decidindo, mais uma vez, Venerandos Desembargadores, será feita a
ACOSTUMADA E NECESSÁRIA JUSTIÇA

II. ÂMBITO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).

Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto da sentença final, uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal:

- Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação da lei (nomeadamente, por a petição inicial dos autos não ser inepta, inexistindo qualquer contradição entre causas de pedir, entre pedidos, devendo ser alterada a decisão proferida nos termos peticionados em se de recurso.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes os factos já discriminados em «I. RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A autora intenta esta acção contra os réus alegando ser plena proprietária do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Cabeceiras de Basto sob o nº ..- freguesia da … e inscrito na matriz no artº …- docs nº 1 e 2 (1)
Pretende a autora com esta acção que se proceda à demarcação do seu prédio face ao prédio da ré (…) (2).

Apreciando:
Nos termos do art.º 1353º do CC, “o proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu direito e os deles” intentando para o efeito uma acção de demarcação.
Nesta acção não se pretende obter a declaração de qualquer direito real ou da sua amplitude, mas apenas definir as estremas entre dois prédios, propriedade de donos distintos, que ambos aceitam serem proprietários desses seus respetivos prédios, mas em relação aos quais existe uma indefinição das respetivas estremas e, consequentemente, quanto ao domínio relativamente a uma faixa de terreno, no sentido de se saber onde acaba um prédio e começa o outro.
Assim, o direito de propriedade do autor da ação demarcação sobre o seu prédio e, bem assim do demandando sobre o prédio de que é proprietário, embora tenham de ser alegados pelo autor, esse direito de propriedade apenas funciona como mera condição de legitimidade ativa do demandante para instaurar a ação de demarcação e da legitimidade passiva para demandar aquele contra quem a instaura.
A qualidade de proprietário que invoca quem pede a demarcação é mera condição de legitimidade para a ação, não integrando a causa de pedir do facto que originou a propriedade.
A causa de pedir na acção de demarcação é a existência de dois prédios confinantes, propriedade de dois proprietários distintos e o estado de incerteza dos limites concretos desses prédios.
Diversamente, a acção de reivindicação (3) funda-se na existência do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e na posse ou detenção desta pelo reivindicado, ou seja, no direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e na violação desse direito pelo possuidor ou mero detentor dessa coisa. Tem esta acção por finalidade, e esta corresponderá, consequentemente, ao respectivo pedido, o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta àquele .
A causa de pedir na ação de reivindicação é o direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa (móvel ou imóvel) reivindicada e a lesão desse seu direito de propriedade pelo demandado (possuidor ou detentor da mesma).
Revertendo ao caso em apreço ao pedir a autora que se condenem os réus a concorrerem com a autora para a demarcação do prédio identificado na p.i no confronto com o prédio da 1ª ré com ele confinante formula pedido típico de uma acção de demarcação.
Já o pedido de condenação da ré a entregar-lhe a totalidade dessa área, livre e desocupada de quaisquer bens ou parcelas de edifícios configura nos termos acima explicados pedido típico de uma acção de reivindicação sendo o pedido do pagamento de uma indemnização correspondente ao valor do prédio antes e depois da demolição uma consequência da procedência do pedido da entrega da coisa que alega ser sua propriedade.
A ser assim a conclusão que se retira do acima exposto é que os pedidos formulados pela autora são intrínseca e substancialmente incompatíveis, na medida em que se excluem mutuamente, e embora, como dito, assentem em causas de pedir distintas entre si, essas são causas de pedir distintas são inconciliáveis.
Dos pedidos substancialmente incompatíveis que assim vêm formulados cumulativamente pela Autora (apelante) e da inconciliação das respectivas causas de pedir que lhes servem de base decorre, necessariamente, que o tribunal, perante a petição inicial que foi apresentada pela Autora, fica numa situação de impossibilidade de decidir por desconhecer qual a sua verdadeira pretensão (pedidos formulados em a) do petitório – demarcação -, ou pedido formulado em b) e c) desse mesmo petitório – reivindicação?).
Poderia o Tribunal convidar a Autora a esclarecer qual é o pedido inconciliável que pretende ver apreciado aplicando depois por analogia a tramitação prevista no art.º 38º do CPC?
Estudada de novo a questão perante a necessidade de apreciação deste recurso entendemos que será esta a solução que se ajusta ao espírito do actual CPC a qual vai de encontro ao entendimento da doutrina seguida aliás por alguma jurisprudência.
De efeito, no caso de dedução de pedidos substancialmente incompatíveis, defende Lebre de Freitas - José Lebre de Freitas, A ação declarativa comum, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, nº 11 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 361- a aplicação analógica da solução contida no artigo 38º do Código de Processo Civil, facultando à parte a escolha do pedido com o qual o processo deve prosseguir.
Também Abrantes Geraldes - Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I (1 – Princípios Fundamentais. 2 – Fase inicial do processo declarativo), Almedina, Coimbra, 1997, pág. 158 - parece ser apoiante desta ideia do máximo aproveitamento da posição expressa nos articulados .
Efectivamente, a generalidade das excepções dilatórias são supríveis, quer por iniciativa do autor, quer por determinação oficiosa do Tribunal. Certamente, por isso, utilizando as palavras do Dr. Abrantes Geraldes a propósito da falta de requisitos dos pedidos, deve prevalecer o entendimento de «impor o aproveitamento da instância, em conjugação com todo um conjunto de princípios que sempre devem orientar o intérprete na busca das melhores soluções – (economia processual, prevalência da substância sobre a forma, eficiência do sistema, cooperação mútua) – exigem que a questão em análise seja resolvida de forma diversa daquela que deveria emergir do anterior CPC, ao nível do despacho saneador» .
Sabemos que a solução que tem vindo a dar tradicionalmente pela nossa jurisprudência e doutrina vai no sentido de que tal vício constituir uma nulidade insanável, importando, necessária e automaticamente, a nulidade de todo o processado.
Seguimos os que entendem que tal ponderação deverá ser reavaliada face à revisão do CPC de 2013 e ao espírito que lhe subjaz ao nível de preocupações de economia processual e do reforço dos poderes processuais do juiz. Neste sentido acórdão da Relação de Évora datado de 21.05.20220 ( relator José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho) o qual acertadamente refere o seguinte: No novo regime processual civil foi reforçada a ideia que sustentava que a actividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de meritis.
Aliás, a redução teleológica do nº 4 do artigo 186º do Código de Processo Civil, quando conciliada com a aplicação analógica do artigo 38º do mesmo diploma, parece admitir que, nas situações de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, a nulidade só subsista quando um dos pedidos não seja aproveitável por causa da ocorrência de uma situação de incompetência do Tribunal ou por erro na forma do processo.
E, assim fora desse quadro ali excepcionado (incompetência do Tribunal e erro na forma do processo), por via dos poderes vinculados de determinação oficiosa do suprimento de excepções dilatórias, fica aberto o caminho para a adopção de uma solução de escolha entre as pretensões incompatíveis E, com isso, consegue-se a regularização da objectiva da lide, sem necessidade de proposição de uma nova acção com o seu objecto reduzido, valorizando-se assim os princípios da economia processual, da adequação formal, do máximo aproveitamento das pretensões apresentadas em juízo, aliados ao poder de direcção do processo, em detrimento de um veredicto formado em questões estritamente formais.
A ser assim determina-se o prosseguimento desta acção como acção de demarcação e para apreciação do pedido formulado na alínea a) absolvendo-os parcialmente da instância os réus relativamente aos pedidos incompatíveis apresentados pela autora nas alíneas b) c) na sequência da aplicação analógica do disposto no artigo 38º do Código de Processo Civil, considerando-se sanada a anotada incompatibilidade entre os pedidos formulados na al. a) e os pedidos formulados sob a alínea b) e c).
Quanto à questão, suscitada pelos apelados nas suas contra alegações de recurso - de que o pedido de escolha de pedidos para prosseguimento dos autos é atentatória ao previsto no artigo 286º do CPC mormente quando os réus chamados para se pronunciar acerca da eventual desistência da instância de um ou mais pedidos se manifestaram contra - não assume a relevância pretendida.
Com efeito, a decisão ora tomada baseou-se na aplicação analógica do art.º 38º do CPC que não exige aceitação dos réus para a decisão de absolvição da instância aplicação esta justificada na revisão do CPC de 2013 e ao espírito que lhe subjaz ao nível de preocupações de economia processual e do reforço dos poderes processuais do juiz.
****
●. Das custas

É critério para atribuição do encargo das custas o da sucumbência e na respectiva proporção (artigo 527º, nºs 1 e 2, do código de processo).
Na hipótese, o recurso é procedente nos termos assinalados; o encargo das custas na respectiva proporção deve ser pago pela apelante e apelados na proporção de 2/3 pela apelante (os pedidos formulados nas alíneas b) e C não serão apreciados) e 1/3 pelos apelados (o pedido formulado na alínea a) será objecto de apreciação).
**
Em conclusão:

◾. A generalidade das excepções dilatórias são supríveis, quer por iniciativa do autor, quer por determinação oficiosa do Tribunal.
◾. No caso de dedução de pedidos substancialmente incompatíveis por aplicação analógica da solução contida no artigo 38º do Código de Processo Civil deve o tribunal facultar à parte a escolha do pedido com o qual o processo deve prosseguir.
◾. Nestes casos deve prevalecer o entendimento de «impor o aproveitamento da instância, em conjugação com todo um conjunto de princípios que sempre devem orientar o intérprete na busca das melhores soluções – (economia processual, prevalência da substância sobre a forma, eficiência do sistema, cooperação mútua).
**
V. DECISÃO

Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da 2ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar procedente o recurso em apreço nos termos supra expostos:

Consequentemente:
●. Revoga-se a decisão recorrida que se substitui por outra que determina o prosseguimento destes autos como acção de demarcação para apreciação do pedido formulado pela autora na petição inicial e identificado na alínea a);
●. Absolvem-se os réus da instância relativamente aos pedidos incompatíveis apresentados pela autora nas alíneas b) e C) do petitório.
Custas do processo pela recorrente e recorridos na proporção de 2/3 e 1/3 respectivamente.
Notifique
Guimarães, 27 Maio de 2021
(processado em computador e revisto pela relatora antes de assinado)

O presente acórdão é assinado eletronicamente pelos respectivos
Maria Purificação Carvalho
Maria dos Anjos Melo Nogueira
José Cravo


1. Ver artº 1º da p.i
2. Ver artº 28º da petição inicial
3. Dispõe o art.º 1311º do CC, sob a epígrafe “ação de reivindicação” que: “1- O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertencer”. “2- Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.