ACIDENTE DE TRABALHO
INCAPACIDADE
DOENÇA
INCAPACIDADE NATURAL
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário


I – O disposto no art. 249.º do Código Civil aplica-se não só às declarações negociais da vontade, como às peças processuais, sendo que apenas há lugar à correção quando estamos perante um erro de cálculo ou de escrita que ressalta, de modo manifesto, da própria peça processual ou do quadro circunstancial em que essa peça foi produzida.
II – Tendo a Apelante feito menção específica ao conteúdo das declarações das testemunhas que considera relevantes, bem como à indicação, pelo nome, dessas testemunhas, a errada indicação da numeração do ficheiro áudio, bem como da indicação dos minutos a que tais declarações se encontram, reporta-se a um mero erro de escrita.
III – Estamos perante um acidente de trabalho quando (i) o trabalhador por conta de outrem (ii) sofre um acidente, (iii) no local de trabalho, (iv) no tempo de trabalho e (v) esse acidente é a causa direta ou indireta de lesão corporal, perturbação funcional ou doença no trabalhador (vi) de que resulta redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
IV – Designa-se por acidente o evento súbito, imprevisível e com origem externa.
V – O conceito relativamente à exterioridade do evento deve ser interpretado de forma a abranger todas as situações, com exceção daquelas que são produzidas única e exclusivamente por causas endógenas.
VI – Considera-se preenchido o conceito de acidente de trabalho na situação em que se provou que a Autora, que já padecia de doença degenerativa óssea, no local e tempo de trabalho, ao levantar um caixote com correspondência, sentiu uma forte dor lombar, que lhe agravou a patologia pré-existente, causando-lhe incapacidade para o trabalho. (sumário da relatora)

Texto Integral


Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A sinistrada S…, representada pelo Ministério Público, veio participar, em 01-10-2018, o acidente ocorrido no dia 31-01-2018, pelas 08h10, nas instalações dos CTT, em Tomar, quando prestava serviço para os “CTT”, encontrando-se a responsabilidade da entidade patronal transferida para a seguradora “… – Companhia de Seguros, S.A.”.
Em 17-09-2019, realizou-se a tentativa de conciliação, estando presentes a sinistrada e a seguradora, não tendo sido possível conciliar as partes.
Os autos prosseguiram, tendo a sinistrada S… (Autora), apresentado a respetiva petição inicial, de ação emergente de acidente de trabalho com processo especial, contra a “… Companhia de Seguros, S.A.” e “C…, SA” (Rés), peticionando, a final, que:
- a 1.ª Ré seja condenada a pagar à Autora uma pensão anual calculada com base no grau de incapacidade permanente que vier a ser fixado pela junta médica requerida;
- ser 1.ª Ré condenada a pagar à Autora a quantia relativa ao períodos de incapacidade temporária que se vierem a declarar, acrescida de juros de mora;
- ser a 1.ª Ré condenada a pagar à Autora os montantes despendidos por esta com tratamentos, consultas e exames, incluindo as despesas de transporte relacionadas; e
- ser a 1.ª Ré condenada a pagar custas e procuradoria.
Em 26-11-2019, A Autora apresentou desistência quanto à Ré “CTT – Correios de Portugal, SA”.
Em 27-11-2019, foi proferido despacho judicial que indeferiu liminarmente a petição inicial no que diz respeito à Ré “C…, SA”.
Apresentada contestação pela Ré “… – Companhia de Seguros, S.A.”, terminou a mesma peticionando que a presenta ação seja julgada totalmente improcedente, com a consequente absolvição da Ré, solicitando ainda a realização de perícia médica.
A convite do tribunal a quo, a Autora aperfeiçoou o seu pedido, solicitando, a final, que a Ré fosse condenada a pagar-lhe:
- uma pensão anual calculada com base no grau de incapacidade permanente que vier a ser fixado pela junta médica requerida;
- a quantia relativa ao períodos de incapacidade temporária que se vierem a declarar, acrescida de juros de mora;
- os montantes despendidos pela Autora com tratamentos, consultas e exames, no valor de €690,00;
- os montantes despendidos pela Autora com as deslocações para tratamentos, consultas e exames, no valor de €527,04; e
- custas e procuradoria.
Em resposta, a Ré impugnou os factos alegados pela Autora para consubstanciar os valores que requereu.
Proferido despacho saneador, foi identificado o objeto do litígio, consignados os factos dados como assentes e elencados os temas da prova. Foi igualmente admitida a junta médica.
Realizada a audiência de julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida a respetiva sentença, em 10-12-2020 com a seguinte decisão:
Pelo exposto, decido:
a) Condenar a ré … – Companhia de Seguros, S.A., a pagar à autora S… as indemnizações de € 2.858,25 decorrentes da incapacidade temporária, € 530 de despesas com tratamentos e de € 200 de despesas com transportes, bem como os juros de mora à taxa legal até efectivo e integral pagamento, à taxa legal que estiver em vigor, calculados sobre as respectivas quantias acima indicadas;
b) Absolver a ré do demais peticionado pela autora; e,
c) Condenar a ré no pagamento das custas e fixar o valor da acção pela soma das quantias supra reconhecidas (€ 3.588,25) – art.º 120.º, do Código de Processo do Trabalho.
Notifique, sendo a ré para comprovar nos autos o pagamento das quantias acima fixadas.
Não se conformando com a sentença, veio a Ré “… – Companhia de Seguros, S.A.” interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações com as conclusões que se seguem (excetuando as notas de rodapé):
I. Por via do presente recurso pretende a Recorrente demonstrar o desacerto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, que julgou procedente, por provada, a acção emergente de acidente de trabalho intentada pela Recorrida.
II. Por um lado, errou o tribunal a quo ao dar como provada a factualidade assente nos pontos F) e J) da sentença ora colocada em crise.
III. Por outro, a decisão faz uma errada aplicação do direito, mormente, do disposto no artigo 8.º da LAT, ao considerar o evento em apreço nos presentes autos como sendo integrador de um acidente de trabalho.
IV. Relativamente aos pontos F) e H) dos factos provados, não tendo sido produzida prova bastante para o efeito, nunca poderia o tribunal a quo dar como provado que que a Recorrida sentiu uma “forte dor lombar” e que “quando terminou a jornada de trabalho continuava com dores”.
V. Por estarmos perante facos pessoais, de elevado pendor subjectivo, revela-se essencial, para a descoberta da verdade, que a Recorrida produzisse prova bastante, mormente, mediante o recurso à prova por declarações de parte, para que o tribunal pudesse dar como provada a referida factualidade.
VI. Em segundo lugar, nunca poderia o tribunal a quo bastar-se com o depoimento produzido pelas testemunhas arroladas pela Recorrida para dar como provado aquele ponto.
VII. Se por um lado, nenhuma das testemunhas presenciou o referido evento, por outro, a Recorrida, após o mesmo, continuou a prestar trabalho, tendo terminado o seu turno diário, como habitualmente o fazia.
VIII. Aliás, tal resulta dos depoimentos prestados pelas três testemunhas: Manel Peixoto - ficheiro áudio 20200929110534_1020588_2870364, minuto 2 até ao minuto 5; José Patrício, ficheiro áudio 0200929113801_1020588_2870364, minuto 2 até ao minuto 6; Aníbal Manuel, ficheiro áudio 0200929114225_1020588_2870364, minuto 2 até ao minuto 4.
IX. Posto que, mal andou o tribunal a quo ao dar como provado os pontos F) e H) dos factos provados, pelo que, deverão os mesmos passar a fazer parte do elenco dos factos não provados.
X. Assim, não estando provado o evento participado como sendo um acidente de trabalho, terá, pois, de ser revogada a sentença ora colocada em crise, absolvendo-se, desta feita, a Recorrente dos pedidos contra si formulados.
Mais a mais,
XI. Contrariamente ao que resultou da junta médica, o tribunal a quo deu como provado o ponto J) dos factos provados.
XII. Na verdade, o que decorre do laudo pericial de junta médica, que foi proferido por unanimidade, é que a incapacidade temporária absoluta se ficou a dever, única e exclusivamente, à patologia de que a autora já era portadora, à data do evento que aqui se discute.
XIII. Diz-nos, então, o referido laudo que: “admite-se uma intensificação dolorosa resultante de patologia de que era portadora, que determinou o período de incapacidade temporária.”
XIV. Tal patologia foi devidamente identificada quer no relatório pericial junto aos autos quer pela junta médica, que, embora não referindo expressamente qual a patologia de que a Recorrida já padecia, encontra respaldo no teor do relatório pericial realizado pelo INML, nomeadamente, quando se refere a uma doença degenerativa óssea, pelo que teria tal factualidade que constar da factualidade dada por provada – cfr. página 2 do relatório pericial junto aos autos, com data de 26/03/2019.
XV. Integrando-se, nos termos supra expostos, a factualidade constante do ponto J) com o que se acaba de expor, deveria o tribunal a quo, ao invés, ter dado como provado que: “Consequência da doença degenerativa óssea de que a autora era portadora à data do evento, admite-se uma intensificação dolorosa resultante dessa mesma patologia, a qual determinou a incapacidade temporária absoluta desde o dia 1-2-2018 até ao dia 18-4-2018, de que a autora veio a padecer;”
XVI. Como decorrência das requeridas alterações à matéria dada como provada, deverá, portanto, dar-se provimento ao recurso ora interposto, em virtude de, por um lado, não estarem provados factos bastante que permitam concluir pela existência de um evento lesivo, configurável como sendo um acidente de trabalho, nos termos e para os efeitos no artigo 8.º da LAT, por outro, ainda que se entendesse que aquele evento configura um acidente de trabalho, não foi provado, bem pelo contrário, o nexo de causalidade entre o evento e a lesão.
Sem prescindir,
XVII. Ainda que a matéria de facto não venha a ser alterada nos termos propostos pelo tribunal ad quem, entende a Recorrente que não estão reunidos elementos suficientes que permitam caracterizar o acidente como sendo de trabalho - o artigo 8.º da Lei 98/2009, dispõe que acidente de trabalho é «aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte»
XVIII. Na tentativa de densificação do conceito legal de acidente de trabalho, a doutrina e a jurisprudência portuguesas apontam-no como o acontecimento de natureza súbita, de verificação inesperada e origem externa, que provoca directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho do trabalhador, encontrando-se este no local e no tempo de trabalho, ou nas situações em que é consagrada a extensão do conceito de acidente de trabalho
XIX. Tem, por conseguinte, de ocorrer um evento em sentido naturalístico para que se possa falar de acidente de trabalho.
XX. Estamos perante situações que determinam um esforço anormal que, por sua vez, poderá ser causa de uma lesão ou agravar uma patologia preexistente.
XXI. O acidente de trabalho pressupõe a existência de um facto ou evento em sentido naturalístico que tem como consequência a afectação do organismo do trabalhador, causando-lhe uma lesão, perturbação funcional ou doença.
XXII. Não raras as vezes, vamos encontrando descrições de alegados acidentes de trabalho que representam, tão só e apenas, meras manifestações de patologias naturais ou pré-existentes no tempo e no local de trabalho.
XXIII. É facto notório que uma dor não constitui um evento, muito menos um acontecimento que configure um acidente de trabalho.
XXIV. Nem, tão pouco, constitui uma lesão.
XXV. Uma dor – ou, melhor dizendo, a sua demonstração ou exteriorização – é, tão só, uma consequência, manifestação ou sintoma de algo que tem de se provar em que consiste e em face do qual se poderá, ou não, concluir pela verificação de um acidente de trabalho, sendo que, tal prova não é dispensada pela presunção constante do n.º 1 do art.º 10º da LAT, pois esta não abarca a prova do acidente, abrangendo, apenas, o nexo de causalidade entre o mesmo acidente e a lesão constatada no local e no tempo de trabalho.
XXVI. Assim, a presunção a que alude o referido preceito abrange, apenas, a verificação de nexo causal entre o acidente e a lesão ocorrida, não se entendendo à própria configuração do acidente de trabalho, pelo que a prova deste fica subordinada às regras gerais.
XXVII. Atenta a factualidade provada (sem prejuízo do que se deixou exposto no segmente dedicado à alteração da matéria de facto), apenas se encontra demonstrado que a Recorrida, ao pegar num caixote com correspondência, sentiu dores na região lombar, nada mais se tendo logrado demonstrar sobre as circunstâncias que determinaram essa situação.
XXVIII. Mais se provou que, a Recorrida continuou a prestar o trabalho, tendo terminado o seu turno diário.
XXIX. Com o devido respeito, desde logo se encontra prejudicada a demonstração de que se trata de um evento súbito, externo e resultante da prestação do trabalho.
Ainda sem prescindir,
XXX. Caso se entenda que estamos perante um evento, o que não se concebe, mas por mera cautela de patrocínio se equaciona, não se encontra, igualmente, demonstrado que esse evento tenha sido lesivo para a Recorrida.
XXXI. Ou seja, que esse evento naturalístico – pegar num caixote com correspondência – tenho provocado uma lesão corporal à Recorrida, muito menos, por maioria de razão, alguma sequela, com reflexo na sua na capacidade de ganho ou de trabalho.
XXXII. Mais a mais, quando se encontra demonstrado que a Recorrida continuou a prestar trabalho até ao final do seu turno, tendo, somente, sentido necessidade de procurar assistência médica no dia seguinte ao suposto evento.
XXXIII. Perscrutando a matéria de facto provada nos autos, não se identifica um evento infortunístico (embate, pancada, queda, ou mesmo esforço violento ou força de pressão) que tenha determinado as referidas dores, nem sequer, que essas dores, tenham determinado a sequela que tenha sido afirmada pelo perito médico que realizou a perícia médico-legal.
XXXIV. Mais acresce que, não está provado que esse invocado evento naturalístico tenha razão, fundamento, ou causa, externa, e que tenha provocado as lesões que determinaram a incapacidade absoluta temporária atribuída à autora, pelo que não estão demonstradas todas as características legalmente exigidas para ser considerado como acidente de trabalho, visto que o mesmo não está na origem da lesão que está na base da atribuição da incapacidade temporária absoluta.
XXXV. Tal conclusão parece-nos, aliás, evidente, bastando, para o efeito, considerar a resposta ao quesito n.º 6 da junta médica, em que, por maioria dos peritos nomeados, é afirmado, peremptoriamente, que: “se admite como intensificação dolorosa resultante da patologia de que era portadora, que determinou o período de incapacidade temporária.”
XXXVI. Da prova produzida resulta, isso sim, que a Recorrida, tal como relevado pela TAC da coluna lombo-sagrada realizada a 3/3/2018, da qual se extraiu que: “o canal raquidiano central está pouco amplo relativamente ao conteúdo, agravado de forma segmentar pela existência de discretos prolapsos discais difusos com expressão foramino-lateral predominante em L4-L5, mais se tendo identificado alterações discretas a moderadas de natureza degenerativa óssea, envolvendo de forma discreta as sacro-ilíacas, sem sinais de conflitos de espaço”, já era portadora de uma doença degenerativa óssea, e que foi essa patologia que determinou o período de incapacidade temporária.
XXXVII. Portanto, forçoso será concluir que, a Recorrida, à data do evento, já era portadora de uma condição pré-existente, de natureza degenerativo óssea, e que terá sido essa patologia pré-existente, conforme frisado no auto de junta médica, que terá determinado a incapacidade temporária absoluta por si sofrida.
XXXVIII. Quer isto dizer que, não ficou demonstrado que o evento reportado como “acidente” se tenha revelado, sequer, adequado a produzir aquele dano examinado à Recorrida, nem que este tenha decorrido de sintomatologia e adequação temporal com esse evento.
Acresce que,
XXXIX. Ainda que se pudesse admitir que a Recorrida tivesse realizado um esforço para além do razoável – ao pegar na cassete com a correspondência – e se pudesse considerar esse esforço suplementar como sendo um evento naturalístico exterior ao seu organismo e, portanto, causa das referidas dores na região lombar, não se encontra, sequer, determinado que essa “lesão” tivesse originado alguma sequela valorizável no âmbito da TNI – cfr. relatório de junta médica junto aos autos.
XL. Assim sendo, não estando demonstrada, imediatamente a seguir ao evento, qualquer lesão no corpo no estado geral de saúde da Recorrida, causada por esse mesmo evento, encontra-se, assim, prejudicada a afirmação da própria existência de um acidente de trabalho, porquanto inexiste evento que «produza, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença», nos termos do disposto no n.º 1 do art. 8.º e 10.º, n.º 2 da NLAT.
XLI. Efectivamente, no caso sub judice, não há lugar à aplicação da presunção estabelecida no n.º 1 do art. 10.º da LAT, pelo que competia à Recorrida demonstrar que a lesão sofrida foi consequência directa do evento reportado, o que, salvo o devido respeito por opinião diversa, não logrou, de todo, fazer.
XLII. Acontece que, neste género de situações, é, por vezes, associada a figura da predisposição patológica, que poderá ser definida como uma condição do organismo, visível ou oculta, que, mais tarde ou mais cedo, levará à eclosão de determinada doença ou sintomatologia.
XLIII. Seguindo de perto o elucidativo e sopesado raciocínio de M…, ao afirmar que se um acidente de trabalho precipitar ou agravar uma doença latente, será, efectivamente, justo que a reparação do mesmo considere essa realidade.
XLIV. Por seu turno, continua a referida Autora, se a doença ou lesão anterior for a única causa do dano verificado, então tudo ficou a dever-se à mesma e não ao evento descrito (normalmente, centrado numa sintomatologia), ficando por preencher o nexo de causalidade.
XLV. Por vezes, um gesto inofensivo e incapaz de, por si só, gerar qualquer lesão, mais não faz do que tornar mais percetível e/ou intensificar temporariamente uma sintomatologia dolorosa, o que, por si só, não será suficiente para determinar qualquer agravamento da patologia pré-existente.
XLVI. Por tudo o quanto foi aduzido, mal andou o tribunal a quo, ao dar por verificada a existência de um acidente de trabalho, pelo que, a decisão colocada em crise violou, assim, o disposto no artigo 8.º da LAT, termos em que deverá ser dado provimento ao recurso ora apresentado, revogando-se a decisão recorrida por outra que absolva a ré do pedido contra si formulado.
XLVII. A única conclusão plausível de ser retirada da matéria de facto provada (assim como da que a Recorrente entende, pelos fundamentos aduzidos, que deveria ter sido dada como provada) é que a dor sentida decorre de um processo endógeno, degenerativo, não tendo qualquer relação com a sua actividade profissional, pelo que, não sendo a dor considerada sequer um acidente, por maioria de razão, não poderá a mesma configurar um acidente de trabalho, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 8.º da LAT.
Termos em que:
A) Deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, alterando-se, em consequência, a matéria de facto nos termos propostos e, assim, deverá a Recorrente ser absolvida dos pedidos contra si formulados.
B) Caso assim não se entenda, deverá sempre se julgado procedente o recurso interposto, em virtude de não se encontrar verificado um evento qualificável como acidente de trabalho, absolvendo-se a Recorrente dos pedidos contra si formulados.
C) Caso assim não se entenda, deverá dar-se por não provado o nexo de causalidade entre a o acidente e a lesão e, assim, absolver-se a Recorrente dos pedidos formulados pela Recorrida.
A Autora S… apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos:
1) A Apelante põe em causa a existência de um evento caracterizável como acidente de trabalho, não sendo, porém, bem sucedida.
2) Na realidade, contudo, a Apelante limita-se a petições de princípio e generalidades abstractas, ignorando, não apenas o raciocínio concreto desenvolvido pelo Tribunal a quo, mas também os elementos de facto constantes dos autos, nomeadamente os depoimentos das testemunhas e os exames médicos realizados, sobre os quais o Tribunal a quo sustentou a sua decisão.
3) Ao contrário do que a Apelante pretende fazer vingar, o que nos dois relatórios médicos juntos aos autos se pode ler é que o evento traumático provocou lesões, divergindo o relatório inicial da junta médica apenas no que toca a uma eventual incapacidade parcial permanente.
4) Para a junta médica as lesões provocadas pelo acidente de trabalho sofrido pela Apelada não deram origem a uma incapacidade permanente parcial, tendo agravado uma patologia de que já padeceria a Apelada.
5) Não é, porém, o facto de um trabalhador já ter uma patologia anterior que impede que esse trabalhador possa sofrer um acidente de trabalho e este originar lesões que acabam por ter relação com aquela patologia.
6) Sobre a alegação de que o Tribunal a quo não fez uma correcta aplicação do disposto nos arts. 8.º e 10.º da Lei n.º 98/2009, contrapõe a Apelada que a Apelante recorre, mais uma vez, a formulações gerais, e pese embora a boa doutrina citada de M…, não consegue demonstrar por que motivo, no caso em apreço, a qualificação como acidente de trabalho do evento de 31.1.2019 que vitimou a Apelada está incorrecta.
7) De resto, a Apelante oferece uma interpretação das normas legais que, salvo o devido respeito, não cumpre com os critérios interpretativos previstos no art. 9.º do Código Civil nem com as regras de experiência e lógica comuns.
8) A verdade é que o Tribunal a quo proferiu uma sentença sem mácula, que abordou e resolveu todas as questões jurídicas que lhe foram submetidas, cumprindo, para além disso, com os deveres de fundamentação e clareza que lhe eram exigidos.
9) Assim sendo, e em face de todo o exposto, não pode senão concluir-se que a decisão recorrida interpretou e aplicou correctamente as normas atinentes ao caso concreto, devendo julgar-se improcedente o recurso interposto pela Apelante.
Pelo exposto e com o Douto suprimento de V. Exas. Deve ser negado provimento ao recurso interposto pela apelante, mantendo-se a Decisão recorrida, como é de inteira JUSTIÇA
A Apelante “… – Companhia de Seguros, S.A.” veio, em 23-02-2021, requerer a retificação do lapso de escrita, nos termos do art. 249.º do Código Civil, referente ao ponto 21 das alegações, bem como ao ponto VIII das conclusões, visto que nelas deveria ter ficado a constar, não o que lá consta; mas “tal resulta evidente dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela Autora: Senhor J…, ficheiro: 20201124150016_2799933_2871729: minuto 13:00 até ao minuto 14:00; e Senhor A…, ficheiro 20201124151644_2799933_2871729, minuto 04:00 ao minuto 05:00,”.
Em resposta, a Apelada S… veio requerer a rejeição da retificação solicitada, uma vez que a Apelante trata como retificação de um lapso a alteração total do texto anterior, dos nomes das testemunhas citadas às referências do ficheiro áudio, sendo que o art. 249.º do Código Civil pressupõe que o erro de cálculo ou de escrita seja simples e que não deforme o sentido do texto, não se reportando, por isso, à situação presente.
O tribunal a quo, por entender se reportar a matéria a decidir pelo tribunal ad quem, não proferiu decisão.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, sido dado cumprimento ao preceituado no n.º 3 do art. 87.º do Código de Processo do Trabalho, no qual o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
Não foram apresentadas respostas ao parecer.
Neste tribunal, o recurso foi admitido nos seus precisos termos, tendo sido dispensados, por acordo, os vistos legais, pelo que cumpre agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Admissão da retificação;
2) Impugnação da matéria de facto; e
3) Requisitos para caracterização de acidente de trabalho.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
A) A autora S… nasceu no dia 5/12/1967;
B) No dia 31/1/2018, a autora exercia as funções de carteira para os C…, S.A.;
C) Que, como contraprestação desse trabalho, pagava à autora a remuneração anual global de € 19.355,52;
D) A ré … – Companhia de Seguros, S.A., assumiu a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho que afectassem a autora por contrato de seguro, pelo indicado valor da retribuição anual;
E) Pelas 8 horas da manhã, a autora encontrava-se nas instalações dos C…, em Tomar;
F) Ao levantar um caixote com correspondência, a autora sentiu uma forte dor lombar;
G) Apesar das dores que a afligiam, a A. continuou ao trabalho, tendo completado o seu horário diário;
H) Quando terminou a jornada de trabalho continuava com dores;
I) No dia seguinte procurou assistência médica;
J) Em consequência sofreu Incapacidade Temporária Absoluta desde o dia 1-2-2018 até ao dia 18-4-2018; (alterado conforme fundamentação infra)
K) A A. percorreu um total de 1.464 km, para sessões de fisioterapia e osteopatia em Torres Novas e uma consulta em Ferreira do Zêzere, com o que despendeu, pelo menos, € 200;
L) Em consultas e tratamentos suportou a despesa de € 530.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) é admissível o pedido de retificação das alegações; (ii) o tribunal a quo errou na apreciação da matéria de facto; e (iii) se mostram verificados os requisitos para caracterização a situação dos autos como sendo um acidente de trabalho.

1 – Admissão da retificação
Segundo a Apelante, devido a lapso manifesto, nos termos do art. 249.º do Código Civil, o que consta do ponto 21 das alegações e do ponto VIII das conclusões deve ser substituído pelo seguinte texto:
tal resulta evidente dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela Autora: Senhor J… ficheiro: 20201124150016_2799933_2871729: minuto 13:00 até ao minuto 14:00; e Senhor A…, ficheiro 20201124151644_2799933_2871729, minuto 04:00 ao minuto 05:00,

Já no entendimento da Apelada, a substituição que a Apelante pretende não se reporta a um lapso manifesto, antes sim a uma alteração total do texto anterior, pelo que a retificação pretendida deverá ser rejeitada.
Apreciemos, então.
Dispõe o art. 249.º do Código Civil que:
O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta.

Conforme bem refere Vaz Serra[2]:
Esta norma tem alcance geral, sendo aplicável, não apenas às declarações negociais da vontade regidas pela lei civil, mas também em outros casos em que se verifique a sua razão de ser, designadamente as que as partes produzem no decurso do processo. Tal erro não dá lugar à anulabilidade da declaração, mas tão só à rectificação deste.

De igual modo, se cita o acórdão do TRL, proferido em 10-03-2016, no âmbito do processo n.º 1245/14.1TVLSB.L1-2[3]:
1. Acolhe-se no artigo 249.º do CC um princípio geral de direito que se mostra aplicável a todos os erros de cálculo ou de escrita juridicamente relevantes, englobando não só aqueles que ocorrem nos negócios jurídicos, como os que ocorrem nas peças processuais.
2. Está-se perante uma mera rectificação quando a intenção que a motiva é, apenas e tão só, a correcção de um evidente erro de escrita e não a sua modificação ou alteração substancial

Deste modo, é evidente que o art. 249.º do Código Civil aplica-se não só às declarações negociais da vontade, como às peças processuais, sendo que apenas há lugar à correção quando estamos perante um erro de cálculo ou de escrita que ressalta, de modo manifesto, da própria peça processual ou do quadro circunstancial em que essa peça foi produzida.
Atentemos, então, ao caso concreto.
Consta do Ponto 21 das alegações que:
21) Aliás, tal resulta evidente dos depoimentos prestados pelas três testemunhas arroladas pela Recorrida: M… - ficheiro áudio 20200929110534_1020588_2870364, minuto 2 até ao minuto 5; J…, ficheiro áudio 0200929113801_1020588_2870364, minuto 2 até ao minuto 6; A…, ficheiro áudio 0200929114225_1020588_2870364, minuto 2 até ao minuto 4.

Por sua vez, consta da conclusão VIII que:
Aliás, tal resulta dos depoimentos prestados pelas três testemunhas: M… - ficheiro áudio 20200929110534_1020588_2870364, minuto 2 até ao minuto 5; J…, ficheiro áudio 0200929113801_1020588_2870364, minuto 2 até ao minuto 6; A…, ficheiro áudio 0200929114225_1020588_2870364, minuto 2 até ao minuto 4.

Pretende a Apelante eliminar a parte referente à testemunha M… e alterar a numeração do ficheiro áudio e os minutos relativamente às testemunhas J… e A….
Importa referir que, em momento anterior a estas indicações técnicas, onde alegadamente constam as partes relevantes destes depoimentos, a Apelante referiu, no ponto 20 das suas alegações, que tais testemunhas apenas ouviram um grito.
Na realidade, tendo a Apelante feito menção específica ao conteúdo das declarações das testemunhas que considera relevantes, bem como à indicação, pelo nome, dessas testemunhas, a errada indicação da numeração do ficheiro áudio, bem como da indicação dos minutos a que tais declarações se encontram, reporta-se a um mero erro de escrita, visto que, relativamente ao conteúdo dessas declarações não é pretendida qualquer alteração, e é única e exclusivamente o conteúdo das declarações que pode implicar modificação ou alteração substancial do alegado pela Apelante, já não o local e/ou a hora onde tal conteúdo se pode encontrar.
Por fim, e quanto ao facto de a Apelante ter considerado não ser de relevar para a alteração fáctica pretendida um dos depoimentos que havia indicado, tal em nada afeta o contraditório da parte contrária (o que seria diferente se tivesse acrescentado uma outra testemunha), nem impede o tribunal ad quem, no seu poder de apreciação global da prova produzida, de ouvir a gravação desse depoimento.
Pelo exposto, por ser evidente estarmos perante um manifesto erro de escrita, admite-se, nos termos do art. 249.º do Código Civil, a retificação solicitada pela Apelante, passando o ponto 21 das alegações e o ponto VIII das conclusões a terem a seguinte redação:
Aliás, tal resulta evidente dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela Autora: Senhor J…, ficheiro: 20201124150016_2799933_2871729: minuto 13:00 até ao minuto 14:00; e Senhor A…, ficheiro 20201124151644_2799933_2871729, minuto 04:00 ao minuto 05:00,

2 – Impugnação da matéria de facto
No entender da Apelante, os factos provados F) e H) deveriam ter sido dados como não provados, uma vez que o depoimento das testemunhas J… e A… são insuficientes para dar tal factos como provados; e o facto provado J), em virtude do relatório da junta médica e do relatório pericial, deveria ter sido dado como provado com um teor diverso.
Dispõe o art. 640.º do Código de Processo Civil que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Relativamente à interpretação das obrigações que impendem sobre a Recorrente, nos termos do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, cita-se, entre muitos, o acórdão do STJ, proferido em 03-03-2016, no âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III – O ónus a cargo do Recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado.
IV – Nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, máxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica.

Relativamente à apreciação da matéria de facto em sede de recurso, importa acentuar que o disposto no art. 640.º do Código de Processo Civil consagra atualmente um duplo grau de jurisdição, persistindo, porém, em vigor o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz da 1.ª instância, previsto no art. 607.º, n.º 5, do mesmo Diploma Legal.
No entanto, tal princípio da livre apreciação da prova mostra-se condicionado por uma “prudente convicção”, competindo, assim, ao Tribunal da Relação aferir da razoabilidade dessa convicção, em face das regras da experiência comum e da normalidade da vida, da ciência e da lógica.
Veja-se sobre esta matéria o sumário do acórdão do STJ, proferido em 31-05-2016, no âmbito do processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
I - O tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.
II - Desde que o recorrente cumpra as determinações ínsitas no art. 640.º, o tribunal da Relação não poderá deixar de fazer a reapreciação da matéria de facto impugnada, podendo alterar o circunstancialismo dado como assente na 1.ª instância.

Cita-se ainda o sumário do acórdão do TRG, proferido em 04-02-2016, no âmbito do processo n.º 283/08.8TBCHV-A.G1, consultável em www.dgsi.pt:
I- Para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.

E, a ser assim, o Tribunal da Relação, aquando da reapreciação da matéria de facto, deve, não só recorrer a todos os meios probatórios que estejam à sua disposição e usar de presunções judiciais para, desse modo, obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, como também, sem incorrer em excesso de pronúncia, ao alterar a decisão de determinados pontos da matéria de facto, retirar dessa alteração as consequências lógicas inevitáveis que se repercutem noutros pontos concretos da matéria de facto, independentemente de tais pontos terem ou não sido objeto de impugnação nas alegações de recurso.
Cita-se a este propósito, o sumário do acórdão do STJ, proferido em 13-01-2015, no âmbito do processo n.º 219/11.9TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
XIII - Não ocorre excesso de pronúncia da decisão, se a Relação, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retira dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso.

Por fim, importa ainda esclarecer que o Tribunal da Relação, na sua reapreciação da prova, terá sempre que atender à análise crítica de toda a prova e não apenas aos fragmentos de depoimentos que, por vezes, são indicados, e que retirados do seu contexto, podem dar uma ideia bem distinta daquilo que a testemunha efetivamente mencionou, bem como daquilo que resultou da globalidade do julgamento.
Decidamos.
Consigna-se que se procedeu à audição de todo o julgamento.
Relativamente ao cumprimento pela Apelante dos requisitos previstos no art. 640.º do Código de Processo Civil, importa mencionar que os mesmos se mostram cumpridos, visto que indicou os concretos pontos de facto que considerou terem sido incorretamente julgados, os concretos meios de prova que impunham decisão diversa, bem como a decisão que deveria ter sido dada sobre esses pontos. Importa ainda esclarecer que indicou em concreto as passagens da gravação que considerou relevantes, tendo também descrito o conteúdo desses depoimentos que considerou pertinentes.

a) Factos provados F) e H)
Constam dos factos provados F) e H) que:
F) Ao levantar um caixote com correspondência, a autora sentiu uma forte dor lombar;
H) Quando terminou a jornada de trabalho continuava com dores;

Pretende a Apelante que estes factos sejam dados como não provados, uma vez que se tratando a dor de um facto pessoal, a mesma apenas poderia ter sido dada como provada com recurso ao depoimento de parte, revelando-se, por isso, os depoimentos das testemunhas inquiridas manifestamente insuficientes para dar tais factos como provados.
Na realidade, não consta da lei processual civil qualquer obrigatoriedade de prova relacionada com o depoimento de parte, contrariamente ao que ocorre com a prova documental, em que, em determinadas situações, apenas se pode fazer prova de certos factos com recurso à prova documental (nalguns casos, mero documento particular; noutros exige-se documento autêntico ou autenticado – art. 364.º, n.º 1, do Código Civil).
Assim, mesmos os factos pessoais não dependem da prova por depoimento de parte para poderem ser dados como provados, sendo que, no caso concreto da dor e da sua intensidade, a mesma possui muitas manifestações exteriores, quer sonoras (designadamente, gritos, queixas, lamúrias), quer de expressão (por exemplo, contração do rosto), quer comportamentais (nomeadamente, toque frequente com a mão na parte dolorosa).
Na situação em apreço, os três colegas de trabalho inquiridos em julgamento confirmaram que, quando a Apelada, pegou num caixote com correspondência, a denominada “cassete”, gritou com dores, sendo que a testemunha M… viu a Apelada a agachar-se para pegar nesse caixote e as testemunhas J… e A… ouviram o grito de dor, voltaram-se e viram-na com o caixote nas mãos. Todas as três testemunhas confirmaram que a Apelada se queixou de dores nas costas, sendo que a testemunha A… confirmou que ela se continuou a queixar, mesmo depois desse momento.
É, então, evidente, ainda que apenas a Apelada possa sentir a sua dor, que essa mesma dor, através de várias manifestações exteriores (no caso, foram verbalizadas através do grito e das queixas), foi presenciada por outras pessoas, tendo três delas vindo prestar o seu depoimento em tribunal.
Em conclusão, bem andou a 1.ª instância ao ter dado estes factos como provados, improcedendo, por isso, nesta parte, a pretensão da Apelante.

b) Facto Provado J)
Consta do facto provado J) que:
J) Em consequência sofreu Incapacidade Temporária Absoluta desde o dia 1-2-2018 até ao dia 18-4-2018;

Pretende a Apelante que, em virtude do relatório da junta médica e do relatório pericial, o facto provado J) passa a ter a seguinte redação:
Consequência da doença degenerativa óssea de que a autora era portadora à data do evento, admite-se uma intensificação dolorosa resultante dessa mesma patologia, a qual determinou a incapacidade temporária absoluta desde o dia 1-2-2018 até ao dia 18-4-2018, de que a autora veio a padecer.

Vejamos.
Do relatório pericial efetuado em 07-05-2018 resulta, com relevância, que:
B. Dados Documentais
(…)
Relatório de TAC da coluna lombo-sagrada realizada a 03-03-2018, do qual se extraiu o seguinte:
Canal raquidiano central pouco amplo relativamente ao conteúdo, agravado de forma segmentar pela existência de discretos prolapsos discais difusos com expressão foramino-lateral predominante em L4-L5. Alterações discretas a moderadas de natureza degenerativa óssea, envolvendo de forma discreta as sacro-ilíacas. Sem sinais de conflito de espaço.
(…)
Discussão
1. Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano. Na sequência do evento traumático houve uma exacerbação das queixas álgicas e um agravamento do quadro relacionado com as alterações degenerativas e estenóticas centrais descritas nos exames imagiológicos, traduzida em raquialgia residual.
2. A data de consolidação médico-legal das lesões é fixável em 18-04-2018, tendo em conta os seguintes aspetos: a data da alta clínica, após assistência em Clínica Geral.
3. No âmbito do período de danos temporais são valorizáveis, entre os diversos parâmetros do dano, os seguintes:
- Os períodos de incapacidade temporária absoluta são definidos de 01-02-2018 a 18-04-2018.
4. A incapacidade permanente parcial resultante de acidente(s) anterior(es) é de 0%.
5. A incapacidade permanente parcial resultante do acidente atual, tendo em conta as sequelas atrás descritas e a consulta da Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (…), é de 3,0000%. A taxa atribuída tem em conta o(s) artigo(s) da Tabela Referido(s) no quadro abaixo indicado. É atribuído fator 1,5 pela idade à data da consolidação médico-legal das lesões.
(…)
Conclusões:
- A data de consolidação médico-legal das lesões é fixável em 18-04-2018.
- Os períodos de incapacidade temporária absoluta são fixáveis conforme definido no Capítulo Discussão.
- Incapacidade permanente parcial fixável em 3,000%.
- É atribuído fator de bonificação 1,5.

Por sua vez, de acordo com o Auto de Junta Médica, realizado em 05-06-2020, considerou-se:
6) Em consequência do evento referido em 2), a autora ficou portadora de sequelas? Quais?
Por maioria constituída pelo Perito da Seguradora e do Tribunal, não; admite-se uma intensificação dolorosa resultante da patologia de que era portadora, que determinou um período de incapacidade temporária.
7) E de uma I.P.P. de 3%?
Pela mesma maioria, não, por não ser portadora de patologia enquadrável na TNI.
8) Também sofreu Incapacidade Temporária Absoluta desde o dia 1-2-2018 até ao dia 18-4-2018?
Sim, por unanimidade.

Resulta, assim, dos citados relatórios médicos que a Apelada sofreu em consequência do evento, que consistiu em levantar um caixote com correspondência, incapacidade temporária absoluta desde o dia 01-02-2018 até ao dia 18-04-2018 (tendo no Auto de Junta Médica esta resposta sido dada por unanimidade), devido a uma intensificação dolorosa resultante da patologia de que era portadora (tendo no Auto de Junta Médica esta resposta sido dada por maioria), e que consiste em doença de natureza degenerativa óssea (relatório pericial).
Deste modo, admite-se a alteração da redação do facto provado J), mas apenas nos termos que constam do Relatório da Junta Médica e não nos termos que constam das alegações de recurso, visto que do referido relatório resulta uma relação de causa e efeito entre o evento mencionado e uma intensificação dolorosa sofrida pela Apelada (conforme respostas 6 e 8); já no facto que a Apelante pretende que seja dado como provado tal relação não consta.
Em conclusão:
Procede parcialmente a impugnação fáctica requerida pela Apelante, passando o facto provado J) a ter a seguinte redação:
J) Em consequência sofreu Incapacidade Temporária Absoluta desde o dia 1-2-2018 até ao dia 18-4-2018, devido a uma intensificação dolorosa resultante da patologia de natureza degenerativa óssea de que era portadora.

3 – Requisitos para caracterização de acidente de trabalho
No entender da Apelante, não estamos perante um acidente de trabalho quer porque não se mostra provada a existência de um qualquer evento súbito, externo e resultante da prestação do trabalho; quer porque não resultou provado o nexo de causalidade entre esse evento e a lesão da Apelada, ou seja, que o ato de a Apelada pegar num caixote com correspondência tivesse provocado uma lesão corporal nesta, tendo a incapacidade temporária absoluta apenas resultado da doença de natureza degenerativa óssea de que a Apelada já era portadora.
Considerou ainda a Apelante que a alegada lesão sofrida pela Apelada não é uma sequela valorizável no âmbito da TNI e que, não estando demonstrada, imediatamente a seguir ao evento, qualquer lesão no corpo ou saúde da Apelada, causada por esse mesmo evento, não se mostra verificado o disposto nos arts. 8.º, n.º 1 e 10.º, n.º 2 da Lei n.º 98/2009, de 04-09 (LAT), pelo que também não pode ser aplicada a esta situação a presunção prevista no n.º 1 do art. 10.º da LAT, competindo à Apelada demonstrar que a lesão sofrida foi consequência direta do evento reportado, o que não logrou, de todo, fazer.
Apreciemos.
Dispõe o art. 8.º da LAT que:
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.

Dispõe igualmente o art. 10.º da LAT que:
1 - A lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho.
2 - Se a lesão não tiver manifestação imediatamente a seguir ao acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.

Dispõe, por fim, o art. 11.º da LAT que:
1 - A predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido ocultada.
2 - Quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avaliar-se-á como se tudo dele resultasse, a não ser que pela lesão ou doença anterior o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição nos termos da presente lei.
3 - No caso de o sinistrado estar afectado de incapacidade permanente anterior ao acidente, a reparação é apenas a correspondente à diferença entre a incapacidade anterior e a que for calculada como se tudo fosse imputado ao acidente.
4 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, quando do acidente resulte a inutilização ou danificação das ajudas técnicas de que o sinistrado já era portador, o mesmo tem direito à sua reparação ou substituição.
5 - Confere também direito à reparação a lesão ou doença que se manifeste durante o tratamento subsequente a um acidente de trabalho e que seja consequência de tal tratamento.

Assim, para que estejamos perante um acidente de trabalho torna-se necessário que (i) o trabalhador por conta de outrem[4](ii) sofra um acidente, (iii) no local de trabalho, (iv) no tempo de trabalho e que (v) esse acidente seja a causa direta ou indireta de lesão corporal, perturbação funcional ou doença no trabalhador (vi) de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
No caso em apreço, resulta da matéria dada como assente que:
- a Apelada, no dia 31-01-2018, pelas 8 horas da manhã, exercia funções de carteira para os “C…”;
- encontrando-se nas instalações dos C…;
- e, ao levantar um caixote com correspondência, sentiu uma forte dor lombar;
- tendo, apesar das dores que a afligiam, continuado a trabalhar, e completado o seu horário diário; sendo que, quando terminou a jornada de trabalho, continuava com dores, razão pela qual, no dia seguinte, procurou assistência médica;
- e, em consequência desta situação, sofreu incapacidade temporária absoluta desde o dia 01-02-2018 até ao dia 18-04-2018, devido a uma intensificação dolorosa resultante da patologia de natureza degenerativa óssea de que era portadora.
Ora, se relativamente à circunstância de a Apelada ser trabalhadora por conta de outrem, encontrar-se no exercício das suas funções, no local e tempo de trabalho, e ter ficado incapacitada para trabalhar entre 01-02-2018 e 18-04-2018, inexiste controvérsia; o mesmo já não acontece quanto ao facto de ter ocorrido um acidente naquele dia, de a Apelada ter sofrido qualquer lesão naquele dia e de o acidente (a ser considerado como tal) ter sido a causa da lesão (a ser considerada como tal).
A primeira questão reporta-se, então, à qualificação do ato de levantar um caixote com correspondência como sendo, ou não, um acidente.
Conforme bem refere Maria do Rosário Palma Ramalho em Tratado de Direito do Trabalho[5]:
Em termos gerais, pode dizer-se que o acidente de trabalho é o evento súbito e imprevisto, ocorrido no local e no tempo de trabalho, que produz uma lesão corporal ou psíquica ao trabalhador que afecta a sua capacidade de ganho (…).

Cita-se igualmente o acórdão do STJ, proferido em 14-04-2010, no âmbito do recurso n.º 459/05.0TTVCT.S1, 4.ª Secção[6]:
II – A caracterização de um acidente de trabalho pressupõe, assim, a verificação cumulativa de três elementos; um elemento espacial (em regra o local de trabalho); um elemento temporal (correspondente, por norma, ao tempo de trabalho); um elemento causal (nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença, por um lado, e entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte).
III – Porém, a montante dessa verificação cumulativa de pressupostos torna-se imperioso, desde logo, que o evento possa ser havido como “acidente”, o que exige a sua produção ocasional, súbita e com origem externa.

Caracterizemos, então, o acidente como o evento súbito, imprevisível e com origem externa.
Relativamente à circunstância externa, importa ter presente o que consta do acórdão do TRL, proferido em 10-11-2010[7]:
Com efeito, a responsabilidade objectiva emergente de acidentes de trabalho baseia-se no risco que é inerente ao exercício de qualquer e toda a actividade profissional, fazendo recair sobre os empregadores, que com ela beneficiam, a obrigação de reparar os danos correspondentes. Assim, a referência a um acontecimento externo tem apenas em vista excluir do âmbito dos acidentes de trabalho situações em que a lesão que provocou a incapacidade ou morte não se relaciona com a actividade desenvolvida sob a autoridade de outrem, ou seja, nas situações em que o dano decorre de uma realidade que apenas diz respeito ao trabalhador, a denominada causa endógena, e nada tem que ver com a actividade desenvolvida.

Deste modo, o acontecimento externo basta-se com “que algo aconteça no plano das coisas sensíveis”[8].
Ora, na situação em apreço, a forte dor lombar sentida pela Apelada ocorreu quando a mesma levantou um caixote com correspondência, ou seja, durante uma atividade laboral, pelo que tal ato – o de levantar um caixote com correspondência – consubstancia, por isso, um acontecimento externo.
Na realidade, alargando-se o conceito relativamente à exterioridade do evento a tudo o que não seja única e exclusivamente produzido por causas endógenas, a definição de acidente deixa de se restringir apenas aos acontecimentos exteriores, diretos e visíveis[9].
De igual modo, também a necessidade de verificação de um acontecimento violento deixou de fazer parte da definição de acidente, bastando-se a mesma com a sua imprevisibilidade e natureza súbita.
No caso em apreço, a dor sentida pela Apelada, em virtude de ter levantado um caixote com correspondência, traduziu-se, assim, não só num vento externo, como súbito e imprevisível, pois não era expectável para a Apelada que a sua atuação pudesse originar a dor lombar de que veio a padecer.
Constatando-se a existência de acidente, importa, então, apurar se também houve lesão.
Resultou provado que a Apelada em virtude de uma forte dor lombar, ficou incapacitada para trabalhar entre 01-02-2018 e 18-04-2018, pelo que resultou provada a existência de lesão na zona lombar da Apelada.
Cita-se a propósito, o acórdão do TRP, proferido em 28-01-2008, no âmbito do processo n.º 0713872[10]:
Tendo o acidente ocorrido no local e tempo de trabalho e ficado provado que a trabalhadora “sentiu uma dor nas costas ao pegar numa pasta”, tem que se considerar verificado o pressuposto “lesão”, para efeitos de acidente de trabalho.

Importa, ainda, referir que conforme relatório pericial, este tipo de dor denomina-se “raquialgia residual”, encontrando-se esta lesão prevista na TNI, na seção da coluna vertebral, no ponto 1.1.1., al. b).
Por fim, terá de se apurar se, de acordo com os factos provados, o acidente foi a causa desta lesão.
É verdade que resultou provado que a Apelada já padecia, à data do acidente, de uma patologia de natureza degenerativa óssea, porém, resultou igualmente provado que como consequência do acidente sofreu de uma intensificação dolorosa relativamente à patologia de que padecia, ou seja, o acidente agravou a sua patologia, intensificando-a.
Ora, conforme refere o já citado art. 11.º, nºs. 1 e 2, da LAT, a predisposição patológica do sinistrado num acidente não exclui o direito à reparação integral e quando a lesão resultante do acidente agravar doença anterior a incapacidade avaliar-se-á como se tudo tivesse resultado do acidente, pelo que a doença de que a Apelada já padecia não afeta nem a configuração deste acidente como de trabalho, nem o direito da Apelada a ser indemnizada[11].
Pela sua relevância e similitude com a situação dos autos, faz-se ainda referência ao acórdão do TRL, proferido em 12-10-2011, no âmbito do processo n.º 282/09.2TTSNT.L1-4[12]:
No caso em apreço resultou provado que no dia 6 de Março de 2009, poucos minutos antes das 8.00 horas, no vestiário do seu local de trabalho, sito (…), em ..., o autor, quando estava a mudar de roupa para começar a trabalhar, às 8.00 horas, sofreu uma lombalgia devido a um movimento efectuado pelo mesmo autor quando procedia à mudança de roupa. Ora, perante esta factualidade, afigura-se-nos não restarem dúvidas que ficou apurada a situação (o evento) que causou a lesão ao autor, ora sinistrado. Esse evento consistiu, precisamente, no movimento que o sinistrado efectuou ao mudar a roupa, movimento esse que teve como consequência as dores nas costas sofridas pelo mesmo.
E, uma vez que o dito acontecimento se verificou no tempo (o autor estava a mudar a roupa para iniciar a sua prestação laboral, a praticar actos que se consideram de preparação para o trabalho - art.º 6.º, n.º 4) e no local de trabalho (no vestiário); e provocou ao dito sinistrado as lesões descritas nos autos, que lhe causaram incapacidade para o trabalho (fls. 61 do apenso), mostram-se preenchidos os requisitos (os sucessivos nexos de causalidade) previstos no citado art.º 6.º da LAT.

Posto isto, resta-nos apenas concluir pelo preenchimento de todos os requisitos previstos no art. 8.º da LAT, sendo os acontecimentos que se mostram descritos nos factos provados enquadráveis num acidente de trabalho.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora, em julgar o recurso o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela Apelante (art. 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 27 de maio de 2021
Emília Ramos Costa (relatora)
Moisés Silva
Mário Branco Coelho
_______________________________________________

[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Moisés Silva; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho.

[2] RLJ, 111.º-383.

[3] Consultável em www.dgsi.pt.

[4] Ou de algum modo equiparado a tal, como é o caso do trabalhador autónomo, mas economicamente dependente, do aprendiz, do estagiário e do formando, bem como do titular de órgão societário – vide p. 721 da obra citada.

[5] Vol. II, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 715.

[6] Consultável em www.stj.pt.

[7] No âmbito do processo n.º 383/04.3TTGMR.L1-4, consultável em www.dgsi.pt.

[8] Vítor Ribeiro, em Acidentes de Trabalho, Reflexões e Notas Práticas, Edição Rei dos Livros, p. 208.

[9] No mesmo sentido, Carlos Alegre em Acidentes de Trabalho e Notas Práticas, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, p. 36.

[10] Consultável em www.dgsi.pt.

[11] Veja-se o acórdão do STJ, proferido em 12-09-2013, no âmbito do processo n.º 118/10-1TTLMG.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.

[12] Veja-se ainda relativamente a lesões na zona lombar o acórdão do TRP, proferido em 15-06-2015, no âmbito do processo n.º 401/09.9TTVFR.P1, consultável em www.dgsi.pt.