TRÁFICO DE PESSOAS
CRIME DE EXECUÇÃO VINCULADA
Sumário

Do disposto no artº 160º nº 1 do C.Penal resulta que a acção típica do tráfico de pessoas adultas pode revestir várias modalidades tais como: oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte, alojamento ou acolhimento de uma pessoa.
Cada uma destas modalidades de acção típica têm de ser levadas a cabo através de uma das formas constantes de cada uma das alíneas do nº 1 do artº 160º: violência, rapto, ameaça grave; ardil ou manobra fraudulenta; abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica de trabalho ou familiar; aproveitamento de qualquer situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima. Estamos assim, perante um crime de execução vinculada dado que os meios de execução do crime estão tipificados.

Texto Integral

Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I- Relatório

Nos presentes autos de processo Comum Singular, com o número acima mencionado, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém (Juízo Local Criminal de Santarém – Juiz 1) por decisão de 19 de Novembro de 2020, a acusação foi julgada parcialmente procedente por provada, e em consequência, o arguido MDF foi condenado pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. no artº 160º nº 1 al. d) do C. Penal na pena de 3 anos e 3 meses de prisão suspensa por igual período e absolvido do crime de auxílio à emigração ilegal, p. e p. no artº 113º nºs 2 e 3 da lei nº 23/2007, de 4.7.

Inconformado o arguido recorreu, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

«I. O douto aresto proferido a 19.11.2020, foi o recorrente MDF condenado pela prática em autoria material de um crime de tráfico de pessoas previsto e punido pelo art.º 160.º n.º 1, alínea d) do Código Penal, na pena de três anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.

II. O presente recurso tem como objeto, essencialmente, as seguintes questões: (i) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (ii) contradição insanável da fundamentação e a decisão; (iii) impugnação da matéria de facto; (iv) vício da insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto proferida; (v) violação do princípio do indubio pro reo; (vi) qualificação jurídica.

III. O crime de tráfico de pessoas afeta diretamente “a dignidade da pessoa humana, ao transformar o corpo da vítima em mero objecto de exploração”, o ser humano é utilizado como se de um objeto se tratasse, servindo apenas para produzir e para dar lucro, passando a ser tratado como um bem móvel, acabando reduzido a uma materialização de si, não só a liberdade pessoal, mas também a dignidade da pessoa humana, sendo a sua violação o que torna este crime particularmente hediondo.

IV. O tipo subjetivo exige o dolo relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objetivo de ilícito, isto é, só pode considerar preenchido o tipo do crime em causa, mediante a prova de concretos factos que preencham o tipo subjetivo, para além, naturalmente, dos integradores do tipo objetivo

V. Nos presentes autos o Tribunal a quo não imputa ao arguido concretas condutas para o preenchimento do tipo subjetivo, omitiu os elementos subjectivos do facto na perspectiva da culpa, limitando-se na decisão recorrida a transcrever os termos da acusação: “19.- O arguido atuou sempre livre, voluntaria e conscientemente no propósito concretizado de exploração laboral e intenção lucrativa.”; “22.- O arguido agiu sempre livre, voluntaria e conscientemente, sabendo e querendo aproveitar-se da situação de especial vulnerabilidade de MK, de forma desumana e degradante”,

VI. Resulta dos factos provados que: “Quando o arguido decidiu contratar MK desconhecia que o mesmo se encontrava em situação ilegal em território nacional”, “…não conhecia MK antes de contactar pela primeira vez com ele”, “MK aceitou as condições de trabalho que lhe foram apresentadas pelo arguido e manifestou interesse em iniciar a actividade de pastor por conta do arguido…”, “O arguido solicitou a MK que lhe facultasse os documentos para que a empresa de contabilidade formalizasse o respectivo contrato de trabalho e comunicasse a relação laboral às autoridades públicas”, “… levou as fotocópias da documentação que foram facultadas pelo MK à empresa que lhe faz a contabilidade “…” e solicitou à funcionária da mesma que efetuasse um contrato de trabalho para o MK”, “…o arguido contactou com o Advogado Dr. … para tratar da legalização de MK em território nacional, entregando-lhe as fotocópias que lhe haviam sido facultadas pelo mesmo”, “Só em Dezembro de 2017, no seguimento da acção policial é que o arguido teve conhecimento que o Advogado ainda não tinha tratado do passaporte de MK…”, “Quando MK iniciou actividade laboral por conta do arguido já se encontrava em Portugal há cerca de 15 (quinze) anos, designadamente desde 2000”, “Desde o ano 2000 até ao ano 2017 MK trabalhou para diversas entidades laborais, …”, “…nunca impediu MK de deslocar-se onde lhe aprouvesse”, “… providenciou pela aquisição de bens, alimentos e tabaco que ele ou outrem por sua conta levava a MK”, “Foi o arguido, e também o seu filho que asseguraram todas as deslocações às consultas médicas e aos tratamentos de quimioterapia de MK”, “… providenciou junto da segurança social pela concessão de reforma por invalidez a MK …”, “ Não obstante, MK, já não trabalhar para o arguido desde Maio 2019, inicialmente por baixa médica e depois por se ter reformado por invalidez, o arguido continuou a cuidar dele, apoiando-o nas deslocações ao hospital, comprava-lhe a medicação e provém com a alimentação”, “MK nutriu sentimento de carinho e afeto pelo arguido, referindo-se a este como se tratasse do seu pai”, “O arguido tentou que MK passasse a ser utente do Centro de Dia das …, onde para além de conviver com outros utentes também tinha serviço de apoio domiciliário que incluí a confeção de refeições dos utentes”.

VII. Inexistem factos que permitam conduzir ao preenchimento do elemento subjetivo do tipo do crime de tráfico de pessoas, verifica-se uma clara insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de condenação alcançada, o que consubstancia o vício do art.º 410.º, n.º 2, al. a), do CPP e determina a absolvição do Recorrente.

VIII. Por outro lado, o tribunal a quo fundou a sua convicção sobre os factos provados na análise dos documentos designadamente: de fls. 18 a 23 onde refere “Apesar das condições acima retratadas em que vive MK, este indivíduo parece estar acomodado à situação, alegando que tem comida suficiente (…). Esta vítima continua a não querer qualquer intervenção de apoio social”; fls. 28 a 33 onde fluí “… foi-lhe oferecido protecção social e acolhimento em instituição, o que recusou.” “Querer continuar a trabalhar para o actual patrão”; de fls. 93 a 112 e 118 a 123 onde resulta que MK auferia o salário mínimo nacional, tal constitui uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art.º 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, que não é ultrapassável pela afirmação de que “pode verificar-se quando a retribuição que aufere é claramente desproporcional em relação ao valor objectivo do produto do seu trabalho, ou ao número de horas que trabalha, situação que resulta dos factos em relação a MK” (pág. 25 da sentença recorrida),

IX. In casu, existem elementos bastantes para a decisão da causa, nomeadamente, o facto do MK auferir o valor correspondente ao salário mínimo nacional, pago uma parte em espécie “O arguido providenciou pela aquisição de bens, alimentos e tabaco” (ponto 51 dos factos provados) e outra em dinheiro “O arguido entregava a MK não mais de 75 € (setenta e cinco por cada semana de trabalho” (ponto 12 dos factos provados), corroborado, ainda, pelos documentos juntos de fls. 93 a 112 e 118 a 123.

X. MK entretanto faleceu, não prestou declarações em sede de julgamento mas, em 11.03.2020, entregou nos autos declaração (com assinatura reconhecida presencialmente por notário), que o Tribunal a quo desatendeu, onde este declarou que o arguido “… sempre lhe pagou o vencimento acordado, designadamente, pagando- lhe €75,00 em dinheiro todas as semanas, comprando-lhe alimentação, gás, água, vestuário, calçado, tabaco e todos os outros bens necessários que o ora declarante lhe solicitava;” “… tem uma casa de habitação ao seu dispor, sita na Rua …, em …, a qual lhe foi cedida (…) e que o declarante habita na “roulotte” por sua opção;”, “…se desloca sempre que o deseja a casa (…) para ali tomar banho e fazer a sua higiene;” , “…sempre teve liberdade para se deslocar onde quisesse, designadamente a cafés ou outros locais onde bem entendesse, não tendo horário de trabalho fixo.”

XI. Atenta a verificação dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP impõe-se a absolvição do arguido, com todas as legais consequências.

XII. No que respeita à matéria de facto incorretamente julgada e às provas que impõem decisão diversa da recorrida, entendemos que foram incorretamente julgados os pontos 4, 7, 15, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 dos factos provados, atentos os seguintes elementos probatórios:

a) 4.- O arguido, aproveitando-se da frágil situação económica, social e familiar …, aliciou-o a ir trabalhar …., com o objectivo previamente determinado de o vir a explorar laboral e economicamente”, em contradição dos factos provados nos pontos 24, 26, 28 e 45 “Quando … decidiu contratar MK desconhecia que o mesmo se encontrava em situação ilegal em território nacional”, “não conhecia MK antes de contactar pela primeira vez com ele”, “MK aceitou as condições de trabalho que lhe foram apresentadas … manifestou interesse em iniciar a actividade de pastor por conta do arguido…”, “… já se encontrava em Portugal há cerca de 15 (quinze) anos, designadamente desde 2000;” Desde o ano 2000 até ao ano 2017 …trabalhou para diversas entidades laborais”

b) 7.- …trabalhou todos os dias durante todo o dia da parte da manhã e da parte da tarde até cerca das 20h00…” questiona-se em que elemento probatório assentou esta conclusão do Tribunal, contrária à declaração de MK “sempre teve liberdade para se deslocar onde quisesse, …, não tendo horário de trabalho fixo”, às declarações do arguido “… duas horas de manhã e duas horas de tarde, de resto ele ia para onde queria” “depois fechava-as para ele ir para onde quisesse” - cfr. - sistema de gravação digital aos 34:45 e 56:18; ao depoimento da testemunha JO que afirmou encontra- lo muitas vezes no café da …, da testemunha JB que esclareceu que o encontrava à pesca na vala existente na propriedade onde o arguido trazia as ovelhas - cfr. - sistema de gravação digital aos 01:40, 03:39 e de HF “ele tirava as ovelhas de manhã, pelas 8h00m (...) e depois só à tarde pelas 16h30”, “ausentava-se, ia beber o café” “normalmente ao restaurante da …” cfr. – sistema de gravação digital aos 6:10

c) 15.- …, ausência esta de laços afectivos que associados à sua frágil condição económica e social, foram os factores aproveitados pelo arguido para o explorar a título laboral”, mais uma vez não alcançamos em que elementos probatórios se apoiou o Tribunal para dar este ponto, até porque, para além do arguido não conhecia MK antes de contactar pela primeira vez com ele (facto provado 26.), a verdade é que desde o ano 2000 até ao ano 2017 MK trabalhou para diversas entidades laborais (facto provado 46.) e que ele recusava regressar à Ucrânia, bem como qualquer contacto com a sua família (facto provado 57.)

d) Em 17. e 18. “… atuou … com o objectivo de exploração laboral e com intenção lucrativa, uma vez que MK efetuava trabalhos que se pagos de forma legal e regulada, fariam o arguido despender elevadas quantias monetárias”, “O arguido tinha noção clara de que pagava um valor muito abaixo do ordenado mínimo nacional …, pelas horas de trabalho que este desempenhava e pelas tarefas concretas que este produzia”, ora da prova documental de fls. 93 a 112 e de fls. 118 a 123 resulta que MK auferia o salário mínimo nacional.

e) Os pontos 20, 21 e 22 “aproveitando-se da situação de especial vulnerabilidade de MK, … aceitou e quis recruta-lo e acolhê-lo para fins de exploração no trabalho…”; “Agiu … sabendo sempre e querendo alojar em condições precárias MK para fins de exploração do respectivo trabalho, instrumentalizando o seu corpo e aproveitando-se da especial vulnerabilidade deste e da sua precária situação económica e de trabalho”; “… agiu sempre livre, voluntaria e conscientemente sabendo e querendo aproveitar-se da situação de especial vulnerabilidade de MK, de forma desumana e degradante”, resulta expressamente da declaração que MK junta aos autos em 11.03.2020, este declarou que tem ao seu dispor uma casa de habitação ao seu dispor, sita …, em …, cedida pelo arguido e que habita na “roulotte” por sua opção, situação que o arguido também confirmou. No que tange à prova testemunhal, JR esclareceu “a gente tentava levá-lo e ele não queria ir”, “ele nunca queria ir” cfr. - sistema de gravação digital aos 03:00; HF confirmou “era nas …”, “a gente insistiu muito muitas vezes, só ficava na nossa casa quando ia lá fazer a higiene” cfr. - sistema de gravação digital aos 08:09; JB explicou que quando questionou M porque não ia para casa do patrão ou para o centro de dia aquele respondeu “não, não, aqui estou à vontade, e depois não pesco, estou à minha vontade, não falta aqui nada, o patrão trás gás, trás comida, trás tabaco” “mas tu lá estavas melhor do que estás aqui: não não, não quero, eu quero estar aqui” - cfr. - sistema de gravação digital aos 4:58, 05:05

XIII. Perante a prova produzida, impõem decisão diversa da recorrida, para além dos factos provados nos pontos 24, 26, 28, 45, 46, 51 e 57 da matéria assente, dos documentos de fls. 28 a 33, de fls. 93 a 112, 118 a 123, da declaração que M entregou nos autos em 11.03.2020, acrescem, ainda, as declarações prestadas pelo arguido e os depoimentos das testemunhas HF, JR, JB - registados no sistema de gravação digital, conforme consta das atas de 23-09-2020; 07-10-2020.

XIV. Apesar de PA afirmar que M “falou várias vezes que não tinha condições, das parcas condições que tinha na roulotte” cfr. - sistema de gravação digital aos 23:12, o seu colega LA, presente nessa ocasião, contradisse asseverando que M “não se manifestou muito (...) não teve assim grande diálogo” sobre as condições em que vivia - cfr. - sistema de gravação digital aos 06:04 e às 10:50. Também o depoimento de JO não é merecedor de credibilidade, apresentou grandes discrepâncias do depoimento das outras testemunhas, em que o Tribunal diz, também, ter fundado a sua convicção.

XV. É certo que a prova está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos previstos pelo artigo 127.º do CPP, mas a livre convicção não pode significar o arbítrio ou a decisão irracional, exige uma apreciação motivada, crítica e racional, fundada nas regras da experiência, mas também nas da lógica e da ciência, pelo que terá de ser uma convicção objetivável e motivável.

XVI. O arguido impugna a matéria de facto invocando os vícios do art.º 410.º n.º 2 do CPP e nos termos do art.º 412.º n.º 3 e 4 do mesmo diploma, devendo a apreciação deste recurso ser alargada também à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites do ónus de especificação (n.º 3 e 4 do art.412.º do CPP).

XVII. A prova é insuficiente para suportar a decisão de facto, pelo que verifica- se, ainda, o vício da insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto proferida, devendo os pontos de facto incorretamente julgados e impugnados, factos 4, 7, 15, 17, 18, 19, 20, 21 e 22, ser alterados, deles se retirando as menções de que o arguido aproveitando-se da frágil situação económica, social e familiar em que se encontrava MK o aliciou e recrutou a ir trabalhar, acolheu-o em condições precárias, com a noção de que pagava um valor muito abaixo do ordenado mínimo nacional, com o objectivo de o explorar laboral, de forma desumana e degradante.

XVIII. Mas mesmo que pudesse restar alguma dúvida, o que se admite para facilidade de raciocínio e sem conceder, em obediência ao princípio do in dúbio pro reo (art.º 32º, nº 2 CRP) tal dúvida terá de ser resolvida a favor do arguido, alterando-se os factos incorretamente julgados e impugnados 4, 7, 15, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 a favor do Arguido.

XIX. Caso assim não se entenda, o que só se admite por cautela de patrocínio, há que ter em conta que o critério de distinção entre o crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160.º, nº 1, d), do CP e outros crimes contra a liberdade e dignidade humanas, reporta-se ao grau de instrumentalização ou coisificação da vítima.

XX. Uma das caraterísticas do crime de tráfico de pessoas é a prática da chamada “debt bondage”, outros elementos indicadores para que se considere preenchido o tipo do crime em causa são a pessoa não ter o controlo dos seus documentos de identificação ou de viagem, ter indicações específicas sobre o que dizer quando estivesse perante um agente da autoridade, não ter liberdade de movimentos, estar ameaçada, caso tente escapar, relativamente a si ou à sua família pode sofrer vinganças, não poder, livremente, contactar amigos e familiares e ou socializar com outras pessoas, ou, até, não poder livremente praticar a sua religião.

XXI. Por sua vez, a acção típica do tráfico de adulto consiste na oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte, alojamento ou acolhimento de uma pessoa com vista à sua exploração da sua mão-de-obra.

XXII. MK vivia em Portugal desde o ano 2000, trabalhou para diversas entidades patronais entre os anos 2000 e2017, apesar de estar desempregado quando aceitou ir trabalhar para o arguido, estava longe da sua família porque ele próprio não queria manter o contacto, e viveu numa roulotte em condições precárias porque, também ele decidiu ali habitar em detrimento da habitação em …, que lhe foi cedida pelo arguido.

XXIII. Tais circunstâncias não são, assim, insuficientes para o preenchimento do tipo.

XXIV. Face à prova produzida, não se verifica em relação a MK qualquer situação que se compatibilize com os elementos objetivos necessários ao preenchimento do tipo.

XXV. Em face do exposto e por não se verificar o preenchimento dos elementos do tipo da alínea d), do n.º 1 do art.º 160.º do CP, deve o Recorrente ser absolvido.

XXVI. Ao decidir de forma diversa, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação, o disposto no art.º 160.º n.º 1 al. d) do CP; no art.º 127.º e art.º 410.º, n.º 2, al. a) e b) do CPP; e o art.º 32º, nº 2 CRP.

Termos em que requer V. Exas. se dignem revogar o Douto Acórdão recorrido, substituindo-o por outro aresto que decida em sentido inverso, absolvendo o arguido MDF, com as legais consequências.»

O Ministério Público respondeu ao recurso dizendo:

«1ª-O arguido foi condenado nestes autos pela prática de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo artigo 160º, n.º 1, al. d) do Código Penal, na pena de três anos e três meses de prisão suspensa na sua execução por igual período.

2.ª-O Recorrente coloca à apreciação desse Venerando Tribunal as seguintes questões:

- A eventual existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

- A existência de contradição insanável na fundamentação

- A eventual existência do vício de erro notório na apreciação da prova;

- Violação do princípio do in dúbio pro reo

- Errada subsunção dos factos ao direito

3.ª- Alega o Recorrente nesta sede que o tribunal não dá como provados os factos relativos ao elemento subjectivo do tipo legal de crime.

4.ª- Dos factos dados como provados sob os números 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 da sentença incluem o dolo sobre todos os elementos do tipo, desde a intenção de manter a vítima sobre o seu domínio e dependência, conhecendo a sua situação de vulnerabilidade e aproveitando-se da mesma com intenção lucrativa. Os factos provados relativos ao elemento subjectivo do tipo não se reduzem ao factos 19 e 22, conforme afirma o Recorrente.

5.ª- Ademais, os factos dados como provados nos pontos 24 a 59 não permitem concluir que o arguido, no período mencionado, 2º semestre de 2017, actuou sem intenção de explorar o arguido laboralmente, aproveitando a sua situação de vulnerabilidade. De tais factos apenas se conclui que o arguido não cometeu os factos relativos ao auxílio à imigração ilegal e bem assim que, após a fiscalização da PSP e o despoletar deste processo, o arguido tentou regularizar e inverter a situação em que vivia o arguido, obtendo a sua legalização e contrato de trabalho e bem assim que teve compaixão da vítima quando esta ficou doente, tendo auxiliado a mesma. Tais factos influem na medida da pena aplicada, mas não permitem infirmar a prática dos factos dados como provados no 2º semestre de 2017, antes da fiscalização da PSP.

6.ª- De facto, da prova produzida, designadamente da conjugação das declarações dos agentes da PSP PA e LA, JO e o inspector da PJ LMV com as fotos do local (roulotte onde vivia a vítima) permite-se concluir que a vítima vivia em condições sub-humanas, sem quaisquer condições de salubridade associadas, visivelmente magro e com roupas sujas e velhas. A roulotte tinha apenas um colchão, roupas e alguma comida, tudo na mesma divisão e não tinha luz, água canalizada ou casa-de-banho. Mais resulta das declarações de JO, com quem a vítima convivia diariamente, que esta vinha pedir comida a casa dos seus pais, onde a testemunha também residia, e com eles comeu muitas vezes, por ter fome e que trabalhava de sol a sol, sem férias nem folgas. Mais asseverou a testemunha JO que naquele terreno, que não era propriedade do arguido, não existia outra casa disponível para além daquela onde viviam os seus pais e a casa principal, que era do dono da herdade e que não estava acessível a terceiros. Este depoimento foi essencial e revelou-se isento, não se vislumbrando quaisquer contradições que o Recorrente refere, contudo sem especificar.

7.ª- Tais elementos de prova, em conjugação com as regras da normalidade, permitiram infirmar as declarações do arguido e das testemunhas JR e HF, seus familiares, quando afirmaram que puseram uma casa à disposição do arguido com todas as condições e que o mesmo podia utilizar uma casa-de-banho existente no local.

8.ª- Também o facto de o arguido não ter retido documentos de identificação da vítima e providenciar por alguns bens essenciais, bem como não impedir deslocações ao café não permitem concluir que os factos não integram o crime de tráfico de pessoas.

9.ª- Ora, a vítima estava completamente desenraizada no local, não tinha qualquer apoio familiar, social ou de outrem, tendo encontrado trabalho sob ordens do arguido, facto que aproveitou por não ter onde residir nem meios de subsistência, factos de que o arguido tinha conhecimento. E tais factos permitiram ao arguido coloca-lo a residir naquele local, sem que a vítima tivesse meios próprios para se deslocar que não a pé, o que fazia em direção ao café por ser relativamente perto, dependendo do arguido para lhe levar comida, e os demais bens essenciais à sua sobrevivência. Fosse a vítima uma pessoa de nacionalidade portuguesa, com família, com casa onde viver, não teria o arguido a possibilidade de lhe pagar €75,00 por semana e ter, a tempo inteiro, sem férias nem folgas, um pastor naquela herdade.

10.ª-Também o facto da vítima “gostar” do arguido não permite concluir pela inexistência de crime. As vítimas vulneráveis, não raras vezes, mercê da dependência em relação aos arguidos, estabelecem uma relação com os mesmos fundada nessa mesma dependência – dos factos relativos às condições pessoais da vítima é possível inferir que veria no arguido a pessoa que, pese embora sem condições mínimas, lhe deu um teto para dormir e um trabalho. Nesta sede, o consentimento da vítima é irrelevante.

11.ª- Acresce que o documento assinado pela vítima em 11/03/2020, antes de falecer e já na pendência deste processo-crime não podia ser, como não foi, considerado, porquanto, tais declarações não foram tomadas no âmbito deste processo pelo OPC ou pelo Ministério Público, desconhecendo-se as condições em que foram prestadas. Aliás, as declarações prestadas no inquérito são opostas às que constam de tal documento e, requerida a sua leitura, o arguido opôs-se à mesma! Dos documentos indicados (fls. 28 a 33, 93 a 112 e 118 a 123) apenas se retira que a vítima se acomodou à situação vivida e àquelas condições de vida, o que também é mister neste tipo de ilícito, atenta a extrema situação e vulnerabilidade e pobreza em que esta vivia.

12.ª- Invoca, ainda, o arguido que existe uma contradição insanável na fundamentação quando dá como provados os factos 4, 7, 15, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 e os factos dos pontos 24, 26, 28 e 45. Ora, tais factos não são contraditórios, pois que, como acima se referiu, a intenção de arguido de explorar o trabalho da vítima, não fica excluída pelo facto de o arguido não o conhecer antes de o contratar e, como tal, não saber que estava em situação irregular em território nacional e de a vítima ter aceite as condições propostas pelo arguido.

13.ª- Como acima se disse, tal facto é revelador da situação de dependência que se iniciou no momento da contratação e da situação de vulnerabilidade da vítima espelhada na pobreza extrema em que vivia. O facto de o arguido não conhecer antes a vítima não permite inferir que, no momento em que falou com o mesmo para o contratar, não se tivesse apercebido o tipo de pessoa que tinha à sua frente, e da sua fragilidade social e económica, e desta forma, formou aí a sua intenção de o contratar a baixo custo e sem obrigações que acarretassem para si custos elevados.

14.ª- Quanto à subsunção dos factos ao tipo do artigo 160º, n.º 1 al. d) do Código Penal, sempre se dirá que a ação típica do tráfico de pessoas adultas pode revestir várias modalidades, segundo a previsão normativa contida no art. 160º, nº 1, do CP: oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte (por meio próprio do agente ou de terceiro, mas custeado pelo agente), alojamento ou acolhimento de uma pessoa. As modalidades de ação executiva - recrutar, aliciar, transportar, alojar ou acolher - não revestem qualquer dificuldade interpretativa, pois estão aqui mencionadas em conformidade com o sentido literal dos correspondentes verbos. Trata-se de um delito de intenção (“para fins de”), na medida em que visa a realização de um resultado que não faz parte do tipo, justamente, a exploração sexual, a exploração do trabalho, a extração de órgãos, ou outras atividades desumanas ou degradantes. O tráfico de seres humanos é, não obstante, um crime de execução vinculada, porquanto cada uma destas modalidades de ação típica tem, forçosamente, de ser levada a cabo através de violência, rapto ou ameaça grave, de ardil ou manobra fraudulenta, com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar, mediante o aproveitamento da incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, ou através da obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima. O tipo subjetivo exige o dolo, em conformidade com o princípio geral da excecionalidade da punição a título negligente, consagrada no art. 13º do CP.

15.ª- Em face dos factos dados como provados, entendemos que nenhuma dúvida se suscita, na matéria de facto provada, no que concerne ao modo como foi executada a relação laboral e como esta vítima viveu naquela exploração, que está consumado o crime de tráfico de seres humanos.

16.ª- Com efeito, além da contratação de cidadão estrangeiro, o tipo de oferta efectuada - €75,00 por semana – muito abaixo do valor do salário mínimo nacional, sem descontos para a Segurança Social ou IRS, portanto, sem relação laboral declarada, fornecendo géneros alimentares insuficientes, que no entender do arguido cobria o restante valor do salário em falta (pago em géneros), as condições em que a vítima vivia, sem qualquer salubridade, a retenção abusiva e ilegal de quantias monetárias do suposto salário para pagamento da alimentação e outros bens essenciais, circunstâncias conjugadas com a situação irregular em que esta pessoa se encontrava em Portugal e com a vontade que tinha de permanecer em Portugal, constituem, outros tantos indícios empíricos de especial vulnerabilidade.

17.ª- Ademais, as condições que o arguido ofereceu à vítima para viver e onde o mantinha viver, por tão desumanas e degradantes, são claramente ofensivas dos direitos fundamentais da pessoa ao sossego, à intimidade, à sua liberdade pessoal, até, à sua saúde, em suma, da sua dignidade enquanto ser humano.

Pelo que, entendemos que a subsunção dos factos ao tipo não merece qualquer reparo.

18.ª- Pelo exposto, entendemos não haver, pois, qualquer fundamento para revogar a douta sentença proferida, devendo ser julgado totalmente improcedente o recurso ora interposto pelo recorrente.

Termos em que, decidindo pela manutenção da douta sentença recorrida, nos seus exactos termos e fundamentos, farão V. Exas., como sempre, JUSTIÇA!»

Nesta Relação o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente e que se deve manter a decisão recorrida.

Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, o arguido não respondeu.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

A) FACTOS PROVADOS.

1.- No inicio de 2017, o arguido tinha rebanhos a pastar no terreno agrícola conhecido como …, situada na …, em ….

2.- O arguido era empresário agrícola e necessitava de um pastor para tratar das suas ovelhas naquele local.

3.- MK, de nacionalidade ucraniana, encontrava-se desempregado, sem qualquer ligação familiar ao território nacional e permanecia de forma ilegal no país há diversos anos.

4.- O arguido, aproveitando-se da frágil situação económica, social e familiar em que se encontrava MK, aliciou-o a ir trabalhar para a sua quinta, no local supra referido, oferecendo-lhe um local onde pudesse permanecer, dormir e comer, com o objetivo previamente determinado de o vir a explorar laboral e economicamente.

5.- O arguido cedeu a MK, num terreno agrícola, em …, …, um atrelado com 2,5 metros de cumprimentos, 1, 70m de largura, 2m de altura, sem isolamento térmico, com colchão e fogão portátil, mas sem água potável, casa de banho ou eletricidade, onde este viveu durante parte do ano de 201 7.

6.- No decorrer do segundo semestre desse ano de 2017, MK viveu e trabalhou a título permanente na referida quinta do arguido, sob as ordens emanadas do mesmo.

7.- MK, nesse sentido trabalhou todos os dias, durante todo o dia da parte da manhã e da parte da tarde até cerca das 20h00, hora a que apos o que voltava para o referido atrelado, onde dormia.

8.- O arguido inicialmente não celebrou qualquer contrato de trabalho escrito com MK.

9.- O arguido não efetuou quaisquer descontos na Segurança Social, nem efetuou qualquer comunicação à Autoridade Tributária.

10.- MK fazia diversas atividades diárias de trabalho na quinta, que passavam essencialmente pela exploração do gado do arguido.

11.- O arguido não concedeu a MK, durante a parte do ano de 2017 em que este trabalhou para si, qualquer período de férias.

12.-A título de retribuição por todo o trabalho realizado na quinta, o arguido entregava a MK não mais de 75 € (setenta e cinco) por cada semana de trabalho e fazia todos os pagamentos em dinheiro.

13.- MK foi abordado por elementos da PSP no dia 22/12/2017, que o notificaram para comparecer no S.E.F no dia 27/12/2017 por se mostrar indocumentado.

14.- No dia 27/12/2017, já após MK ter sido ouvido no S.E.F, o arguido celebrou um contrato de trabalho com o ofendido.

15.- MK nunca teve em Portugal qualquer familiar direto, vivendo na Ucrânia a sua família, com as quais perdeu contacto nos últimos anos, ausência esta de laços afetivos que associados à sua frágil condição económica e social, foram os fatores aproveitados pelo arguido para o explorar a título laboral.

16.-O arguido tinha ainda conhecimento e domínio do facto de que tinha às suas ordens diretas um trabalhador vulnerável, sem qualquer contrato de trabalho em vigor, sem seguros obrigatórios, comunicações à Segurança Social ou Autoridade Tributária.

17.-O arguido atuou nos termos descritos com o objetivo de exploração laboral e com intenção lucrativa, uma vez que MK efetuava trabalhos que se pagos de forma legal e regulada, fariam o arguido despender elevadas quantias monetárias.

18.-O arguido tinha noção clara de que pagava um valor muito abaixo do ordenado mínimo nacional a MK, pelas horas de trabalho que este desempenhava e pelas tarefas concretas que este produzia.

19.-O arguido atuou sempre livre, voluntária e conscientemente no propósito concretizado de exploração laboral e intenção lucrativa.

20.-O arguido aproveitando-se da situação de especial vulnerabilidade de MK, o arguido aceitou e quis recrutá-lo e acolhê-lo para fins de exploração no trabalho, o que fez durante o segundo semestre do ano de 2017.

21.-Agiu assim o arguido nos termos descritos, sabendo sempre e querendo alojar em condições precárias MK para fins de exploração do respectivo trabalho, instrumentalizando o seu corpo e aproveitando-se da especial vulnerabilidade deste e da sua precária situação económica e de trabalho.

22.-O arguido agiu sempre livre, voluntaria e conscientemente, sabendo e querendo aproveitar-se da situação de especial vulnerabilidade de MK, de forma desumana e degradante.

23.- O arguido agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.

24.-Quando o arguido decidiu contratar MK desconhecia que o mesmo se encontrava em situação ilegal em território nacional.

25.-Em meados de 2017 um individuo de nome A disse ao arguido que MK não tinha emprego.

26.-O arguido não conhecia MK antes de contactar pela primeira vez com ele.

27.-O arguido explicou a MK que lhe poderia dar trabalho como pastor de um rebanho de ovelhas, e lhe dava €75 ,00 por semana.

28.- MK aceitou as condições de trabalho que lhe foram apresentadas pelo arguido e manifestou interesse em iniciar a atividade de pastor por conta do arguido tendo começado a trabalhar para o Arguido.

29.- O arguido solicitou a MK que lhe facultasse os seus documentos para que a empresa de contabilidade formalizasse o respetivo contrato de trabalho e comunicasse a relação laboral às autoridades públicas.

30.- MK apenas entregou ao arguido fotocópia da primeira página do passaporte e do visto, ambos já caducados, fotocópia de uma antiga notificação do SEF do ano 2002, fotocópia de um impresso da segurança social com o NISS e uma declaração desta mesma entidade datada de 03.09.2008.

31.-O arguido levou as fotocópias da documentação que lhe foram facultadas pelo MK à empresa que lhe faz a contabilidade "…" e solicitou a funcionária da mesma que efetuasse um contrato de trabalho para o MK.

32.-A referida funcionaria informou o arguido que não conseguia fazer o contrato de trabalho com as fotocópias da documentação facultadas por MK e que o mesmo estava ilegalmente em território nacional.

33.-Em face disso, de imediato o arguido contactou com o Advogado Dr. … para tratar da legalização do MK em território nacional, entregando-lhe as fotocopias que lhe haviam sido facultadas pelo mesmo.

34.-Algum tempo depois, o arguido deslocou-se com o aludido Advogado, o MK e o seu genro JR à embaixada da Ucrânia em Lisboa para tratar de um novo passaporte para M.

35.-Só em Dezembro de 2017, no seguimento da ação policial, é que o arguido teve conhecimento que o Advogado ainda não tinha tratado do passaporte de MK e nessa data pediu-lhe que devolvesse as fotocopias da documentação que lhe foram entregues para esse efeito.

36.-Foi o arguido quem, em 17.01.2018, providenciou pela obtenção de um documento de identificação válido para MK, assegurou a deslocação do mesmo à embaixada da Ucrânia, em Lisboa, e arcou com o custo do novo passaporte, que veio a ser emitido em 01.03.2018, com nº….

37.-Após MK já ter um documento de identificação, foi o arguido que providenciou pela obtenção do certificado de registo criminal da Ucrânia de Mk de forma a que este pudesse iniciar o seu processo de legalização de permanência em território nacional junto do SEF, assegurou todas as deslocações que se demonstraram necessárias à embaixada da Ucrânia, em Lisboa, e arcou com o respetivo custo.

38.-Foi, ainda, o arguido quem diligenciou junto do SEF pelo processo de legalização de Mk em território nacional, assegurou a sua deslocação que e arcou com o respetivo custo.

39.- Mk nunca entregou o seu anterior passaporte ao arguido.

40.- Mk perdeu o seu passaporte antes de conhecer o arguido.

41.- O arguido nunca teve na sua posse qualquer passaporte de Mk.

42.-Quando Mk solicitou novo passaporte, deslocou-se à PSP de … onde participou o extravio do anterior com o nº….

43.-Sendo que este passaporte nº … era válido até 21.10.2008.

44.-No ano 2017 quando o arguido conheceu Mk já o passaporte deste se encontrava fora de validade há cerca de 9 (nove) anos.

45.-Quando Mk iniciou atividade laboral por conta do arguido já se encontrava em Portugal há cerca de 15 (quinze) anos, designadamente desde 2000.

46.-Desde o ano 2000 até ao ano 2017 Mk trabalhou para diversas entidades laborais, tendo inclusivamente feito descontos para a segurança social desde o ano 2002 a 2005.

48.- No âmbito da sua atividade laboral Mk tinha a função principal de colocar o rebanho na pastagem, vigia-lo e após este se alimentar recolhe-lo.

49.- O arguido nunca impediu Mk de deslocar-se onde lhe aprouvesse.

50.- Todos os dias ou o arguido, ou alguém a seu pedido, passou no local onde Mk se encontrava com o rebanho.

51.- O arguido providenciou pela aquisição de bens, alimentos e tabaco que ele ou outrem por sua conta levava a Mk;

52.- O arguido com regularidade não apurada não superior a um dia por semana transportou Mk à sua casa, na localidade de …, onde aquele tomava banho e fazia a sua higiene.

53.- Em 29.05.2019 foi diagnosticado cancro do pulmão a Mk, data em este entrou de baixa médica.

54.- Foi o arguido, e também o seu filho, que asseguraram todas as deslocações às consultas médicas e aos tratamentos de quimioterapia de Mk.

55.- Foi o arguido quem providenciou junto da segurança social pela concessão de reforma por invalidez a Mk, que foi deferida em 25.09.2019, no montante de €410,56.

56.- Não obstante, Mk já não trabalhar para o arguido desde Maio de 2019, inicialmente por baixa médica e depois por se ter reformado invalidez, o arguido continuou a cuidar dele, apoiando-o nas deslocações ao hospital, compra-lhe a medicação e provém com a alimentação.

57.- Mk recusou-se regressar à Ucrânia, bem como a qualquer contacto com a sua família.

58.- Mk nutriu sentimento de carinho e afeto pelo arguido, referindo-se a este com se tratasse do seu pai.

59.- O arguido tentou que Mk passasse a ser utente do Centro de Dia das …, onde para além de conviver com outros utentes também tinha serviço de apoio domiciliário que incluí a confeção das refeições dos utentes.

60.-0 Arguido MD, 81 anos, é natural de …, onde cresceu com uma irmã mais velha, inserido num núcleo familiar organizado e enquadrado a nível social de estrato socioeconómico mediano.

61.- Os pais do Arguido eram proprietários de uma propriedade agrícola e pecuária, vivendo sobretudo da criação de animais.

62.- O ambiente familiar do arguido era como gratificante ao nível dos afetos, com figuras parentais empenhadas na educação dos filhos e na transmissão de regras de condutas normativas.

63.-0 Arguido MD Integrou o sistema de ensino em idade normativa, tendo concluído o 4.° ano de escolaridade, iniciando atividade laboral com cerca de 12 anos, na propriedade da família, onde trabalha até aos dias de hoje.

64.-0 Arguido MD casou com 25 anos, tendo continuado a viver com os pais. Tem 2 filhos (1 casal de gémeos), atualmente com 56 anos de idade. A filha, deficiente, é reformada por invalidez.

65.- O filho do Arguido sofreu recentemente um A VC, encontrando-se incapacitado para trabalhar aonde trabalhava também na propriedade de família.

66.- O Arguido MD não tem rendimento fixo proveniente da agricultura e criação de animais, auferindo em media de tais actividades cerca de 700 a 800 euros mensais.

67.- O Arguido MD é reformado, auferindo de 410,00 e de pensão de reforma, a sua mulher também é reformada, auferindo 306,00e.

68.- O agregado familiar do Arguido não tem despesas fixas mensais significativas, para além das despesas com alimentação e outros bens essenciais.

69.- O certificado de registo criminal do Arguido junto aos autos datado de 18/9/2020 não insere qualquer condenação sua.

70.- MK veio, entretanto, a falecer

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B ) FACTOS NÃO PROVADOS.

Não se provaram os seguintes factos não conclusivos, de entre os factos constantes da acusação e da contestação, acima não descritos e contrários aos factos provados supra descritos;

1.- Que o arguido era proprietário do terreno supra referido em Il¬A) 1.

2.- Que o Arguido nas circunstancias de facto supra referidas em II- A ) 4.-, soubesse que MK, estava em situação ilegal em território nacional;

3.- Que o arguido ficou na posse do passaporte de MK;

4.- Que a título de retribuição por todo o trabalho realizado na quinta, o arguido entregava a MK 30 € (trinta euros), por semana;

5.- Que nas circunstancias de facto supra referidas em I1- A) 16.¬, o arguido sabia que tinha o passaporte de MK na sua posse;

6.- Que nas circunstancias de facto supra referidas em II- A) 25.¬, foi dito ao arguido que MK andava a procura de emprego;

7.Que nas circunstancias de facto supra referidas em 11- A) 26.-após várias insistências do A, o Arguido deslocou-se a um café na localidade de … onde contactou pela primeira vez com o ofendido M;

8. Que o arguido prometeu a MK que lhe dava habitação, alimentação, luz, água, gás;

9.- Que quando Mk iniciou atividade laboral por conta do arguido já se encontrava em Portugal há cerca de 15 (quinze) anos, designadamente desde 31.05.2000;

10.- Que a função do ofendido M enquanto pastor era apenas assegurar que o rebanho de ovelhas pastasse pelo menos duas horas no período da manhã e duas horas no período da tarde;

11.- Que o arguido não impôs horários nem controlava o trabalho do ofendido M, sendo o próprio ofendido quem geria o seu tempo de trabalho como melhor lhe aprouvesse;

12.- Que o arguido nunca o impediu Mk de gozar dias de folga ou até mesmo de férias;

13.- Que sempre que Mk necessitou de se ausentar do seu local de trabalho pôde faze-lo, sendo-lhe apenas pedido que avisasse o arguido por uma questão de organização do "trabalho";

14.- Que o arguido colocou à disposição do ofendido M uma casa sita na Rua …, em …;

15.- Que foi o ofendido M que optou por pernoitar e habitar no atrelado supra referido em II-A) 5.-, atrelado onde ainda hoje habita apesar de já não trabalhar para o arguido;

16.- Que Todos os dias ou o arguido, ou alguém a seu pedido, se disponibilizou para levar para Mk a casa de … do Arguido;

17.- Que Mk sempre recusou pernoitar na casa sita em …, optando antes por ficar no atrelado;

18.- Que o arguido sempre providenciou pela aquisição de todos os bens, alimentos e tabaco que Mk lhe solicitou;

19.- Que o arguido sempre facultou a Mk todos os géneros alimentícios, mantimentos, água, gás e vestuário que aquele lhe solicitou;

20.- Que Mk se referisse ao Arguido como se tratasse do seu pai;

21.- Que o arguido insistiu várias vezes para que Mk fosse residir para a sua casa, mas o ofendido continuou sempre a rejeitar essa proposta, dizendo que gostava de estar no atrelado.

C-) Fundamentação da convicção do tribunal quanto aos factos provados e não provados.

O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados e não provados na análise crítica do conjunto da prova produzida.

Efectivamente não basta a indicação dos meios de prova pré constituídos e produzidos audiência de julgamento que serviram para fundamentar a sentença.

É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto. Trata-se de significativa alteração do regime do Código de Processo Penal de 1929, e mesmo do que, segundo alguma doutrina, anteriormente, vigorava por alterações introduzidas no C.P.P.

Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, conforme impõe o art. 410°, n.O 2. Do C. P. P ..

E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade.

O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados nas declarações prestadas pelo Arguido na parte em que prestou declarações de acordo com os factos provados admitindo ter contratato e conhecido Mk nas condições dadas como provadas e que este vivia no atrelado nos termos dados como provados e declarou que só soube que Mk estava em situação ilegal em território nacional quando lhe quis fazer o contrato de trabalho tendo de imediato tentado legalizar a permanecia de Mk em território nacional nos termos dados como provados, mas negando os restantes factos designadamente que tivesse a explorar laboralmente Mk que este só não habitava em casa que disponibilizou contigua a sua e noutra junto ao atrelado de que tinha a disponibilidade ambas com agua eletricidade e casas de banho e demais boas condições de habitabilidade porque não queria preferindo habitar no atrelado.

Tais declarações negatórias não mereceram credibilidade ao tribunal dado que são em parte inverosímeis, o que acontece entre outras alem do mais com a afirmação feita pelo Arguido de que Mk não usava a casa de banho na casa de que dispunha ao lado da roulotte porque não queria, sendo inverosímil que Mk quisesse fazer as necessidades a céu aberto e não numa casa de banho a que podia ter acesso cedida pelo Arguido e porquanto foram contrariadas pela restante prova credível abaixo referida.

O tribunal fundou primacialmente a sua convicção quanto aos factos provados nos depoimentos das testemunhas PAPLA e LMMA agentes da P. S. P., que por uma reclamação se deslocaram a quinta e roulotte aonde MK vivia em 22/12/2017 e confirmaram as condições dadas como provadas em que MK vivia encontrando MK vestido com roupas usada e suja magro sem identificação e em situação ilegal no território nacional vivendo na rulote com as características dadas como provadas sem electricidade e agua corrente.

O tribunal fundou também primacialmente a sua convicção quanto aos factos provados nos depoimentos das testemunhas JLO e LMOSV, inspector da policia judiciaria.

A testemunha JLO que vivia na quinta aonde estava a rulote aonde vivia MK depôs confirmando os factos provados relativos as circunstancias em que vivia MK, contrariando as declarações negatórias do Arguido afirmando que a casa contigua aquela em que vivia não pertencia ao Arguido nem este tinha autorização para a usar, (não podendo assim o Arguido tê-la cedido a MK como afirmou), e que MK muitas vezes pedia dinheiro aos seus pais e estando com fome pedia para lhe darem comida o que sucedeu, (não sendo assim verdade como o Arguido deu a entender que fosse providenciado a MK tudo o que este necessitava), e que MK trabalhava de manhã até ao escurecer e não tinha folgas.

Por sua vez a testemunha LMOSV deslocou-se a roulotte aonde MK vivia em 19/1/2018 e confirmou igualmente as condições dadas como provadas em que MK vivia encontrando MK vestido com roupas velhas sujas sem identificação e em situação ilegal no território nacional vivendo na roulotte com as características dadas como provadas sem electricidade e agua corrente e fazendo as necessidades fisiológicas no campo, confirmando igualmente que MK não tinha passaporte valido tendo deixado caducar o anterior por em 20107/2008 não o tendo renovado.

O tribunal fundou também primacialmente a sua convicção quanto aos factos provados no depoimento da testemunha JHVG, advogado, que confirmou ter sido contactado pelo Arguido para legalizar a presença em território nacional de MK confirmando os factos provados relativos a tal matéria e designadamente que se deslocou com tal desiderato nos termos que se deram como provados a embaixada da Ucrânia.

Estas testemunhas depuseram com isenção e não tem interesse no desfecho do processo, pelo que o tribunal, como não podia deixar de ser, se fundou nos seus depoimentos para dar corno provados os factos relativos às matérias sobre que depuseram atrás referidas.

A testemunha JPAF motorista depôs apenas confirmando que em 2017 conduziu o Arguido e MK as instalações da embaixada da Ucrânia fundando-se o tribunal quanto a tal aspecto no depoimento desta testemunha.

Por sua vez a testemunha JMNBM depôs no sentido ter conhecido MK e de este lhe ter dito que gostava do Arguido fundando-se o tribunal quanto a tal aspecto no depoimento desta testemunha.

As testemunhas JCSR e HJHDF, genro e filho do arguido respectivamente depuseram em parte de acordo com os factos provados confirmando que MK trabalhava para o Arguido estava ilegal em território nacional e o Arguido procurou legalizar a presença do arguido em território nacional.

Porém a semelhança do Arguido depuseram no sentido de que MK não habitava em casa que o Arguido disponibilizou com agua electricidade e casa de banho e demais boas condições de habitabilidade porque não queria preferindo habitar no atrelado e que lhe eram proporcionados todos os bens de que precisava.

Na parte em que estes depoimentos foram contrários aos factos provados não mereceram os mesmos credibilidade ao tribunal desde logo porque se trata de pessoas com proximidade familiar ao Arguido genro e filho, por isso com aparente falta de neutralidade perante o litigio, depois porque houve discrepâncias entre tais depoimentos afirmando nomeadamente a testemunha JCSR ao arrepio de toda a restante prova produzida que MK vivia num anexo da casa do sogro com eles, o que ninguém afirmou nem a testemunha HJHDF, filho do Arguido, e depois em contradição que passava a maior parte do tempo junto das ovelhas mas porque não queria ir para o dito anexo e finalmente porque tais depoimentos foram contrariados pela prova credível supra referida que os contraria na parte em que são contrários aos factos provados.

O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados relativos a situação pessoal, económica, familiar e social do Arguido nas declarações deste conjugadas com a análise do relatório social para julgamento junto aos autos com a referencia 83168419.

O tribunal fundou ainda a sua convicção sobre os factos provados na análise dos documentos juntos Auto de notícia, fls. 3 e 4; Cópias do SEF, fls. 7 a 12, 28 a 33; Auto de diligência, fls. 18 a 23; Recibos de vencimento, fls. 93 a 112; Informação …., fls. 118 a 123.; Certificado do Registo Criminal do Arguido junto aos autos datado de 18/912020; Documentos juntos a folhas 244 a 269, e certidão de óbito junta aos autos com a refemcia …, examinados em audiência de julgamento.

Sobre os factos não provados não se produziu qualquer prova convincente e dai necessariamente as respostas negativas.

Efectivamente sobre os factos não provados 1.- a 7-. não se produziu qualquer prova e dais necessariamente as respostas negativas.

E relativamente aos restantes factos não provados apenas o Arguido e as testemunhas JCSR e HJHDF sustentaram a sua veracidade, sendo que tais declarações e depoimentos não mereceram credibilidade ao tribunal nos termos exposto supra e dai também necessariamente as respostas negativas.

III - Apreciação recurso.

O objeto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação, arts. 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.

As conclusões dos recursos destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância da recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

1º- Dos vícios previstos no artº 410º nº 2 a) e b) do CPPenal e da impugnação da matéria de facto.

2ª-Do enquadramento jurídico-penal dos factos.

III-1ª- Dos vícios previstos no artº 410º nº 2 a) e b) do CPPenal e da impugnação da matéria de facto.

A prova produzida em audiência de julgamento está documentada, então, o Tribunal da Relação pode conhecer de facto e de direito, artº 428º nº 1 do CPPenal.

A matéria de facto pode ser sindicada de duas formas:

- Uma mais restrita, que consiste na invocação dos vícios constantes do artº 410º nº 2 do CPPenal, cuja indagação tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente às declarações ou aos depoimentos exarados no processo, durante o inquérito ou instrução, ou até mesmo durante o julgamento.

- Outra mais ampla, em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, mas que se alarga à análise da prova produzida em audiência de julgamento e à prova documental, tendo o recorrente que observar o disposto no artº 412º nºs 3 e 4 do CPPenal, em relação a cada um dos factos impugnados. Esta forma de impugnação não visa um segundo julgamento sobre toda a matéria de facto, ou melhor, não pressupõe uma reapreciação de todos os elementos de prova prestados em audiência, que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes constitui um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, isto é, trata-se de uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados (cfr. Neste sentido, o Acórdão do STJ de 29/11/08, proc. 08P3269, em www.dgsi.pt).

O recorrente impugna a matéria de facto através das duas formas, por isso, importa desde já começar pela análise dos vícios invocados.

O recorrente alega que a decisão recorrida padece do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão previsto no artº 410, nº 2 al. a) do CPPenal, porquanto o Tribunal não imputa condutas concretas para o preenchimento do tipo subjetivo (factos 24 a 59) e quanto a este o tribunal limitou-se na decisão recorrida a transcrever os factos nºs 19 e 22.

Vejamos.

Estabelece o art. 410º nº 2 al. a) do CPPenal: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

O vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena.

Como se escreve no Ac. STJ de 29-2-96 (in www.dgsi.pt) “ a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art. 410º, nº 2 al. a) do C.P.Penal de 1987, só existe quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo deixa de investigar toda a matéria de facto relevante de tal forma que a matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido á sua apreciação”.

E no Ac. de 20-10-99, proc. Nº 1452/98 “ O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art. 410º nº 2, al. a) do CPP – não se confunde com a insuficiência da prova, só podendo considerar-se existente quando os factos apurados são insuficientes para se decidir sobre o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crimes verificáveis e dos demais requisitos necessários à decisão de direito e é de concluir que o tribunal podia ter alargado a sua investigação a outro circunstancialismo fáctico suporte bastante dessa decisão”.

O recorrente alega que a decisão recorrida padece do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão previsto no artº 410, nº 2 al. a) do CPPenal, porquanto o Tribunal não imputa condutas concretas para o preenchimento do tipo subjetivo (factos 24 a 59) e quanto a este o tribunal limitou-se na decisão recorrida a transcrever os factos nºs 19 e 22.

Aos elementos objectivos do crime de tráfico de pessoas, acrescem dois elementos subjectivos, o dolo e a intenção de exploração do trabalho.

O dolo traduz-se no conhecimento e vontade de realização do facto típico e admite qualquer forma de dolo prevista no artº 14 º do C.Penal, salvo no tocante à conduta ardilosa ou fraudulenta, que é incompatível com o dolo eventual.

Quanto á intenção de exploração do trabalho, reporta-se a um elemento que não faz parte do tipo objectivo , mas que é provocado por uma acção posterior a praticar pelo próprio agente ou por um terceiro. Portanto, não é necessária a verificação da exploração efectiva da vítima, basta que o agente tenha essa intenção. Trata-se de um crime de resultado cortado.

O crime de tráfico de pessoas é um crime doloso e de intenção de exploração do trabalho, que dada a sua natureza subjectiva, é insusceptível de apreensão directa, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção e por meio de presunções materiais ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência comum.

Como se refere no Acórdão do STJ de 01.04.93 in BMJ nº 426, pág. 154: “Dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é portanto de natureza subjectiva insusceptível de apreensão directa, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo possa concluir-se, entre os quais surge com maior representação, o preenchimento dos elementos materiais integrantes da infracção. Pode, de facto comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções materiais ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência.

Ora, como resulta dos factos provados, o arguido aproveitando-se da frágil situação económicas e familiar de MK, que não tinha qualquer ligação ao território nacional, aliciou-o a trabalhar na quinta para exercer as funções de pastor, com o objectivo de o a vir a explorar laboral e economicamente, o que se infere nomeadamente do facto de lhe pagar a quantia de € 75,00 por semana, de lhe ceder alojamento no atrelado, com as características constantes do facto nº 5, sem quaisquer condições de habitabilidade, sem água potável, casa de banho ou eletricidade; do facto de trabalhar todo o dia até cerca das 20h, após o que voltava para o atrelado onde dormia; sem ter celebrado inicialmente contrato de trabalho, não efectuar os descontos para a segurança social, nem ter feito qualquer comunicação à autoridade tributária.

Destes factos objetivos provados infere-se, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, segundo um processo racional que o arguido tinha conhecimento de que tinha às suas ordens um trabalhador vulnerável, que recrutou e acolheu para fins de exploração no trabalho, o que fez durante o segundo semestre do ano de 2017, sem qualquer contrato de trabalho em vigor, nem seguro obrigatório; que atuou com o objetivo de o explorar laboralmente e com intenção lucrativa, dado que o arguido sabia que pagava um valor muito abaixo do ordenado mínimo nacional, pelas horas de trabalho que este desempenhava e pelas tarefas concretas que este produzia; o arguido atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente no propósito concretizado de explorar laboralmente a vítima e com intenção lucrativa, bem sabendo e querendo aproveitar-se da situação da especial vulnerabilidade de M.

Os factos relativos ao elemento subjetivo do crime de tráfico de pessoas, p. e p. no artº 160º nº 1 al. d) não se limitam aos constantes dos nºs 19 e 22, com o alega o recorrente mas incluem também os factos nºs 16 a 18, 20 e 21 da matéria provada.

Quanto aos factos nºs 24 e segs, não nos permitem retirar a ilação de que o arguido no 2º semestre de 2017, atuou sem intenção de explorar o arguido laboralmente, aproveitando a sua situação de vulnerabilidade. Dos mesmos apenas extrai a ilação que não incorreu no crime de auxílio à emigração ilegal e que após a fiscalização da PSP o arguido tentou regularizar a situação, obtendo a sua legalização e contrato de trabalho e que teve compaixão da vítima quando esta ficou doente tendo-a auxiliado, factos que não permitem infirmar os factos que ocorreram no segundo semestre de 2017.

Improcede, assim, o alegado pelo recorrente quanto ao vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, p. e p. no artº 410º nº 2 al. a) do CPPenal.

Quanto à contradição insanável entre a fundamentação e a decisão alega o arguido que de fls. 93 a 112 e 118 a 123 resulta que o M auferia o salário mínimo nacional, o que não é ultrapassável pela afirmação que consta de fls. 25 da decisão recorrida de que “ Nesse mesmo estudo, refere-se que numa relação laboral essa coisificação pode verificar-se quanto a retribuição que aufere é claramente desproporcional em relação ao valor objectivo do produto do seu trabalho, ou ao número de horas que trabalha, situação que resulta dos factos em relação ao M”.

Como referem M. Simas Santos e Leal Henriques, em “Recursos Penais, 9ª edição pág.78, “há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquele que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face á colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente constitui uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão”.

Da matéria provada resulta que, a vítima trabalhava na quinta exercendo a profissão de pastor, todos os dias da parte da manhã e da parte da tarde até cerca das 20 h, por todo o trabalho realizado na quinta o arguido entregava ao ofendido M a quantia de € 75,00, por cada semana de trabalho, o que está em consonância com o excerto de fls. 25 da decisão recorrida, atrás transcrito, e por isso, inexiste a apontada contradição.

Após a fiscalização da PSP que ocorreu no dia 22/12/2017 e o despoletar deste processo o arguido tentou regularizar a situação da vítima e inverter a situação em que esta vivia, obtendo a sua legalização e celebrando com a mesma um contrato de trabalho, pagando-lhe o salário que resulta dos documentos de fls. 93 a 112 e 118 a 123, factos que não permitem infirmar os dados como provados, relativos ao 2ª semestre de 2017.

Improcede, assim, o alegado pelo recorrente quanto aos vícios da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão e da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, previstos no artº 410º nº 2 al. a) e b) do CPPenal.

Da impugnação da matéria de facto

O arguido alega que foram incorrectamente julgados os factos constantes da matéria provada nºs 4, 7, 15, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 e que deles se devem retirar as seguintes menções: o arguido aproveitando-se da frágil situação económica, social e familiar em que se encontrava MK o aliciou e recrutou a ir trabalhar (facto 4, 15 e 20); acolheu-o em condições precárias (facto 21); com a noção de que pagava uma valor muito abaixo do ordenado mínimo nacional (facto 18); com o objectivo de o explorar laboral, de forna desumana e degradante (factos 20 a 22)

As provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, são as seguintes:

- em relação ao facto 4, os factos provados nºs 24, 26, 28 e 45 e 46.

- em relação ao facto 7 – as declarações do ofendido, do arguido, e das testemunhas JO, JB e HF que afirmaram, o primeiro que “não tinha horário de trabalho fixo (declaração de fls, 205); o segundo que referiu que o ofendido trabalhava… “duas horas de manhã e duas horas de tarde, de resto ele ia para onde queria” “depois fechava-as para ele ir para onde quisesse” (minuto 34:45 e 56:18); o terceiro que afirmou encontra-lo diversas vezes no café da …; o quarto que esclareceu que o encontrava à pesca na vala existente na propriedade, onde o arguido trazia as ovelhas (minuto 1:40; 3:39); HF, “ele tirava as ovelhas de manhã pelas 8h (…) e depois só à tarde pelas 16h30m”, “ausentava-se, ia beber café” “ normalmente ao restaurante … (minuto 6:10);

- quanto ao facto 15, 2ª parte, - desde “ausências de laços afectivo…. para o explorar a título laboral” alega o recorrente que não alcança em que meios se prova o tribunal se baseou, tendo em conta o teor dos factos provados 26,46 e 57.

- factos 17 e 18- da prova documental de fls. 93 a 112 e de fls. 118 a 123 resulta que o ofendido auferia o salário mínimo nacional:

- factos 20 a 22 – da declaração de fls. 205 resulta que o ofendido declarou que tem ao seu dispor uma casa de habitação, sita em …, cedida pelo arguido e que habita na “roulotte” por sua opção, situação que o arguido também confirmou. A testemunha JR esclareceu “ a gente tentava levá-lo e ele não queria ir”, “ele nunca queria ir (minuto 3:00); HF confirmou “era nas …”, “ a gente insistiu muitas vezes, só ficava na nossa casa quando ia fazer a higiene” (minutos 8:09); JB explicou que questionou o ofendido porque não ia para casa do patrão ou para o centro de dia respondeu “não, não estou à vontade, e depois não pesco à minha vontade, não falta aqui nada, o patrão trás comida trás tabaco”, “mas tu lá estavas melhor do que estás aqui: não não, não quero, quero estar aqui (minuto 4:58, 5:05).

Importa, pois, analisar a argumentação do recorrente e as provas por ele indicadas.

- em relação ao facto 4, os factos provados nºs 24, 26, 28 e 45 e 46.

O facto do arguido se aproveitar da frágil situação económica, social e familiar da vítima, aliciando-o a trabalhar na sua quinta com o objetivo de o vir a explorar laboral e economicamente (facto 4) não está em contradição com os factos do arguido não conhecer a vítima antes de a contratar, de não saber que esta estava em situação ilegal em território nacional, nem com o facto da vítima ter aceite as condições de trabalho, que o arguido lhe propôs, de já se encontrar em Portugal , há cerca de 15 anos, e de ter trabalhado para diversas entidades e ter feito descontos para a Segurança Social.

Estamos perante realidades perfeitamente compatíveis, dado que de acordo com as regras do normal acontecer só uma pessoa com uma frágil situação económica social e familiar, isto é, numa situação de desespero, de pobreza extrema em que vivia, podia aceitar as condições de trabalho que o arguido lhe propôs, nomeadamente viver num atrelado de pequenas dimensões, onde dormia, sem água potável, casa de banho ou eletricidade e sem qualquer isolamento térmico, a ponto de a testemunha JO, que morava numa casa próxima, que denunciou os factos, ter referido que andou a colocar “borrachas” na porta do atrelado, certamente a pedido da vítima, para vedar a entrada do frio; a vítima não ser inicialmente titular de qualquer contrato de trabalho escrito e auferia a quantia € 75,00 por semana, apesar de trabalhar todo o dia da parte da manhã e da parte da tarde até cerca das 20h.

Quanto ao facto nº 7 é certo que a vítima, o arguido e as testemunhas JO, JB e HF prestaram os excertos das declarações, que acima lhes são apontadas.

O documento (declaração) de fls. 205, donde consta a afirmação imputada à vítima, na al. e) foi assinada pela mesma em 20 de Fevereiro de 2020, e junta aos autos em 11 de Março de 2020. Ora, tal documento não foi tido em consideração, porquanto as declarações constantes da mesma não foram tomadas no âmbito do processo pelo órgão de polícia criminal, nem pelo Ministério Público e por isso, desconhecem-.se as condições em que foram prestadas, além de que as mesmas, na parte em que não se consideraram provadas são incompatíveis com a matéria provada que resultou da audiência de julgamento.

As declarações da testemunha JB, no segmento em que referiu que se encontrava com o arguido á tarde na pesca não merecem credibilidade, dado que pela testemunha JO, que vivia perto da vítima e cujo depoimento foi credível, foi referido que a mesma trabalhava de manhã à noite e não tinha folgas, o que é compreensível face ao número elevado de ovelhas (cerca de 1000) que tinha que vigiar.

As declarações do arguido e do seu filho, HF ao afirmaram que a vítima apascentava as ovelhas só durante dois períodos, um parte da manhã e outro da parte da tarde e que o resto do tempo podia ir para onde quisesse não merecem credibilidade, face ao depoimento da testemunha JO, que morava numa casa sita perto do local onde se encontrava o atrelado onde a vítima estava alojada, e que por isso, tinha perfeito conhecimento do horário de trabalho da vítima e afirmou, de forma peremptória, ao minuto 14:42, que “, a vítima trabalhava todos os dias, não havia folgas, trabalhava de manhã até ver… ele andava sempre à volta das ovelhas cerca de 1000 cabeças”, o que é coerente face ao elevado numero de cabeças de gado que o arguido possuía e por isso, necessitam de uma vigilância constante , além de que, não é crível de acordo com as regras do normal acontecer que para o exercício das funções de pastor, de apenas, quatro horas por dia, lhe fosse pago a quantia de € 75 por semana, como o recorrente pretende fazer crer.

Facto 15- alega o recorrente que não sabe em que elementos probatórios se apoiou o tribunal para dar como provado o facto 15 “…ausência esta de laços afectivos que associados à sua frágil condição económica e social, foram os fatores aproveitados pelo arguido para o explorar a título laboral” até porque o arguido não conhecia o M antes de o contactar pela primeira vez (facto 26), que ele trabalhou para diversas entidades laborais desde 2000 a 2017 (facto 46) e que se recusou a regressar à Ucrânia.

É certo que, o arguido não conhecia a vítima M antes de o contratar, mas ao falar com ele com esse objetivo, é óbvio, que se apercebeu da situação em que vivia a vítima e que face á fragilidade económica e social da mesma que esta aceitaria qualquer condições para poder exercer uma profissão a fim de, poder subsistir, fatores que foram aproveitados pelo arguido para o explorar a título laboral.

Factos 17 e 18 da prova documental de fls. 93 a 112 e de fls. 118 a 123 resulta que MK auferia o salário mínimo nacional.

Desta prova documental indicada apenas resulta que o arguido, em 27 Dezembro de 2017 celebrou um contrato de trabalho com o arguido (fls.118 a 123), o que aconteceu como já referimos, após a intervenção policial, e que a partir daquela data passou a pagar-lhe o ordenado mínimo, no entanto, antes pagava-lhe a quantia que consta do facto 12 da matéria provada € 75,00 por semana, pelo que os elementos de prova a que o arguido faz alusão não impõem decisão diversa dos factos 17 e 18 da matéria provada.

Em relação aos factos 20, 21 e 22 alega o recorrente que impõem decisão diversa da recorrida:

-a declaração da vítima junta aos autos, em 11.03.2020, que declarou que tem ao seu dispor uma casa de habitação sita… em …, cedida pelo arguido e que habita na “roulotte” por sua opção, situação que o arguido também confirmou.

- os depoimentos de JR e HF, tendo o primeiro esclarecido que “a gente tentava levá-lo e ele não queria ir”, “ele nunca queria ir” (minuto 3:00) e de HF que confirmou que “era nas …”, “a gente insistiu muito muitas vezes, só ficava na nossa casa quando ia lá fazer a higiene” (minuto 08:09) ;

-o depoimento de JB que explicou que quando questionou M porque não ia para casa do patrão ou para o centro de dia aquele respondeu “não, não, aqui estou à vontade, e depois não pesco, estou à minha vontade, não falta aqui nada, o patrão trás gás, trás comida, trás tabaco” “mas tu lá estavas melhor do que estás aqui: não não, não quero, eu quero estar aqui” (minuto 4:58, 05:05).

Quanto às declarações da vítima constantes de fls. 205, a mesma não foi tomadas no âmbito do processo pelo órgão de polícia criminal nem pelo Ministério Público e por isso, desconhecem-.se as condições em que foram prestadas, além de que as mesmas, na parte em que não se consideraram provadas são incompatíveis com a matéria provada que resultou da audiência de julgamento.

No que respeita ao declarado pelas testemunhas JR e HF não mereceram credibilidade como consta da fundamentação de facto, “desde logo porque se trata de pessoas com proximidade familiar do arguido, genro e filho, por isso com falta de neutralidade perante o litígio, depois porque houve discrepâncias entre tais depoimentos afirmando nomeadamente a testemunha JCSR ao arrepio de toda a restante prova produzida que MK vivia num anexo à casa do sogro com eles, o que ninguém afirmou nem a testemunha F, filho do arguido, e depois em contradição que passava a maior parte do tempo junto das ovelhas, mas porque não queria ir para o dito anexo …”

Quanto ao excerto do depoimento de JB mais não visou do que corroborar a versão das duas testemunhas referidas no parágrafo anterior, no sentido de que a vítima não queria ir para a casa das …, isto é, para o anexo junto à casa do patrão, mas para o atrelado junto das ovelhas, que não merecem credibilidade por parte do tribunal pelas razões referidas e ainda porque o atrelado não tinha quaisquer condições de habitabilidade, era um espaço exíguo, com apenas uma divisão, com um colchão, sem água canalizada, sem casa de banho e sem luz.

Por fim, alega o recorrente que perante o restar de qualquer dúvida deve ser feito apelo ao princípio do in dúbio pro reo, alterando-se os factos provados acima mencionados.

Este princípio constitui uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.

Tal princípio será desrespeitado quando o tribunal, colocado numa situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido, mas sem perder de vista que “não é toda e qualquer dúvida que fundamenta o princípio in dúbio pro reo, mas apenas a dúvida razoável, razoabilidade, que cabe ao julgador analisar caso a caso” (cfr. Acórdão do S.T.J. de 13-1-1999, proc. nº 262/99, 3ª Secção).

Perante a análise da matéria de facto não se nos suscita qualquer dúvida sobre os factos constantes da matéria provada, pelo não assiste razão ao arguido ao invocar o princípio do in dúbio pro reo.

Improcede, assim, o alegado pelo recorrente quanto á impugnação da matéria de facto.

III-2ª- Do enquadramento jurídico-penal dos factos.

O recorrente alega que, não se verifica em relação à vítima qualquer situação, que se compatibilize com os elementos objetivos necessários ao preenchimento do tipo.

Dispõe o artº 160º nº 1 do C.Penal que “quem oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoas para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extracção de órgãos, ou a exploração de outras actividades criminosas: a) por meio de violência, rapto ou ameaça grave; b) através de ardil ou manobra fraudulenta; c) com abuso de autoridade resultante de uma dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar; d) aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de qualquer situação de vulnerabilidade da vítima; ou e) mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo da vítima é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos”.

Deste preceito resulta que a acção típica do tráfico de pessoas adultas pode revestir várias modalidades tais como: oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte, alojamento ou acolhimento de uma pessoa.

Cada uma destas modalidades de acção típica têm de ser levadas a cabo através de uma das formas constantes de cada uma das alíneas do nº 1 do artº 160º: violência, rapto, ameaça grave; ardil ou manobra fraudulenta; abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica de trabalho ou familiar; aproveitamento de qualquer situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima. Estamos assim, perante um crime de execução vinculada dado que os meios de execução do crime estão tipificados.

Com fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgão ou a exploração de outras actividades económicas. Constitui, assim, um delito de intenção (“para fins de”) de realização de um resultado.

Quanto ao elemento subjectivo admite qualquer forma de dolo, salvo no que toca à conduta ardilosa ou fraudulenta, que é incompatível com o dolo eventual.

O bem jurídico que se visa proteger com a tipificação do crime de tráfico de pessoas é a “liberdade pessoal” mais especificamente a liberdade de decisão e da acção.

Como refere Américo Taipa de Carvalho, em Comentário Conimbricense do Código Penal – Tomo I, 2ª edição p. 678 o crime de tráfico de pessoas afeta diretamente “ a dignidade da pessoa humana, ao transformar o corpo da vítima em mero objecto de exploração”. Com efeito o que define, em parte o ser humano é ser portador de direitos inalienáveis e irredutíveis, sendo que, a exploração inerente ao tráfico de pessoas, ofende esses direitos e ofende a própria humanidade em si.

O crime de tráfico de pessoas coloca em evidência a possibilidade de colocar um preço num ser humano. O que efetivamente ocorre é que um ser humano é utilizado como se de uma máquina se tratasse, servindo apenas para produzir e dar lucro, isto é o ser humano passa a ser tratado como um bem móvel. Neste sentido, se pronuncia Vaz Patto, em “O crime de tráfico de pessoas no Código Penal revisto. Análise de algumas questões, in Revista CEJ nº 8, p. 182” que defende que “o próprio conceito de tráfico de pessoas evoca este sentido de mercantilização dessas pessoas, reduzidas a objeto, quando lhes é inerente uma dignidade e nunca, como em relação às coisas, um preço. Também o conceito de exploração…. de trabalho tem este sentido de reificação da pessoa, da sua degradação a meio ou instrumento para fins de exploração económica de outrem”.

Está assim em causa, no crime de trafico de pessoas, para além da liberdade pessoas, a dignidade da pessoa humana.

Quanto á especial vulnerabilidade da vítima que se alude na alínea d), tal circunstância não pode deixar de ser interpretada no sentido de se estender a todas as situações « em que a pessoa visada não tenha outra escolha real nem aceitável senão a de submeter-se ao abuso», conformando-se a situação de aceitabilidade a um critério de razoabilidade, e ao humanamente aceitável, designadamente porque decorre da permanência precária ou ilegal num país estrangeiro e culturalmente estranho – neste sentido, cfr M.Miguel Garcia e J.M. Castela Rio, em “Código Penal, Parte geral e especial” Almedina 2014, nota 6, pág 666 e Pedro Vaz Patto na obra acima citada pág 194.

No caso em apreço, o arguido contratou verbalmente para exercer a profissão de pastor um cidadão estrangeiro, sem qualquer ligação familiar ao território nacional, que se encontrava numa frágil situação económica e social, pela quantia de € 75,00 por semana, quantia abaixo do salário mínimo nacional, sem descontos para a Segurança Social ou para o IRS para trabalhar todo o dia da parte da manhã e da tarde até cerca das 20 h, sem qualquer período de férias durante a parte do ano de 2017 e ofereceu á vítima para permanecer, dormir e comer um atrelado com 2,5 metros de comprimento, 1,70m de largura e 2 m de altura, com colchão e fogão, mas sem água potável, casa de banho ou eletricidade, condições desumanas e degradantes que são ofensivas da sua dignidade enquanto ser humano.

O arguido atuou sempre livre, voluntária e conscientemente com o propósito de o explorar laboral e intenção lucrativa, o que fez durante o segundo semestre do ano de 2017 aproveitando-se da especial situação de vulnerabilidade da vítima, de forma desumana e degradante, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Incorreu assim o arguido num crime de tráfico de pessoas previsto e punível no artº 160º nº nº 1 al. d) do C.Penal.

IV- Decisão

Termos em que acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo arguido com taxa de justiça que fixamos em 4 Ucs.

Notifique.

Évora, 8 de junho de 2021

(texto elaborado e revisto pelo relator).

José Maria Simão

Maria Onélia Madaleno