SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
Sumário


1 - Tratando-se de documentos, o n.º 3 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede/proíbe a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte a revelação de factos sujeitos a sigilo e a consequente violação do dever de segredo.

2 - O significado da expressão “negociações” empregue nas alíneas e) e f), do artigo 92º do EOA [a que correspondia o artigo 87º da anterior versão do EOA], deve ser interpretado no sentido de haver uma “orientação para um compromisso”, em que cada uma das partes tem a possibilidade de expor à outra as suas preocupações e a sua ordem de prioridades e, correlativamente, apresenta-se disposta a abdicar de determinadas condições para viabilizar um acordo ou obter concessões.

3 - Assim, estará sujeita a sigilo profissional do advogado, a correspondência trocada entre mandatários, entre o mandatário e o respetivo cliente ou a parte contrária ou o respetivo representante, quando se reportem aos termos de negociações havidas ou em que hajam sido revelados factos, ao Advogado ou este deles tomou conhecimento, que pela sua natureza seja de presumir que quem os confiou ou deu a conhecer ao Advogado, tinha um interesse «objetivamente fundado», em que se mantivessem reservados e não fossem revelados.

4 - Mas já não estão estarão abrangidos pelo dever de sigilo, v.g. os factos transmitidos por um Advogado à parte contrária do cliente (acompanhada ou não de Advogado), «com natureza meramente interpelatória ou até de mero convite a negociar com o objetivo, por um lado, de marcar a posição dos direitos e interesses dos clientes de um Advogado em relação à contraparte e, por outro, de serem retiradas consequências práticas e jurídicas».

Texto Integral




Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. No âmbito dos autos de inquérito n.º 1400/19.8T9EVR-A, que tiverem origem na queixa apresentada pela sociedade (…), contra (…), foi proferido despacho, pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal, em 12/01/2021, admitindo a constituição de assistente da ofendida/queixosa e julgando nula a prova constante de fls. 25 a 34 e 84 dos autos, por violação do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
1.2. Inconformada com o assim decidido – declaração de nulidade da prova –, a assistente interpôs recurso para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação apresentada, as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso é interposto da, aliás, mui douta decisão, a fls. …, na qual o Tribunal a quo decidiu julgar nula a prova constante de fls. 25/34 e 84 dos presentes autos, por violação do art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Porquanto,
2. Alega o Tribunal a quo, em suma, que, no que tange á prova documental sobredita, teria de ter sido colhida a previa anuência do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, da destinatária da prova em questão, donde, não tendo a mesma anuência sido colhida decidiu, o Tribunal recorrido, pela nulidade da prova.
Contudo,
3. Com o devido respeito – que é muito – permitimo-nos discordar da douta decisão recorrida, essa sim que viola crassamente o disposto no art. 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogado, bem como o princípio inserto no art. 262.º, do Cód. Proc. Penal e o principio da descoberta da verdade material.
Senão vejamos:
4. No caso dos autos, a prova documental que o Tribunal recorrido considerou nula, cfr. fls. dos autos, traduz uma carta de resposta de contraparte, a uma missiva da mandataria da empresa, onde era solicitada reunião, para dia e hora aí indicado.
5. Em resposta escrita, dirigida à mandatária da sociedade (…). a contraparte alega que não compareceria e profere afirmações que colocam em causa o bom nome da empresa, bem como a honra, bom nome e consideração do socio (…) – cfr. doc. Junto aos autos.
6. Designadamente, é alegado, pela contraparte, que a empresa não cumpre os normativos legais e, consequentemente, considerava apresentar queixa ao ACT e que o socio exercia sobre si violência física e psicológica – vd. Doc. junto aos autos.
7. A mandataria da sociedade e destinatária da carta em apreço, na sua modesta opinião, considerou que a missiva sobredita não se achava abrangida pelo sigilo profissional, a que se reporta o art. 92.º, do EOA, pois que,
8. não se enquadrava em quaisquer negociações com contraparte que hajam sido malogradas, sem prejuízo de traduzir uma ostensiva violação dos direitos das pessoas acima melhor identificados/as e ser essencial o seu uso para a defesa destes.
9. Acaso o douto Tribunal recorrido mantivesse o escopo da descoberta da verdade material (sendo a carta em questão a prova do alegado cometimento do crime denunciado), na nossa modesta opinião e por forma a ser cumprido o disposto no art. 262.º, do Cód. Proc. Penal, teria de ter oficiado à Ordem dos Advogados, no Conselho Distrital respectivo, por forma a lograr obter Parecer, sobre se o documento/carta sub judice se acha ou não a coberto do segredo de justiça.
10. Ao invés, o douto Tribunal recorrido, decidiu, que a junção da mencionada carta sem a prova de previa autorização do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, nos termos do disposto no art. 92.º, do EOA, era nula.
Ademais,
11. Salvo o devido respeito por opinião diversa, foi o Tribunal recorrido quem, ao decidir como o fez, violou o disposto no art. 92.º, do EOA, pois que,
12. Somos em crer que não se pode enveredar por uma interpretação literal da norma legal ínsita no artigo 92.º, n.º 1 do EOA, sob pena de termos que considerar que todo e qualquer facto – ainda que vertido em documento -, de que o Advogado tome conhecimento no exercício da sua atividade profissional e por causa desse mesmo exercício está, sempre e em qualquer circunstância, abrangido pelo dever de segredo profissional. Não foi isto que o legislador pretendeu.
13. A consagração legal do instituto jurídico-deontológico do segredo profissional teve por escopo reservar para o seu âmago apenas aqueles factos relativamente aos quais exista uma exigência de confidencialidade e de secretismo que o instituto jurídico-deontológico do sigilo profissional pressupõe.
14. Confidencialidade e secretismo estes que têm, forçosamente, que ser aferidos em função das particulares circunstâncias do caso concreto, mormente, atendendo ao teor do próprio facto; à forma como o facto chegou ao conhecimento do Advogado e às próprias circunstâncias da sua necessidade de revelação.
15. Neste contexto, tem sido defendida uma interpretação teleológica do disposto no artigo 92.º, n.º 1 do EOA, que impõe e exige uma dialética constante de todos os critérios enumerados em função do caso concreto apresentado e para finalidades específicas, tal como são descritas ou invocadas pelo Advogado que requer a dispensa.
16. Em matéria de correspondência subscrita ou dirigida a Advogado, não consta nem resulta do teor do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor uma proibição genérica de revelação de correspondência trocada entre Advogados ou subscrita por Advogado. Existe, sim, essa proibição quando do seu teor decorram factos abrangidos pelo dever de sigilo.
17. Ora, a norma legal aqui chamada à colação, dentro dos seus objetivos, não abrange as comunicações enviadas entre as partes, ainda que por intermédio dos seus mandatários, que se destinem exclusivamente a marcar a posição face ao destinatário, como sucede, desde logo, com a missiva sub judice.
18. Neste sentido: Ac. TRG, de 17/10/2005, Proc. n.º 1163/05-1; Ac. TRE, de 04/06/2019, Proc. n.º 950/15.0GBABF.E1; Ac. TRL, de 03/10/2018, Proc. n.º 5/11.6IDFUN.L1-3, disponíveis em www.dgsi.pt.
19. Termos em que, tendo a decisão recorrida violado, igualmente, esta disposição legal, deve a decisão em crise ser revogada, com as demais consequências legais.
Contudo, V.as Ex.as decidirão fazendo a acostumada JUSTIÇA.»
1.3. O recurso foi regularmente admitido.
1.4. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e confirmado o despacho recorrido, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1.ª - A assistente juntou aos autos documento que se encontra abrangido pelo artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
2.ª - Compulsados os autos não se verifica que tenha existido prévia autorização da Ordem dos Advogados, nos termos do n.º 4 do mesmo diploma.
3.ª - Em consequência o documento n.º 3 não pode ser valorado em processo penal, pelas disposições conjugadas do n.º 5 do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados e artigo 125.º do Código do Processo Penal.
4.ª - O Tribunal a quo não violou qualquer disposição legal.
Pelo que, deve ser mantida a decisão proferida nos presentes autos e negado provimento ao douto recurso, para que se faça JUSTIÇA.»
1.5. Neste Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à posição defendida pelo Ministério Público junto da 1ª Instância, na resposta que o mesmo ofereceu, concluindo no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente.
1.6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tendo a recorrente exercido o direito de resposta, reiterando que o recurso deverá ser julgado procedente.
1.7. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
É consabido que as conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cf. artigos 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P. –, sem prejuízo do conhecimento dos vícios e nulidades principais, como tal tipificadas na lei, de conhecimento oficioso.
No caso vertente, atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso apresentada a questão suscitada é a de saber se os documentos juntos pela queixosa, ora assistente, a fls. 25/34 e 84 dos autos e que constam da certidão que instrui o presente traslado, a fls. 11, 27, 36 e 75, não se encontram abrangidos pelo dever de sigilo profissional do advogado, que decorre do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados e se devem ser admitidos como meio de prova.

2.2. Despacho recorrido
É do seguinte teor o despacho recorrido:
«Requerimento de 04.01.2021:
Indefiro o requerido porquanto, e apesar da posição do Ministério Público, o despacho lavrado a fls. 91 destinava-se à comprovação da prévia autorização do presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados e a prorrogação de prazo é meramente dilatória ao pretender a autorização posterior à junção do documento aos autos.

***
Constituição de assistente
A (…) participou criminalmente contra (…), imputando-lhe que em resposta à missiva dirigida a denunciada optou por fazer afirmações que põem em causa o nome da sociedade queixa e coagindo-a a nada fazer sobre os bens solicitados.
Notificada, a (…) requereu a constituição como assistente.
Foi ordenado a junção dos originais das missivas referidas em 6, 7 e 8 da denúncia, o que cumpriu a fls. 77 a 85.
Foi notificada a denunciante para juntar o original do documento de fls. 34 e 84, tendo a mesma ficado silente. Posteriormente, foi notificada para esclarecer e comprovar a prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo para revelar a missiva que constitui o documento a fls. 34.
Foi indeferida a prorrogação de prazo, após a pronúncia do Ministério Público.
Cumpre apreciar e decidir.
A questão dos presentes autos fica a montante do requerimento de constituição de assistente, uma vez que foi apresentada queixa contra a denunciada pela missiva remetida à mandatária da sociedade denunciante, que consta de fls. 25/34/84. Ora, o Advogado está obrigado a guardar segredo relativamente a factos que lhe advenham através do exercício da sua actividade profissional, conforme imposição prevista pelo artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, e o artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa. O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. Prescreve o art.º 92.º do EOA que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”. Por tal forma se convoca a nulidade da prova recolhida em violação daquele preceito e comina com a impossibilidade de tais elementos serem valorados no processo. Sem prejuízo da incumbência do Ministério Público na direcção do inquérito com a recolha e conservação da prova (art.ºs 262.º, n.º 1, 263.º e 267.º, CPP) indicada pelo ofendido, estamos perante uma nulidade resultante da proibição de prova que foi praticada no inquérito e pode ser apreciada pelo juiz de instrução. Com efeito, os documentos constantes de fls. 25/34/84 são destituídos de qualquer efeito probatório devido à violação de normas penais e deontológicas, não tendo sido requerida a prévia autorização ao Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados, o que deve ser declarado nos autos.
Subsequentemente, nos termos do artigo 68.º do Código de Processo Penal, podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos, bem como as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento.
Contudo, para decidir da legitimidade para intervir como assistente, a aferição do interesse protegido é feita através dos factos denunciados na participação e no requerimento para abertura da instrução e não pela prova resultante do inquérito. Ainda que se considere a violação de sigilo profissional e a respectiva responsabilidade por esse facto, em face do requerimento apresentado a sociedade requerente, invocou nele, sempre, esse estatuto e juntou prova documental que havia pago a taxa de justiça devida, encontrando-se devidamente representada por advogada, assim demonstrando-se, portanto, que reúne todos os requisitos de que dependia a sua admissão nessa qualidade, nos termos do art.º 68.º do Cód. Processo Penal, e deverá o pedido ser deferido no processo.
Nos termos expostos, decido:
- julgar nula a prova constante de fls. 25/34 e 84 dos presentes autos, por violação do art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
- admitir a intervenção da requerente como assistente nos presentes autos.
Notifique.
Após o trânsito em julgado, extraia e remeta certidão ao Conselho Regional da Ordem dos Advogados.
Devolva os presentes autos ao DIAP.»

2.3. Conhecimento do recurso
Tal como já acima referimos a questão suscitada e que há que decidir é a de saber se os documentos juntos pela queixosa, ora assistente, a fls. 25/34 e 84 dos autos principais e que constam da certidão que instrui o presente traslado, a fls. 11, 27, 36 e 75, não se encontram abrangidos pelo dever de sigilo profissional do advogado, que decorre do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados e se devem ser admitidos como meio de prova.
No despacho recorrido decidiu-se julgar nula aquela prova documental, por violação do art.º 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
A assistente/recorrente defende entendimento contrário, sustentando que os documentos em causa, concretamente, a missiva dirigida pela aqui denunciada à mandatária da assistente não se encontra abrangida pelo sigilo profissional, a que se reporta o artigo 92.º, do EOA e que o tribunal recorrido, com o escopo da descoberta da verdade material e por forma a ser cumprido o disposto no artigo 262º, do Cód. Proc. Penal, devia ter oficiado à Ordem dos Advogados, no Conselho Distrital respetivo, por forma a lograr obter Parecer, sobre se o documento/carta sub judice se acha ou não a coberto do segredo de justiça.
Vejamos:
Como refere o Cons. Santos Cabral[1], «O segredo profissional define-se com a proibição de revelar factos, ou acontecimentos, de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional. Consubstancia-se o mesmo, em temos genéricos, na reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções, ou como consequência do seu exercício, em relação a factos que lhe incumbe oculta, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão. O segredo profissional é, assim, o atributo correlativo indispensável de todas as profissões que assentam numa relação de confiança (…)».
O segredo profissional abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da sua atividade profissional e na base de uma relação de confiança[2].
E é esse o caso da advocacia.
O segredo profissional do advogado está regulado no artigo 92º, do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), na redação dada pela Lei 145/2015, de 9 de novembro[3], que dispõe:
«1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever
O advogado está, pois, obrigado a guardar segredo dos factos de que tenha tomado conhecimento ou de confidência que lhe tenha sido feita, no exercício da sua profissão e dos documentos nos quais esses factos possam estar contidos.
Como se refere no Acórdão do STJ de 15/02/2018[4]:
«Radicando no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, o dever de segredo profissional transcende a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação para com o constituinte, para com a própria classe, a OA e a comunidade em geral.
Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue.»
Como decorre do disposto no artigo 92º do EOA e se refere no Ac. da RL de 29/04/2021[5] «O dever de segredo profissional do advogado abarca, entre outras situações, os factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio e os factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo, sendo que o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.»
Tratando-se de documentos, vem sendo entendimento da jurisprudência das Relações, que o n.º 3 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede/proíbe a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte a revelação de factos sujeitos a sigilo e a consequente violação do dever de segredo[6].
Assim, como se decidiu no Acórdão desta RE de 31/01/2019[7], «nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados o que se proíbe é apenas a revelação e utilização de factos revelados pela parte contrária, pessoalmente ou através de representante, durante negociações para acordo amigável, e a revelação e utilização de factos de que o Mandatário teve conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas em que tenha intervindo.»
O significado da expressão “negociações” empregue nas alíneas e) e f), do artigo 92º do EOA [a que correspondia o artigo 87º da anterior versão do EOA], deve ser interpretado no sentido de haver uma “orientação para um compromisso”, em que cada uma das partes tem a possibilidade de expor à outra as suas preocupações e a sua ordem de prioridades e, correlativamente, apresenta-se disposta a abdicar de determinadas condições para viabilizar um acordo ou obter concessões[8].
Assim, estará sujeita a sigilo profissional do advogado, a correspondência trocada entre mandatários, entre o mandatário e o respetivo cliente ou a parte contrária ou o respetivo representante, quando se reportem aos termos de negociações havidas ou em que hajam sido revelados factos, ao Advogado ou este deles tomou conhecimento, que pela sua natureza seja de presumir que quem os confiou ou deu a conhecer ao Advogado, tinha um interesse «objetivamente fundado», em que se mantivessem reservados e não fossem revelados[9].
Mas já não estão estarão abrangidos pelo dever de sigilo, v.g. os factos transmitidos por um Advogado à parte contrária do cliente (acompanhada ou não de Advogado), «com natureza meramente interpelatória ou até de mero convite a negociar com o objetivo, por um lado, de marcar a posição dos direitos e interesses dos clientes de um Advogado em relação à contraparte e, por outro, de serem retiradas consequências práticas e jurídicas».
Delineados os termos gerais da questão e tendo presentes as considerações expendidas, importa reverter ao caso concreto:
Está em causa correspondência trocada entre a Exm.ª Senhora Advogada, Dr.ª (…), mandatária da queixosa, ora assistente, (…) e a ora denunciada (…) e, concretamente, a carta enviada pela denunciada à mesma Senhora Advogada, em resposta à carta que esta lhe dirigiu convocando-a para uma reunião no seu escritório, para tratar do Assunto: “Contrato de Trabalho / utilização de bens da sociedade em proveito de terceiros”.
O teor da aludida missiva enviada pela denunciada é o seguinte:
«Dr.ª, Srª (…)
Após a minha resposta ao meu seu pedido para reunir no seu escritório, recebi duas chamadas telefónicas do meu marido, gerente da empresa, a dizer-me que me ia tirar o telemóvel e o carro. Como sabe, e como me disseram na ACT onde apenas fui perguntar, para já, se tal podia acontecer, quer o telemóvel quer o carro são parte do meu salário há anos, como trabalhadora pelo que, não querendo ir à ACT colocar em causa a Empresa, e apresentar queixa sobre várias coisas que não são cumpridas, peço que junto dele lhe faça ver que não o pode fazer.
Também, como sabe, tal atuação contra mim, é contra uma sócia com uma elevada quota na empresa, e não é mais que uma forma de pressão devido a toda a violência física e psicológica dele sobre a minha pessoa e que peço-lhe, para que não seja conivente com esta situação que terá muito mais graves consequências, que o faça ver a razão.
Obrigado.
Permaneço ao dispor para qualquer esclarecimento adicional.
Com os meus melhores cumprimentos, atentamente.
(…)»
Invocando a falta da ora denunciada à reunião para que foi convocada, a Exm.ª Sr.ª Advogada, enviou, em 09/12/2019, uma carta registada à denunciada, interpelando-a para, no prazo de 24 horas, após a receção da carta e por forma a que a empresa mantivesse a prestação de serviços, devolver o veículo automóvel marca (…), modelo (…) e o telemóvel de serviços e informando a denunciada de «que a instrução supra provém, necessariamente, da gerência da sociedade m/ constituinte e que o não cumprimento da ordem dada, implicará, ademais, a actuação do poder disciplinar da entidade patronal».
E no dia 10/12/2019, a mesma Exm.ª Sr.ª Advogada, enviou à denunciada, um email, com o seguinte teor:
«Exm.ª Senhora

Atenta a postura assumida, o assunto em questão logrará ser resolvido em sede própria.

Nom demais de forma alguma revejo no seu e-mail factos de que tenha conhecimento.

Com os melhores cumprimentos.»
Analisado o teor da correspondência em apreço, trocada entre a Exmª. Sr.ª Advogada, mandatária da sociedade ora assistente e a aqui denunciada, ainda que resulte do respetivo teor a existência de um diferendo entre a mesma sociedade e a aqui denunciada (e a que não seriam alheias razões que opunham o marido da denunciada, gerente da mesma sociedade, e a denunciada), não contém a mesma quaisquer factos relacionados com os termos de eventuais negociações que pudessem estar em curso entre as partes, nem aí se fazem constar quaisquer factos em relação aos quais seja de presumir que existisse um interesse objetivo em que se mantivessem reservados e não fossem revelados pela Sr.ª Advogada.
Assim sendo e considerando o âmbito do segredo profissional do Advogado, que se deixou supra definido, forçoso é concluir que a correspondência em apreço e designadamente, a missiva enviada pela aqui denunciada à Sr.ª Advogada mandatária da sociedade, ora assistente, em resposta à interpelação que a mesma lhe dirigiu, convocando-a para uma reunião no seu escritório, não se encontra abrangida pelo segredo profissional do advogado, não integrando a previsão do artigo 92º, n.º 1 e n.º 2, alíneas e) e f), do EOA.
E por que assim é, nada impedia a junção aos autos dos documentos em apreço e que possam servir de meio de prova.
Não pode, pois, manter-se a decisão recorrida, que decidiu julgar nula a prova constante de fls. 25 a 34 e 84 dos autos, por violação do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados, pelo que, se impõe a sua revogação.
O recurso é, pois, procedente.

3. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pela assistente (…) e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que decidiu julgar nula a prova constante de fls. 25 a 34 e 84 dos autos, por violação do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados, podendo esses documentos servir de meio de prova.

Sem tributação.

Notifique.
Évora, 08 de junho de 2021

Fátima Bernardes
Fernando Pina

__________________________________________________
[1] In Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, anotação 2 ao artigo 135º, pág. 494.
[2] Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, Editora Rei dos Livro, 2008, pág. 961
[3] E também no Regulamento nº. 94/2006, de 12 de junho (Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional da AO, pub. no DR IIª Série, de 25 de maio de 2006).
[4] Proferido no proc. n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1, acessível in www.dgsi.
[5] Proferido no proc. n.º 439/16.0T8LRS-A.L1-2, acessível in www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido, cfr., entre outros, Ac. da RP de 29/04/2018, proc. 868/17.1T8PRT-B.P1, Ac. da RE de 31/01/2019, proc. n.º 1929/15.7T8TMR.E1 e Ac. da RG de 14/11/2019, proc. n.º 568/17.2T8VRL.G1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[7] Proferido no proc. 1929/15.7T8TMR.E1.
[8] Este entendimento defendido por Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado - Noções Elementares, Almedina, 8ª Edição, pg. 389 e por Rodrigo Santiago, in Revista da Ordem dos Advogados, 57, janeiro de 1997, pág. 237, vem sendo acolhido pela Ordem dos Advogados, em diversos pareceres, sobre o sigilo profissional, v.g., a título meramente exemplificativo, o Parecer do Conselho Distrital de Lisboa n.º 39/2012, disponível no site da Ordem dos Advogados em www.oa.pt.
[9] Nesta perspetiva, o dever de sigilo profissional tem subjacente um interesse objetivo, que decorre, não só a especifica relação pessoal e de confiança estabelecida entre o Advogado e o cliente, mas ainda os próprios factos.