PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
PERÍCIA
NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
Sumário


Na fase investigatória do processo contra-ordenacional vigora o princípio do inquisitório, pelo que não viola o direito de defesa a não notificação do arguido para estar presente na realização de uma perícia a uma máquina de jogo, tal como não o viola por exemplo a sua não notificação para a inquirição de testemunhas por si arroladas na fase administrativa ou o não adiamento da inquirição de testemunhas por si arroladas também na fase administrativa do processo contra-ordenacional por falta do defensor do arguido e quer ele tenha sido notificado para a diligência, quer não o tenha sido, assim como o arguido também não tem o direito de impugnar o despacho de indeferimento das diligências de prova por si requeridas nos termos do art.º 55.º do RGCO.

Texto Integral



I
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de recurso de contra-ordenação acima identificados, do Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Setúbal, as arguidas (…) foram, na parte que agora interessa ao recurso, condenadas pela Polícia de Segurança Pública – Direcção Nacional, Departamento de Segurança Privada pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos art.º 159.º, 160.º, n.º 1, 161.º, n.º 1 e 163.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 422/89, de 2-12 (Lei do Jogo), na coima de 2.500,00 € e 250,00 €, bem como na perda a favor do Estado do equipamento apreendido e, bem assim, a quantia monetária de 2 € que se encontrava no interior da máquina de jogo.
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Impugnada judicialmente esta decisão, foi realizado o julgamento, tendo o Senhor Juiz a quo decidido negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão tomada pela autoridade administrativa.
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Inconformado com o assim decidido, a arguida (…) interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
a) A matéria de fato dada como provada não integra qualquer facto e imputação à recorrente do funcionamento do jogo / equipamento
b) A matéria de fato dada como provada não explica (como era obrigatório e essencial) que operação e como é oferecida ao público? Este elemento faz parte integrante da previsão legal e a sua omissão de análise, constitui a nulidade prevista no n.º 2 do art.º 374.º do CPP.
c) Não há matéria de facto dada como provada, em decisão de fato, que permita a verificação do elemento essencial subjetivo da previsão legal dos art.ºs 159.º e seguintes do DL 422/89, e a integração da previsão legal na contraordenação / infração pela qual vem a recorrente condenada.
d) Ora analisando os fatos que a decisão judicial recorrida deu como provados desde logo se verifica que não constam fatos descritivos relativos ao conceito legal constante da previsão da norma no que toca / respeita à “operação oferecida ao público”. A sentença recorrida é nula porque corrige a decisão administrativa e trata questão que não consta da decisão administrativa, nomeadamente a da total omissão da decisão de fato quanto ao elemento subjetivo do tipo contraordenacional. A decisão recorrida é nula quando trata questão relativa a esse elemento (subjetivo do tipo), quando na verdade não resulta da decisão administrativa sindicada, o mesmo.
e) f) A sentença recorrida viola o art.º 374.º, n.º 2 do CPP; o art.º 283.º do CPP, aplicável ex vi art.º 41.º do RGCO; o art.º 205.º da CRP; os art.sº 159.º, 160, 161, 162, e 163 todos do DL 422/89, sendo que o sentido com que essas normas deveriam ter sido, conjunta e conjugadamente, interpretadas era o de que na decisão judicial recorrida deveriam constar fatos que permitissem a verificação dos elementos essenciais da previsão legal do tipo contraordenacional que conduzisse à aplicação da norma punitiva, ou seja, a sentença recorrida, ao omitir na decisão de fato esses elementos essenciais, deixa de dar cumprimento aos art.ºs 283.º do CPP, porque não obriga a que na acusação (decisão administrativa convertida em acusação aquando da receção em juízo dessa decisão administrativa) estejam vertidos os fatos essenciais à verificação da infração, dando cobertura a uma decisão administrativa omissiva, também ela dessas obrigações, sendo que a sentença recorrida por esta omissão faz a verificação da violação da previsão legal do 374.º, n.º 2 do CPP e a nulidade que lhe acarreta, prevista no art.º 379.º, n.º 1 al. a) do CPP, em clara violação das normas previstas nos arts.º 159.º, 160, 161.º 162 e 163 todos do DL 422/89, porque o sentido a conferir a essas normas não foi o que se mostra expresso na sentença recorrida, mas sim aquele em que só existe infração a estas normas, nas formas de jogo em que se dê como provado serem operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho resida na sorte ou na perícia e na sorte e que ocorra álea na esperança de ganho.
f) Acresce que a perícia foi “escondida” da recorrente; não lhe foi comunicada a data, hora e local da sua realização em violação dos art.ºs 151.º, 154.º ambos do CPP ex vi art.º 41.º do RGCO; a realização à traição e “nas costas” da recorrente de uma perícia, cujo relatório não lhe foi notificado posteriormente, nem junto com a decisão administrativa constitui também a violação do principio do contraditório e bem assim a violação do art.º 32.º da CRP, determinando a invalidade por ilegalidade da mencionada perícia, por estar inquinada e em consequência da decisão recorrida, que nela se suporta. Não comunga a recorrente de que na fase administrativa de instrução, não é necessário dar cumprimento à revisão legal do art.º 154.º do CPP ex vi art.º 41.º do RGCO, quanto à notificação para presença em perícia que seja determinada pela autoridade administrativa, atenta a especificidade de tal meio de prova. Na produção da decisão administrativa há diversos meios de prova que não necessitam de ser notificados quanto à sua produção, à arguida, nem há necessidade de assegurar o contraditório, como por exemplo a produção de prova testemunhal, mas a especificidade da produção de uma perícia deve ser objeto de contraditório e nomeadamente deve ser cumprido o previsto o art.º 154.º do CPP, ta como o é nos processos crime, sob pena de invalidade dessa mesma prova.
g) Por fim, diga-se que a coima aplicada pela entidade administrativa não o foi pelo mínimo e não se consegue descortinar, nem da decisão administrativa nem da decisão judicial recorrida os fundamentos da aplicação da coima; a decisão judicial recorrida comunga da arbitrariedade da decisão administrativa quanto a este aspeto, não se podendo manter porque todos os processos devem cumprir o principio da legalidade (art.º 9.º da CPP), o que torna, também por este fundamento, a decisão recorrida nula, assim como o é a decisão administrativa.

Pelo exposto, deve proceder o presente recurso e a sentença recorrida ser declarada nula e a recorrente absolvida, por tanto ser coincidente com a Justiça e com o Direito!
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O Exmo. Procurador da República do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1.ª A decisão-acusação contém factos que integram o tipo subjectivo da contra-ordenação em causa, só não estando “arrumados” numa sistemática conveniente, como a da Sentença do Tribunal a quo.

2.ª Todavia, não é exigível, às autoridades administrativas, o rigor e perfeição sistemáticos empregues pelos Tribunais na elaboração das Sentenças.

3.ª Afirmações como “escondida”, “traição” e “nas costas” forçam os limites da boa fé processual e encontram-se no limiar do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva.

4.ª A Recorrente, que nada requereu ou indagou, poderia ter exigido esclarecimentos à perícia, ou mesmo uma nova perícia, com o respaldo do art. 158.º do C.P.P.

5.ª Parece resultar, da fundamentação da conclusão g), que a coima mínima constituirá a “coima-regra” ou “coima-prototípica”, o que não tem assento legal.

6.ª Em concreto, o Tribunal a quo expôs, de forma exaustiva, os fundamentos da dosimetria da coima.

7.ª Consequentemente, deve o recurso ser indeferido, mantendo-se a Sentença em crise, a qual fez uma prudente apreciação dos factos e uma sábia aplicação do Direito.
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Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1. No dia 08 de Fevereiro de 2017, pelas 12h00, foi efectuada uma ação de fiscalização ao estabelecimento comercial denominado (…), sito na (…);
2. As autoridades policiais, ao entrar no supra mencionado estabelecimento, verificaram que se encontrava uma máquina de jogo, extratora de cápsulas, acessível a qualquer cliente que aí entrasse;
3. Os agentes policiais apuraram, assim, que se desenvolvia uma modalidade afim de jogo de fortuna ou azar no local fiscalizado;
4. Ao inserir uma moeda de € 1,00 (um euro) no mecanismo existente na máquina extratora e, seguidamente, rodar o manípulo até ao seu bloqueio, o jogador recebe, de forma completamente aleatória, uma cápsula plástica que contém três senhas numeradas. Se existir correspondência entre as numerações existentes nas senhas, com as terminações vencedoras inscritas no cartaz de prémios, que se encontram sob o brinde, o jogador receberá o valor monetário aí mencionado. Se não houver coincidência, não tem direito a qualquer prémio;
5. Logo, do exterior da máquina, antes da introdução da moeda, não era possível prever o prémio a que o jogador se habilitava;
6. À data dos factos, o explorador do estabelecimento e responsável pela exploração do jogo era (…), por tal ter consentido;
7. A máquina em causa era pertença da firma (…) e era explorada sem qualquer autorização administrativa;
8. No local procedeu-se à apreensão dos bens constantes do auto, todos associados à exploração da modalidade afim de jogo de fortuna ou azar acima descrita;
9. O objectivo da modalidade afim de jogo de fortuna ou azar descrita consistia em aliciar o público a pagar um determinado montante, introduzindo essa quantia na ranhura existente na máquina, na esperança de ganhar um prémio de valor superior ao gerado pela utilização, isto é, lucrar relativamente ao valor despendido, sendo que os arguidos, deste modo, obtêm proventos monetários para si.
10. Cada uma das arguidas agiu livre, voluntária e conscientemente, querendo obter proveito económico em resultado das jogadas efectuadas pelos clientes, benefício que sabiam ser ilegítimo por ser proibido por lei o desenvolvimento de tais modalidades afins de jogo de fortuna e azar, bem sabendo também que as suas condutas eram punidas por lei.
11.A firma arguida tem três funcionários e declarou para efeitos fiscais, por referência ao exercício de 2019, prejuízo na ordem de € 5.000,00.
12.A arguida (…) explora um estabelecimento de café, auferindo um rendimento mensal na ordem de € 1.000,00 e, bem assim, uma reforma no valor mensal de € 180,00.
13.A arguida tem dois filhos, a seu cargo.
14.A arguida paga a título de prestação bancária a quantia mensal de € 180,00 e, além disso, suporta ainda a título de despesas correntes com água, luz e gás, em média a quantia mensal de € 150,00.
15. Como habilitações literárias, a arguida tem o 9.° Ano de Escolaridade.
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-- Factos não provados:
Nenhuns.
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Fundamentação da decisão de facto:
D.1) ENQUADRAMENTO GERAL
Desde já se diga que a convicção do Tribunal assentou na análise crítica do teor dos documentos constantes dos autos, tudo devidamente apreciado com base nas regras da experiência comum e da livre convicção do julgador – [art. 127.° do C.P.P., aqui aplicável ex vi do art. 41.0, n.°1 do R.G.C.O.]
Vejamos então, em detalhe, como os diversos meios de prova oferecidos, contribuíram para a formação [positiva e negativa] da convicção do Tribunal, relativamente aos factos relevantes para a boa decisão da causa.
É que a decisão judicial, para além de dever conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova, há-de conter, também, «os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico, sobre provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido» - [Acórdão do STJ, de 13-02-92, CJ, Tomo 1, p. 36, e Ac. do TC, de 02-12-98, DR na Série de 05-03-99]
D.2) DA INDICAÇÃO Dos MEIOS PROBATÓRIOS OFERECIDOS PELOS SUJEITOS PROCESSUAIS
Ao nível da prova documental foram oferecidos pelos sujeitos processuais os seguintes documentos:
· Auto de notícia de fls. 2 e 3;
· Auto de apreensão e de arrombamento e contagem de fls. 4 e 5;
· Relatório fotográfico de fls. 7 a 13;
· Senhas de fls. 14;
· Talão de fls. 15;
· Depósito de numerário de fls. 17;
· Ficha de verificação de material de fls. 20;
• Relatório elaborado pelo Departamento de Planeamento e Controlo da Actividade de Jogo de fls. 25 e ss..
D.3) DA MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO E ANÁLISE CRÍTICA DOS MEIOS PROBATÓRIOS EM ESPECIAL
Assim, e quanto aos factos dados como provados, o tribunal alicerçou a sua convicção com base na análise crítica da prova documental junta, por declarações e testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, tudo devidamente apreciado com base nas regras da experiência comum e da livre convicção do julgador, cujos elementos probatórios, em concreto, foram os seguintes:
· Auto de notícia de fls. 2 e 3;
· Auto de apreensão e de arrombamento e contagem de fls. 4 e 5;
· Relatório fotográfico de fls. 7 a 13;
· Senhas de fls. 14;
· Talão de fls. 15;
· Depósito de numerário de fls. 17;
· Ficha de verificação de material de fls. 20;
· Relatório elaborado pelo Departamento de Planeamento e Controlo da Actividade de Jogo de fls. 25 e ss..
Cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos para os legais efeitos.
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Em conjugação com os testemunhos prestados por (…), agente da PSP que procedeu à fiscalização, (…), um dos donos da firma arguida, e (…), então funcionária do estabelecimento onde a máquina de jogo estava a funcionar ao público, esta ouvida nos termos do art. 340.°, n.°1 do C.P.P., aqui aplicável ex vi do art. 41.° do R.G.C.O..
As demais testemunhas foram prescindidas pelos sujeitos processuais.
A legal representante da firma arguida, (…), prestou declarações.
Já a arguida (…) remeteu-se ao silêncio.
Concretizando.
Assim, quanto aos factos dados como provados vertidos nos pontos 1) a 9), deve esclarecer-se que a formação da convicção positiva do tribunal sobre ocorrência dos mesmos se estribou nos meios de prova seguintes:
· Auto de notícia (de levantamento de contra-ordenação), cujo teor faz fé em juízo até prova em contrário;
· Auto de apreensão e de arrombamento e contagem de fls. 4 e 5;
· Relatório fotográfico de fls. 7 a 13;
· Senhas de fls. 14;
· Talão de fls. 15;
· Depósito de numerário de fls. 17;
· Ficha de verificação de material de fls. 20;
· Relatório elaborado pelo Departamento de Planeamento e Controlo da Actividade de Jogo de fls. 25 e ss..
Conjugados com o depoimento da testemunha (…), prestado em audiência de julgamento.
Vejamos.
As testemunha (…), agente da PSP que procedeu à fiscalização do referido estabelecimento, asseverou ter nele vislumbrado uma máquina colocada no balcão em funcionamento e colocada à disposição do público, tendo apurado, ao nível das características e o funcionamento da referida máquina, que a mesma funcionava através de um mecanismo de extracção de cápsulas mecânico, introduzindo-se uma moeda e rodando o manípulo, era gerado um mecanismo interno que permite que apenas uma cápsula de cada vez. Tal mecanismo interno era adaptado às dimensões e forma oval da cápsula.
Verificou, pois, a testemunha, através de uma simulação do jogo, que tal máquina desenvolvia uma modalidade afim de jogo de fortuna ou azar, destinada ao uso dos clientes do estabelecimento, nem sempre dando prémio. Com efeito, precisou esta testemunha que por vezes a cápsula sorteada, contendo no seu interior três senhas, através da introdução de uma moeda de um euro na máquina, sequer prémio tinha.
Por isso, no local procederam à apreensão dos bens constantes do respectivo auto de fls. 4, todos associados à exploração da modalidade afim de jogo de fortuna ou azar acima descrita.
Mais confirmou que a firma arguida, entidade que colocou a máquina em tal estabelecimento e que a explorava, não era titular de autorização que lhe permitisse explorar tal tipo de jogo.
Mais se diga que resultou deste testemunho prestado pelo agente policial (...) que, nas apontadas circunstâncias, quando procedia à fiscalização, (…), então empregada do estabelecimento, confirmou tal procedimento de jogo acima descrito e, ademais, referiu que tal máquina de jogo já tinha dado prémios em dinheiro.
Ora, perante este último segmento do testemunho prestado por (...), por tal configurar um «depoimento indirecto», este Tribunal decidiu oportunamente trazer a juízo a «testemunha fonte», no caso, (...), o que veio a suceder, tendo esta sido ouvida em sede de audiência de julgamento, na qualidade de testemunha, razão pela qual, dessa forma, os dois testemunhos podem ser valorados de acordo com os critérios previstos no art.° 127.° do Cód. Proc. Penal, aqui aplicável ex vi do art. 41.° do R.G.C.O..
Vejamos porquê.
Estabelece, neste domínio, o art. 129.° do Cód. Proc. Penal, aqui aplicável ex vi do art. 41.° do R.G.C.O., que: «1 - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas. 2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha. 3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.»
Decorre de tal preceito que a proibição de «testemunhos de ouvir dizer ou de outiva», não foi plasmada de forma absoluta, dado que, como se salientou no Acórdão da Relação de Guimarães, de 05-03-2012, (proc.° n.° 376/10.1TA PTL.G1, in www.dgsi.pt), a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos. O que o código proíbe é a valoração de tais depoimentos, se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal. No entanto, o depoimento indirecto pode ser valorado sempre que a inquirição da testemunha fonte não seja possível, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada, impossibilidade essa que não tem que ser absoluta, podendo ser meramente relativa, decorrente do insucesso das diligências efectuadas para a encontrar no local onde era suposto dever estar.
Assim, chamando o juiz a testemunha fonte a depor (ou pelo menos determinando a realização de diligências para lograr atingir tal desiderato), como aqui aconteceu, o depoimento indirecto pode (e deve) ser valorado, mesmo nos casos em que a aquela se recusa, lícita ou ilicitamente, a prestar depoimento (v. g. o art. 134.° do C.P.P.) ou, por exemplo, diz de nada se recordar já - [cf. o Acórdão da Relação do Porto de 07-11-2007, proc. n.° 0714613, in http://www.dgsi.pti
É que nesta situação é possível o exercício do contraditório na audiência de julgamento, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer das testemunhas de ouvir dizer, quer da testemunha fonte, assim se assegurando o respeito pela estrutura acusatória do processo criminal, imposto pelo art. 32°, n°5 da Constituição da República Portuguesa.
E a conformidade do art. 129.°, n.°1 do Cód. Proc. Penal, ao admitir nas circunstâncias aí previstas a valoração do hearsay evidente, com a Lei Fundamental tem vindo a ser afirmada sucessivamente pelo Tribunal Constitucional.
Este é, aliás, outrossim o entendimento majoritário da jurisprudência constante das nossas instâncias superiores.
In casu, o Tribunal chamou a depor a pessoa indicada pela testemunha (...), como sendo a fonte de parte do conhecimento que transmitiu ao Tribunal. Sendo que depois tal pessoa (...) foi, de facto, ouvida em sede de audiência de julgamento, na qualidade de testemunha, pelo que, destarte, nada impede que o referido depoimento indirecto da testemunha supra id. possa ser valorado de acordo com a regra da livre apreciação da prova.
É certo que esta última testemunha, certamente tolhida pelo facto de ter sido empregada da arguida (...), apresentou uma versão diferente, dizendo que (sic) não se lembrava de ter dito ao agente policial que a máquina já havia dado prémios em dinheiro, enfim... bem revelador da inconsistência e insegurança de tal versão, dado que, se se tal máquina jamais tivesse dado prémios em dinheiro, então a resposta que esta testemunha daria, seria no sentido de negar peremptoriamente que tivesse dito isso, por não corresponder à realidade.
Ademais, confrontada uma e outra versão, em nossa livre apreciação, não ficamos com qualquer dúvida em conferir crédito à testemunha agente policial em detrimento desta testemunha (...), porquanto para além de não crermos que tal agente policial tivesse deliberadamente inventado tal versão, sempre se diga ainda que tal testemunho prestado por (...) evidenciou ser inconsistente como já se enfatizou e, além disso, assaz constrangido, não espontâneo e até contraditório nos seus próprios termos (v.g. ora dizia que na altura estava a trabalhar há pouco tempo e por isso tal máquina não tinha sido usada à sua frente, ora dizia o contrário que tal máquina de jogo tinha sido usada nalgumas vezes, entre outras incongruências, enfim...), sendo manifesto o cuidado que empregou ao longo do seu depoimento, para não prejudicar a sua antiga patroa, aqui arguida (...).
Numa palavra, tal testemunho de (...), prestado em sede de audiência, nenhuma valia probatória demonstrou ser credor, pelos motivos acima aduzidos a respeito. Claramente esta testemunha disse mais do que seria suposto ao agente policial aquando da fiscalização e agora, confrontada com tal «descuido», pretendeu dar o dito pelo não dito, debalde logrou tal desiderato.
Eis as razões pelas quais este julgador emprestou credibilidade ao testemunho prestado pelo agente autuante, (...) nos termos supra explanados.
Não ocorrerá destarte qualquer violação do disposto nos artigos 126.° a 129.° do Cód. Proc. Penal, quando este tribunal valorou tal depoimento prestado por (...), na parte em que transmitiu aquilo que (...) lhe disse na altura, ou seja, de que tal jogo desenvolvido pela máquina já havia dado prémios em dinheiro.
Destarte, o depoimento indirecto em apreço pode (e deve) ser valorado de acordo com o princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127.° do Cód. Proc. Penal, isto é, caberá ao tribunal apreciá-lo segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.
Destarte, em apreciação crítica deste testemunho prestado pelo agente policial (...), inclusivamente neste trecho, deve pois salientar-se que o mesmo, na óptica deste tribunal em livre apreciação permitida pelo art. 127.° do C.P.P., se revelou sério, objectivo e, destarte, credível, razão pela qual contribuiu para a formação da convicção positiva do tribunal quanto a esta factualidade nos termos supra indicados, sendo que estando tal testemunho devidamente registado pelo sistema de gravação sonoro, se dispensam, por isso, outras considerações a respeito.
Ou seja e em suma: devemos dizer que tal testemunha agente policial (...) se mostrou uma pessoa isenta, credível e séria, apresentando um raciocínio lógico e transparente, explicando, com pormenor, a fiscalização ao estabelecimento, e o modo de funcionamento da referida máquina. Corroborou as informações contantes do auto de notícia a fls. 2 e 3, auto de apreensão de fls. 4 e a reportagem fotográfica, a fls. 7 a 13.
Tal máquina apreendida foi depois sujeita a exame pelo Departamento de Planeamento e Controlo da Actividade de Jogo, cujo relatório consta de fls. 25 e ss., nos termos do qual, em jeito de conclusão, constam os seguintes resultados:
(i) É uma máquina com um mecanismo de extracção de cápsulas mecânico;
(ii) Quando é introduzida uma moeda e rodado o manípulo faz girar um mecanismo interno que permite que saia apenas uma cápsula de cada vez. O mecanismo interno é adaptado às dimensões e forma oval da cápsula;
(iii) Não obstante o mecanismo de introdução de moedas se encontrar danificado foi possível no decurso do exame extrair cápsulas e verificar que no interior de cada uma se encontram três senhas;
(iv) Considerando a experiência adquirida no exame a este tipo de equipamentos, o modo de desenvolvimento e a usual tentativa de camuflar a existência de prémios em dinheiro, não pode deixar de ser referenciado o facto de os números constantes nos objectos da caixa terem três dígitos separados por uma barra e mais dois dígitos e as senhas (no caso alusivas à UEFA) conterem apenas números de três dígitos. Regra geral, tal acontece porque os três constantes nos objectos se reportarem ao número propriamente dito que tem correspondência com os identificados no plano da máquina extractora como sendo premiados e os dois últimos dígitos ao valor do prémio a atribuir em dinheiro. Assim, a título de exemplo saindo a rifa com o número 362/5, o jogador ganha o objecto identificado com o número 362 (Fig. 7) e a quantia monetária de € 5,00;
(v) O jogo desenvolvido pelo material examinado, não atribui sempre um prémio e constitui uma modalidade afim de jogos de fortuna ou azar nos termos do disposto no art. 159.° e ss. do DL n.°422/89, de 02-12, alterado e republicado em anexo ao DL n.°114/2011, de 30-11, porquanto se trata da atribuição de um prémio através de uma rifa extraída por meio de máquina mecânica com atribuição de prémios em espécie e quantias monetárias.
Da conjugação do testemunho prestado por (...) com os seguintes meios de prova documentais, auto de notícia de fls. 2 e 3, auto de apreensão cautelar de fls. 4, auto de abertura e contagem de fls. 5, fotografias de fls. 7 a 13, certidão permanente da firma arguida de fls. e ss. e, decisivamente, o exame realizado pelo Departamento de Planeamento e Controlo da Actividade de Jogo, cujo relatório consta de fls. 25 e ss., e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos para os legais efeitos, o tribunal formou a sua convicção relativamente ao funcionamento da máquina, os prémios atribuídos e que a mesma se encontrava em exposição para ser utilizada pelos clientes do estabelecimento.
Esclareceu ainda tal testemunha (...) que para que as arguidas pudessem ter a referida máquina em exploração, seria necessária uma licença, licença esta que não poderia ser concedida a particulares.
Ora, todos estes elementos probatórios serviram para nos fazer crer que efetivamente qualquer cliente que quisesse «tentar a sua sorte» na máquina, o conseguiria fazer, sendo o seu uso permitido pelas arguidas, as quais, porém, não dispunham de licença para tal efeito.
Relativamente aos factos dados como provados vertidos no ponto 10), deve esclarecer-se que os mesmos colheram a sua demonstração com base nas regras da experiência comum e da normalidade da vida(9), uma vez que, sendo a firma arguida uma exploradora profissional no ramo dos jogos e sendo a arguida (...) uma empresária do ramo hoteleiro, cada uma delas teve que se informar relativamente ao que lhe era permitido ter no estabelecimento e o que necessitava de ser legalizado. Demonstrando-se ainda que tal máquina de jogo estava a ser utilizada e tendo em conta que os clientes de tal estabelecimento poderiam perder ou ganhar determinados prémios, a firma arguida «Stardiver, Lda.,» e a arguida (...) tinham, efectivamente, conhecimento do seu modo de funcionamento, da sua natureza aleatória, que procedia ao pagamento dos prémios alguns em dinheiro e arrecadavam o dinheiro constante da máquina. Não se pode assim aceitar que a firma recorrente alegue o desconhecimento da proibição legal, estando disso bem ciente, enfim... mas de forma a poderem obter lucro, de modo livre, deliberada e consciente a firma arguida (…), promoveu e aquela outra arguida (...) permitiu que tal máquina fosse colocada em exploração no referido estabelecimento ao arrepio do que era permitido, ciente que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.
Com efeito, como bem se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-12-2004, processo n.°992512004-9: «dizerem tribunal que se desconhece o funcionamento de máquinas e jogos que se exploram em estabelecimentos comerciais, não é de aceitar, sendo certo que quem explora um negócio e tem uma porta aberta se inteira de tudo o que vende e explora no estabelecimento, pelo que também aqui é a experiência comum que opera, não se podendo falar sequer em negligência e em matéria tão sensível.»
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Não se olvida que, em sede de audiência de julgamento, tanto a legal representante da firma arguida, (…) como a testemunha, (…), um dos sócios de tal firma, pretenderam fazer crer, em suma e com relevo, que tal máquina de jogo daria sempre prémios e, ademais, não monetários.
Ora, tal versão oferecida pela legal representante da firma arguida, como pela a testemunha, um dos sócios de tal firma, reivindica a nossa apreciação crítica, porquanto como bem se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, recurso n.°9920001, "in dubio pro reo" www.dgsi.pt: «A actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptadores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem está a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.»
Destarte, em apreciação crítica desta versão, designadamente no que respeita a alguns dos seus pontos fulcrais como seja o facto de tal máquina de jogo dar sempre prémios e, ademais, não monetários, deve esclarecer-se que não emprestamos qualquer credibilidade, não tendo os seus declarantes, pois, nos convencido a respeito.
Vejamos, então, porque, salvo melhor opinião, tal versão não nos convenceu.
Em primeiro lugar, em apreciação crítica e da imediação de que beneficiámos em sede de audiência de julgamento, ficámos com a convicção de que se trataram de depoimentos não isentos ou objectivos, sendo, ao invés, assaz colado e favorável à posição das arguidas, de quem são, respectivamente e no que respeita à firma arguida, legal representante e sócio, a coberto do qual pretenderam, ao cabo e ao resto, fazer crer que estaríamos perante uma máquina licita.
Ora, tal versão, unicamente estribada nas palavras dos seus declarantes, foi cabalmente refutada pelo testemunho sério e isento do agente policial (...), os termos supra descritos, bem como decisivamente pelo exame realizado pelo Departamento de Planeamento e Controlo da Actividade de Jogo, cujo relatório consta de fls. 25 e ss, do qual resulta, relembramos, uma cabal confirmação da versão apresentada pelo agente policial e, noutro prisma, uma contradição com tal versão convenientemente ensaiada por aqueles, já que conclui, ao invés, que a máquina de jogo apreendida no referido estabelecimento:
· E uma máquina com um mecanismo de extracção de cápsulas mecânico;
· Quando é introduzida uma moeda e rodado o manípulo faz girar um mecanismo interno que permite que saia apenas uma cápsula de cada vez. O mecanismo interno é adaptado às dimensões e forma oval da cápsula;
· Não obstante o mecanismo de introdução de moedas se encontrar danificado foi possível no decurso do exame extrair cápsulas e verificar que no interior de cada uma se encontram três senhas;
· Considerando a experiência adquirida no exame a este tipo de equipamentos, o modo de desenvolvimento e a usual tentativa de camuflar a existência de prémios em dinheiro, não pode deixar de ser referenciado o facto de os números constantes nos objectos da caixa terem três dígitos separados por uma barra e mais dois dígitos e as senhas (no caso alusivas à UEFA) conterem apenas números de três dígitos. Regra geral, tal acontece porque os três constantes nos objectos se reportarem ao número propriamente dito que tem correspondência com os identificados no plano da máquina extractora como sendo premiados e os dois últimos dígitos ao valor do prémio a atribuir em dinheiro. Assim, a título de exemplo saindo a rifa com o número 362/5, o jogador ganha o objecto identificado com o número 362 (Fig. 7) e a quantia monetária de € 5,00;
· O jogo desenvolvido pelo material examinado, não atribui sempre um prémio e constitui uma modalidade afim de jogos de fortuna ou azar nos termos do disposto no art. 159.° e ss. do DL n.°422/89, de 02-12, alterado e republicado em anexo ao DL n.°114/2011, de 30-11, porquanto se trata da atribuição de um prémio através de uma rifa extraída por meio de máquina mecânica com atribuição de prémios em espécie e quantias monetárias.
Para a comprovação dos factos dados como provados vertidos nos pontos 11) a 15), teve-se em conta as declarações prestadas pela arguida (...) e pela legal representante da firma arguida, (…).

III

De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, aplicável por força do estatuído no art.º 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
1.ª – Que a matéria de facto dada como provada não explica (como era obrigatório e essencial para a verificação dos elementos objectivos do ilícito imputado às arguidas) que operação é feita pela máquina em causa nos autos e como é oferecida ao público;
2.ª – Que, nos termos dos art.º 374.º, n.º 2 e 3, do Código de Processo Penal, e 58.º, n.º 1 do RGCO, a sentença é nula por ter corrigido de forma ilegal a decisão administrativa ao aditar-lhe o elemento subjectivo da contra-ordenação em causa;
3.ª – Que a perícia realizada nos autos violou os art.º 151.º e 154.º, do Código de Processo Penal, "ex vi" art.º 41.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), bem como o art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, por ter sido realizada sem que às arguidas fosse dada a possibilidade de estarem presentes aquando da sua realização, nem lhe tendo sido notificado o resultado com o da decisão administrativa; e
4.ª – Que – e passamos a citar o ponto g) das conclusões – a coima aplicada pela entidade administrativa não o foi pelo mínimo e não se consegue descortinar, nem da decisão administrativa nem da decisão judicial recorrida os fundamentos da aplicação da coima.
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Vejamos:
No tocante à 1.ª das questões postas, a de que a matéria de facto dada como provada não explica (como era obrigatório e essencial para a verificação dos elementos objectivos do ilícito imputado às arguidas) que operação é feita pela máquina em causa nos autos e como é oferecida ao público:
A resposta está nos pontos 4, 5 e 9 dos factos provados:
4. Ao inserir uma moeda de € 1,00 (um euro) no mecanismo existente na máquina extratora e, seguidamente, rodar o manípulo até ao seu bloqueio, o jogador recebe, de forma completamente aleatória, uma cápsula plástica que contém três senhas numeradas. Se existir correspondência entre as numerações existentes nas senhas, com as terminações vencedoras inscritas no cartaz de prémios, que se encontram sob o brinde, o jogador receberá o valor monetário aí mencionado. Se não houver coincidência, não tem direito a qualquer prémio;
5. Logo, do exterior da máquina, antes da introdução da moeda, não era possível prever o prémio a que o jogador se habilitava;
9. O objectivo (…) consistia em aliciar o público a pagar um determinado montante, introduzindo essa quantia na ranhura existente na máquina, na esperança de ganhar um prémio de valor superior ao gerado pela utilização, isto é, lucrar relativamente ao valor despendido, sendo que os arguidos, deste modo, obtêm proventos monetários para si.
E como consta da fundamentação da decisão da matéria de facto da sentença recorrida:
Tal máquina apreendida foi depois sujeita a exame pelo Departamento de Planeamento e Controlo da Actividade de Jogo, cujo relatório consta de fls. 25 e ss., nos termos do qual, em jeito de conclusão, constam os seguintes resultados:
(i) É uma máquina com um mecanismo de extracção de cápsulas mecânico;
(ii) Quando é introduzida uma moeda e rodado o manípulo faz girar um mecanismo interno que permite que saia apenas uma cápsula de cada vez. O mecanismo interno é adaptado às dimensões e forma oval da cápsula;
(iii) Não obstante o mecanismo de introdução de moedas se encontrar danificado foi possível no decurso do exame extrair cápsulas e verificar que no interior de cada uma se encontram três senhas;
(iv) Considerando a experiência adquirida no exame a este tipo de equipamentos, o modo de desenvolvimento e a usual tentativa de camuflar a existência de prémios em dinheiro, não pode deixar de ser referenciado o facto de os números constantes nos objectos da caixa terem três dígitos separados por uma barra e mais dois dígitos e as senhas (no caso alusivas à UEFA) conterem apenas números de três dígitos. Regra geral, tal acontece porque os três constantes nos objectos se reportarem ao número propriamente dito que tem correspondência com os identificados no plano da máquina extractora como sendo premiados e os dois últimos dígitos ao valor do prémio a atribuir em dinheiro. Assim, a título de exemplo saindo a rifa com o número 362/5, o jogador ganha o objecto identificado com o número 362 (Fig. 7) e a quantia monetária de € 5,00;
(v) O jogo desenvolvido pelo material examinado, não atribui sempre um prémio e constitui uma modalidade afim de jogos de fortuna ou azar nos termos do disposto no art. 159.° e ss. do DL n.°422/89, de 02-12, alterado e republicado em anexo ao DL n.°114/2011, de 30-11, porquanto se trata da atribuição de um prémio através de uma rifa extraída por meio de máquina mecânica com atribuição de prémios em espécie e quantias monetárias.
De forma que não tem razão a recorrente quando alega que a matéria de facto dada como provada não explica que operação é feita pela máquina em causa nos autos e como é oferecida ao público.
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No tocante à 2.ª das questões postas, a de que, nos termos dos art.º 374.º, n.º 2 e 3, do Código de Processo Penal, e 58.º, n.º 1 do RGCO, a sentença é nula por ter corrigido de forma ilegal a decisão administrativa ao aditar-lhe o elemento subjectivo da contra-ordenação em causa:
Alega a recorrente que a decisão administrativa não contém qualquer referência ao elemento subjectivo da infracção na parte da descrição da respectiva matéria de facto. Ou seja, na matéria de facto assento como provada da decisão administrativa, não está lá o que quer que seja sobre se a arguida agiu ou não com dolo ou agiu ou não com negligência e devia estar, porque assim o exigem os art.º 8.º, n.º 1, do Regulamento Geral das Contra-Ordenações e 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1 al.ª a), do Código de Processo Penal, aplicável por força do art.º 41.º, n.º 1, do Regulamento Geral das Contra-Ordenações. Pelo que, conclui, não podia o senhor Juiz "a quo" ter inserido nos factos provados de sua sentença o teor do ponto 10, aonde consigna que Cada uma das arguidas agiu livre, voluntária e conscientemente, querendo obter proveito económico em resultado das jogadas efectuadas pelos clientes, benefício que sabiam ser ilegítimo por ser proibido por lei o desenvolvimento de tais modalidades afins de jogo de fortuna e azar, bem sabendo também que as suas condutas eram punidas por lei.
Ora bem.
Como já anteriormente tivemos a oportunidade de dizer no ac. TRE de 25-10-2016, proc. 11/14.9T8GDL.E1, www.dgsi.pt, é preciso ter presente que as decisões administrativas, neste caso da Polícia de Segurança Pública, não são para serem tidas como paradigmas de uma sentença penal, com o rigor minucioso destas, mas têm antes de ser analisadas de harmonia com a natureza dos processos contra-ordenacionais e da sua especificidade, em que, por estarem em jogo interesses bem menos primordiais do que os discutidos em sentenças penais, impõe que sejam adequadamente compreendidas as exigências contidas no art.º 58.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações, designadamente em matéria de sistematização dos assuntos nelas tratados e de terminologia jurídica usada.
Ora da decisão administrativa e acerca do elemento subjectivo da infracção atribuída às arguidas constam excertos como:
A fls. 5:
Vistos os factos provados, mormente o tipo de máquina que exploravam, é inelutável que as arguidas não poderiam deixar de saber que a operação que exploravam é proibida por lei.
A arguida (…), como proprietária da máquina, sabia que desenvolvia uma modalidade afim de jogo de fortuna ou azar sem qualquer autorização administrativa, agindo com intenção de manter em atividade o referido jogo, obtendo, assim, proveito económico em resultado das jogadas efetuadas pelos clientes do estabelecimento.
A arguida (…), sendo exploradora do estabelecimento comercial, deu o seu consentimento para a instalação da referida máquina, não constando o contrário dos autos, o que desde logo se infere que sabia qual o fim a que destinava.
Na verdade, o regime legal que reformulou a Lei do Jogo e pune a prática do mesmo é datado de 1989, e, como tal, o decurso do tempo permitiu claramente que a sociedade portuguesa – e as arguidas enquanto seus membros – interiorizasse a censura ético-social inerente à prática do jogo fora das respetivas condicionantes legais. De facto, o Decreto-Lei n.° 422/89, de 2 de dezembro, traduz as regras do ordenamento jurídico das quais deflui a forte consciência social de que o jogo não é uma atividade livre e que, quando permitida, é sempre alvo de condicionalismos.
E a fls. 8:
Analisando as considerações supra expostas ao caso vertente nos autos, a factualidade colhida aponta com nitidez para a prática, por parte das arguidas, em co-autoria, de uma modalidade afim de jogo de fortuna ou azar, tendo-se verificado, que agiram livre, voluntária e conscientemente, ao explorar uma máquina, com a qual aliciava o público a inserir uma derminada quantia, e cujo resultado consistia na atribuição aleatória de um prémio de valor económico variável, com o intuito de obter rendimentos em virtude do número e apostas recebidas, e querendo alcançar o lucro.
Demonstrada a ilicitude da conduta das arguidas, e analisando a vertente da culpa do agente, mais uma vez se reafirma que as mesmas atuaram com dolo, visto que quiseram explorar a máquina nos termos descritos, conformando-se com aquele resultado.
(…)
As arguidas agiram de forma livre, voluntária e consciente, ou seja, dolosamente, pois enquanto exploradora de um estabelecimento comercial e proprietária da máquina, as arguidas deveriam ter-se inteirado de todas as actividades que poderiam exercer, ao explorar a máquina nos termos descritos, tendo previsto o resultado como consequência possível das suas condutas e, mesmo assim, não se abstiveram de as empreender, tendo como principal objectivo a obtenção de lucro, com a promoção do referido jogo.
E agora pergunta-se: e algum destes excertos está geograficamente situado no rol da matéria de facto provada da decisão administrativa, que consta a fls. 3? Resposta: não, não está. Aparecem, como se viu, dispersos ao longo daquela decisão.
Mas a questão é que, lida a decisão administrativa no seu todo, não se pode concluir que a entidade que a proferiu não teve em conta o elemento subjectivo da infracção como fazendo parte da matéria de facto assente como provada pela mesma, pois que a ela se referiu várias vezes e em termos inequivocamente de que ficou provado que as arguidas agiram com dolo e não com mera negligência – embora não no sítio geográfico da decisão aonde o mesmo deveria ter começado por constar e que era no rol dos factos provados.
Aliás que da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que a recorrente apresentou, facilmente se extrai que ela percebeu perfeitamente por que é que tinha sido condenada, não tendo qualquer dificuldade em defender-se – com o que manifestamente não se violou o princípio constitucional do seu direito de defesa garantido no art.º 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa.
Como se escreve no ac. TRC de 9-1-2019, proc. 257/18.0T8SRT.C1, www.dgsi.pt, a decisão administrativa não é uma sentença, nem tem que obedecer ao formalismo desta … [tenha-se sempre presente que a decisão administrativa não é lavrada por um magistrado judicial, sendo por isso natural que, em termos formais, se afaste, significativamente, do ‘desenho’ da sentença].
A decisão administrativa que integra os autos contém, no ponto VII, a afirmação de facto de que a arguida não agiu com a diligência necessária para cumprir as suas obrigações legais, e a conclusão de facto de que a Arguida agiu negligentemente, elementos que complementam aquela factualidade, sendo que estes elementos não podem deixar de ser considerados, conjuntamente, com os factos provados que constam do referido ponto V., independentemente do concreto ‘lugar’ que ocupam na decisão.
Depois, é claro que na sentença produzida pelo tribunal "a quo" não seria tolerável, por aí já se estar num patamar de execução jurídica que a sentença no seu todo revela ser de excelência, que se perpetuasse o desarrumo da decisão administrativa quanto ao aludido elemento subjectivo da infracção, o qual, tendo sido vertido de forma soberba no ponto 10 dos factos provados, mais destoou ainda daquilo que a entidade administrativa conseguira fazer.
De forma que não se verifica a pela recorrente apontada nulidade.
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No tocante à 3.ª das questões postas, a de que a perícia realizada nos autos violou os art.º 151.º e 154.º, do Código de Processo Penal, "ex vi" art.º 41.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), bem como o art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, por ter sido realizada sem que às arguidas fosse dada a possibilidade de estarem presentes aquando da sua realização, nem lhe tendo sido notificado o resultado com o da decisão administrativa:
Começaremos por frisar que a recorrente não se pode queixar de que nem com a decisão administrativa lhe foi comunicado o resultado de perícia à máquina, uma vez que o mesmo consta transcrito nos pontos II e III de fls. 2 e 3 daquela.
Adiante.
O demais posto nesta questão foi objecto de apreciação por parte do Senhor Juiz da 1.ª Instância, o qual sobre o assunto expendeu o seguinte:
Ora, neste domínio, veio a Il. defesa das arguidas, em sede de alegações orais, entender que o exame efectuado pelo Departamento de Planeamento e Controlo da Actividade de Jogo, cujo relatório consta de fls. 25 e ss., não poderia ser valorado pelo julgador, por não ter sido concedida a possibilidade de as arguidas estarem presentes aquando da sua realização, bem como por tal exame ter desconsiderado por completo a existência de uma caixa contendo brindes que foi apreendida nos autos.
Quid Juris?
Ora, antes de mais, dever-se-á esclarecer que na nossa jurisprudência e doutrina majoritárias, está consolidado o entendimento de que o processo de contra-ordenação segue uma lógica diversa ao do processo penal, designadamente está ausente o princípio do contraditório no que tange às diligências de prova a realizar na fase administrativa, podendo o arguido tão-somente indicar testemunhas e outras provas (nomeadamente documental), sujeitando-se, porém, ao critério de apreciação da autoridade administrativa a respeito, podendo esta entender relevante ou não a junção ou a produção de tal prova indicada pelo arguido, sendo certo que o seu direito de defesa não sai postergado, porquanto poderá posteriormente, já em sede judicial (onde o princípio do contraditório tem plena aplicação, por excelência), voltar a indicar as testemunhas e outros meios de prova que entender pertinentes para salvaguardar os seus interesses.
A este respeito, pode ler-se no Acórdão da Relação do Porto, de 01-10-2008, relatado pela Exm.ª Desembargadora Olga Maurício, no processo 084322/3, que: «(…), o processo penal e a fase administrativa do processo contra-ordenacional são processos muito diferentes, sujeitos a regras diferentes porque as situações tuteladas são, também, muito diferentes. Transpor as regras daquele para este, sem mais, apenas por as situações não estarem previstas leva, fatalmente, a um desvirtuamento deste processo, tudo em frontal oposição com as suas características próprias, (…)».
Igualmente, neste domínio, se defendeu nos Acórdãos da Relação do Porto, de 06-06-2007, relatado pelo Exm.º Desembargador Ernesto Nascimento, no processo n.º0741680, e da Relação de Lisboa, de 03-12-2003, relatado pelo Exm.º Desembargador Carlos Almeida, no processo 5612/2003-3, com o seguinte sumário: «A fase administrativa de um processo contra-ordenacional não é contraditória, (…)».
Outrossim, no plano doutrinal, tal orientação pode ser encontrada nas anotações feitas por Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, UCE, p. 230], designadamente quando ensina que: «O poder de direcção do processo administrativo inclui o poder de praticar ou não praticar os actos de investigação e as diligências probatórias que entender adequados aos fins do processo contra-ordenacional e, designadamente, de não realizar as diligências requeridas pelo arguido, à imagem e semelhança do que sucede com o MP quando dirige o inquérito criminal (acórdão do TC n.º395/2004, sobre a questão do âmbito do poder de direcção do inquérito pelo MP, cuja jurisprudência também se aplica, por maioria de razão, ao poder de direcção da autoridade administrativa sobre a fase administrativa do processo contra-ordenacional; neste exacto sentido, o artigo 71.º, n.º2 do RGIT, acórdão do TRC, de 21-06-2000, processo 1186/00 e, na conclusão, OLIVEIRA MENDES e SANTOS CABRAL, 2009: 153, anotação 5.ª ao artigo 50.º, e GÖHLER, anotação 18.ª ao § 55.º, e, mais amplamente ainda, JOSÉ VELOSO, 2003: 271 (“a Autoridade decidirá da sua admissão segundo critérios muito mais flexíveis do que os do processo penal”), (…)».
E, há que frisar que tal posição, ora assumida, em nada contende com o art. 50.º do R.G.C.O., que consagra o princípio constitucional plasmado no art. 32.º, n.º10 da C.R.P..
Com efeito, tal interpretação não se mostra eivada de qualquer inconstitucionalidade por violação do citado art.º 32.º da C.R.P., dado que tal disciplina jurídica contida v. g. nos citados artigos 50.º e 54.º do R.G.C.O. e do art.º 175.º do C.E., ainda se mostra contida na livre (conquanto vinculada) margem de decisão do legislador ordinário (2) que tem a tarefa de compatibilizar os valores (garantias de defesa vs. direito/dever de realização da justiça) constitucionalmente consagrados quando entram em confronto entre si. Com efeito, deve dizer-se que a doutrina nacional vem aceitando a concepção de DWORKIN e de ALEXY segundo a qual o Desein dos princípios constitucionais é em colisão com outros e o modo de dirimir essa colisão é, não através de um critério all or nothing, mas por meio de uma compatibilização ou concordância prática que visa aplicar todos os princípios colidentes, harmonizando-os entre si na situação concreta (3).
Por outro lado, dever-se-á dizer que as ponderações envolvidas na resolução da colisão de princípios podem ser realizadas tanto pelo juiz, no caso concreto, como pelo legislador, para uma constelação ou grupo de casos.
Na verdade, o arguido pode (e deve) pronunciar-se sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sanções em que incorre, conforme Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º1/2003, de 16-10-2002 (4), o art.º 50.º do R.G.C.O., podendo, além disso, indicar prova testemunhal e outra, sendo que tal prova testemunhal oferecida pelo arguido poderá ser ou não produzida pela autoridade administrativa, consoante a sua relevância ou irrelevância para a boa decisão da causa e descoberta da verdade material.
Com efeito, importa não olvidar que, contrariamente ao que parece entender a Il. defesa das arguidas, temos vindo a acolher o entendimento expresso em alguns arestos das nossas instâncias superiores que a fase administrativa do procedimento contra-ordenacional se equipara, mutatis mutandis, com a fase do inquérito no processo penal e não com a fase meramente facultativa da instrução, o que é demonstrado, além do mais, pelo facto do dominus da fase administrativa não ser uma entidade imparcial e isenta (super partes) como é o Juiz de Instrução; pelo facto ainda da fase administrativa não ser contraditória conforme supra já se enfatizou; e pelo facto da decisão administrativa impugnada valer como acusação, pelo que a diligência de exame na fase administrativa se mostra um acto equivalente aos actos praticados pelo Ministério Público em sede de inquérito, não havendo qualquer semelhança com as fases processuais de instrução (e nesta com rigor apenas em sede de debate instrutório, como se sabe) e de julgamento previstas no processo penal, onde impera o princípio do contraditório, como erroneamente parece entender a Il. defesa das arguidas.
Assim sendo, nenhuma preterição das garantias de defesa das arguidas existiu, não sendo imposto por lei a presença das arguidas aquando da realização do exame à máquina de jogo apreendida nos autos.
Por outro lado, dever-se-á esclarecer ainda que tal exame teve em devida consideração tal caixa de brindes que foi apreendida, como facilmente se constata na foto n.º 6 do relatório (cf. fls. 26, por referências às fotos de fls. 11 e 12), sendo, porém, certo que, realizado tal exame, se concluiu inexistir completa correspondência entre as senhas contidas nas cápsulas da máquina com os números constantes dos brindes, alguns dos quais contidos nessa caixa. Ademais, como se verá infra, desse exame se concluiu ainda que alguns dos prémios eram monetários.
Eis as razões porque improcede tal alegação expendida pela Il. defesa das arguidas, podendo assim tal exame, cujo relatório consta de fls. 25 e ss. ser valorado pelo julgador, de acordo com as regras legais.
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(2) Sobre esta questão, vd. a tese de doutoramento de José Joaquim GOMES CANOTILHO, intitulada justamente de Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador.
(3) Sobre o tema, vejam-se, por todos, José Carlos VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª Ed., 2004, pp. 320 e ss.; José Joaquim GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 7.ª Ed., 2003, pp. 1182 e ss. - [apud de Augusto SILVA DIAS e Vânia COSTA RAMOS, O Direito À Não Auto-Incriminação (Nemo Tenetur Se Ipsum Accusare) no Processo Penal e Contra-Ordenacional Português, pp. 23 e 24]; e, numa vertente sobre direitos fundamentais atípicos, Jorge BACELAR GOUVEIA, Direitos Fundamentais Atípicos.
(4) O citado aresto uniformizador do STJ fixou a doutrina seguinte: «Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa.»

Ora bem.
Estes considerandos tecidos pela 1.ª Instância estão correctos e pouco mais haverá a acrescentar-lhes, sendo que, de resto, a recorrente nada, afinal, lhes contrapõe em termos de argumentação que agora se imponha apreciar.
O art.º 41.º, n.º 1, do RGCO, que estabelece que sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal, não legitima a adopção sistemática para as contra-ordenações dos procedimentos do Código de Processo Penal, porque senão teríamos um processo contra-ordenacional bem mais denso e complexo do que o próprio processo penal em si, por duplicarem os preceitos legais aplicáveis, que passariam assim a serem os de dois códigos.
Na fase investigatória do processo contra-ordenacional vigora o princípio do inquisitório, pelo que não viola o direito de defesa a não notificação do arguido para estar presente na realização de uma perícia a uma máquina de jogo, tal como não o viola por exemplo a sua não notificação para a inquirição de testemunhas por si arroladas na fase administrativa ou o não adiamento da inquirição de testemunhas por si arroladas também na fase administrativa do processo contra-ordenacional por falta do defensor do arguido e quer ele tenha sido notificado para a diligência, quer não o tenha sido, assim como o arguido também não tem o direito de impugnar o despacho de indeferimento das diligências de prova por si requeridas nos termos do art.º 55.º do RGCO (Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, 2011, anotações 11 a 13 ao art.º 54.º)
O respeito pelo estabelecido no n.º 10 do art.º 32.º da Constituição, que estabelece que nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa, fica satisfeito com o cumprimento do disposto no art.º 50.º do RGCO, que determina que não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre, bem como com a possibilidade de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa prevista no art.º 59.º e ss. do RGCO, fase esta em que realmente passa a vigorar o princípio do contraditório, não sendo pois constitucionalmente imposto que o arguido seja notificado para estar presente em qualquer perícia realizada anteriormente na fase investigatória pela entidade administrativa.
Termos em que improcede a apontada objecção.
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No tocante à 4.ª das questões postas, a de que – e passamos a citar o ponto g) das conclusões – a coima aplicada pela entidade administrativa não o foi pelo mínimo e não se consegue descortinar, nem da decisão administrativa nem da decisão judicial recorrida os fundamentos da aplicação da coima – pelo que, conclui a recorrente, ambas são nulas:
Antes de mais e para melhor delimitar a questão, se da decisão administrativa se consegue ou não descortinar os fundamentos da aplicação da coima é assunto ultrapassado pela prolação da sentença agora em recurso, pelo que o tema fica portanto restringido à parte de saber se, afinal, se consegue (ou não) descortinar (…) da decisão judicial recorrida os fundamentos da aplicação da coima – retirando da resposta a esta pergunta a conclusão de se, pois, a mesma será ou não nula.
Ora – e com o devido respeito – é deveras desconcertante (para dizer o mínimo…) que a recorrente alegue que não se consegue descortinar (…) da decisão judicial recorrida os fundamentos da aplicação da coima, quando a sentença recorrida lhe dedica não menos de quatro páginas, que se passam a reproduzir:
V — DA MEDIDA DAS SANÇÕES
Como já referido, preceitua o art. 163.° do Decreto-Lei n.°422/89, de 2 de dezembro, que «Constituem contraordenações, puníveis para as pessoas singulares com coima de 50.000$00 a 500.000$00 e para as pessoas colectivas com coima de 500.000$00 a 5.000.000$00, as violações ao disposto nos artigos 160.° a 962.°», sendo que, operando a conversão de escudos para euros, a coima, para as pessoas singulares será de € 249,40 a € 2.93,99, e para pessoas colectivas será de € 2.493,99 a € 24.939,87.
De acordo com o disposto no art. 18.°, n.°1 do Decreto-Lei n.°433/82, de 27/10: «A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.»
Conforme já se referiu, a teleologia subjacente às sanções previstas nestes preceitos se prende com a tutela do jogo de sorte e azar e afins.
Por outro, à necessidade de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do ilícito que, no caso, é susceptível de afectar de forma directa e imediata, os bens jurídicos tutelados, reflectindo assim a incapacidade do Estado em fazer cumprir as normas que se destinam à sua protecção, sendo necessariamente atendidas, também, as exigências de prevenção geral e especial.
Por seu turno, deve esclarecer-se que a coima tem um fim preventivo e, por isso, desempenha uma função de prevenção geral negativa (isto é, visa evitar que os demais agentes tomem o comportamento infractor como modelo de conduta) e de prevenção especial negativa (no sentido de que visa evitar que o agente repita a conduta infractora). Destarte, pode com segurança concluir-se que a coima não tem um fim retributivo da culpa ética do agente, pois não visa o castigo de uma personalidade deformada reflectida no facto ilícito, nem tem um fim de prevenção especial positiva, pois não visa a ressocialização de uma personalidade deformada do agente (13). Assim, como sanção que é, a coima só é explicável enquanto resposta a um facto censurável, violador da ordem jurídica, cuja imputação se dirige à responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever que decorre das imposições legais, justificando-se a partir da necessidade de protecção de bens jurídicos e de conservação e reforço da norma violada, pelo que a determinação da medida da coima deve ser feita, fundamentalmente, em função de considerações de natureza preventiva geral, sendo certo que a culpa constituirá o limite inultrapassável da sua medida (14). Se é certo, porém, que o legislador ordinário (na área do direito de mera ordenação social) goza de ampla liberdade de fixação dos montantes das coimas aplicáveis, sem que com isso se coloque em causa o disposto no art.° 30.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa (15), a verdade é que deve o Tribunal emitir um juízo de censura e de correcção relativamente às soluções/decisões administrativas, no que tange à aplicação da coima, que sejam desadequadas à gravidade dos comportamentos sancionados.
Na visão de Jorge de Figueiredo Dias, Lições de Direito Penal, 2004, p.154, e de boa parte da doutrina, a coima é uma sanção patrimonial (art. 17.° do R.G.C.O.) que visa finalidades exclusivamente preventivas e «serve como mera admonição, como especial advertência ou reprimenda». Diferentemente da pena, não se liga à personalidade do agente e à sua atitude interna.
Por seu turno, para José Lobo Moutinho, Direito das Contra-ordenações, UCE,
2008, p. 37, «a coima é, antes de mais, evidentemente, uma pena no sentido amplo de sanção de sentido não reparador (tendo, nesse sentido, carácter repressivo). Daí que o RGCO fale a todo o passo e com toda a naturalidade de punição. Um carácter meramente admonitório ou de mera advertência da coima não encontra correspondência na estrutura ou regime legal da coima, que se refere a um facto cometido no passado, o qual é fundamento e medida da sanção (art.° 18.°, n °1 R. G. C.0.) (... J. A coima pode ser substituída por uma admoestação (art.° 51°) a qual, à semelhança do que sucede no âmbito do DP, não é uma advertência, mas uma "censura" (art.° 60.°, n.°4 Código Penal)». E completa o autor, «perante a habitual insistência na diferença entre a coima e a pena (de multa), esta afirmação soa a heresia. No entanto, a verdade é que só muito limitadamente e, em qualquer caso, de modo irrelevante, se pode afirmar tal diferença».
Sem embargo, sempre se diga que qualquer que seja a perspectiva em que nos coloquemos relativamente à natureza da coima, é de reconhecer-lhe funções de prevenção geral e especial negativas [cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, loc. cit., p. 84]
*
Assim, por forma a dar efectivo cumprimento ao disposto no n.°1 do art. 18.° do R.G.C.O., deve atender-se (16):
a) À gravidade da contra-ordenação:
i) Grau de violação ou perigo de violação dos bens jurídicos e interesses ofendidos;
ii) Número de bens jurídicos e interesses ofendidos e suas consequências;
iii) Eficácia dos meios utilizados.
b) À culpa do agente:
i) Grau de violação dos deveres impostos ao agente;
ii) Grau de intensidade da vontade de praticar a acção;
iii) Sentimentos manifestados no cometimento da contra-ordenação;
iv) Fins ou motivos determinantes;
v) Conduta anterior ou posterior;
vi) Personalidade do agente.
c) À situação económica do agente (que se prende com a influência da sanção sobre este):
i) Situação Económica;
ii) Condições pessoais. d)Ao benefício económico que o agente retirou da prática da contra-ordenação.
Concretizando.
Quanto à firma arguida em especial
Quanto às finalidades da punição, deve dizer-se que as mesmas se ligam, por um lado, à sensibilização da firma arguida cumprir com as prescrições que impendem sobre si, na qualidade de proprietário e de explorador de máquinas de jogo e diversão, ocorrendo a necessidade que a mesma interiorize a censura ético-social inerente à prática do jogo afim de fortuna e azar fora das respetivas condicionantes legais.
Por outro, à necessidade de restabelecer a confiança coletiva na validade da norma violada, existindo uma forte consciência social de que o jogo não é uma atividade livre e que, quando a mesma é permitida, é sempre objecto de condicionalismos, mormente de uma autorização pela autoridade competente, agindo a firma arguida ao arrepio do que era correto.
Ora, no respeitante à gravidade da infração, manifestando-se esta, por um lado, pelo desvalor da conduta e, por outro, pelo desvalor do resultado atingido, dir-se-á que a mesma é, apesar de tudo, mediana.
No que concerne à culpa, deverá considerar-se o facto de a firma arguida ter agido com dolo direto, sendo, portanto, a sua conduta censurável, embora não se possa considerar grave, atendendo aos bens jurídicos aqui tutelados.
No respeitante à condição económica do infractor, apurou-se que apresentou um resultado líquido do exercício de 2019 negativo, com um prejuízo para efeitos fiscais de € 5.000,00 [vd. o ponto 11)]
Acresce que à aplicação de uma coima não são alheias as necessidades de prevenção geral, que neste caso são medianas.
Por outro lado, a coima a aplicar terá que ter expressão suficiente para impedir que a firma arguida volte a praticar factos de idêntica natureza, representando um real sacrifício para o mesmo, por forma a assegurar as necessidades de prevenção especial.
A autoridade administrativa sancionou a firma arguida, pela prática da referida contraordenação, com uma coima de € 2.500,00, valor este próximo ao que correspondendo ao limite mínimo legal da coima aplicável, se nos afigura, em face da gravidade do facto e as necessidades punitivas reclamadas no caso, ajustado, adequado e proporcional à gravidade e censurabilidade da conduta do arguido, nos termos supra apurados, pelo que se deverá manter.
Quanto à arguida (...) em especial
Quanto às finalidades da punição, deve dizer-se que as mesmas se ligam, por um lado, à sensibilização da firma arguida cumprir com as prescrições que impendem sobre si, na qualidade de proprietário e de explorador de máquinas de jogo e diversão, ocorrendo a necessidade que a mesma interiorize a censura ético-social inerente à prática do jogo afim de fortuna e azar fora das respetivas condicionantes legais.
Por outro, à necessidade de restabelecer a confiança coletiva na validade da norma violada, existindo uma forte consciência social de que o jogo não é uma atividade livre e que, quando a mesma é permitida, é sempre objecto de condicionalismos, mormente de uma autorização pela autoridade competente, agindo a arguida ao arrepio do que era correto.
Ora, no respeitante à gravidade da infração, manifestando-se esta, por um lado, pelo desvalor da conduta e, por outro, pelo desvalor do resultado atingido, dir-se-á que a mesma é, apesar de tudo, mediana.
No que concerne à culpa, deverá considerar-se o facto de a arguida ter agido com dolo direto, sendo, portanto, a sua conduta censurável, embora não se possa considerar grave, atendendo aos bens jurídicos aqui tutelados.
No respeitante à condição económica do infractor, apurou-se que tem um rendimento total mensal na ordem de € 1.180,00 e encargos no valor global de € 330,00 [vd. o pontos 12) a 14)]
Acresce que à aplicação de uma coima não são alheias as necessidades de prevenção geral, que neste caso são medianas.
Por outro lado, a coima a aplicar terá que ter expressão suficiente para impedir que a firma arguida volte a praticar factos de idêntica natureza, representando um real sacrifício para o mesmo, por forma a assegurar as necessidades de prevenção especial.
A autoridade administrativa sancionou a arguida, pela prática da referida contraordenação, com uma coima de € 250,00, valor este próximo ao que correspondendo ao limite mínimo legal da coima aplicável, se nos afigura, em face da gravidade do facto e as necessidades punitivas reclamadas no caso, ajustado, adequado e proporcional à gravidade e censurabilidade da conduta do arguido, nos termos supra apurados, pelo que se deverá manter.
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DA NÃO SUBSTITUIÇÃO DA COIMA POR ADMOESTAÇÃO
Ora, entendemos que, in casu, a aplicação de coimas nos montantes em que foram condenadas a firma arguida «Stardiver, Lda.» e a arguida (...) se nos afigura justificada e proporcional, perante a censurabilidade que as condutas da firma arguida e da arguida (...), apesar de tudo, devem merecer, atentos os contornos do caso em apreço e o número de casos que ocorrem, colocando em causa a validade da norma que proíbe tais condutas.
Assim sendo, considerando todo o supra exposto, devidamente avaliado e ponderado, o tribunal entende que a sanção de admoestação não será suficiente, adequada e proporcional para satisfazer e, essencialmente, para prevenir a prática pelas arguidas/recorrentes de futuros ilícitos de mera ordenação social.
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(13) Nestes termos, vd. Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE, in op. cit., p. 84.
(14) Assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-04-2004, processo n.°504/04.
(15) Na simples medida em que a grande amplitude existente entre limites mínimos e máximos de coimas aplicáveis não consubstanciam uma ausência de limite ou uma indefinição das mesmas. Nesta senda, vd. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25-05-1995, disponível na Colectânea de Jurisprudência n.°XIX, Vol. III, p. 153.
(16) Neste ponto, acompanhamos de perto Manuel SIMAS SANTOS e Jorge LOPES DE SOUSA, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, Áreas Editora, 6.a Edição, 2011, pp. 184 e ss..

De forma que a sentença recorrida obviamente que não é nula por falta de adequada fundamentação na escolha e graduação da coima aplicada à recorrente.
IV
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em cinco UC (art.º 513.º e 514.º do CPP; 8.º, n.º 9 do RCP; e 92.º, n.º 1, 93.º n.º 3 e 94.º n.º 3 do RGCO).
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Évora,
(elaborado e revisto pelo relator)
Martinho Cardoso, relator
Maria Leonor Esteves, adjunta
(assinaturas digitais)