AÇÕES JUDICIAIS DE SEPARAÇÃO DE BENS
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

A competência (segundo o critério material) para a apreciação do pedido de simples separação judicial de bens pertence aos juízos cíveis.

Texto Integral

Acordam os juízes da 2ª secção (cível) do Tribunal da Relação de Lisboa:



1.RELATÓRIO

 
AG, intentou ação de simples separação judicial de bens contra AS, pedindo que fosse decretada a separação judicial de bens.

Foi proferido despacho de indeferimento liminar que decidiu ser o juízo local cível incompetente em razão da matéria para tramitar ações de separação judicial de bens, tal ser da competência dos juízos de família e menores.

Inconformada, veio a autora apelar do despacho de indeferimento liminar, tendo extraído das alegações[1],[2] que apresentou as seguintes

CONCLUSÕES[3]:

1- A Recorrente foi devidamente notificada da sentença, proferida em 03-09-2020, pelo Juiz do Tribunal “a quo” e não se conformando com o seu conteúdo, interpõe recurso, em que pretende alegar de facto e de direito.

2- De facto, face à matéria alegada na petição inicial de fls. 1 a 8 verso dos autos, na junção de documentos de fls. 4 a 8 verso dos autos quanto a incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Juízo Local Cível do Funchal – Juiz 3, apresentados pela
Autora, ora recorrente.

3- De Direito, face à nulidade da sentença, nos termos do artigo 615º nº. 1 alíneas c) do C.P.C.

4- Vem o presente recurso interposto da sentença proferida em 3 de setembro 2020, pela Exma. Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” que julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do presente tribunal e, em consequência, indeferiu liminarmente a petição apresentada pela Autora AG.

5- Com o devido respeito, não pode a Recorrente conformar-se com a sobredita sentença proferida em 3 de Setembro de 2020, pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, que é nula quanto a exceção de incompetência absoluta do Tribunal, indeferindo liminarmente o pedido de separação judicial de bens, apresentado pela ora Recorrente AG, sendo competente em razão da matéria o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Juízo Local Cível do Funchal, conforme os artigos 64º, 65º do C.P.C, artigos 80º da Lei 62/2013 de 26 de Agosto e à contrário 122º nº. 1 alínea c) da mesma Lei, bem como do artigo 615º nº. 1 alínea c) do C.P.C.

6- A Recorrente AG, apresentou a ação simples separação judicial de bens (artigo 1767º do Código Civil) do outro cônjuge, conforme petição inicial de 11 de agosto de 2020 de fls. 1 a 8 verso dos autos.

7- Como fundamento para o pedido de separação judicial de bens, alegou que:

8- A Recorrente e o Réu contraíram casamento civil no dia 5.06.1985 na Conservatória do Registo Civil de Câmara de Lobos, conforme documento nº. 1 de fls 4 verso dos autos,

9- Que antes da celebração do casamento ambos outorgaram escritura de Convenção Antenupcial, lavrada no dia 30.05.1985 no Extinto Cartório Notarial Público de Câmara de Lobos, através da qual estabeleceram para o casamento o regime da comunhão geral de bens, conforme documento n.º 2 de fls. 5 dos autos,

10- Que o Réu tem celebrado negócios que se revelaram prejudiciais para a Recorrente,

11- Que o Réu foi, várias vezes, indiciado pela prática de crimes fiscais e executado em processos fiscais instaurados pela Fazenda Pública,

12-Que no processo de execução fiscal número 2801200401501194, instaurado apenas contra o Réu, foi penhorado um bem comum do casal para pagamento de uma dívida proveniente de IVA e IRC da sua exclusiva responsabilidade, pois é referente a uma sociedade da qual foi, em tempos, sócio,

13- Que foi penhorado um imóvel penhorado prédio rústico, localizado ao Sítio da Igreja, na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, concelho de Câmara de Lobos, com área de 630 m2, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo … da Secção “ES”, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Câmara de Lobos sob o número … da freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, o qual foi adquirido pelo casal na constância do casamento, sendo, por isso, um bem comum de ambos, conforme documento n.º 3 de fls. 6 a 7 dos autos,

14- Que o Réu enfrenta, ainda, os seguintes processos fiscais:
                      2801200501006649;
                      2801200501056905;
                      2801200601001167;
                     2801200401501194;
                     2801200501007998;
                     2801200701055690;
                    2801200801015613; e
                    2801200701030280

15- As quantias exequendas ultrapassam, em muito, os € 179.255,38 (cento e setenta e nove mil duzentos e cinquenta e cinco euros e trinta e oito cêntimos).

16- Que a Recorrente é, e sempre foi, alheia aos negócios do Réu.

17- Que a Recorrente receia pela destruição e devastação do seu património causado pela má administração do seu marido, Réu.

18- Que o Réu é analfabeto, tem pouca sagacidade e falta-lhe experiência nos negócios,

19- Aliás, os processos acima referidos são consequência da ignorância e incompetência do Réu.

20- Que a Recorrente é uma pessoa muito trabalhadora e mãe de três filhos, sendo que, dois deles são completamente dependentes por padecerem de doença grave e incapacitante,

21- Que a Recorrente trabalha arduamente para que nada falte a sua família e tudo o pouco que consegue amealhar é poupado a pensar no futuro,

22- Que a Recorrente sofre muito pois vive com medo e receio de perder os seus bens, para os quais tanto lutou e trabalhou, em função da má administração, ignorância e incompetência do seu marido.

23- Que assim, dúvidas não restam de que a Recorrente se encontra em perigo de perder o seu património em função da má administração do Réu.

24- Que a Recorrente não aceita que a sua meação seja objeto de penhora e venda pelo que pretende a separação judicial de bens.

25- Que há assim fundamentos para a separação judicial de bens.

26- A ora Recorrente AG, é casada sob o regime da comunhão geral com o Réu, que é alheia e sempre foi aos negócios do Réu, e que receia pela destruição e devastação do seu património causada pela má administração do seu marido, ora Réu, conforme alegou na petição inicial de fls. 1 a 8 verso dos autos.

27- Em suma, a Recorrente alegou que é casada sob o regime da comunhão geral de bens com o Réu, desde 5 de junho de 1985, que receia pela destruição e devastação do seu património causada pela má administração pelo seu marido, ora Réu, que há fundamentos para a separação judicial de bens e pediu para marcar a tentativa de conciliação prevista no artigo 931º do C.P.C., e caso aquela se fruste seja decretada a separação judicial de bens entre a Recorrente e o Réu.

28- A presente ação deu entrada na Instância Local Cível do Funchal, em 11 de agosto de 2020.

29- Foi proferida sentença que declarou ocorrerem exceção dilatória de incompetência absoluta, indeferindo liminarmente a petição, com fundamento nos artigos 64º, 65º, 66º, 96º, al. a), 97º, nº 22,99º, nº 1, 278º, nº 1, al. a) 576º, nº 1 e 2, 577º, al. a) e 590º, nº 1 do CPC.

30- Vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo 28733-15.0T8LSB.L1-2 de 13/07/2016, in www.dgsi.pt.

31- Nos termos do artigo 80º nº. 1 da Lei 62/2013 de 26 de agosto, compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos as causas não abrangidas pela competência de outros tribunais.

32- Nos termos do artigo 122º nº. 1 alínea c) da Lei 62/2013 de 26 de agosto, compete aos juízes de família e menores as ações de separação de bens, de pessoas e de divórcio.

33- Alínea c) do nº. 1 do artigo 122º da Lei 62/2013 de 26 de agosto, não contempla as ações simples de separação de bens por se cingir ao âmbito das relações patrimoniais do casamento, resultando claro que a competência para preparar e julgar tais ações é no presente caso, o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Local Cível do Funchal.

34- Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo nº. 4226/16.7T8 OER.L1-7 de 07/03/2017, in www.dgsi.pt.

35- Assim, a simples separação de bens ou simples separação judicial de bens, significa fundamentalmente uma separação restrita aos bens sem tocar nos efeitos pessoais do casamento, pois quanto às pessoas a relação matrimonial não se modifica, continuando os cônjuges a ter os direitos e a estar vinculados pelos deveres previstos no Código Civil.

36- A relação matrimonial só se altera ou modifica quanto aos bens, já que se procede a uma separação de bens, operando-se apenas uma modificação do regime de bens, ficando os cônjuges embora casados, mas no regime da separação de bens.

37- Na verdade a ação simples separação judicial de bens não se confunde, sendo diferente da ação separação de pessoas e bens, que são reguladas em capítulos distintos, Capítulo XI, e Secção II, relativo ao casamento, com diferenças marcantes a nível processual.

38- Na separação judicial de bens, a separação afeta simplesmente os bens, enquanto que na separação de pessoas e bens, a separação afeta as próprias pessoas dos cônjuges, sendo esta última muito mais extensa e profunda relativamente a simples separação judicial de bens.

39- Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo nº. 4226/16.7T8 OER.L1-7 de 07/03/2017, in www.dgsi.pt.

40- Assim, a competência para as ações de separação judicial de bens é o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Local Cível do Funchal.

41- Nos termos do artigo 1767º do Código Civil, qualquer dos cônjuges pode recorrer a simples separação judicial de bens, quando estiver em perigo de perder o que é seu pela má administração do outro cônjuge.

42- Nos termos do artigo 768º do Código Civil, a separação judicial de bens só pode ser decretada por um dos cônjuges contra o outro.

43- Ainda nos termos do artigo 1770º do Código Civil, após o trânsito em julgado da sentença que decretar a separação judicial de bens, o regime matrimonial, sem prejuízo do disposto em matéria do registo passa a ser o de separação, procedendo-se a partilha do património comum como se o casamento tivesse sido dissolvido.

44- Assim, no presente caso aplicam-se os artigos 64º, 65º do C.P.C, artigos 80º da Lei 62/2013 de 26 de agosto e a contrário 122º nº. 1 alínea c) da mesma Lei.

45- Nos termos do artigo 615º nº. 1 alínea c) do C.P.C., a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade, obscuridade que torne a decisão ininteligível.

46- Assim, na douta sentença recorrida os fundamentos estão em oposição com a decisão, pois por um lado o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” entende que a competência dos tribunais, á semelhança dos restantes pressupostos processuais afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo Autor, ou seja, nos exatos termos em que a ação foi proposta.

47-Entende também que nos termos do disposto no artº. 64 do C.P.C.: São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

48- Também entendeu que conforme dispõe o artº 122, nº 1, al. c) da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que compete aos juízos de família e menores preparar e julgar as ações de separação de pessoas e bens e de divórcio,

49- Também fundamentou que do alegado pela Requerente extrai-se que a tutela jurisdicional por ela pretendida está contemplada pelas normas legais supracitadas- artº. 1767º do Código Civil e artºs. 931º do Cód. Processo Civil,

50- Também fundamentou que a presente ação deu entrada em juízo em 11/8/2020, e que à data da propositura da ação encontra-se em vigor a Lei nº 62/2013, de 26 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei 40-A/2016, de 22/12, a qual entrou em vigor em 1/1/ 2017,

51- Também fundamentou que a competência para apresente ação não cabe nas competências deste tribunal- juízo local cível -, competindo aos Juízos de família e menores,

52- Decidindo que nestes termos, e sem necessidade de outras considerações, ao abrigo do disposto nos artºs. 64º, 65º, 66º, 96º, al. a), 97º, nº 2, 99º, nº 1, 278º, nº 1, al. a) 576º, nº 1 e 2, 577º, al. a) e 590º, nº 1 do CPC, por ocorrer exceção dilatória de incompetência absoluta, indefere-se liminarmente a petição.

53- Ora os fundamentos estão em oposição com a decisão, pois dos fundamentos resulta que nas ações de simples separação judicial de bens a competência para o seu processamento e julgamento é dos Tribunais Cíveis e não do Tribunal e Família e Menores,

54- A ação simples separação de bens, não está incluída no elenco do nº. 1 do artigo 122º da Lei 62/2013 de 26 de agosto, pois enquanto a separação de pessoas e bens tem um caracter pessoal, a simples separação de bens tem um caracter apenas patrimonial em nada alterando os direitos e deveres inerentes ao casamento,

55- Conforme o título do próprio artigo 122º da Lei 62/2013 de 26 de agosto: “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família”, a competência dos Juízos de Família e Menores é em relação ao estado civil das pessoas e família e não do património como é o presente caso,

56- Ainda conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo de 28733-15.0T8LSB.L1-2 de 13-07-2016, in www.dgsi.pt:

57- Assim, o nº. 2 do artigo 122º da Lei 62/2013 de 26 de agosto, que se refere a competência nos processos de inventário em consequência da separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como em casos especiais de separação de bens, o legislador não esqueceu a simples separação de bens,

58- Enquanto que no nº. 1 do artigo 122º da Lei 62/2013 de 26 de agosto, não foi elencada a simples separação de bens, concluindo-se que a simples separação de bens, por não estar incluída nas matérias da competência do Tribunal de Família e Menores no que diz respeito a cônjuges e a ex-cônjuges, a competência para processamento e julgamento da ação simples de separação judicial de bens é dos Tribunais Cíveis.

59- Ou seja, é competente o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Local Cível do Funchal, Juiz 3, com competência em razão da matéria para a presente ação de separação judicial de bens,

60- A douta sentença recorrida é nula, violando os artigos 64º, 65º do C.P.C, e a contrário, artigos 80º e 122º nº. 1 alínea c) da Lei 62/2013 de 26 de agosto, bem como o artigo 615º nº. 1 alíneas c), do C.P.C.

61- Conforme o artigo 615º nº. 1 alíneas c) do C.P.C., é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
       
O réu não contra-alegou.

Colhidos os vistos[4], cumpre decidir.

OBJETO DO RECURSO[5],[6]
 
Emerge das conclusões de recurso apresentadas por AG, ora apelante, que o seu objeto está circunscrito às seguintes questões:

1.)- Saber se o despacho de indeferimento liminar proferido pelo tribunal a quo é nulo por oposição entre os fundamentos e a decisão.

2.)-Saber qual o tribunal materialmente competente para conhecer das ações judiciais de separação de bens.
            
2.FUNDAMENTAÇÃO

2.1. FACTOS
              
1.)- AG, intentou ação de simples separação judicial de bens contra AS, pedindo que fosse decretada a separação judicial de bens.

2.)- Foi proferido despacho de indeferimento liminar onde o juízo local cível se declarou incompetente em razão da matéria para conhecer da ação separação judicial de bens, por ser da competência dos juízos de família e menores.
                   
2.2.O DIREITO
     
Delimitada a matéria de facto, que não vem impugnada[7], importa conhecer o objeto do recurso, circunscrito pelas respetivas conclusões, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e as que sejam de conhecimento oficioso[8].          

1.)- SABER SE O DESPACHO DE INDEFERIMENTO LIMINAI PROFERIDO PELO TRIBUNAL A QUO É NULO POR OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO.

A apelante alegou que a “na sentença recorrida os fundamentos estão em oposição com a decisão, pois por um lado o Tribunal “a quo” entende que a competência dos tribunais, á semelhança dos restantes pressupostos processuais afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo Autor, ou seja, nos
exatos termos em que a ação foi proposta”.

Assim, concluiu que “os fundamentos estão em oposição com a decisão, pois dos fundamentos resulta que nas ações de simples separação judicial de bens a competência para o seu processamento e julgamento é dos Tribunais Cíveis e não do Tribunal e Família e Menores”.

Vejamos a questão.
 
É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível art. 615º, nº 1, al. c), do CPCivil.

Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença[9].

Porém, esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já se o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se[10].

Apenas ocorre a nulidade da sentença prevista na alínea c), do nº 1, do art. 615º, do CPCivil, quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier expresso na sentença.

Por isso, a inexatidão dos fundamentos de uma decisão configura um erro de julgamento e não uma contradição entre os fundamentos e a decisão[11].

Se a decisão em referência está certa ou não, é questão de mérito, que não de nulidade da mesma[12].

O que se não confunde com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção da hipótese concreta na correspondente fattispecie ou previsão normativa abstrata, vício esse só sindicável em sede de recurso jurisdicional[13].

Ora, o tribunal a quo entendeu que “dispõe o artº 122, nº 1, al. c) da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que compete aos juízos de família e menores preparar e julgar as ações de separação de pessoas e bens e de divórcio. Do alegado pela Requerente extrai-se que a tutela jurisdicional por ela pretendida está contemplada pelas normas legais supracitadas - artº. 1767 do Código Civil e artºs. 931 do Cód. Processo Civil)”.

Perante tal fundamentação decidiu “que a competência para apresente ação não cabe nas competências deste tribunal - juízo local cível -, competindo aos Juízos de família e menores”.

A decisão do tribunal a quo (incompetência material do juízo local cível) constitui, portanto, o corolário lógico da fundamentação jurídica aduzida, isto é, que “compete aos juízos de família e menores preparar e julgar as ações de separação de pessoas e bens e de divórcio, nos termos do disposto no artº 122, nº 1, al. c) da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto”.

Como assim, o despacho de indeferimento liminar objeto do presente recurso de apelação não enferma, obviamente, da nulidade que a apelante, erroneamente, lhe imputa, isto é, os fundamentos estarem em oposição com a decisão (pode é haver um erro de julgamento com uma errada subsunção da hipótese na norma legal).

Destarte, é manifesto que a decisão proferida pelo tribunal a quo não padece da nulidade prevista na al. c), 1ª parte, do n.º 1, do art. 615°, do CPCivil (oposição entre os fundamentos e a decisão), improcedendo, consequentemente, nesta parte, as conclusões 45ª a 61ª da apelação.
  
2.)-SABER QUAL O TRIBUNAL MATERIALMENTE COMPETENTE PARA CONHECER DAS AÇÕES JUDICIAIS DE SEPARAÇÃO DE BENS.

A apelante entende que “Na separação judicial de bens, a separação afeta simplesmente os bens, enquanto que na separação de pessoas e bens, a separação afeta as próprias pessoas dos cônjuges, sendo esta última muito mais extensa e profunda relativamente a simples separação judicial de bens”.

Assim, conclui que “a competência para as ações de separação judicial de bens é o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Local Cível do Funchal”.

O tribunal a quo decidiu que “compete aos juízos de família e menores preparar e julgar as ações de separação de pessoas e bens e de divórcio”.            
           
Vejamos a questão.

Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território – art. 37º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto, que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).

Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar ações de separação de pessoas e bens e de divórcio – art. 122º, nº 1, al. c), da LOSJ.

Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada – art. 130º, nº 1, da LOSJ.

Qualquer dos cônjuges pode requerer a simples separação judicial de bens quando estiver em perigo de perder o que é seu pela má administração do outro cônjuge – art. 1767º, do Código Civil.
     
Competência material

A competência do tribunal afere-se dos termos em que a ação é proposta, determinando-se, pois, pelo pedido do autor[14].

Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que o integram[15].

Na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objeto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada[16].

Separação judicial de bens

As crises a que a relação matrimonial está sujeita, podem conduzir à separação de bens, à separação de pessoas e bens e até culminar em divórcio[17].
      
Nos termos do artigo 1767º, qualquer dos cônjuges pode requerer a simples separação de bens quando estiver em perigo de perder o que é seu pela má administração do outro cônjuge[18].

A ação de simples separação judicial de bens cobre a situação institucionalizada de crise menos grave da sociedade conjugal, uma crise «epidérmica ou superficial que, ficando pela crosta patrimonial do casamento, não atinge declaradamente a profundidade das relações pessoais entre os cônjuges. Por se cingir apenas às relações patrimoniais, a simples separação judicial de bens se distingue da separação judicial de pessoas e bens, que, além das relações patrimoniais, atinge, ainda, os direitos e deveres pessoais dos cônjuges»[19].

A simples separação de bens, ou simples separação judicial de bens, caracteriza-se, como as palavras estão a dizer, por ser uma separação restrita aos bens, que deixa imperturbados os efeitos pessoais do casamento. Quanto às pessoas a relação matrimonial não se modifica, continuando os cônjuges a ter os direitos e a estar vinculados pelos deveres previstos no Código Civil. A relação matrimonial só se modifica quanto aos bens, na medida em que se procede a uma separação de bens, …, e no que aos respetivos efeitos respeita, em termos gerais, pode dizer-se que a simples separação de bens opera uma modificação do regime de bens e, portanto, uma modificação, no plano dos bens, do estado de casado, ficando os cônjuges, embora casados, no estado de separados de bens[20].
     
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Na presente ação, a apelante formulou “pedido de separação judicial de bens”, porquanto “se encontra em perigo de perder o seu património em função da má administração do réu”.

Encontramo-nos, assim, perante uma ação judicial de separação judicial de bens, e não perante uma ação judicial de separação judicial de pessoas e bens.

Assim sendo, a mesma não se enquadra na alínea c), do nº 1, do art. 122º, da LOSJ, por não respeitar a separação judicial de pessoas e bens, mas a uma ação judicial de separação judicial de bens.

Talvez pelas suas diferenças estruturais a ação de simples separação de bens não está incluída no elenco constante do nº 1 do art. 122 da LOSJ; enquanto a separação de pessoas e bens tem um carácter sobremaneira pessoal a simples separação de bens tem um carácter apenas patrimonial, em nada alterando os direitos e deveres inerentes ao casamento[21].

Dada a sua não inclusão entre as matérias da competência do tribunal de família no que concerne a cônjuges e ex-cônjuges, a competência para o processamento e julgamento da presente ação é do juízo local cível[22].

A ação de simples separação judicial de bens não se confunde com a ação de separação de pessoas e bens, reguladas, aliás, em capítulos distintos do Título II, relativo ao casamento, com diferenças marcantes a nível processual[23].

Não se insere, pois, na referida al. a) do nº 1 do art. 122º da LOSJ, nem, diga-se, em qualquer das outras alíneas do mesmo número[24].

Na separação de pessoas e bens, a separação não afeta simplesmente os bens, como na separação judicial de bens, mas as próprias pessoas dos cônjuges, sendo, pois, muito mais extensa e profunda, em relação à que se opera na simples separação judicial de bens, a modificação que se verifica na relação matrimonial[25].

E o legislador, ciente de tal diferença, não inseriu a ação de separação judicial de bens no nº 1 do art. 122º da LOSJ, não obstante lhe tenha feito referência no seu nº 2[26].

O processo que seguem as ações de simples separação judicial de bens é o comum, pois não está previsto qualquer processo especial para elas[27].

A competência (segundo o critério material) para a apreciação do pedido de simples separação judicial de bens pertence aos juízos cíveis. Esta solução, consagrada na jurisprudência, decorre do princípio da especialidade que parametriza a organização judiciária (em especial, quanto à distribuição do poder jurisdicional em razão da matéria), confirmada pela interpretação a contrario sensu do art. 122º LOSJ, conjugada com os arts. 117º e 130º do mesmo diploma – se a competência decisória nesta matéria se não encontra (especialmente) atribuída aos juízos especializados de família e menores, logo será, supletivamente, adjudicada aos juízos de competência genérica em matéria civil[28].

Concluindo, nos termos do nº 1 do art. 122º da LOSJ, os juízos cíveis serão os competentes (segundo o critério material) para preparar e julgar as ações de simples separação de bens, e não os juízos de família e menores, como entendeu o tribunal a quo.

Será, pois, o juízo local cível onde foi intentada esta ação de simples separação de bens, o competente, em razão da matéria, para a preparar e julgar.

Destarte, procedendo o recurso de apelação, há que revogar o despacho de indeferimento liminar que entendeu ser “da competência dos juízos de família e menores preparar e julgar as ações de separação de pessoas e bens e de divórcio”.

3.DISPOSITIVO
          
3.1.DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível (2ª) do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se o despacho de indeferimento liminar, declarando competente, em razão da matéria, para a preparar e julgar, o juízo local cível onde foi intentada esta ação de simples separação de bens.

3.2.REGIME DE CUSTAS
               
Custas pelo apelado (na vertente de custas de parte, por outras não haver[29]), porquanto a elas deu causa por ter ficado vencido (no recurso de apelação, tenha ou não acompanhado o recurso, é o recorrido vencido responsável pelo pagamento das custas)[30],[31].
                    
       

Lisboa, 2021-05-13[32],[33]


(Nelson Borges Carneiro) Relator
(Pedro Martins) 1º adjunto
(Inês Moura) – 2º adjunto


[1]Para além do dever de apresentar a sua alegação, impende sobre o recorrente o ónus de nela concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – ónus de formular conclusões (art. 639º, nº 1) – FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, p. 503.
[2]As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do art. 639º, nº 3. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que o recorrente pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo – ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 795.
[3]O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar, as normas jurídicas violadas; o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, e invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada – art. 639º, nºs 1 e 2, do CPCivil.
[4]Na sessão anterior ao julgamento do recurso, o processo, acompanhado com o projeto de acórdão, vai com vista simultânea, por meios eletrónicos, aos dois juízes-adjuntos, pelo prazo de cinco dias, ou, quando tal não for tecnicamente possível, o relator ordena a extração de cópias do projeto de acórdão e das peças processuais relevantes para a apreciação do objeto da apelação – art. 657º, n.º 2, do CPCivil.
[5]Todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas, não podendo de elas conhecer o tribunal de recurso.
[6]Vem sendo entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.
[7]Quando não tenha sido impugnada, nem haja lugar a qualquer alteração da matéria de facto, o acórdão limita-se a remeter para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria – art. 663º, nº 6, do CPCivil.
[8]Relativamente a questões de conhecimento oficioso e que, por isso mesmo, não foram suscitadas anteriormente, a Relação deve assegurar o contraditório, nos termos gerais do art. 3º, nº 3. A Relação não pode surpreender as partes com uma decisão que venha contra a corrente do processo, impondo-se que as ouça previamente – ABRANTES GERALDES – PAULO PIMENTA – PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 2ª ed., p. 829.
[9]LEBRE DE FREITAS, A Ação declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4ª ed., p. 381.
[10]LEBRE DE FREITAS, A Ação declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4ª ed., pp. 381/2.
[11]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/1/1978, BMJ 281/241.
[12]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/5/1987, BMJ 387/456.
[13]FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, p. 436.
[14]MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, p. 91.
[15]ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, p. 197.
[16]MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, pp. 94/5.
[17]PAIS DE AMARAL, Direito da Família e das Sucessões, 6ª edição, p. 173.
[18]PAIS DE AMARAL, Direito da Família e das Sucessões, 6ª edição, p. 174.
[19]ANTUNES VARELA, Direito da Família, pp. 435/36.
[20]PEREIRA COELHO – GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução, Direito Matrimonial, volume I, 4ª edição, pp. 554/57.
[21]Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2016-07-13, Relator: MARIA JOSÉ MOURO, http://www.dgsi.pt/jtrl.
[22]Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2016-07-13, Relator: MARIA JOSÉ MOURO, http://www.dgsi.pt/jtrl.
[23]Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2017-03-07, Relator: CRISTINA COELHO, http://www.dgsi.pt/jtrl.
[24]Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2017-03-07, Relator: CRISTINA COELHO, http://www.dgsi.pt/jtrl.
[25]PEREIRA COELHO – GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução, Direito Matrimonial, volume I, 4ª edição, pp. 557/58.
[26]Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2017-03-07, Relator: CRISTINA COELHO, http://www.dgsi.pt/jtrl.
[27]PEREIRA COELHO – GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Introdução, Direito Matrimonial, volume I, 4ª edição, pp. 556.
[28]INÊS SÍTIMA CRAVEIRO, Código Civil Anotado, Livro IV, Direito da Família, Clara Sottomayor (Coord.), p. 512.
[29]Como o conceito de custas stricto sensu é polissémico, porque é suscetível de envolver, nos termos do nº 1 do artigo 529º, além da taxa de justiça, que, em regra, não é objeto de condenação – os encargos e as custas de parte, importa que o juiz, ou o coletivo de juízes, nos segmentos condenatórios das partes no pagamento de custas, expressem as vertentes a que a condenação se reporta – SALVADOR DA COSTA, As Custas Processuais, Análise e Comentário, 7ª ed., p. 8.
[30]O princípio da causalidade também funciona em sede de recurso, devendo a parte vencida nele ser condenada no pagamento das custas, ainda que não tenha contra-alegado – SALVADOR DA COSTA, As Custas Processuais, Análise e Comentário, 7ª ed., p. 8.
[31]A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito – art. 527º, nº 1, do CPCivil.
[32]A assinatura eletrónica substitui e dispensa para todos os efeitos a assinatura autógrafa em suporte de papel dos atos processuais – art. 19º, nº 2, da Portaria n.º 280/2013, de 26/08, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09.
[33]Acórdão assinado digitalmente.