PENHORA
DIREITO DE USO E HABITAÇÃO
EMBARGOS DE TERCEIRO
PRESSUPOSTOS
INDEFERIMENTO LIMINAR
Sumário

1. A oposição por embargos de terceiro, nos termos do Art. 342.º n.º 1 do C.P.C., pressupõe que os embargantes invoquem a posse ou a titularidade de direito incompatível com o âmbito da realização da diligência judicialmente ordenada de apreensão ou entrega de bem, na medida em que esse direito sobre o bem seja oponível ao exequente, tendo em atenção o disposto nos Art.s 819.º e 824.º n.º 2 do C.C..
2. Não basta morar na casa objeto de penhora e fazer dela sua habitação, para se concluir, sem mais, que se constituiu um “direito de uso e habitação” no sentido da existência de um direito real de gozo oponível “erga omnes”, tal como é previsto nos Art.s 1484.º e ss. do C.C..
3. Nos termos do Art. 1306.º n.º 1 do C.C., não é permita a constituição, com caráter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei, pois toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional e, consequentemente, não é oponível ao exequente em ação executiva.
4. O direito real de uso e habitação sobre imóvel deve constituir-se por uma das formas previstas na lei, tal como estabelece o Art. 1485.º do C.C.. Ou seja, deve constituir-se por contrato ou testamento (v.g. Art. 1440.º do C.C.), dado não ser possível a sua aquisição por via de usucapião, atento à restrição prevista no Art. 1293.º al. b) do C.C..
5. No caso de testamento, o mesmo dever ser celebrado por escritura pública ou cumprir as regras de forma do testamento cerrado, ressalvadas as situações especiais previstas nos Art.s 2210.º e ss. do C.C. (cfr. Art. 2204.º do C.C.).
6. No caso de contrato, por regra, a constituição desse direito real de gozo deve observar a forma de escritura pública ou documento particular autenticado (cfr. Art. 875.º “ex vi” Art. 939.º do C.C., se o negócio jurídico constitutivo desse direito for oneroso, ou Art. 947.º n.º 1 do C.C., se o negócio jurídico constitutivo do direito for gratuito).
7. Não tendo os embargantes alegado o modo de aquisição do direito real de gozo de uso e habitação sobre imóvel, mas uma mera situação de facto de residência no imóvel durante um determinado período de tempo, que implicitamente remete para a “posse” como forma de aquisição do direito por usucapião, a qual está vedada por lei (cfr. Art. 1293.º al. b) do C.C.), inevitável seria a conclusão de que os embargos de terceiro improcederiam.
8. Inevitavelmente improcederiam os embargos de terceiro por não ter sido alegada a constituição de direito incompatível com a penhora e ordem de venda do imóvel, nem ser possível provar da sua existência com mero recurso a prova testemunhal, que esbarraria na proibição estabelecida no Art. 393.º n.º 1 do C.C., quanto à prova de um dos modos legítimos de constituição desse direito (Art. 1440.º “ex vi” Art. 1485.º do C.C.), sendo que a prova testemunhal, no caso, também só teria por objeto os factos alegados relativos à situação factual de “posse” que era insuscetível de permitir a aquisição do direito, atento à proibição estabelecida no Art. 1293.º al. b) do C.C..

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
A [ Alberto .... ] e sua esposa, B [ Maria .......] , tendo requerido a concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa total de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que o Banco Comercial Português, S.A. movia contra C [ Renata .......] , filha dos embargantes, vieram deduzir os presentes embargos de terceiro, pedindo que os embargos fossem recebidos, com efeito suspensivo e com dispensa de prestação de caução, e, a final, julgados procedentes e provados, mantendo e, se for esse o caso, restituindo aos embargantes, a posse dos prédios em causa nos autos, em especial o identificado no n.º 3, decisão, alínea b), do requerimento executivo, sito na Rua ..., nº .. Arcena, Alverca do Ribatejo, já penhorados e com decisão de venda, ordenando-se em consequência o levantamento da penhora e que seja dada sem efeito a venda já ordenada e as demais diligências de execução.
Para tanto, consta da petição inicial de embargos que os mesmos articularam o seguinte, na parte que concretamente releva para o caso:
«1. Foi a presente execução movida pelo BCP contra a executada, C, aliás, filha dos agora embargantes.
«2. Na qual os embargantes, sendo terceiros, não são parte nesta causa.
«3. Os embargantes e seu agregado familiar, constituído por ambos, A e B, e, ainda, o seu filho, Carlos ....e a esposa deste, Cristina ...., e, também, os três filhos destes últimos, netos dos embargantes, Lucas ....(17 anos), Laura ..... (12 anos) e Dinis ..... (10 anos), os quais vivem todos na mesma casa, e sob o mesmo teto, há muitos anos, na Rua ..., nº ......, correspondente à anterior Travessa ..., Lote ......., Arcena, Alverca do Ribatejo. (Docs. 1 e 2).
«4. Esta casa corresponde ao prédio identificado no nº 3, Decisão, alínea b), do requerimento executivo, concretamente: “prédio urbano, situado na Travessa ..., Lugar de Arcena, Lote .... (agora Rua ..., nº .....), composto de uma casa de habitação de cave, rés do chão e primeiro andar e sótão e um anexo para garagem e arrecadação, inscrito na matriz sob o artigo 1964 da união das freguesias de Alverca do Ribatejo e Sobralinho e descrito na 2ª Conservatória de Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o nº .../ Alverca do Ribatejo”.
«5. Na doação desta casa, em tempos efetuada à sua filha C, ora executada, tinha ficado acordado entre todos, embargantes e executada, de a casa se manter na posse dos embargantes, podendo estes nela permanecer e habitar, sós ou com outros familiares, designadamente o filho Carlos, mulher e filhos, enquanto aqueles vivos fossem…
«6. Pois, na altura, o outro seu filho, Carlos e a nora Cristina, já se encontravam insolventes, conforme sentença proferida no Proc. nº 4175/1.5T2SNT, Juízo do Comércio da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, Sintra, razão pela qual não puderam beneficiar formalmente dessa doação… (Doc. nº 3).
«7. Tomaram os embargantes conhecimento, em 31 de outubro de 2019, através de consulta e acesso ao processo por parte de um dos seus mandatários, após junção de procuração que lhe foi passada pela executada, em 30/09/2019, e junta aos presentes autos naquela data, e constante de fls…, para a qual se remete.
«8. Constataram, então, os embargantes que, a casa onde, desde o início da construção – portanto, há mais de 30 anos – vivem ininterruptamente e até à data, e durante muitos anos, com os filhos, João ......(falecido em 2010), C , a ora executada, e, atualmente, pelo menos desde 2009/2010, com o referido filho, Carlos ...., a mulher deste, Cristina ..... e os 3 filhos menores destes, netos dos embargantes – todos acima identificados - foi penhorada em 30/4/2019, sendo nomeada a executada sua fiel depositária, e, cuja venda, por leilão eletrónico, e já objeto de decisão do sr. Agente de Execução, de 25/10/2019 e com publicação eletrónica no DR, nº 219/2015, Série, II, de 9/11/2019. (Docs. 4 a 8).
«9. Nessa sequência, estão atualmente a ser feitas diligências de vistoria, através de deslocações ao local pelo sr. AE, para saber do estado de conservação do imóvel penhorado, com vista à sua venda, tendo sido feitas ameaças de arrombamento, para o efeito, caso a fiel depositária não faculte a entrada (sic) (Doc. nos 4 a 8).
«10. Além disso, foi dada publicidade ao ato, tendo sido afixados editais nas portas do imóvel penhorado em questão, residência dos embargantes e restante agregado familiar, identificando ali o imóvel, o exequente e executada, o valor da penhora, dívida exequenda e despesas prováveis (Docs. 4 a 8).
«11. Estas diligências de penhora, venda, publicitações da venda, deslocações ao local e ameaças de arrombamento, e outras, ofendem e violam os legítimos direitos de uso e habitação, sossego, descanso, intimidade familiar e outros, dos embargantes e restante agregado familiar, acima identificado, e as respetivas normas, legal e constitucionalmente consagrados. (CRP, art. 65º).
«12. Sem que qualquer deles, embargantes e os restantes membros do agregado familiar, tivessem tomado conhecimento prévio desses factos, desde o início da execução até à data supramencionada: 31 de outubro de 2019.
«13. Na casa em questão, onde vivem, comem, dormem e recebem amigos e familiares, os embargantes e restante agregado familiar mantêm ainda todos os seus haveres e bens pessoais, incluindo através de contratos de comodato e depósito celebrados com os seus referidos, filho Carlos e nora Cristina. (Doc. 9 e 10).
«14. Não tendo eles qualquer outra casa onde possam viver nem meios económicos que lhes permitam arrendar ou comprar qualquer outra, conforme resulta do respetivo processo de insolvência singular supra mencionado.
«15. Além disso, os embargantes (A e B) e aquele seu filho e nora (Carlos e Cristina) encontram-se atualmente insolventes, conforme Docs. nºs 11 e 12.
«16. Os embargantes continuam a suportar todas as despesas do agregado familiar, nomeadamente, água, eletricidade, gás, IMI, reparações e todas as demais que dizem diretamente respeito ao imóvel. (Docs. 13 e 14).
«17. Pelo que, verificam-se, in casu, os requisitos para, desde já, serem admitidos liminarmente os presentes embargos. (art. 342º do C.Proc. Civil).
«Além disso,
«18. Além disso, ocorrem in casu, outras irregularidades, identificadas como verdadeiras nulidades.
«19. Como consta do nº 1 do requerimento executivo, a presente execução tem como título executivo, a sentença, já transitada, que sob o nº 3705/16.0T8LRS, Juízo Central de Loures, Juiz 3, que foi proferida no processo de impugnação pauliana, tendo sido ali declarada a ineficácia das doações dos imóveis entre o embargante e esposa e a executada, sua filha - entre os quais se inclui a casa em questão, que constitui a casa de morada de família do embargante supra identificada. (nº 1 dos Factos).
«20. E, tendo em atenção a restante factualidade do requerimento executivo (emissão e entrega de Livranças), diz-se ainda no nº 17 que “o Banco Autor, (ora exequente), promoveu em 8/3/2016, a ação executiva contra os 1º e 2º Réus (ora embargante e sua esposa) dando à execução as 8 (oito) livranças referenciadas nestes autos, a qual corre termos nesta comarca no Juiz Central de Execução sob o nº 3286/16.5T8LRS.”
«21. Ora, entende o embargante que é naquela execução (3286/16.5T(LRS) que deviam ter prosseguido as diligências de execução até à venda, se fosse o caso, e não através da instauração de um nova execução, como novas penhoras e venda – aquela que está a ser levada a cabo nos presentes autos, de que estes embargos são apenso.
«22. É que, a sentença proferida nos referidos autos de impugnação pauliana não constituem título executivo de dívida para se poder penhorar e vendar os imóveis em causa.
«23. Tal sentença, como se viu, e como bem resulta do requerimento executivo (especialmente nºs 1, 2 e 3) somente decretou ineficazes, em relação ao exequente, as doações dos imóveis … apesar de reconhecer ao então A. (agora exequente) o direito de executar os identificados bens imóveis no património da 3ª R.
«24. Mas não pode a exequente, agora embargada, por força daquela sentença proferida no processo de impugnação pauliana, instaurar nova execução, (para além da anterior contra os agora embargantes), contra a filha C, agora identificada como executada.
«25. Na verdade, só as sentenças condenatórias podem servir de base à execução – e não outras – sendo que a sentença proferida aos autos de impugnação pauliana não condenou a então R., agora executada, C, ao pagamento de qualquer quantia ao BCP, ora exequente. (art. 703º, nº 1, al. a), do CPC).
«26. Mas somente reconhecendo o direito a serem executados os bens imóveis, cujas doações foram ali declaradas ineficazes…
«27. A agora executada também não pode ser tida, nestes autos, como verdadeira executada, pois não é devedora de qualquer quantia para com o BCP, agora exequente.
«28. Como reza o art. 53º, nº1, do CPC, a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor – o que não é manifestamente o caso da executada, C – ocorrendo daí verdadeira ilegitimidade processual passiva – do conhecimento oficioso deste tribunal. (art. 577º, al. e) e 578º do CPC).
«29. Sendo que ocorre, in casu, manifesta falta de título executivo que deveria ter dado lugar a despacho liminar de indeferimento do requerimento executivo e servia de fundamento à oposição à execução (arts. 726º, nº 2, a. a) e 729º, al. a), do CPC).
«30. Assim, era na anterior execução instaurada pelo exequente contra o embargante e esposa (Proc. nº 3286/165T8LRS) - acima referida – que o mesmo poderia eventualmente levar a cabo as diligências de execução sobre os bens em causa – e não instaurando agora uma nova execução, como ocorreu com estes autos.
«31. Tais atos – instauração de uma nova execução estando uma outra anterior ainda pendente com o mesmo fim e considerar agora como executada e devedora quem o não é - constituem verdadeiras nulidades processuais, as quais influem, em qualquer circunstância, no exame e decisão da causa, e são do conhecimento oficioso. (art. 195º, nº1 e 196º do CPC).
«32. Estas nulidades, como quaisquer outras, podem ser arguidas por qualquer pessoa, como os embargantes que, por isso, detêm a necessária legitimidade.
«33. Esta nulidade abrange, assim, todos os prédios identificados no nº 3 do requerimento executivo, alíneas a) a g), para os quais se remete».
Após veio a ser proferido o despacho de indeferimento liminar, datado de 12 de maio de 2020, com o seguinte teor, na parte que releva para o caso:
«Como explica Rui Pinto, os embargos de terceiro são o «incidente pelo qual quem não é parte no processo pede a extinção de penhora, apreensão ou entrega judiciais ofensivas de posse ou direito seus.» (A Ação Executiva, AAFDL Editora, 2018, p. 700).
«Os embargos de terceiro podem assentar, assim, em dois fundamentos: ofensa do exercício da posse e/ou ofensa da titularidade de um direito incompatível com a diligência executiva.
«Os embargantes não são parte no processo executivo, designadamente, não são executados, pelo que, possuem legitimidade para embargar de terceiro.
«Os embargantes alegam que na doação que efetuaram à sua filha, ora executada, do imóvel descrito na 2ª Conservatória de Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o nº ..., da freguesia de Alverca do Ribatejo, tinha ficado acordado entre todos, embargantes e executada, que o imóvel se manteria na posse dos embargantes, podendo os embargantes nela permanecer e habitar, sós ou com outros familiares, enquanto fossem vivos. Conforme se constata dos documentos juntos ao requerimento executivo, no processo que correu termos sob o n.º 3705/16.0T8LRS, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures – Juiz 3, a doação a que os embargantes se referem foi declarada ineficaz quanto ao exequente, tendo sido reconhecido ao exequente o direito de executar este imóvel, entre outros, no património da executada, bem como a praticar sobre o mesmo todos os atos de conservação da garantia patrimonial do seu crédito.
«Os embargantes alegam que vivem no referido imóvel, há mais de 30 anos, ininterruptamente, desde a sua construção e até à data.
«Invocam que as diligências executivas violam o seu direito de uso e habitação sobre o imóvel.
«Preceitua o artigo 1484º do Código Civil que:
«1. O direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respetivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família.
«2. Quando este direito se refere a casas de morada, chama-se direito de habitação.».
«O direito de uso e habitação constitui um direito real de gozo.
«Conforme resulta dos termos conjugados dos artigos 1485º, 1440º e 1293º, alínea b), todos do Código Civil, o direito de uso e habitação pode adquirir-se por contrato, testamento ou disposição legal, mas não por usucapião.
«A documentação junta pelos embargantes não permite concluir por uma probabilidade séria da existência do direito de uso e habitação dos embargantes sobre o imóvel descrito na 2ª Conservatória de Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o nº ..., da freguesia de Alverca do Ribatejo, isto é, que os embargantes tenham adquirido o direito de uso e habitação sobre o referido imóvel por contrato, testamento ou disposição legal. E, como já se referiu, o direito de uso e habitação não pode constituir-se por usucapião.
«Alegam os embargantes, ainda, que as diligências executivas ofendem os seus direitos ao sossego, descanso e intimidade familiar.
«Salvo o devido respeito por melhor opinião, os embargos de terceiro não servem à defesa dos direitos de personalidade, como os que são referidos pelos embargantes. Os embargos de terceiro visam a defesa da posse ou de um direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência executiva.
«Conforme consta do artigo 1251º do Código Civil, a posse é o «poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real».
«Os embargos de terceiro são, assim, um meio possessório.
«O direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência terá de ser aferido, no caso, em função dos efeitos da penhora (indisponibilidade material ou jurídica do bem) e do propósito de viabilização da venda executiva e dos efeitos desta.
«O direito do terceiro será incompatível com a penhora se puder constituir impedimento à realização da venda executiva ou se não caducar por efeito da venda executiva (cfr. artigo 824º, n.º 2 do Código Civil). Nada disto se verifica quanto aos direitos de personalidade. Não é possível, assim, formular um juízo, ainda que indiciário, de que a penhora realizada nestes autos cause ofensa a um direito dos embargantes incompatível com a sua realização.
«No que concerne à invocada nulidade do processo executivo:
«Por um lado, os embargantes não possuem legitimidade para apresentar defesa por exceção (nem por impugnação) e/ou arguir nulidades de atos em processo do qual não são partes – cfr. artigo 30º e artigo 53º, ambos do Código de Processo Civil.  Por outro lado, conforme resulta do já supra exposto, a defesa por exceção e/ou a arguição de nulidades não constituem fundamento de dedução de embargos de terceiro – cfr. artigo 342º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
«Em suma: não resta outra alternativa, no caso, que não seja a do indeferimento liminar dos embargos de terceiro deduzidos.
«Por todo o exposto, indeferem-se liminarmente os embargos de terceiro deduzidos».
É desse despacho de indeferimento liminar que os embargantes vêm interpor agora recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
A. Os apelantes deduziram embargos de terceiro, com pedido de efeito suspensivo, invocando essencialmente a factualidade constante dos artigos 1 a 34 da sua p.i. para a qual se remete.
B. O douto Despacho recorrido indeferiu liminarmente os referidos embargos, invocando, designadamente, que a documentação junta pelos embargantes não permite concluir por uma probabilidade séria da existência do direito de uso e habitação… (Despacho, fls. 4, linhas 4/5); que os embargos de terceiro não servem à defesa dos direitos de personalidade (Despacho, fls.4, linhas 13/14); e que, quanto à invocada nulidade do processo, os embargantes não possuem legitimidade para apresentar defesa por exceção (nem por impugnação) e/ou arguir nulidades de atos em processo do qual não são partes…) (Despacho, fls. 4, última linha e fls. 5, linhas 1 / 6).
C. Ora, o douto Despacho recorrido padece de flagrante ilegalidade, e, além do mais, encontra-se ferido de nulidade por ter conhecido de questões de que, nesta fase processual, não poderia nem deveria tomar conhecimento (Art. 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do CPC).
D. São dois os requisitos para a dedução de embargos de terceiro: Não ser o embargante parte no processo (1) e ocorrer ato judicial ordenando a apreensão ou entrega de bens com ofensa da posse ou outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência (2) – o que se verifica neste caso.
E. Como bem se reconhece no Despacho recorrido, “os embargantes não são parte neste processo executivo, designadamente, não são executados, pelo que possuem legitimidade para embargar de terceiro”. (Despacho, fls. 3, linhas 7/8).
F. Tal como os embargantes, agora recorrentes, alegaram e comprovaram documentalmente, a casa onde vivem ininterruptamente há mais de 30 anos, e também com os filhos e netos, identificados nos autos, foi penhorada em 30/4/2019, sendo nomeada a executada, sua fiel depositária.
G. E cuja venda, por leilão eletrónico, foi objeto de decisão do sr. AE, de 25/10/2019 e com publicação eletrónica no DR, nº 219/2015, Série II, de 9/11/2019, … com diligências de vistoria e de venda através de deslocações ao local pelo AE … e feitas ameaças de arrombamento… com afixação de editais nas portas do imóvel em questão…, conforme arts. 8 a 10 da PI.
H. Conforme arts. 11 e seguintes da PI, foi também invocado que as referidas diligências de penhora, de venda, publicitações da venda, deslocações ao local e ameaças de arrombamento e outras, ofendem e violam os legítimos direitos de uso e habitação, sossego, descanso, intimidade familiar e outros, dos embargantes e restante agregado familiar, acima identificado e as respetivas normas, legal e constitucionalmente consagrados. (art. 65º da CRP).
I. E, como invocado no art. 13 da PI, na casa em questão, onde vivem, comem, dormem e recebem amigos e familiares, os embargantes e restantes elementos do agregado familiar, mantêm ainda todos os seus haveres e bens pessoais, incluindo através de contratos de comodato e depósito celebrados com o filho Carlos e nora Cristina.
J. Para além da qualidade de terceiros, os embargantes, recorrentes, alegaram e provaram, juntando ainda outros meios de prova, serem os legítimos e atuais titulares do direito de uso e habitação da casa em questão, sita na Rua ..., nº 6, correspondente à anterior Trav. ..., Lote ..., Arcena, Alverca do Ribatejo, onde vivem com o restante agregado familiar, ali também identificado.
K. Ora, o tribunal a quo, indeferiu liminarmente o pedido formulado, conhecendo logo do mérito de causa – afastando liminarmente os direitos de uso e habitação dos embargantes - sem se pronunciar concretamente sobre o conteúdo e alcance das provas produzidas documentalmente e sem ter dado aos embargantes, recorrentes, a oportunidade de produção da prova testemunhal apresentada no seu articulado, tendo aquela decisão efeito surpresa.
L. Ao contrário do afirmado no douto Despacho recorrido (Folha 4, Linhas 4/6) não só a documentação junta com a PI (mas também a prova testemunhal requerida e outra a ser produzida em audiência de julgamento) permitiriam (e permitirão) demonstrar, no tempo e lugar próprios, o seu legítimo direito de uso e habitação da casa em questão, quer por disposição legal quer por contrato celebrado.
M. No douto Despacho de indeferimento liminar o tribunal a quo pronunciou-se, decidindo desfavoravelmente, sobre o conteúdo / mérito da causa, sem o poder fazer nesta fase preliminar, e sem julgamento prévio.
N. Violando, dessa forma, além do mais, os direitos de garantia de acesso aos tribunais e da necessidade do pedido e da contradição, previstos designadamente, nos arts. 2º e 3º do CPC.
O. Tendo sido alegados e demonstrados na PI e a comprovar melhor em sede de audiência de julgamento, os requisitos essenciais dos embargos de terceiro, ao indeferir liminarmente o pedido, o douto Despacho recorrido violou frontalmente o disposto nos arts. 342º e 345º do CPC.
P. O douto Despacho recorrido, tomou indevida e intempestivamente conhecimento sobre o mérito da causa – de que não podia tomar - afirmando designadamente os embargantes, terceiros na execução, não poderem invocar nulidades ou outras exceções, e não terem direito ao uso e habitação com o restante agregado familiar na casa em questão… – padece, assim, de verdadeira nulidade, nos termos do art. 615º, nº1, al. d) do CPC).
Q. Sempre se dirá, desde já, que não ocorre impedimento legal algum que os embargantes, agora apelantes, possam também invocar no seu petitório, ainda outros direitos de natureza pessoal e familiar, para melhor reforçarem e alicerçarem o seu pedido principal, concretamente, o levantamento da penhora e a ineficácia da já decidida venda.
R. Também não assiste razão ao tribunal a quo ao afirmar no Despacho recorrido que os embargantes, recorrentes, não possuem legitimidade para invocar exceções ou arguir nulidades em atos de processo do qual não são partes.
S. Pois, no seu entender, por disporem da qualidade de terceiros e disporem de verdadeira legitimidade processual, como embargantes, não estão legalmente impedidos de invocar tais questões.
Pedem assim que seja dado provimento ao recurso e revogado, declarado nulo ou anulado, o despacho recorrido, e, em consequência, que sejam admitidos os embargos de executado, com efeito suspensivo, seguindo-se os demais trâmites legais até final.
O banco embargado foi citado para os termos dos embargos e para responder ao recurso de apelação, tendo apresentado contra-alegações das quais sobrelevam as seguintes conclusões:
1. Esteve bem a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo em considerar na douta sentença proferida a inexistência de indícios de que a penhora realizada nos autos de execução cause ofensa a um direito dos embargantes incompatível com a sua realização e, consequentemente em indeferir liminarmente os embargos de terceiro deduzidos pelos recorrentes.
2. O direito de uso e habitação constitui um direito real de gozo e pode adquirir-se por contrato, testamento ou disposição, mas não por usucapião, conforme aliás expressamente dispõe o Art.º 1293º, alínea b) do C. Civil.
3. Os recorrentes não juntam qualquer contrato ou testamento, limitando-se a invocar a usucapião de tal direito.
4. A documentação junta pelos recorrentes não permite concluir por uma probabilidade séria da existência do direito dos embargantes/recorrentes sobre o imóvel descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o n.º ..., da freguesia de Alverca do Ribatejo.
5. O direito do terceiro será incompatível com a penhora se puder constituir impedimento à realização da venda executiva ou se não caducar por efeito da venda executiva. (Art.º 824, n.º 2 do Código Civil).
6. A posse formal (que parece ser o caso dos recorrentes) – isto é, a posse desligada de qualquer direito real – não se mantém após a venda executiva, razão pela qual não é, por isso, suscetível de fundamentar os embargos de terceiro.
7. Os embargos de terceiro não servem à defesa dos direitos de personalidade, como os que são referidos pelos embargantes/recorrentes.
8. No que respeita ao processo executivo, os recorrentes não possuem legitimidade para apresentar defesa por exceção (nem por impugnação) e/ou arguir quaisquer nulidades, considerando que os recorrentes não são parte no aludido processo e que tais questões não constituem fundamento de dedução de embargos de terceiro.
9. Razão pela qual, face ao supra exposto, deve ser mantida a sentença que indeferiu liminarmente os embargos de terceiro deduzidos pelos recorrentes.
Pede assim que a decisão impugnada seja confirmada, por não merecer qualquer censura.
O Tribunal a quo, ao admitir o presente recurso de apelação, deixou consignado que, no seu entender, não se verifica a nulidade invocada, porquanto, a questão apreciada por este Tribunal foi suscitada na petição inicial de embargos.
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º n.º 4 e 639º n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, em termos sucintos, as únicas a decidir na presente apelação são as seguintes:
a) A nulidade do despacho de indeferimento liminar por violação do Art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C.; e
b) A inexistência de fundamento para o indeferimento liminar da petição inicial de embargos de terceiro.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade relevante para o conhecimento da apelação é a que se mostra descrita no relatório do presente acórdão.
Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Definidas as questões que fazem parte do objeto do presente recurso, cumpre sobre elas nos debruçar, começando pela alegada nulidade do despacho de indeferimento liminar.
1. Da nulidade do despacho de indeferimento liminar por violação do Art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C..
Vêm os Recorrentes invocar a nulidade do despacho de indeferimento liminar, por alegada violação do Art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C., sendo certo que não especificam qual dos segmentos dessa alínea do invocado preceito estaria concretamente em causa.
Efetivamente, essa alínea do Art. 615.º do C.P.C., que se aplica, com as devidas adaptações, aos despachos, por força do disposto no Art. 613.º n.º 3 do C.P.C., cumina com o vício de nulidade a sentença que deixe de pronunciar sobre questões de que deveria tomar conhecimento ou aquela que conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento. No primeiro caso temos o vício de “omissão de pronúncia” e no segundo o vício do “excesso de pronúncia”.
Em qualquer dos casos, trata-se sempre de vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença ou do despacho que alegadamente enferme dessa irregularidade.
Esta nulidade está diretamente relacionada com o Art. 608.º n.º 2 do C.P.C., segundo o qual: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras». Mas, antes de mais, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes.
Conforme já ensinava Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 143): «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão». Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado (neste sentido: os Acórdãos do STJ de 7/7/1994 – Relator: Miranda Gusmão, in BMJ n.º 439, pág. 526 e de 22/6/1999 – Relator: Ferreira Ramos, in CJ – Tomo II, pág. 161; da Relação de Lisboa de 10/2/2004 – Relatora: Ana Grácio, in CJ Tomo I, pág. 105, de 4/10/2007 – Relatora: Fernanda Isabel Pereira: e de 6/3/2012, Relatora: Ana Resende, Proc. n.º 6509/05, acessíveis em www.dgsi.pt/jtrl).
Esta nulidade só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir pedido e exceções e não quando tão só ocorre mera ausência de discussão das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/12/2005 – Relator: Pereira da Silva, também acessível em www.dgsi.pt/jstj).
A questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem. Deste modo, não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da ação.
Nas palavras precisas de Tomé Gomes (in “Da Sentença Cível”, pág. 41): «(…) não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito».
Não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, competindo ao tribunal decidir questões e não razões ou argumentos aduzidos pelas partes (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9/6/2011 – Relator: Filipe Caroço, Proc. n.º 5/11, disponível em www.dgsi.pt/jtrp).
O juiz não tem que esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devem ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/4/2014 Relator: Belo Morgado, Proc. n.º 319/10, disponível em www.dgsi.pt/jstj). O juiz só tem de conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente deve conhecer (Art. 608.º, n.º 2 do C.P.C.) à exceção daqueles cujo conhecimento esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outros.
O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/3/2001 – Relator: Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt). Não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/10/2002 – Relator: Araújo de Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj).
No que tange ao vício de excesso de pronúncia (segunda parte da alínea d) do Art. 615º do C.P.C.), o mesmo ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado, sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido, que centram o objeto do litígio.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.12.2012 (Relator: João Bernardo, Proc. n.º 469/11, disponível em www.dgsi.pt/jstj), à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada. Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integra nulidade (idem: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011 – Relator: Pereira Rodrigues, Proc. n.º 2/08, disponível no mesmo sítio).
A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/5/2012 – Relator: Gilberto Jorge, Proc. n.º 91/09 consultável em www.dgsi.pt/jtrl).
Ora, no caso vertente, o que resulta das alegações de recurso dos Recorrentes é que os embargantes não concordam com o sentido da decisão recorrida, entendendo que no caso estão reunidos os pressupostos para que os embargos de terceiro que deduziram possam ter seguimento e, portanto, não deveria o Tribunal a quo indeferir liminarmente a petição inicial, devendo oportunamente conhecer o mérito da causa. Portanto, no essencial, o que sustentam é que houve “erro de julgamento” no indeferimento liminar, o que obstou ao conhecimento do mérito dos embargos, os quais, no seu entender, estavam dependentes da apreciação da prova que apresentaram.
Sucede que, o “erro de julgamento” não é vício que se possa reconduzir à previsão de nenhuma das alíneas do Art. 615.º do C.P.C.. Havendo erro de julgamento a consequência não é a anulação da decisão recorrida, mas sim a sua revogação por desconformidade com o direito aplicável.
Nenhuma das situações invocadas nas alegações de recurso é suscetível de integrar a previsão do Art. 615.º n.º 1 do C.P.C., muito menos a constante da alínea d), seja por omissão de pronúncia, seja por excesso de pronúncia. Isto, porque o tribunal, no caso, limitou-se a conhecer das questões que lhe foram suscitadas, sendo que o Art. 345.º do C.P.C. impõe ao juiz conhecer de imediato das questões que possam conduzir ao indeferimento da petição de embargos de terceiro.
O indeferimento da petição de embargos de terceiro não é assim propriamente “questão nova” cuja apreciação liminar pelo juiz não seja questão com a qual as partes não possam legitimamente estar a contar, porque é uma decorrência da própria lei, que afasta necessariamente a previsão do Art. 3.º do C.P.C..
Nos casos em que a lei prevê a possibilidade de indeferimento liminar, o cumprimento do contraditório será feito necessariamente “a posteriori”, nomeadamente em via de recurso, como sucedeu no caso dos autos.
Em face de todo o exposto, só nos resta julgar improcedente a alegada nulidade do despacho recorrido, improcedendo igualmente as conclusões que a sustentam.
2. Dos fundamentos do indeferimento liminar.
Os Recorrentes não concordam com o despacho de indeferimento liminar, porque entendem que alegaram e juntaram prova suscetível de demonstrar que são titulares de direito de uso e habitação sobre o imóvel penhorado e objeto de decisão de venda judicial no processo executivo principal.
Por outro lado, entendem que, na qualidade de terceiros relativamente ao processo de execução, assiste-lhes legitimidade para invocar exceções ou arguir nulidades em atos de processo do qual não são partes.
Não concordam assim com a decisão que os impediu de provar que lhes assiste o direito de uso e habitação, nem com as conclusões de que a documentação junta não permite concluir por uma probabilidade séria da existência desse direito, nem que os embargos de terceiro não possam servir para a defesa dos direitos de personalidade, nem para invocar nulidade do processo de execução.
Ora, salvo o devido respeito, parece-nos que a decisão recorrida está absolutamente correta.
A oposição por embargos de terceiro é essencialmente um meio de defesa da posse, como decorre do Art. 1285.º do C.C. e do Art. 342.º do C.P.C..
De acordo com o Art. 1285.º do C.C.: «O possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo».
 Por seu turno o Art. 342.º n.º 1 do C.P.C. estabelece que: «Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro».
Para além dos requisitos relativos à tempestividade da oposição por embargos (cfr. Art. 344.º n.º 2 do C.P.C.) e da qualidade de terceiros de quem deduza este meio de defesa, que no caso não são discutidos nos autos, importa que os embargantes invoquem a posse ou a titularidade de direito incompatível com o âmbito da realização da diligência judicialmente ordenada de apreensão ou entrega de bem, o que pressupõe desde logo que seja possível a oponibilidade desse direito ao exequente.
No caso, foi alegado que o bem imóvel, onde os embargantes residem, foi objeto de penhora e já está em processo de venda judicial nos autos de ação executiva principal. No entanto, não será qualquer direito que terá a virtualidade de sustentar o meio de defesa por oposição de embargos de terceiro. Desde logo, como referimos, o direito do terceiro tem de ser oponível, no caso, ao exequente, sendo esse um efeito essencial a ponderar na consideração do requisito da sua “incompatibilidade” com o âmbito do ato judicial ordenado.
A incompatibilidade do direito invocado, ou da posse, deve aferir-se pela função e finalidade concreta da diligência ordenada. Assim, são incompatíveis com a penhora, numa ação executiva, o direito de propriedade e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, virão a extinguir-se com a venda executiva, nos termos do Art. 824.º n.º 2 do C.C. (vide, a propósito: Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil Anotado”, 3.ª Ed., pág. 663). Em sentido contrário, tem-se entendido que não permitem a dedução de embargos de terceiro a invocação de direitos reais de garantia ou de aquisição (constituindo antes ou depois da penhora), nem a invocação da titularidade de direitos reais de gozo (direito de propriedade, usufruto, uso e habitação, direito real de habitação periódica, direito de superfície ou servidão predial) que tenham sido constituídos ou registados depois da penhora, porque tais direitos são ineficazes em relação ao exequente (Art. 819.º do C.C.), salvo o caso dos que sejam constituídos em data anterior à penhora, mas não tenham sido registados, mas produzam efeitos contra terceiros independentemente do seu registo (vide: Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág.s 397 a 398).
É que, efetivamente, nos termos do Art. 824.º n.º 2 do C.C., tendo a venda judicial por efeito a transmissão para o adquirente de todos os direitos do executado sobre a coisa vendida, os bens assim vendidos «são transmitidos livres de direitos de garantia que os onerem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo». O n.º 3 do mesmo preceito esclarece que os direitos de terceiros que caducam por força da venda judicial transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens.
Por outro lado, nos termos do Art. 819.º do C.C., são ineficazes em relação ao exequente todos os atos de disposição ou oneração dos bens já penhorados, sem prejuízo das regras do registo.
Ora, no caso, os embargantes invocam serem titulares do direito de uso e habitação sobre o imóvel penhorado. Mas, diga-se, desde já, que não basta morar na casa e fazer dela sua habitação, para se concluir, sem mais, que se constituiu um “direito de uso e habitação” no sentido da existência de um direito real de gozo oponível erga omnes”, tal como é previsto nos Art.s 1484.º e ss. do C.C..
Efetivamente, nos termos do Art. 1306.º n.º 1 do C.C., que consagra o princípio da tipicidade dos direitos reais, sujeitando-os à regra do numerus clausus”, não é permita a constituição, com caráter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei, pois toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional. Logo, não são oponíveis erga omnes” e a sua constituição é ineficaz para o exequente em ação executiva.
O direito real de uso e habitação, para além de dever ter por conteúdo o previsto no Art. 1484.º n.º 1 e n.º 2 do C.C., deve constituir-se por uma das formas previstas na lei, tal como estabelece o Art. 1485.º do C.C..
Em função do que dispõe este último mencionado preceito, o direito de uso e habitação constitui-se pelos mesmos modos do direito de usufruto, mas não é possível a sua aquisição por via de usucapião, atento à restrição prevista no Art. 1293.º al. b) do C.C.. Pelo que, esse direito só pode ser constituído por “contrato” ou “testamento” (v.g. Art. 1440.º do C.C.).
Por outro lado, o Art. 1488.º do C.C. proíbe, de forma imperativa, a possibilidade de transmissão ou oneração do direito de uso e habitação a favor de terceiros, pela simples razão que o mesmo é constituído “intuitu personae”, destinando-se essencialmente à satisfação das necessidades do usuário ou morador, em atenção à sua específica condição social e, por inerência, às das pessoas da sua família que consigo vivam (vide: Carvalho Fernandes in “Lições de Direitos Reias”, 3.ª Ed. Atualizada e aumentada, pág. 405). Por isso, caso o usuário ou morador viole a proibição legal do Art. 1488.º do C.C., o correspondente negócio jurídico será nulo, por falta de legitimidade do disponente (Art. 892.º “ex vi” Art. 939.º e Art. 956.º n.º 1 do C.C.) e por violação de norma imperativa (Art. 294.º do C.C.) – (vide, a propósito: José Alberto Vieira in “Direitos Reais”, 2.ª Ed., pág. 691).
Na mesma medida, será o titular do direito de propriedade sobre a coisa quem poderá, por negócio jurídico (contrato ou testamento), constituir o direito de uso e habitação, por compressão voluntária do seu direito de propriedade.
Sucede que, tratando-se de direito real sobre bem imóvel, quer o “contrato”, quer o “testamento”, têm que necessariamente observar as regras de forma impostas por lei.
No caso do testamento, o mesmo dever ser celebrado por escritura pública ou cumprir as regras de forma do testamento cerrado, ressalvadas as situações especiais previstas nos Art.s 2210.º e ss. do C.C. (cfr. Art. 2204.º do C.C.).
No caso do contrato, por regra, a constituição desse direito real de gozo estava sempre sujeita à forma de escritura pública (cfr. Art. 80.º n.º 1 do Cód. Notariado). Sucede que, com a entrada em vigor do Dec.Lei n.º 116/2008 de 4 de julho, o n.º 1 do Art. 80.º do Código de Notariado foi revogado, mas daí não decorre que a constituição de direitos reais menores incidentes sobre imóveis, como é o caso do direito de uso e habitação, tenham ficado sujeitos à regra da liberdade de forma (cfr. Art. 219.º do C.C.).
Efetivamente, no preâmbulo do Dec.Lei n.º 116/2008 de 4 de julho é dito explicitamente que: «tornam-se facultativas as escrituras relativas a diversos atos da vida dos cidadãos e das empresas. Deixam de ser obrigatórias, nomeadamente, as escrituras públicas para a compra e venda e para a constituição ou modificação de hipoteca voluntária que recaia sobre bens imóveis e, consequentemente, para os demais contratos onerosos pelos quais se alienem bens ou se estabeleçam encargos sobre eles, aos quais sejam aplicáveis as regras da compra e venda. Igualmente, a escritura pública deixa de ser obrigatória para a doação de imóveis, para a alienação de herança ou de quinhão hereditário e para a constituição do direito real de habitação periódica. Estes atos passam a poder ser realizados por documento particular autenticado. Por outro lado, as entidades com competência para praticar atos relativos a imóveis por escritura pública ou documento particular autenticado passam a estar obrigadas a promover o registo predial do ato em que tenham intervenção…» (sublinhado nosso).
Esta alteração legislativa permitiu apenas aos cidadãos uma de duas opções para a celebração de contratos que tenham por objeto a constituição de direitos reais sobre bens imóveis: ou observam a forma de escritura pública, ou observam a forma de escrito particular autenticado.
Efetivamente, nos termos do Art. 939.º do C.C., as normas da compra e venda são aplicáveis a outros contratos onerosos pelos quais se alienem bens ou se estabeleçam encargos sobre eles, na medida em que sejam conformes com a sua natureza e não estejam em contradição com as disposições respetivas. Pelo que, à constituição onerosa do direito de uso e habitação sobre bem imóvel aplica-se a norma do Art. 875.º do C.C., com redação da Dec.Lei n.º 116/2008 de 4 de julho, da qual decorre que: «Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado».
Assumindo o negócio jurídico para constituição do direito real de gozo de uso e habitação a natureza de negócio gratuito, então aplica-se o disposto na lei para o contrato de doação, sendo que nos termos do Art. 947.º n.º 1 do C.C., com redação da Dec.Lei n.º 116/2008 de 4 de julho, estabelece-se que: «1- Sem prejuízo do disposto em lei especial, a doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado».
 A questão da forma legal é muito importante, porque da sua inobservância resultam duas consequências: por um lado, o negócio jurídico será nulo, por força do Art. 220.º do C.C., arrastando consigo o ato constitutivo do direito real de uso e habitação; e, por outro, como a declaração negocial em causa tinha de ser reduzida a escritura ou documento particular autenticado, não é admissível prova testemunhal para demonstrar a sua existência (Art. 393.º n.º 1 do C.C.).
Claro que, sendo o negócio constitutivo de um direito real de gozo sobre um imóvel nulo, por falta de forma (cfr. Art. 220.º do C.C., conjugado com o Art. 875.º, “ex vi” Art. 939.º, ou Art. 947.º do C.C.), sempre se poderia colocar a possibilidade de aquisição desse direito por usucapião, invocando a posse correspondente ao seu exercício (Art. 1251.º e 1287.º e ss. do C.C.). Só que, essa possibilidade está expressamente vedada pelo Art. 1293.º al. b) do C.C. para o direito real de gozo de uso e habitação.
Em suma, seria completamente inútil tentar provar que foi constituído o direito real de uso e habitação com recurso a prova testemunhal, sendo que o mero uso habitacional da casa, com eficácia meramente obrigacional (cfr. Art. 1306.º n.º 1 do C.C.), não é oponível ao exequente e não pode constituir fundamento legal para a dedução de embargos de terceiro, nos termos do Art. 342.º n.º 1 do C.P.C..
Aliás, temos de reconhecer que os embargantes não alegaram sequer qualquer modo legítimo de aquisição do direito de uso e habitação, fosse por testamento, fosse por contrato. Efetivamente, limitaram-se a invocar uma situação de facto que se protela no tempo, o que só pode ser entendido, e em termos meramente implícito, de que tinham a “posse” do direito de uso e habitação sobre o imóvel dos autos, eventualmente com relevância para efeitos de usucapião, a qual está expressamente vedada por lei.
Quanto à prova documental junta à petição de embargos, o que consta dos autos é um contrato de comodato celebrado entre os embargantes e o seu filho e nora (doc. n.º 9) e um contrato de depósito (doc. 10), que são dois documentos particulares, com assinaturas presenciais reconhecidas por advogado, ao abrigo do Art. 38.º do Dec.Lei n.º 76-A/2006 de 29/3. Sucede que, de nenhum desses documentos resulta sequer qualquer vontade de constituição do direito real de uso e habitação, tal como previsto nos Art.s 1484.º e ss. do C.C., a favor dos embargantes. Na verdade, também não foi isso o alegado na petição de embargos de terceiro.
Em todo o caso, a prova documental que titularia o “contrato” ou “testamento” de constituição do direito de uso e habitação, haveria de ser junta logo com a petição inicial (cfr. Art. 423.º n.º 1 do C.P.C.) e, no caso, não só não foi junta, como nem sequer foram alegados esses atos negociais como sendo os factos constitutivos da aquisição do direito real em causa. O que nos permite concluir com segurança sobre a necessária e manifesta improcedência dos embargos de terceiro assim deduzidos.
Em suma, é inquestionável que não foram alegados factos de que pudessem resulta o reconhecimento do direito de uso e habitação, nem existia matéria de facto que fosse suscetível de prova a produzir em audiência relativamente à possibilidade de constituição desse direito, nem a prova documental junta era permitiria julgamento diverso.
Uma apreciação liminar da petição de embargos permitia a conclusão segura de que, com os factos alegados e a prova junta, a situação factualizada, tal como invocada na petição inicial, traduzia-se na mera habitação do imóvel pelos embargantes, o que, objetivamente, não é incompatível com o âmbito da diligência de apreensão e entrega desse bem, objeto de penhora e ordem de venda na ação executiva principal.
Acresce que, o ato judicial de penhora, e bem assim, o da venda do imóvel, no quadro duma ação executiva, não põem em causa, só por si, o direito ao “sossego”, “descanso” e “intimidade da vida familiar” em termos que constitua a violação do Art. 65.º da Constituição da República Portuguesa ou de qualquer direito de personalidade previsto nos Art. 70.º e ss do C.C.. Isto, evidentemente, desde que esses atos judiciais sejam praticados pelo Tribunal, no exercício das suas competências jurisdicionais e em observância da lei processual aplicável. Ora, nada nos autos nos permite concluir que isso não se verificou no caso dos autos, nem esta conclusão foi sequer minimamente posta em causa pela petição de embargos.
Por regra, nestes casos, estando o exequente no exercício legítimo de um direito, pode recorrer ao Tribunal para obter a tutela efetiva do seu direito, sem que tal constitua qualquer ilícito (cfr. Art.s 601.º e 817.º do C.C.).
Só o recurso à força privada para realizar o próprio direito é que é expressamente proibida por lei (Art. 1.º do C.P.C.). Fazendo-se recurso aos tribunais, a legitimidade do direito de crédito do exequente prevalece evidentemente sobre os direitos do executado e dos seus familiares, que consigo residem na casa objeto de penhora e de ordem de venda judicial na ação principal.
Sem prejuízo, a tutela constitucional do direito à habitação poderá vir a merecer um cuidado especial no quadro da ação executiva, por iniciativa do executado, nos termos do disposto nos Art.s 861.º n.º 6, 863.º, n.º 3 a n.º 5, 864.º e 865.º do C.P.C.. No entanto, os embargos de terceiro claramente não são o meio processual adequado a esse fim.
Quanto à posição defendida na decisão recorrida de que os embargantes não têm legitimidade processual para invocar questões relacionadas com a validade de atos praticados na ação executiva parece-nos indiscutível.
Os embargantes que deduzem embargos de terceiro são, passo a redundância, terceiros. Ou seja, não são parte na ação executiva e, por isso mesmo, preenchem esse pressuposto de legitimidade para deduzir a oposição prevista nos Art.s 342.º e ss. do C.P.C., mas não para deduzir embargos de executado ou invocar irregularidades na tramitação do processo executivo.
Quem tem interesse direto em suscitar irregularidades da ação executiva é o executado, como resulta aliás dos dispositivos legais invocados na petição de embargos de terceiro, que nos remetem para os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença (v.g. Art. 729.º do C.P.C.) ou para as nulidades do processo (v.g. Art.s 195.º e 196.º do C.P.C.).
A inexistência de título executivo, porque a sentença exequenda se reporta a decisão proferida em ação de impugnação pauliana (artigos 19.º a 25.º da petição de embargos); a consequente ilegitimidade da executada (artigo 28.º da petição de embargos); ou nulidade dos atos consequentes do prosseguimento da execução nessas condições (artigo 31.º da petição de embargos), não podem ser invocadas por qualquer pessoa estranha à execução.
Os fundamentos de embargos de executado só podem ser invocados pelos executados (cfr. Art. 728.º n.º 1 do C.P.C.) e, as nulidades secundárias praticadas no processo de execução, nomeadamente as previstas no Art. 195.º n.º 1 do C.P.C. (que é o preceito expressamente invocado nos embargos de terceiro), só podem ser invocadas por quem tenha interesse direto na observância da formalidade omitida ou violada (Art. 197.º n.º 1 do C.P.C.).
Acresce que, quer os embargos de executado, quer a reclamação de nulidades no âmbito da ação executiva, têm prazos perentórios para serem deduzidos (cfr. Art.s 728.º n.º 1 e 199.º e 149.º n.º 1 do C.P.C.), constituindo o não exercício tempestivo desses direitos, por quem neles tem interesse direto, causa de preclusão desses meios de defesa (Art. 573.º n.º 1 “ex vi” Art. 551.º n.º 1 do C.P.C.) ou causa de sanação das nulidades (Art. 196.º do C.P.C.), passando essas questões a ser cobertas pelos efeitos próprios do caso julgado formal (Art. 620.º do C.P.C.), ressalvadas apenas as situações de rejeição oficiosa da execução, previstas no Art. 734.º do C.P.C., e que não tenham sido objeto de qualquer decisão formal.
Ora, na verdade, os embargos de terceiro têm por finalidade fazer valer direito incompatível com o ato judicial de apreensão ou entrega de determinado bem. O que se pretende é que o terceiro faça prevalecer o seu direito sobre o bem, na medida em que do ato de apreensão ou entrega judicial resultarem afetadas utilidades específicas ao exercício do direito do terceiro.
É a titularidade do direito real de gozo, ou da posse correspondente ao exercício desse direito, cuja subsistência possa ser prejudicada pela apreensão ou entrega judicial do bem, que legitima o exercício do direito de oposição por parte do terceiro, que não é parte na ação principal, nos termos do Art. 342.º n.º 1 do C.P.C.. Logo, é no âmbito das faculdades legais do exercício do direito de que o terceiro é titular e na medida em que tais faculdades sejam afetadas pelo ato judicial de apreensão ou entrega do bem, que se deve encontrar o objeto possível do incidente de oposição por embargos de terceiro.
Assim, a invocada titularidade por terceiro do direito de uso e habitação não comporta em si mesma o exercício de faculdades que a lei reconhece essencialmente ao executado na ação principal. Nomeadamente não fazem parte desse direito real de gozo as utilidades relativas à “falta de título executivo”, “ilegitimidade do executado”, ou “nulidades secundárias do processo executivo”. Esses são meios de defesa estranhos à titularidade do direito real de gozo que legitima no caso a defesa por embargos de terceiro. Pelo que, só podemos subscrever o entendimento expresso na decisão recorrida, improcedendo também nessa parte as conclusões que sustentam o contrário.
De resto, toda a argumentação expedida na petição de embargos sobre a falta de título executivo e ilegitimidade da executada, que determinaria ainda a nulidade do processo, funda-se no pressuposto de que o exequente não poderia demandar a executada com base numa decisão proferida numa ação de impugnação pauliana que foi instaurada pelo mesmo exequente, contra os ora embargantes e a sua filha, executada na ação principal. No entanto, escamoteia tal argumentação o facto do Art. 616.º n.º 1 do C.C., estabelecer explicitamente que: «julgada procedente a impugnação (pauliana), o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição (…)».
Em suma, só nos resta confirmar a decisão recorrida, nos seus precisos termos.

V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente por não provada, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
- Custas pelos Apelantes (Art. 527.º do C.P.C.), sem prejuízo do que vier a ser decidido pela Segurança Social relativamente à requerida dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo, por força da concessão do benefício de apoio judiciário.
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Lisboa, 8 de junho de 2021
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva