INCUMPRIMENTO DO REGIME DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PENSÃO DE ALIMENTOS
PAGAMENTO EM EXCESSO
LIBERALIDADE
CONVÍVIO COM O MENOR
REDUÇÃO DA PENSÃO DE ALIMENTOS
Sumário


I- A inclusão de uma cláusula de atualização do montante das prestações de alimentos devidos a menores configura um elemento essencial para impedir a erosão monetária do valor fixo estabelecido em prestações pecuniárias mensais, visando por isso essencialmente a prossecução e a prevalência do interesse da criança ou do jovem alimentando para que a organização da sua vida e o seu desenvolvimento se processem em condições de estabilidade e garantindo em qualquer situação a sua subsistência.
II- A eventual oscilação negativa dos valores dos índices concretamente utilizados como critério de atualização anual da prestação de alimentos nunca pode ter um impacto negativo no valor das prestações mensais de alimentos a pagar, não implicando a sua redução ou diminuição no ano seguinte, apenas permitindo, nesses casos, que o valor previamente fixado não sofra qualquer variação.
III- Por se tratar de uma causa de extinção das obrigações, justifica-se que a lei limite ou condicione o direito de compensação de créditos em situações específicas, como ocorre sempre que estiver em causa a compensação de eventuais créditos do devedor de alimentos com o contra crédito de alimentos.
IV- Além da lei expressamente proibir ao devedor de alimentos a possibilidade de recurso à compensação, deve entender-se que os montantes pagos em excesso pelo progenitor obrigado a alimentos, para além do montante pecuniário que lhe haja sido judicialmente fixado, consubstanciam meras liberalidades que não o dispensam do cumprimento integral das obrigações alimentícias que em momento posterior se foram vencendo, pelo valor atualizado.
V- A natureza da obrigação alimentícia dos progenitores para com os filhos, que como vimos já é contínua, indisponível e incondicional, integrando o conteúdo das responsabilidades parentais, impede o progenitor que não reside habitualmente com os menores de reduzir a prestação de alimentos, já fixada, em função do tempo que passa com os filhos.

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

A. C. deduziu, em 15-03-2019, providência tutelar cível de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais contra A. E., alegando, em síntese:

- por sentença datada de 21 de fevereiro de 2013, o requerido ficou obrigado a contribuir a título de alimentos às filhas menores de ambos, A. M., nascida a ..-03-2007, e D. M., nascida a ..-09-2011, com a quantia mensal de €100,00 a cada uma, quantia essa a atualizar anualmente no início de cada ano civil, de acordo com a atualização verificada no vencimento do requerido; - apesar de se encontrar estipulada tal quantia, por iniciativa própria, o requerido pagava inicialmente a quantia de €150,00 a título de pensão de alimentos, o que fez até dezembro de 2016, razão por que a requerente não solicitou a respetiva atualização; - a partir de janeiro de 2017, o requerido passou a pagar a quantia estipulada (€100 para cada menor) não tendo procedido à atualização anual da pensão de alimentos fixada inicialmente; - em setembro de 2017, a requerente deu entrada a uma ação de alteração das responsabilidades parentais, a que os presentes se encontram apensos, ação na qual foi alterado por acordo judicialmente homologado, em 06-02-2019, o artigo 10.º do regime fixado, tendo ficado estipulado o montante de €110,00 a título de pensão de alimentos para cada uma das menores; - sucede que em 2017, 2018 e 2019 o requerido não procedeu à atualização da pensão fixada, tendo sido este valor aumentado no âmbito do processo supra referido, em fevereiro de 2019, não tendo igualmente o requerido procedido à atualização devida no início de 2020; - o requerido trabalha na área da restauração, auferindo o salário mínimo nacional; - em 2017, o salário mínimo era de €557,00, traduzindo-se numa atualização de 5,09% em relação a 2016; - em 2018, o salário mínimo era de €580,00, traduzindo-se numa atualização de 4,13%, em relação a 2017; - em 2019, o salário mínimo era de €600,00, traduzindo-se numa atualização de 3,45% em relação a 2018; - em 2020, o salário mínimo é de €635,00, traduzindo-se numa atualização de 5,83% em relação a 2019; - com as referidas atualizações, o requerido devia pagar mensalmente, a cada uma das menores a título de pensão de alimentos: - em 2017, a quantia mensal de €105,09; - em 2018, a quantia mensal de €109,42; - em 2019, a quantia mensal de €113,20; - em 2020, a quantia mensal de €119,80. Conclui estarem em dívida os seguintes valores: €122,16 em 2017; €226,08 em 2018, €52,80 em 2019, e €316,80 em 2020, tudo no total de €707,84.
O requerido foi notificado para alegar, o que fez, sustentando inicialmente que ao longo dos anos até pagava a mais do que aquele que estava estipulado, sendo que tais valores cobrem perfeitamente a dita “atualização” das pensões de alimentos a ambas as menores.
Foi realizada a conferência a que alude o artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro (RGPTC), na qual não foi possível a obtenção de acordo.
As partes foram notificadas para alegar, mantendo a requerente a posição manifestada no requerimento inicial, enquanto o requerido veio alegar que “ao contrário do que alega a requerente a atualização não está indexada à valorização do salário mínimo nacional (smn)” mas à média da remuneração efetivamente recebida pelo requerido em cada ano. Em conformidade com a posição assumida, sustenta que: «[d]e acordo com o extrato de remunerações junto pela Segurança Social, deram-se as seguintes atualizações na remuneração do Requerido: a. no ano 2017 a média de remunerações foi de € 477,01, numa desvalorização de 10%; b. no ano 2018 a média de remunerações foi de € 580,00, numa valorização de 17,76%;c. no ano 2019 a média de remunerações foi de € 600,00, numa valorização de 3,45%. d. no ano 2020 (que ainda não terminou pelo que a atualização será aferida no próximo ano) a média de remunerações até o mês de agosto inclusive é de € 497,49, numa desvalorização de 17,085%.15. Ou seja, o Requerido em 2018 deveria ter pago mensalmente o valor de € 90,00, em 2019 o valor de € 105,98, em 2020 o valor de € 109,64, e, verificando-se a atual desvalorização, em 2021 pagará o valor de € 90,91.16. Ou seja, em 2018 terá pago em excesso € 120, em 2019 menos € 71,76 e em 2020, até fim de agosto, pagou menos € 77,12.17. Resultando assim que, segundo os factos e cálculos de que a Requerida se arroga, encontrar-se-á somente em dívida a quantia de € 28,28.18. Acresce ainda que o Requerido, ao contrário do que lhe é exigível, entrega a pensão de alimentos mesmo no mês em que tira férias com as suas filhas.19. Ou seja, feitas as contas sempre se dirá que quem teria de receber alguma coisa seria o Requerido e não a Requerente».

Efetuadas diligências instrutórias tidas por necessárias foi proferida sentença datada de 10-12-2020, na qual se decidiu o seguinte:
« (…)Pelo exposto, decido:
- julgar parcialmente procedente o presente incidente e, em consequência,
- verificar o incumprimento do requerido quanto ao valor de 476,68€.
Custas por requerente e requerido, na proporção do respetivo decaimento.
Registe e notifique, sendo-o o requerido para, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão, demonstrar o pagamento da quantia acima indicada (e, eventualmente, outras que entretanto se tenham vencido, em ordem a evitar a dedução de novo incidente), sob pena de serem desencadeados os mecanismos de cumprimento coercivo previstos no art.º 48º do RGPTC».
O requerente veio então interpor recurso, o qual, após reclamação, foi admitido como apelação, para subir de imediato e com efeito meramente devolutivo.

Terminou as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1. O presente recurso é interposto com o objetivo de se julgar totalmente improcedente o incidente apresentado pela Requerente, alterando-se assim a sentença recorrida.
2. Com efeito, vem o Recorrente condenado a pagar o valor de 476,68, valor com o qual o Recorrente não concorda, crendo que nada é devido a este título.
3. O presente recurso centra-se (a) na interpretação da cláusula 11.ª do regime que regula as responsabilidades parentais – veja-se o facto provado c) –, que determina que a “a pensão de alimentos será atualizada no início de cada ano civil de acordo com a atualização verificada no vencimento do requerido”; (b) em saber se a pensão de alimentos é devida durante o período em que o progenitor fica com as suas filhas menores; e, (c) em saber se os valores entregues em excesso pelo progenitor podem ou não ser considerados para compensação dos valores alegadamente entregues abaixo do alegadamente devido.
4. Com a primeira das alíneas impugna-se o facto provado i) da sentença.
5. Com efeito, por acordo homologado em 21-02-2013, acordaram as partes em que o Apelante ficaria obrigado a entregar a título de alimentos às suas filhas menores a quantia mensal de € 100,00 a cada uma, quantia essa a atualizar “(…) no início de cada ano civil de acordo com a atualização verificada no vencimento do requerido”.
6. Ou seja, encontra-se a atualização da pensão de alimentos indexada ao efetivo vencimento do progenitor e não, como dita a sentença, ao salário mínimo nacional.
7. Cremos que a cláusula é clara e à luz do disposto no artigo 236.º do Código Civil, entendimento contrário ao que aqui defendemos não será admissível.
8. Nestes termos, urge assim entender à média anual do vencimento do Apelante, pois só assim poderemos ter noção da atualização a aplicar ao caso.
9. Concluímos assim, feitos os cálculos nos termos supra expostos e atenta as desvalorizações que se deram no vencimento do Apelante em 2017, por exemplo, que não se encontra nenhum valor em dívida.
10. Quanto à alínea b), urge versar sobre se o valor a ser pago a título de pensão de alimentos deve ser entregue mesmo no período de férias ou nos períodos que as menores ficam mais tempo com o progenitor. Ou seja, o correspondente a um mês por ano.
11. Salvo melhor opinião, julgámos que nos períodos de férias correspondentes a um mês por ano o Recorrente não se encontra obrigado a pagar a pensão, porquanto, encontra-se com as menores.
12. Entendimento contrário poderia levar ao caso em que o pai, por alguma razão, passa mais tempo com as menores e, ainda assim, se vê na obrigatoriedade de entregar tal valor à progenitora, que, por sua vez, não está sequer com as menores.
13. Cremos assim que andou mal o Tribunal a quo em não conceder provimento ao alegado pelo Recorrente. Verificando-se esta corrente, outro entendimento será exigido, porquanto, nada é devido a título de pensão de alimentos.
14. Ao invés, seria sempre o Recorrente que poderia requerer a devolução do valor pagado em excesso, o que, como é lógico, não pretende, em benefício das suas filhas.
15. Quanto à última das alíneas, determina o Tribunal que os valores entregues a mais pelo progenitor consubstanciam meras liberalidades que não eximem o Recorrente do cumprimento integral das obrigações que em momento posterior se foram vencendo.
16. Não concordámos com tal teor, pois, se é verdade que nos anos em que o Recorrente não aufira qualquer valor tem de entregar a pensão determinada, não deixa de ser verdade que os valores que foi pagando ao longo dos anos em excesso deverão ser tidos em conta para o presente.
17. Pelo que, também por isso deverá o incidente ser julgado improcedente».
A requerente apresentou contra-alegações, pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido
Também o Ministério Público apresentou contra-alegações, pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido.
O recurso veio a ser admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito devolutivo.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - o objeto da apelação circunscreve-se às seguintes questões:

A) Aferir se o erro de julgamento invocado pelo apelante a propósito das questões decididas na sentença recorrida incide sobre matéria de facto e se estão verificados os pressupostos que permitem a admissibilidade do recurso respeitante à decisão da matéria de facto;
B) Reapreciação do mérito da decisão recorrida na parte em que analisou e verificou o incumprimento do requerido quanto ao valor de €476,68 referente às quantias em dívida a título de atualização das prestações alimentícias fixadas em benefício das crianças, A. M., nascida a ..-03-2007, e D. M., nascida a ..-09-2011, o que passa por analisar as seguintes questões:
i) aferir se era exigida ao requerido a atualização da pensão de alimentos, e em que moldes; ii) saber se os valores alegadamente anteriormente entregues em excesso pelo requerido/progenitor (até 2017) poderão ser considerados para efeitos de compensação e imputadas nas atualizações eventualmente em dívida, o mesmo sucedendo com o valor das pensões de alimentos pagas durante os períodos de férias em que as crianças permaneceram com o referido progenitor.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda os seguintes factos considerados provados na decisão recorrida:

a) A. M. nasceu no dia -.03.2007 e D. M. nasceu no dia -.09.2011, sendo ambas filhas de requerente e requerido.
b) Por decisão de 21.02.2013, proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 654/2013, que correu termos na CRCivil de …, foram reguladas as responsabilidades parentais relativas às menores.
c) No que agora interessa, quanto a alimentos, foi fixado o seguinte regime:

B – PENSÃO DE ALIMENTOS:
“ 10º - O pai A. E., contribuirá com a quantia mensal de €100.00 (cem euros) a título de alimentos para com cada uma das menores, quantia que será paga até aos oito de cada mês a que disser respeito.”
11º - A pensão de alimentos será actualizada no início de cada ano civil de acordo com a atualização verificada no vencimento do requerido;
12º - As despesas médicas e medicamentosas dos menores serão suportadas por ambos os pais em partes iguais.
13º - O requerente contribuirá, no início de cada ano escolar, com montante relativo a metade das despesas com a aquisição de livros escolares e demais materiais de âmbito escolar com as referidas menores.”;
d) Por decisão proferida no apenso A, no dia 06.02.2019, transitada em julgado, foi alterada a regulação do exercício das responsabilidades parentais;
e) No que agora interessa, foi alterada a cláusula décima do acordo, que passou a ter a seguinte redação:
O pai A. E. contribuirá com a quantia mensal de € 110,00 (cento e dez euros), a título de alimentos, para com cada uma das menores, quantia essa que será paga até ao dia oito de cada mês a que disser respeito.”;
f) Apesar de se encontrar estipulado o valor suprarreferido, o requerido, por sua iniciativa e decisão, começou desde março de 2014 a pagar a quantia de €150,00 a título de pensão de alimentos, totalizando o montante de €300,00;
g) Por esse motivo, no período compreendido entre março de 2014 e dezembro de 2016, a requerente não solicitou a atualização da pensão;
h) A partir janeiro de 2017, o requerido passou a pagar a título de alimentos devidos às suas filhas menores, a quantia fixada na regulação do exercício das responsabilidades parentais, sem proceder à atualização;
i) O requerido viu a sua remuneração base fixada nos seguintes montantes:
- em 2016, 530€;
- em 2017, 557€;
- em 2018, 580€;
- em 2019, 600€;
- em 2020, 635€.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso
2.1. Aferir se o erro de julgamento invocado pelo apelante a propósito das questões decididas na sentença recorrida incide sobre matéria de facto e se estão verificados os pressupostos que permitem a admissibilidade do recurso respeitante à decisão da matéria de facto.

Analisadas as alegações de recurso apresentadas pelo apelante e correspondentes conclusões verifica-se que nas mesmas o recorrente não suscita expressamente a revisão da correspondente decisão sobre a matéria de facto, ainda que alegue, sob a conclusão 4.ª das alegações, que «com a primeira das alíneas impugna-se o facto provado i) da sentença».
Também não indica, nas conclusões das alegações ou no corpo das mesmas, eventuais resultados específicos que pretenda ver reconhecidos em sede de decisão na vertente de facto.
Neste domínio, o apelante invoca como fundamento da referida impugnação do facto provado em i), a interpretação da cláusula 11.ª do regime que regula as responsabilidades parentais, remetendo para o efeito para o teor do facto provado c) -, que determina que «a pensão de alimentos será atualizada no início de cada ano civil de acordo com a atualização verificada no vencimento do requerido», pronunciando-se sobre o sentido com que, no seu entender, a referida cláusula devia ter sido aplicada, manifestando a sua discordância quanto ao alcance atribuído à mesma pelo Tribunal a quo.
Tal como resulta da análise conjugada do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como de facto, sendo este último o meio adequado e específico legalmente imposto ao recorrente que pretenda manifestar divergências quanto a concretas questões de facto decididas em sede de sentença final pelo Tribunal de 1.ª instância que realizou o julgamento, o que implica o ónus de suscitar a revisão da correspondente decisão.

Enunciando os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o artigo 640.º do CPC o seguinte:

«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º».

Relativamente ao alcance do regime decorrente do preceito legal acabado de citar, refere Abrantes Geraldes (1), que «a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar, com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto».

Assim, «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos» (2).

Como se viu, o recorrente não especifica a intenção de impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo nem indica expressamente a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a matéria de facto relevante para a apreciação da causa, não especificando, nas conclusões das alegações, eventuais modificações que preconize introduzir à decisão de facto constante da sentença recorrida ou factos que pretenda ver excluídos da factualidade provada, nem qualquer facto que considere dever ser aditado a tal matéria.
De resto, como resulta claro do corpo das correspondentes alegações de recurso, o apelante não põe em causa que a respetiva remuneração base mensal corresponda ao valor do salário mínimo nacional, defendendo, contudo, que «a ratio da cláusula em apreciação é clara a determinar que a valorização se dará em virtude do vencimento do Recorrente, ou seja, daquilo que auferiu ao longo do ano. Se porventura o Requerido lograr um emprego no qual aufira acima da retribuição mínima nacional, a atualização dar-se-á de acordo com esse aumento. Porém, num ano em que auferia menos, a pensão deverá também ser atualizada».
Por outro lado, revela-se evidente que as referências feitas pelo apelante à média de remunerações por si efetivamente auferidas nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 traduzem conclusões relativas a determinadas premissas, pressupondo a análise de um conjunto de circunstâncias de facto que permitam consubstanciar tais juízos valorativos ou conclusões baseadas em factos que não constam da respetiva redação.
Assim sendo, resta concluir que o apelante não observou os ónus previstos nos artigos 639.º, n.º 1, e 640.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPC, o que configura fundamento de rejeição do recurso relativo à matéria de facto.
Pelo exposto, decide-se rejeitar o recurso na parte em que enuncia alguns argumentos que parecem pressupor a reapreciação da matéria de facto contida na sentença recorrida, mantendo-se, em conformidade, a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre os factos vertidos em 1.1. supra.

2.2. Reapreciação da decisão de mérito da ação

Está em causa, na presente apelação, a sentença proferida em 10-12-2020 na providência tutelar cível de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais intentada pela ora apelada contra o apelante.
No caso o incumprimento suscitado prende-se tão-só com a vertente das prestações de alimentos fixadas em benefício das crianças, A. M., nascida a ..-03-2007, e D. M., nascida a ..-09-2011, mais concretamente com o segmento do acordo da regulação do exercício das responsabilidades parentais em vigor, na parte em que prevê que «a pensão de alimentos será actualizada no início de cada ano civil de acordo com a atualização verificada no vencimento do requerido», conforme cláusula 11.ª do aludido regime - cf. al. c), dos factos provados - importando aferir se era exigível ao requerido a atualização da pensão de alimentos que foi fixada, e em que moldes.
Considerando os factos provados, a 1.ª instância concluiu, no essencial, que jamais a determinação do montante da prestação de alimentos poderia ficar dependente da média dos salários concretamente auferidos em cada ano pelo obrigado a alimentos, entendendo que releva a atualização verificada no início de cada ano na remuneração base do requerido e não a remuneração concretamente auferida ou a média das remunerações auferidas em cada ano, enunciando para o efeito e além do mais, as seguintes razões:
«Desde logo, porque a previsão da atualização da prestação, indexando-a um índice ou, como sucedeu no caso concreto, à valorização salarial, tem em vista dar resposta a duas coisas: por um lado, ao aumento do custo de vida que sempre se verifica; por outro, ao aumento das despesas que resultam de uma modificação das necessidades dos menores, à medida que vão crescendo. Quando as partes se referem a atualização da prestação, têm portanto em vista, naturalmente, o seu aumento, nunca a sua diminuição.
Depois, porque jamais a determinação do montante da prestação de alimentos poderia ficar dependente da média dos salários concretamente auferidos em cada ano pelo obrigado a alimentos. Bastaria pensar que se, por qualquer razão, o obrigado a alimentos tivesse faltado ao trabalho durante um período razoável, o montante de alimentos ficaria automaticamente reduzido a quase nada, podendo até determinar, no limite, a extinção da obrigação.
Como é evidente, não pode ter sido essa a intenção das partes ao indexarem a atualização da obrigação de alimentos à “atualização verificada no vencimento do requerido.”».
Mesmo reconhecendo não ser vulgar que se opere uma desvalorização da pensão de alimentos por força de uma cláusula de atualização automática da referida prestação, atento também ao facto da carência de uma pensão superior das menores com o passar dos anos, vem ainda assim o recorrente alegar que a pensão deve considerar-se indexada ao vencimento concretamente auferido, devendo atender-se à média anual do vencimento efetivamente auferido, pois, conforme sustenta, só assim poderemos ter noção da atualização a aplicar ao caso valorização do vencimento do recorrente. E partindo dos cálculos que refere corresponderem à média de remunerações por si auferidas nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, este último até ao mês de agosto inclusive, defende que em 2018 deveria ter pago mensalmente apenas o valor de € 90,00, em 2019 o valor de € 105,98 em janeiro e € 110,00 nos demais, em 2020 o valor de € 113,80, e, verificando-se a atual desvalorização, em 2021 pagará somente o montante de € 94,36 para concluir que em 2018 terá pago em excesso € 120 por cada filha, em 2019 menos € 5,98 e em 2020, até agosto, pagou menos € 30,40, não se encontrando nenhum valor em dívida.
Em face do quadro fáctico apurado nos autos não se revela possível a este Tribunal extrair diferente conclusão no que respeita ao enquadramento efetuado pelo Tribunal a quo na sentença recorrida, sendo efetivamente de concluir que o montante da prestação de alimentos a pagar pelo requerido/recorrente ficou indexado à taxa de crescimento dos salários, devendo por isso necessariamente ser considerada a percentagem de aumento da remuneração base mensal auferida pelo recorrente no início de cada ano civil.
A cláusula cujo alcance interpretativo está em causa na presente apelação consta do acordo homologado por decisão de 21-02-2013, proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 654/2013, que correu termos na Conservatória do Registo Civil de Barcelos, no âmbito do qual foram reguladas as responsabilidades parentais relativas às menores - cf. als. b) e c) dos factos provados - podendo qualificar-se tal acordo como transação, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1248.ºdo Código Civil (3).
Neste contexto, mostram-se concretamente aplicáveis ao caso as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial, implicando que tal cláusula deva ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (artigo 236.º, n.º1, do Código Civil), sem esquecer o critério interpretativo consagrado no artigo 238.º, n.º1, do Código Civil para os negócios formais, segundo o qual, nestes negócios não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
O poder paternal, atualmente «responsabilidades parentais», de acordo com o n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 61/2008, de 31-10, é preenchido por um conjunto de poderes-deveres, poderes funcionais atribuídos legalmente aos progenitores, no interesse dos filhos, em ordem a assegurar convenientemente o seu sustento, saúde, segurança, educação, a representação da sua pessoa e a administração dos seus bens - cf. o artigo 1878.º, n.º 1, do Código Civil.
De acordo com tal preceito, o conteúdo das responsabilidades parentais inclui o dever dos pais de prover ao sustento dos filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação, que só findará quando os filhos tenham condições de as suportar pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos.
No dever de assistência, que incumbe por igual a ambos os progenitores, encontra-se compreendida a obrigação dos pais de prestar alimentos aos filhos, tal como decorre do artigo 36.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa e do artigo 1874.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.
Tal como elucida o Acórdão TRC de 20-01-2015 (4) «O fundamento da obrigação de prestar alimentos decorre do conteúdo do direito à vida, enquanto direito especial de personalidade, bem como do princípio da preservação da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social e familiar (artigos 24º, 26º, nº3 e 67º da Constituição da República Portuguesa): o direito a alimentos existe para garantir a vida e encontra a sua medida no necessário a assegurar a dignidade da mesma. Tratando-se embora de uma obrigação de conteúdo patrimonial, não visa o incremento do seu património mas assegurar o sustento (aqui entendido num sentido amplo, incluindo vestuário, habitação, saúde, e também nos alimentos a menores, a educação) diário do alimentado».
Daí que «[o]interesse público que subjaz ao cumprimento de tal função pela obrigação de alimentos – e que subjaz à consagração de mecanismos coletivos de assistência regulados pelo direito público – dita o caráter indisponível e a natureza impenhorável do correspondente direito de crédito» (5).
Com efeito, de acordo com o regime consagrado no artigo 2008.º, n.º1, do Código Civil, «o direito a alimentos não pode ser renunciado ou cedido, bem que estes possam deixar de ser pedidos e possam renunciar-se as prestações vencidas», prescrevendo ainda o referido preceito, no seu n.º 2, que «o crédito de alimentos não é penhorável, e o obrigado não pode livrar-se por meio de compensação, ainda que se trate de prestações já vencidas».
Neste enquadramento, importa acentuar que a fixação judicial de um certo valor alimentício a favor dos filhos menores, a satisfazer em montantes e datas determinadas, justifica-se por razões de certeza e segurança, destinando-se, além do mais, a tutelar o superior interesse da criança.
A propósito do critério fundamental do interesse da criança é manifesto que “o legislador não terá definido este conceito (que é, por isso indeterminado) precisamente para permitir que a norma se pudesse adaptar à variabilidade e imprevisibilidade das situações da vida, máxime da situação de cada família ou mais exactamente de cada criança”, ainda que se possa adiantar que tal interesse não andará longe do “estabelecimento das ideais ou das possíveis condições sociais, materiais e psicológicas da vida de um filho, geradas pela participação responsável, motivada e coordenada de ambos os progenitores, acção essa que garanta a inserção daquele num optimizante e gratificante núcleo de vida, claramente propiciador do seu desenvolvimento emocional, físico e cívico e da obtenção da sua «cidadania social»” (6).
Daí que em sede de regulação do exercício das responsabilidades parentais os progenitores tenham de cumprir o decidido nos precisos termos em que o foi, só assim se garantindo as condições de certeza e segurança essenciais para a adequada proteção do superior interesse da criança.
Deste modo, e tal como se refere no Acórdão TRP de 28-09-2010 (7) « [a] obrigação alimentícia dos progenitores para com os filhos que não estão à sua guarda é integrada e enriquecida pela natureza da própria responsabilidade parental (e como já acima realçamos, trata-se de obrigação a que a lei confere especial e acrescida protecção – é indisponível, imprescritível, impenhorável, insusceptível de extinção por compensação, tem tutela penal e na sua execução podem ser judicialmente atacados vencimento ou prestação social inferior ao valor do salário mínimo nacional).
É esta natureza da obrigação, enquanto responsabilidade parental, que impõe se considere que as necessidades dos filhos sobrelevam a disponibilidade económica dos pais (…). Trata-se de uma responsabilidade que impõe ao progenitor assegurar as necessidades do filho de forma prioritária relativamente às suas, designadamente relativamente àquelas que não sejam inerentes ao estritamente necessário para uma digna existência humana.
Outro entendimento seria desconforme ao constitucionalmente consagrado direito-dever de manutenção dos filhos (cfr. o já referido art. 36º, nº 5 da C.R.P.) e implicaria esvaziar de sentido útil o comando do art. 27º da Convenção sobre os Direitos da Criança.».
No estrito âmbito da prossecução das necessidades do alimentando é normal a inclusão de um número na cláusula respeitante aos alimentos devidos a menor que preveja a sua atualização anual, normalmente indexada à taxa de inflação publicada pelo Instituto Nacional de Estatística, podendo no entanto ser previstas outras cláusulas, como a que preveja o aumento da pensão de alimentos de acordo com a percentagem de aumento da remuneração do progenitor obrigado à prestação (8).
Tal como esclarecem Helena Bolieiro e Paulo Guerra (9), «[p]ara que a adaptação da prestação de alimentos ao aumento do custo de vida se faça anualmente, de forma automática, na decisão ou no acordo da primitiva acção deve fixar-se uma cláusula de indexação do montante a pagar à taxa de inflação ou à taxa de crescimento dos salários».
Assim, só a permanente inflação e o aumento anual dos vencimentos justificam que a pensão alimentar da menor seja atualizada todos os anos, a partir de 1 de janeiro do ano posterior à sua fixação ou última alteração (10).
Efetivamente, a inclusão de uma cláusula de atualização do montante das prestações de alimentos devidos a menores configura um elemento essencial para impedir a erosão monetária do valor fixo estabelecido em prestações pecuniárias mensais (artigo 2005.º, n.º1, do CC), visando por isso essencialmente a prossecução e a prevalência do interesse da criança ou do jovem alimentando para que a organização da sua vida e o seu desenvolvimento se processem em condições de estabilidade e garantindo em qualquer situação a sua subsistência.
Assim, a eventual oscilação negativa dos valores dos índices concretamente utilizados como critério de atualização anual da prestação de alimentos nunca pode ter um impacto negativo no valor das prestações mensais de alimentos a pagar, não implicando a sua redução ou diminuição no ano seguinte, apenas permitindo, nesses casos, que o valor fixado não sofra qualquer variação (11).
Deste modo, atenta a natureza da obrigação de alimentos devida a menores, que como vimos já deve ser contínua, indisponível e incondicional, afigura-se-nos manifesto que a inclusão de uma cláusula de atualização da prestação de alimentos, como a prevista na cláusula 11.ª do regime em análise na presente apelação tem como objetivo adaptar automaticamente a prestação de alimentos ao eventual aumento do custo de vida verificado anualmente, obstando assim à degradação do valor fixado causada pela inflação (12).
É este também o sentido que literalmente resulta da cláusula em discussão, ao consignar que «a pensão de alimentos será actualizada no início de cada ano civil de acordo com a atualização verificada no vencimento do requerido».
Por isso, o sentido da declaração negocial vertida na cláusula 11.ª do acordo em análise na presente apelação, devidamente homologado por decisão e plasmado no texto supra transcrito não pode ser o de possibilitar a introdução de um fator de conflito e de indefinição que resultaria da possibilidade do progenitor vinculado ao pagamento da prestação de alimentos poder reduzir ou alterar unilateralmente o valor da prestação alimentar devida às crianças em função da oscilação do vencimento concretamente auferido pelo próprio (ou tendo por base a média anual do vencimento efetivamente auferido), como pretende o recorrente. Aliás, esta interpretação não tem um mínimo de correspondência no texto da cláusula em análise.
Como - bem - salienta o Ministério Público nas contra-alegações de recurso, «afigura-se-nos apodítico que o parâmetro a considerar para efeitos de atualização da pensão será aferido pela percentagem de aumento do salário mínimo nacional, independentemente da circunstância de o requerido poder ter ficado de baixa médica ou, eventualmente, ter deixado de trabalhar num determinado mês. Ou seja, para efeitos da atualização da pensão, o que importa é avaliar a percentagem de aumento do salário do requerido de um ano civil para o outro e não os concretos rendimentos por si auferidos ao longo do ano. A seguir-se a tese do recorrente, se o mesmo se despedisse ou se faltasse ao trabalho, ficaria “isento” do pagamento da pensão durante esse período, o que constituiria um resultado aberrante».
Aliás, o próprio recorrente acaba por reconhecer, ainda que indiretamente, a falta de fundamento da interpretação que preconiza para a cláusula em análise ao reconhecer que «nos anos em que o Recorrente não aufira qualquer valor tem de entregar a pensão determinada» - cf. a conclusão 16.º das alegações. Porém, propõe-se reduzir o valor mensal da prestação de alimentos fixada, defendendo que de acordo com a média de remunerações por si auferidas nos anos de 2018 e 2020, este último até ao mês de agosto inclusive, em 2018 deveria ter pago mensalmente apenas o valor de € 90,00 e, «verificando-se a atual desvalorização, em 2021 pagará somente o montante de € 94,36».
Ora, tal como se refere na sentença recorrida, «não pode ter sido essa a intenção das partes ao indexarem a atualização da obrigação de alimentos à “atualização verificada no vencimento do requerido”», devendo por isso ser considerada a percentagem de aumento da remuneração base mensal auferida pelo recorrente no início de cada ano civil, que, no caso, corresponde efetivamente ao salário mínimo nacional em vigor para cada um dos anos em apreciação.
Por conseguinte, resta confirmar o decidido na sentença recorrida quanto aos valores em dívida a título de atualizações da prestação de alimentos referentes aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 (este último até agosto, data da propositura da ação), os quais foram calculados de acordo o critério previsto por acordo entre os progenitores, aqui recorrente e recorrida, na cláusula 11.ª do acordo da regulação do exercício das responsabilidades parentais em vigor, na parte em que prevê que «a pensão de alimentos será actualizada no início de cada ano civil de acordo com a atualização verificada no vencimento do requerido».
Improcedem, assim, nesta parte, as conclusões da apelação.
Por fim, insurge-se o recorrente contra a decisão recorrida na parte em que entendeu não conceder provimento ao por si alegado quanto à pretendida compensação dos valores declarados em dívida a título de atualizações da prestação de alimentos com os montantes alegadamente entregues em excesso pelo progenitor a título de pensão de alimentos - presumidamente, entre março de 2014 e dezembro de 2016, conforme resulta da matéria de facto vertida em f) e g) dos factos provados - o mesmo invocando relativamente aos valores entregues à requerente/apelada nos períodos em que passa mais tempo com as menores, num total correspondente a um mês de férias por ano.
Neste domínio, o Tribunal a quo entendeu, no essencial, que os montantes pagos em excesso pelo recorrente/progenitor em momento anterior (até 2017) consubstanciam meras liberalidades que não o eximem do cumprimento integral das obrigações alimentícias que em momento posterior se foram vencendo, pelo valor atualizado.
Mais considerou a sentença recorrida que se impunha idêntica conclusão relativamente ao pagamento da pensão de alimentos mesmo nos meses em que o requerido tira férias com as suas filhas, já que nada ficou estipulado que lhe permitisse não efetuar tal pagamento durante esses períodos.
Analisando mais de perto os fundamentos enunciados na sentença recorrida para decidir as questões enunciadas julgamos que o Tribunal a quo fez uma correta avaliação das mesmas, mostrando-se o entendimento vertido na sentença recorrida em conformidade com os critérios legais aplicáveis e de harmonia com o acordado pelos progenitores no acordo homologado por decisão de 21-02-2013, proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 654/2013, que correu termos na Conservatória do Registo Civil de Barcelos, no âmbito do qual foram reguladas as responsabilidades parentais relativas às menores.

O artigo 847.º, n.º 1, do Código Civil, inserido no Capítulo VIII, atinente às causas de extinção das obrigações além do cumprimento, prevê que quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os requisitos enunciados nas suas alíneas:

a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.

Deste modo, a compensação constitui uma causa de extinção das obrigações que se traduz fundamentalmente na extinção de duas obrigações, sendo o credor de uma delas devedor na outra, e o credor desta última devedor na primeira. Representa um encontro de contas, que se justifica pela conveniência de evitar pagamentos recíprocos (13).
Por se tratar de uma causa de extinção das obrigações justifica-se que a lei limite ou condicione o direito de compensação de créditos em situações específicas, como ocorre sempre que estiver em causa a compensação de eventuais créditos do devedor de alimentos com o contra crédito de alimentos.
Como se viu, o n.º 2 do artigo 2008.º do Código Civil afasta, «também contra a regra geral da compensabilidade das dívidas (art. 847.º), a possibilidade legal de o devedor da prestação alimentícia considerar esta extinta por compensação com qualquer crédito de que seja titular contra o seu credor» (14).
Tal como referem Pires de Lima e Antunes Varela (15), «[a] razão da excepção está ainda, manifestamente, no fim singular a que a obrigação alimentícia se destina. A disposição acentua expressamente a ideia de que a impossibilidade legal da compensação se mantém, mesmo que as prestações alimentícias se encontrem vencidas, para afastar a conclusão de que, uma vez provado que a falta de pagamento oportuno de uma ou mais prestações alimentícias não impediu, de facto, que o credor sobrevivesse, desapareceu o obstáculo essencial que impedia a compensação».

Assim, e conforme já decidiu este Tribunal da Relação no acórdão de 10-07-2014 (16):

«1. Os progenitores de um menor, sucessiva e alternadamente obrigados a prestar alimentos a favor dele, não podem, havendo incumprimento, efetuar entre si compensação daqueles créditos.
2. Para além de não serem reciprocamente credor e devedor (nenhum deles é titulares do crédito), a compensação não opera no crédito por alimentos. Se, no caso, a admitíssemos, o menor ficaria prejudicado por falta de alimentos judicialmente fixados no seu interesse, com injustificado benefício dos pais obrigados, à margem da reavaliação das suas necessidades e das possibilidades dos últimos».
Além da lei expressamente proibir ao devedor de alimentos a possibilidade de recurso à compensação, observa-se que a sentença recorrida entendeu - e bem - que os montantes pagos em excesso pelo recorrente/progenitor em momento anterior (até 2017) consubstanciam meras liberalidades que não o eximem do cumprimento integral das obrigações alimentícias que em momento posterior se foram vencendo, pelo valor atualizado.
Com efeito, refere a propósito o citado Acórdão TRL de 20-12-2018, em moldes que entendemos de sufragar integralmente: «nada impede que o devedor de alimentos os preste em montante superior àquele a que está obrigado, sem que daí se possa retirar a conclusão de que esse cumprimento dá lugar a uma verdadeira novação da obrigação alimentar, ou seja a substituição da obrigação de pagar a prestação decorrente do acordo dos autos por uma outra diversa, em natureza e/ou montante.
Por corresponder a uma liberalidade, podia tal pagamento cessar a qualquer tempo, como efetivamente sucedeu».
Seguindo idêntico entendimento, decidiu-se no Acórdão TRC de 08-05-2007 (17) «o abono pelo obrigado a alimentos de quaisquer quantias em dinheiro à margem ou para além do montante pecuniário que lhe haja sido judicialmente fixado, ainda que em regime provisório, mais do que uma simples liberalidade, só pode ter a natureza e o significado do cumprimento de um dever moral, sem exigibilidade jurídica, nos termos do art.º 402 do CC. E por não dispor da nota distintiva do crédito coercivamente exigível, tal abono também nunca pode servir de meio de compensação de uma obrigação civil – art.º 2008 do CC, nº 2, 2ª parte - por força dos pressupostos definidos no art.º 847 do CC».
Por conseguinte, bem andou o Tribunal a quo ao negar a compensabilidade dos créditos invocados pelo recorrente.
Tal conclusão impede também a procedência das conclusões apresentadas pelo recorrente a propósito da pretendida compensação dos valores alegadamente entregues pelo recorrente à apelada nos períodos em que passa mais tempo com as menores, num total correspondente a um mês de férias por ano, conforme pretendido pelo recorrente.
Ainda assim importa salientar que a solução que o recorrente defende neste domínio não resulta consubstanciada na matéria de facto vertida nos autos.
Com efeito, percorrendo os factos provados decorre dos mesmos que no regime em vigor não ficou estabelecida qualquer cláusula restritiva que permita isentar o requerido/pai do pagamento das prestações de alimentos devidas nos períodos de férias que passa com as filhas (quer no acordo homologado por decisão de 21-02-2013, proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 654/2013, que correu termos na Conservatória do Registo Civil de Barcelos - no âmbito do qual foram reguladas as responsabilidades parentais relativas às menores -, quer na alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais subsequente).
Ora, como já atrás referimos, em sede de regulação do exercício das responsabilidades parentais os progenitores devem cumprir o regime estabelecido nos seus precisos termos, só assim se garantindo as condições de certeza e segurança essenciais para a adequada proteção do superior interesse da criança.
Também aqui a natureza da obrigação alimentícia dos progenitores para com os filhos, que como vimos já é contínua, indisponível e incondicional, integrando o conteúdo das responsabilidades parentais, impede o progenitor que não reside habitualmente com os menores de reduzir a prestação de alimentos, já fixada, em função do tempo que passa com os filhos (18).
Como - bem - salienta a propósito o Ministério Público nas contra-alegações de recurso, «[q]uando o Tribunal fixa uma prestação alimentícia (ou quando os progenitores acordam nesse sentido) tem-se já em conta os períodos de permanência da criança com cada um dos progenitores e, portanto, tem-se como adquirido que durante o convívio das crianças com o progenitor não residente é este quem assegura a alimentação dos filhos e as demais despesas correntes que se justificarem (shampoo, gel de banho, pasta dos dentes, protetor solar, despesas lúdicas, internet, etc.), ou seja, a pensão alimentícia é calculada já com essas condicionantes no horizonte.
Mas, como se disse, a pensão não se destina só ao sustento, incluindo também a habitação, o vestuário, a educação e a instrução.
Nesse pressuposto, não faz qualquer sentido suspender-se o pagamento da pensão no período de férias em que os menores estiverem com o progenitor não guardião. Por essa ordem de ideias, nas visitas de fim de semana a pensão também teria que ser “descontada” proporcionalmente.
Ou seja, a pensão tem que ser paga 12 meses ao ano porque as necessidades das crianças assim o demandam».
Deste modo, revelam-se inconsequentes e absolutamente inócuos todos os argumentos invocados pelo recorrente a propósito da pretendida compensação dos valores das prestações de alimentos correspondentes aos períodos em que passa mais tempo com as menores, num total correspondente a um mês de férias por ano.
Como tal, não merece a sentença recorrida qualquer censura pois interpretou de forma adequada e ponderada as determinações legais e os princípios imperativos aplicáveis ao caso.
Daí que improcedam integralmente as conclusões da apelação.
Pelo exposto, cumpre julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada improcedente, as custas da apelação são integralmente da responsabilidade do recorrente, atento o seu decaimento.

Síntese conclusiva:

I - A inclusão de uma cláusula de atualização do montante das prestações de alimentos devidos a menores configura um elemento essencial para impedir a erosão monetária do valor fixo estabelecido em prestações pecuniárias mensais, visando por isso essencialmente a prossecução e a prevalência do interesse da criança ou do jovem alimentando para que a organização da sua vida e o seu desenvolvimento se processem em condições de estabilidade e garantindo em qualquer situação a sua subsistência.
II - A eventual oscilação negativa dos valores dos índices concretamente utilizados como critério de atualização anual da prestação de alimentos nunca pode ter um impacto negativo no valor das prestações mensais de alimentos a pagar, não implicando a sua redução ou diminuição no ano seguinte, apenas permitindo, nesses casos, que o valor previamente fixado não sofra qualquer variação.
III - Por se tratar de uma causa de extinção das obrigações, justifica-se que a lei limite ou condicione o direito de compensação de créditos em situações específicas, como ocorre sempre que estiver em causa a compensação de eventuais créditos do devedor de alimentos com o contra crédito de alimentos.
IV - Além da lei expressamente proibir ao devedor de alimentos a possibilidade de recurso à compensação, deve entender-se que os montantes pagos em excesso pelo progenitor obrigado a alimentos, para além do montante pecuniário que lhe haja sido judicialmente fixado, consubstanciam meras liberalidades que não o dispensam do cumprimento integral das obrigações alimentícias que em momento posterior se foram vencendo, pelo valor atualizado.
V - A natureza da obrigação alimentícia dos progenitores para com os filhos, que como vimos já é contínua, indisponível e incondicional, integrando o conteúdo das responsabilidades parentais, impede o progenitor que não reside habitualmente com os menores de reduzir a prestação de alimentos, já fixada, em função do tempo que passa com os filhos.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, assim confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas da apelação pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Guimarães, 27 de maio de 2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Joaquim Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)


1. Cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 126.
2. Cf. Abrantes Geraldes, Ob. cit. p. 128 - nota 5.
3. Neste sentido, cf. o Ac. TRL de 20-12-2018 (relator: Diogo Ravara), p. 2192/15.5T8BRR-H.L1-7disponível em www.dgsi.pt.
4. Relatora Maria João Areias, p. 405/09.1TBCNT.C1 disponível em www.dgsi.pt.
5. Cf., Rute Teixeira Pedro, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Volume II, Coimbra, Almedina, 2017, p. 627-628.
6. Cf. Helena Bolieiro e Paulo Guerra, A Criança e a Família – Uma Questão de Direito (s) - Coimbra Editora – 2009, pgs. 156 e 157.
7. Relator Ramos Lopes, p. 3234/08.6TBVCD.P1 disponível em www.dgsi.pt.
8. Cf., Ana Sofia Gomes, Responsabilidades Parentais, 2.ª edição, Lisboa, Quid Juris?, 2009, p. 45.
9. Cf. Helena Bolieiro e Paulo Guerra, Ob. Cit., p. 156 e 157.
10. Cf. o Ac. TRP de 20-02-92 (relator: Sampaio da Nóvoa), p. 9120719 cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt.
11. No sentido de que apenas as variações positivas dos índices utilizados na atualização do montante das pensões de alimentos relevam para a atualização de tal montante (não relevando as variações negativas), cf. o Ac. TRL de 05-12-2019 (relator: Eduardo Petersen Silva), p. 2018/07.3TBBRR-A.L2-6 disponível em www.dgsi.pt.
12. Cf., a propósito, o Ac. TRL de 19-09-2007 (relatado por Salazar Casanova), p. 7548/2007-8disponível em www.dgsi.pt.
13. Cf. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2013, pg. 1099.
14. Cf., Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora Limitada, 1995, p. 590.
15. Ob. e loc. Cit.
16. Relator Filipe Caroço, p. 1778/05.0TBEPS-T.G1, acessível em www.dgsi.pt.
17. Relator Freitas Neto, p. 817/04.7TMCBR-A.C1, acessível em www.dgsi.pt.
18. No sentido de não dever ser admitida a redução dos alimentos em função do tempo que o progenitor sem a guarda passa com o filho, para evitar que o aumento do direito de visita seja utilizado pelos pais a fim de conseguirem uma diminuição da obrigação de alimentos, cf., por todos, Helena Bolieiro e Paulo Guerra, Ob. Cit., p. 216.