RECUSA DE REGISTO PREDIAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
LEGITIMIDADE
TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
Sumário

I – Nos termos do art.º 141.º, n.º 4 do Código do Registo Predial a legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial compete ao apresentante do registo ou a pessoa que por ele tenha sido representada.
II – A interpretação do preceito em causa deve sempre ser feita em moldes que não impeçam a pessoa, singular ou coletiva, diretamente afetada, de poder reagir contra uma decisão desfavorável quando o notário, no exercício de um dever legal ou enquanto representante, ainda que tácito, daquela, foi o apresentante formal desse registo.
III – Na ponderação da aplicação da norma, há que atender ao denominado “interesse em agir” relativamente à pessoa em cuja esfera jurídica se projetam, direta e imediatamente, os efeitos decorrentes da decisão de recusa tomada no âmbito do registo predial.
IV – Como critério ponderoso para aferição da legitimidade do recorrente ou impugnante, deve aclarar se a pessoa afetada ficou totalmente na dependência de uma reação ativa do notário e, caso tenha ocorrido a inação deste, deverá avaliar-se dos motivos que a explicam.
V – Concluindo-se que tal inação decorreu da circunstância de o notário entender ter agido sempre em representação daquela pessoa, singular ou coletiva, deve atribuir-se legitimidade processual à pessoa em causa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 141º, nº4 do Código do Registo Predial; só desta forma será asseverada uma concreta tutela jurisdicional efetiva, consagrada constitucionalmente.

Texto Integral

Processo n.º 1060/20.3T8VCD.P1

Sumário elaborado pelo relator:
(art. 663º, nº 7, do Código do Processo Civil)
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Acórdão

I – Relatório
“B…, S.A.” veio, ao abrigo do disposto no artigo 145º do Código de Registo Predial, apresentar impugnação judicial após decisão desfavorável proferida no âmbito do recurso hierárquico por si interposto por força da recusa dos registos prediais a que se reportam as apresentações 3451 e 3452 de 20-05-2020.
Alega, em síntese breve, quanto à questão relativa à legitimidade que o Notário em apreço apresentou as servidões a registo, não no seu interesse próprio, mas no interesse e em representação da impugnante, não podendo esta ficar dependente da vontade deste para o efeito de recorrer hierarquicamente; por sua vez, quanto à decisão de qualificação de recusa dos registos de servidões, estas foram constituídas voluntariamente pela impugnante, através de escritura pública, designando-se as mesmas como servidões por destinação do pai de família, pelo que inexistem razões para a dita recusa.
O Ministério Público deu parecer em que acompanha a posição constante da decisão administrativa recorrida.
Por sua vez, o Exm.º Senhor Notário C… requereu a sua intervenção como assistente, para auxiliar a impugnante.
O tribunal de primeira instância proferiu sentença, ora sob recurso, a qual se reproduz na respetiva parte dispositiva:
V. Decisão:
Em face do exposto, não admito o incidente de intervenção como assistente formulado pelo Exm.º Senhor Notário C… e, por falta de legitimidade da impugnante “B…, S.A.”, não admito o recurso interposto pela mesma.
Custas pela recorrente e pelo interveniente.
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Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a autora, formulando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso é interposto da decisão do Tribunal de Primeira Instância que considerou que o mesmo não deve ser admitido, por ilegitimidade da ora Recorrente.
2. No entanto, ao contrário do entendimento do sufragado na sentença recorrida, a ora Recorrente tem legitimidade para recorrer hierarquicamente e/ou impugnar judicialmente a decisão de recusa de registos da constituição de duas servidões do pai de família.
3. Motivo pelo qual se impõe alterar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, devendo ser conhecida a questão substantiva trazida pela ora Recorrente.
4. Porquanto, o Tribunal de Primeira Instância faz uma interpretação incorreta da norma prevista no artigo 141.º, n.º 4 do Código do Registo Predial (CRP).
5. O artigo 141.º, n.º 4 do referido diploma confere legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial ao “apresentante do registo ou a pessoa que por ela tenha sido representada”.
6. Por seu turno, o art. 8.º- B do CRP dispõe que "devem promover o registo dos factos obrigatoriamente a ele sujeitos as entidades que celebrem a escritura pública, (…) ou, quando tais entidades não intervenham, os sujeitos ativos do facto sujeito a registo.”
7. O registo dos atos em causa é obrigatório, nos termos dos artigos 8.º-A, n.º 1, alínea a) e 2.º, n.º 1, alínea a) do CRP.
8. O Exmo. Sr. Notário promoveu imediatamente o registo das servidões, mas fê-lo em representação e em nome da ora Recorrente (o único sujeito ativo e beneficiária dos factos levados a registo).
9. Dispondo o art. 39.º, n.º 2, alínea b) do CRP que os notários não carecem de procuração para requerer o registo.
10. Assim, é evidente que a ora Recorrente esteve devidamente representada no processo registral.
11. Não é aceitável concluir que, por não lhe ter sido feita qualquer menção na submissão do pedido de registo, a ora Recorrente se colocou à margem do mesmo e que, por essa razão, não tem legitimidade para reagir perante a decisão de recusa de registos, sob pena de se colocar em causa o princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
12. À luz daquele princípio e tendo em consideração que é a única que tem interesse directo no registo dos factos em questão, é totalmente inaceitável que a ora Recorrente ficasse dependente da vontade do Exmo. Sr. Notário para o efeito de reagir perante a recusa dos mesmos.
13. Face ao supra exposto, deve o Tribunal “a quo” conhecer da impugnação judicial apresentada pela ora Recorrente, dado que a mesma esteve de devidamente representada no ato registal e, por isso, tem legitimidade para reagir perante a recusa dos registos.
Termina peticionando que o recurso seja julgado procedente, nos termos das conclusões formuladas.

II – Delimitação do objeto do recurso; questões a apreciar.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam.
O presente recurso coloca uma questão única: aferir da legitimidade da requerente para recorrer hierarquicamente e/ou impugnar judicialmente a decisão de recusa de registos prediais proferida nos autos.

III – Factos Provados
Pela 1ª instância, foram dados como demonstrados os seguintes factos:
1. Em 17-05-2019, foi promovido pelo Exm.º Senhor Notário C… o pedido de registo de servidão, sobre os prédios descritos sob os n.ºs …, …, …, …, … e … da freguesia …, concelho do Seixal, sendo que, no campo disponibilizado sob a rubrica "Legitimidade e Representação", nada foi referido quanto à eventual representação dos sujeitos da relação substantiva.
2. Foram proferidos despachos de qualificação em que foram recusados os registos de servidão por destinação do pai de família, com os fundamentos descritos a fls. 144 a 167, que aqui se dão por reproduzidos.
3. Em 27-02-2020, a “B…, S.A.” interpôs recurso hierárquico dos despachos de recusa de registo a que reportam as apresentações 3451 e 3452;
4. Em 05-03-2020 foram proferidos despachos de sustentação da decisão de recusa do registo.
5. O recurso hierárquico interposto por indeferido por falta de legitimidade da recorrente através de decisão proferida em 02-07-2020 pelo Presidente do Conselho Directivo do Instituto de Registos e Notariado.

IV – Fundamentação de Direito
Em termos de enquadramento legal, tal como se indica na sentença recorrida, o Código de Registo Predial regula, nos artigos 140.º a 149, correspondentes ao Título VII, a matéria da impugnação das decisões do conservador. Ora, no que concerne à intervenção como assistente nos autos do Sr. Notário, segundo a decisão apelada, “não existe, na aludida regulamentação, qualquer previsão da admissibilidade de intervenção de terceiros” sendo que o recurso subsidiário ao disposto no Código de Processo Civil, nos termos do disposto no artigo 156.º do Código de Registo Predial, implicaria a existência de uma lacuna que, no caso, inexiste. Relativamente, em concreto, à (i)legitimidade da impugnante, a douta decisão indica novamente o preceituado legal, na circunstância o n.º 4 do artigo 141.º do Código de Registo Predial, o qual atribui legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial ao apresentante do registo ou a pessoa que por ele tenha sido representada. Sucede que, na situação em apreço, foi o Exm.º Senhor Notário C… que efetuou o pedido de registo de servidão, sobre os prédios descritos sob os n.ºs …, …, …, …, … e … da freguesia …, concelho do Seixal, sendo que, no campo disponibilizado sob a rubrica "Legitimidade e Representação", nada foi referido por este quanto à sua representação dos sujeitos da relação substantiva, designadamente a ora apelante. Por sua vez, esta poderia ter pedido o registo, nos termos do artigo 36.º do Código de Registo Predial, e não o fez.
Deste modo, invoca-se, designadamente, o Acórdão desta Relação de 02-07-2015, disponível em dgsi.pt, segundo o qual) “(…) a recorrente (sujeito activo do facto registado), ao não subscrever o pedido de registo, pôs-se à margem do processo de registo, instaurado com o pedido que foi subscrito apenas pela notária. Assim, a recorrente auto excluiu-se liminarmente do direito de provocar a reapreciação, em sede de recurso, da decisão registal desfavorável aos seus interesses.” Ou seja, no âmbito da relação registal, o único interlocutor válido é o(a) apresentante “ por ter sido quem promoveu e desencadeou o procedimento respectivo e ao qual é dado conhecimento da recusa ou da qualificação do registo (artigo 71.°, n.°s 1 e 2, do Código de Registo Predial), assistindo-lhe, assim, legitimidade para impugnar o acto”. Relativamente ao direito a uma tutela judicial efetiva, constitucionalmente assegurados, os mesmos estariam assegurados através da possibilidade de a ora impugnante proceder a nova apresentação do registo e, após, reagir contra decisões que eventualmente lhe sejam desfavoráveis.
Dissente a recorrente.
Alega que o art. 141.º, n.º 4 do Código do Registo Predial (CRP), já citado, deve ser conjugada com a norma prevista no art. 8. - B do CRP, a qual dispõe que “devem promover o registo dos factos obrigatoriamente a ele sujeitos as entidades que celebrem a escritura pública, (…) ou, quando tais entidades não intervenham, os sujeitos ativos do facto sujeito a registo.” “In casu”, sempre havia obrigatoriedade dos registos das servidões, conforme disposto no artigos 8.º-A, n.º 1, alínea a) e 2.º, n.º 1, alínea a) do CRP tendo sido o Exmo. Sr. Notário que, tendo celebrado a escritura pública, promoveu imediatamente o dito registo das servidões mas devendo ser tido como tendo agido em representação e em nome da ora Recorrente (o único sujeito ativo dos factos levados a registo), dispondo o art. 39.º, n.º 2, alínea b) do CRP que os notários não carecem de procuração para requerer o registo. Neste sentido, sublinha a ora recorrente ter sido esta a pagar o pedido de registo, a pedido do Exmo. Sr. Notário.
Entende, em consequência, estarmos perante um “excesso de formalismo” quando agora se exige que, no requerimento de submissão do pedido de registo, tivesse aquele de indicar estar a atuar em nome e representação da recorrente tanto mais que esta é o único sujeito ativo do registo
“Sabendo-se que a ora Recorrente é a única beneficiária dos factos que foram levados a registo e, portanto, a única afetada pela sua recusa”, sempre a esta deveria ter sido dada a possibilidade de reagir nos moldes em que o fez sob pena de colocar em causa o princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa; deve ainda ter-se como inaceitável que a ora Recorrente fique dependente da vontade do Exmo. Senhor Notário, por ter sido este o apresentante dos pedidos de registo, para o efeito de reagir (ou não) perante factos do seu interesse direto.
Cumpre apreciar e decidir.
A questão tem vindo a ser tratada e decidida em vários arestos jurisprudenciais. E, nesta matéria, o nosso STJ veio, em 2019, inflectir o que parecia ser um consenso jurisprudencial que, no essencial, vinha ao encontro da decisão recorrida na qual, aliás, se citam várias decisões num mesmo sentido.
Como testemunho dessa orientação dos tribunais, anote-se o Acórdão da Relação de Évora de 8 de Fevereiro de 2018, processo nº715/17.4T8STR.E1, disponível em dgsi.pt, em cujo sumário se afirma lapidarmente: “quem não apresentou o facto a registo, apesar de ser sujeito da relação jurídica, não tem legitimidade para impugnar hierárquica ou judicialmente a decisão do conservador que recusou o referido registo.”
A fundamentação surge linear e decorre, no essencial, do texto legal e do espartilhamento que o mesmo impõe a partir do estatuído no art.º 141.º, n.º 4 do CRP: “Tem legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial o apresentante do registo ou a pessoa que por ele tenha sido representada”.
A douta fundamentação do aresto em causa aponta os diversos acórdãos no mesmo sentido, além dos elencados também na decisão apelada, e em vários pareceres do Instituto dos Registos e Notariado perentórios nesta matéria. Donde, cita-se um acórdão desta Relação de 19.12.2012, citando este, por sua vez, pareceres emitidos pelo Conselho Técnico do IRN, explicando que “não existe qualquer interesse direto, indireto, público ou privado que justifique a atribuição de legitimidade autónoma a quem se alheou da promoção do registo” e, mais adiante, reafirma-se que “a legitimidade para impugnar o ato de registo levado a cabo pelo sujeito que o promoveu, está condicionada, pelo menos, à sua promoção (ainda que o registo não seja (concretizado nos termos requeridos), ou seja, a legitimidade para colocar em crise o ato promovido, mas não realizado nos termos em que o foi, estabelece-se entre esse sujeito que o requereu e a identidade que praticou o ato impugnado.”
Destarte, “ao não subscrever o pedido de registo, a recorrente (sujeito activo do facto registado) pôs-se à margem do processo de registo, instaurado com o pedido que foi subscrito apenas pela notária. Ao não acompanhar aquele pedido, a recorrente auto-excluiu-se liminarmente o direito de provocar a reapreciação da decisão registral desfavorável em sede de recurso.” E mais adiante, reitera-se: “a intervenção de terceiros, em relação a esta relação, ainda que tenham tido intervenção na realização dos atos subjacentes ao pedido de registo, …, se não interveio na relação registral por não ter promovido o registo do mesmo, apresenta-se como terceiro nessa relação registral, não sendo titular de qualquer interesse em conflito ou sequer da relação de direito substantivo implicada e a tutelar, não se podendo considerar vencido ou prejudicado com a decisão.”
Porém, o recurso de revista subsequente desembocou num acórdão do STJ em sentido oposto, com a decorrente revogação desta decisão.
Sem acesso ao texto efetivo da decisão, socorramo-nos do (extenso) sumário que convirá elucidar:
“I - O promitente-comprador que, apesar de ter legitimidade para o fazer, não requer o registo do contrato-promessa de constituição do direito de superfície, e não é, por isso, prima facie, parte da relação registral, pode, ainda assim, impugnar hierárquica ou judicialmente a decisão da Conservatória que recuse o respetivo pedido de registo, efetuado pelo notário que não fez saber, junto da Conservatória, tácita ou expressamente, que agia em nome daquele.
II – O recurso aos diversos cânones hermenêuticos permite afirmar este mesmo resultado.
III - Não deve dissociar-se a legitimidade para a apresentação do facto a registo da legitimidade para interpor o recurso hierárquico a que se refere o art. 141.º, n.º 4, do CRgP.
IV - A titularidade do direito e do interesse confere ao promitente-comprador particular legitimidade – legitimidade per se - para interpor recurso hierárquico da decisão da conservatória de recusa do pedido de registo efetuado pelo notário.
V - Está em causa um modo de agir no interesse e por conta de outrem. Um dos titulares do interesse do agir da Senhora Notária é, indiscutivelmente, o promitente-comprador, enquanto sujeito ativo do facto sujeito a registo. O registo predial tem também em vista a defesa dos direitos privados. O promitente-comprador arca igualmente com os custos implicados pela atividade desenvolvida pelo notário, que se possam considerar, naturalmente, decorrentes do seu agir no interesse e por conta dele.
VI - Há que atender sempre à pessoa a quem pertence o interesse subjacente ao agir, à pessoa em cuja esfera jurídica se projetam os efeitos do agir.
VII - Não faria sentido, por outro lado, que ao promitente-comprador não fosse consentido lançar mão do recurso hierárquico quando sobre o notário – independentemente de se tratar ou não de um ato sujeito a registo obrigatório – não impende qualquer dever legal ou estatutário de o fazer.”
Aventemos, desde já, que somos sensíveis à argumentação expressa pelo nosso Supremo Tribunal muito embora entendamos que a intervenção nos autos do Notário deva ser tida, no nosso específico caso, como agindo em representação da ora apelante, ultrapassando assim o obstáculo legal decorrente do já citado artigo 141º, nº4 do CRP.
Procuremos detalhar porquê.
Comecemos por escalpelizar o caso concreto. O apresentante – no caso, o Exmo. Sr. Notário – expressou, processual e materialmente, qual o seu inequívoco posicionamento em relação a esta discordância face à decisão da Conservatória. Como se alcança dos autos, de “motu proprio”, sem prejuízo do indeferimento de tal intervenção, o Notário em causa veio requerer, em 23-07-2020, a sua intervenção como assistente com o intuito justamente de auxiliar a impugnante, nos termos do artigo 326.º do Código do Processo Civil (CPC) “ex vi” artigo 156.º do Código de Registo Predial. Ou seja, o Notário expressou, formalmente, interesse em que “a decisão do pleito seja favorável” (na terminologia do referenciado artigo 326º do CPC) ao ora recorrente. Além disso, em linha com o que se defende no citado aresto do STJ em situação em tudo similar à dos autos, a requerente arcou com os custos decorrentes da atividade desenvolvida pelo notário; foi a ora apelante a única a requerer o registo das presentes servidões prediais e, por isso, a arcar com as decorrentes despesas notariais tendo ainda pago, conforme se alega, a própria despesa do registo (vide artigo 29º das alegações de recurso); acresce que a Conservatória aceitou a intervenção da empresa em causa, a única com um interesse direto e imediato na procedência dos pedidos de registo formulados, como o demonstram os despachos de sustentação da decisão de recusa do registo pela Exma. Sra. Conservadora, onde consta expressamente, como questão prévia, que “a parte é legítima, o processo é próprio e tempestivo”.
Ninguém duvida que a recorrente tem interesse em agir; será ela a interessada principal, dir-se-á a única, no destino desta ação, em a fazer prosseguir. “In casu”, o interesse em agir enquanto pressuposto processual que se traduz “na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir o processo” (citando Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pgs. 186 e 187) ou na “idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação” (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, II, pg. 253) materializa-se, inequivocamente, na pessoa da sociedade apelante.
A inação do Notário em reagir contra a recusa do registo por si requerido, ainda que substancialmente mitigada atento o requerimento para se constituir, ele próprio, como assistente, deixa a interessada direta na obtenção de tal registo irremediavelmente arredada de qualquer possibilidade de fazer valer o seu pretendido direito tanto mais que, pese o interesse de natureza pública que esteve na origem da intervenção notarial, nada obriga, legalmente, o Notário a reagir contra a recusa decretada. Nos termos do artigo 8º-B do CRP, o Notário, ao celebrar a presente escritura pública, estava sujeito ao dever legal de promover o registo destes factos; apenas no caso de não ter intervido, caberia aos “sujeitos ativos do facto sujeito a registo” tal tarefa.
Entendemos ainda que nos casos, que não o dos autos, em que a promoção do registo dos factos não é obrigatória, nomeadamente por o registo ser apenas provisório por natureza, como ocorre nas situações previstas no artigo 92.º, nº1 do CRP, dever-se-á concluir não agir o Notário na qualidade de sujeito da obrigação de registar mas, por via de regra, enquanto representante da parte envolvida nos termos previstos no art. 39.º, nº2, alínea b) do mesmo Código; donde ao interessado em causa terá de atribuir-se legitimidade para impugnar hierárquica ou judicialmente uma eventual recusa.
Ora, no caso vertente, é o próprio Sr. Notário que afirma, no requerimento em que requer a intervenção como assistente, ter agido “em representação da impugnante B… que é o sujeito ativo dos factos sujeitos a registo”; aliás é justamente por ter intervindo, no seu entendimento, em representação de outrem que, no presente processo, não quis assumir-se como parte principal. Por isso, alega textualmente: “sendo, portanto, de concluir que o requerente tem interesse em intervir na qualidade de assistente da impugnante, titular do interesse directo.”
Não nos cabe escrutinar, em sede de recurso, das razões pelas quais foi descartada a intervenção processual do Sr. Notário a qualquer título, mesmo como mero assistente. Porém, julgamos que a atitude descrita deve ser tida, no mínimo, como a de alguém que agiu claramente em representação da ora recorrente. E isto independentemente do convencionalismo formal relativo ao modo de preenchimento do formulário de registo.
Julgamos ser esta a interpretação mais adequada, sistemicamente coerente e uniforme.
Porém, mesmo que se não adira à solução por nós propugnada, então haveria, em especial face a todo o circunstancialismo descrito, que definitivamente aderir ao entendimento do STJ no sentido do qual, ainda que se suponha que o notário não fez saber, junto da Conservatória, tácita ou expressamente, que agia em nome da ora recorrente, esta “pode, ainda assim, impugnar hierárquica ou judicialmente a decisão da Conservatória que recuse o respetivo pedido de registo”; não faria, a nosso ver, sentido, no caso em apreço, que à empresa B… não fosse consentido lançar mão do recurso hierárquico e subsequente impugnação judicial quando sobre o notário – independentemente de estarmos aqui perante um ato sujeito a registo obrigatório – não impende qualquer dever legal ou estatutário de o fazer e quando se apurou que, afinal, o mesmo notário, ele mesmo, entende ter agido em representação daquela empresa e expressamente invocou essa qualidade de representante nos presentes autos.
Em síntese, diríamos que, na ponderação da aplicação do artigo 141.º, n.º 4 do Código do Registo Predial segundo a qual a legitimidade para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial compete ao apresentante do registo ou a pessoa que por ele tenha sido representada, há que atender sempre ao denominado “interesse em agir” relativamente à pessoa em cuja esfera jurídica se projetam, direta e imediatamente, os efeitos decorrentes da decisão de recusa. Essa constitui uma exigência decorrente da proteção da tutela jurisdicional efetiva, valor relevantíssimo, de natureza constitucional, o que implica que se atenda, como critério ponderoso para aferição da legitimidade do recorrente ou impugnante, à circunstância da pessoa afetada ter sido posta na dependência total de uma reação ativa do notário, apurando-se ainda, em concreto, dos motivos pelos quais se explicará uma eventual inação na conduta do notário, explicável, no nosso caso, pelo facto de o mesmo sempre ter entendido agir apenas em representação da empresa recorrente.
Haverá, portanto, que concluir ser a “B…, S.A.” parte legítima, estando sempre nos autos como parte principal representada pelo Exmo. Sr. Notário, com a decorrente procedência da apelação deduzida.

V - Decisão
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar procedente o recurso interposto, determinando-se, face à legitimidade da ora apelante, que o tribunal recorrido conheça da impugnação judicial apresentada.
Custas devidas a final.

Porto, 11 de Maio de 2021
José Igreja Matos
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues