PROVA PROIBIDA
DEPOIMENTO MILITAR GNR
EXPLORAÇÃO ILÍCITA JOGO
ELEMENTOS DO CRIME
Sumário


I. Não é prova proibida o depoimento do agente da GNR que relata em audiência o que o arguido lhe disse num momento em que ainda não tinha sido constituído como tal e não havia processo, encontrando-se o agente a recolher elementos para preencher o auto de notícia.
. A possibilidade de contraditório não fica invalidada se, perante esse depoimento, o arguido optar por continuar a remeter-se ao silêncio, como era seu direito, mas que poderia não ter usado.
II. São elementos típicos do crime de exploração ilícita de jogo os seguintes:
- objetivos -
. a exploração de jogos de fortuna ou azar;
. que essa exploração se processe por qualquer forma;
. a exploração de tais jogos e por tais formas fora dos locais legalmente autorizados;
- subjetivo-
. a existência de dolo em qualquer das suas modalidades.
III. É de fortuna ou azar o jogo em que o jogador só tem intervenção ativa no início, quando coloca a moeda na máquina, não podendo através da sua perícia influenciar o resultado ou pontuação final, que assenta exclusivamente no fator sorte, e em que pode auferir uma vantagem patrimonial de valor variável, dependente da pontuação obtida, que é paga em dinheiro, ou nem sequer auferir qualquer prémio.

Texto Integral


Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 412/17.0GACBT, do Juízo Local de Competência Genérica de Celorico de Basto, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi submetido a julgamento o arguido D. R., com os demais sinais dos autos.
A sentença, proferida a 10 de novembro de 2020 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
«Em face do supra exposto, o Tribunal decide:
Julgar o arguido D. R. autor imediato e material, na forma consumada, e com dolo direto, de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelos artigos 14º, n.º 1; 26º, 1ª parte do Código Penal e artigos 1º; 3º; 4º, n.º 1, alínea g) e 108º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02 de dezembro, e, em consequência:
Condena o arguido na pena de 4 (quatro) meses de prisão e 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros);
Substitui a pena de 4 (quatro) meses de prisão por 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros);
Condena o arguido no somatório das penas de multa aplicadas, designadamente, em 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia global de €1.020,00 (mil e vinte euros).
Condenar o arguido D. R. no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2,5UC, nos termos dos artigos 513º, n.ºs 1 a 3 e 514º do Código de Processo Penal, 8º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

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Do destino das coisas ou objetos apreendidos:
Declara-se perdidos a favor do Estados os bens identificados nos autos de apreensão de fls. 15, à exceção do dinheiro/quantia monetária.
Mais se ordena a sua destruição, pela autoridade apreensora, devendo ser lavrado o respetivo auto.
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Declaram-se perdidas a favor do Fundo de Turismo as quantias apreendidas nos presentes autos (cfr. fls. 15 e 16).
Providencie pelo destino da quantia.
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Estatuto coativo:
D. R. foi sujeito à medida de coação Termo de Identidade e Residência, prevista no artigo 196º do Código de Processo Penal.
Nos termos do artigo 214º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Penal, a medida de coação Termo de Identidade e Residência apenas se extingue com a extinção da pena.
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Após trânsito remete boletins ao Registo Criminal.
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Notifique e proceda ao depósito da sentença, nos termos dos artigos 113º, n.º 10; 333º, n.º 5; 372º, n.ºs 4 e 5 e 373º, n.º 2 do Código de Processo Penal.»
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Inconformado, o arguido D. R. interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«A) O Tribunal a quo deu erradamente determinada matéria de facto como provado, incorrendo assim em erro notório de julgamento na apreciação da prova, o que inquina o sentido da decisão final, pelo que o presente recurso tem por objecto a matéria de facto dada como provada e não provada – art.º 412, n.º 3 do Cód. de Proc. Penal.
B) Concretamente, o Tribunal a quo errou notoriamente na apreciação da prova ao dar como provada a factualidade dos pontos 1º («O arguido D. R. explorou o estabelecimento de restauração denominado “Café ...”, sito na Rua ..., …, no concelho de Celorico de Basto, na data dos factos em apreço.”), 2º («No âmbito das suas funções, compete ao arguido, além do mais, adquirir e supervisionar o funcionamento e exploração de equipamentos de diversão ali utilizados.”;), 3º («(…) o arguido (…)»), 6º («(…) Os prémios são entregues à razão pecuniária de € 1,00 (um euro) por ponto.»), 8º («No circunstancialismo espácio-temporal supra descrito o arguido não era titular de licença ou qualquer outro documento válido que lhe permitisse a exploração de jogos de fortuna e azar, nomeadamente da máquina identificada, no citado estabelecimento comercial.»), 9º («O arguido não possuía qualquer licença para a exploração de jogos de fortuna e azar no referido estabelecimento, conhecia as características da máquina e do jogo que executavam e quis explorá-la nas condições mencionadas, bem sabendo que não é permitida a exploração dos jogos descrito fora das zonas criadas por lei para esse efeito.») e 10º («O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.»).
C) Quanto à FALTA DE PROVA DE QUE O ARGUIDO ERA O EXPLORADOR DO ESTABELECIMENTO E POR ISSO AUTOR DO CRIME (pontos 1º, 2º, 3º, 8º, 9º e 10º dos factos provados), nenhuma prova foi produzida para além do depoimento das testemunhas A. P. e V. M., tendo sido com base nas suas declarações em audiência de julgamento que o Tribunal a quo deu como provado que era o aqui recorrente quem explorava o estabelecimento de restauração denominado «Café ...» e, por isso, quem praticou os factos, sendo nesta decorrência o autor material do crime.
D) O grande ponto de discordância do recorrente com o decidido em primeira instância reside na valoração do depoimento das testemunhas A. P. e V. M. uma vez que estas duas testemunhas são os militares da GNR que procederam à «fiscalização» do estabelecimento de restauração.
E) Erradamente o Tribunal a quo entendeu que poderia valorar e livremente apreciar os depoimentos prestados pelos militares da GNR, na sua íntegra, nomeadamente o relato das declarações perante si prestadas pelo arguido no acto da fiscalização o que inquina a boa decisão da causa, a decisão final e assim o sentido da sentença, fazendo tábua rasa do disposto no n.º 7 do art.º 356º e do art.º 357º do Cód. de Proc. Penal.
F) O arguido, ora recorrente, não prestou declarações na audiência de julgamento e não requereu a leitura das declarações que por si alegadamente prestadas aos militares da GNR e vertidas no auto de notícia, sendo que apenas foi constituído arguido posteriormente às supostas declarações prestadas aos militares da GNR, pelo que a valoração das alegadas conversas informais anteriores constituem um método proibido de prova, nos termos do art.º 125º do Cód. de Proc. Penal.
G) A interpretação feita pelo Tribunal a quo não tem qualquer adesão à letra da lei, ao pensamento legislativo e à unidade do sistema jurídico em clara violação do art.º 9º do Cód. Civil, já que contraditória ao quadro garantístico do exercício efectivo dos direitos do arguido previsto no nosso ordenamento jurídico.
H) Não faz, pois, qualquer sentido que só tal interpretação, quando decorre do art.º 357º do Cód de Proc. Penal que apenas possam ter valor probatório as declarações prestadas pelo arguido perante a autoridade judiciária, que apesar de tudo oferece mais garantias de que sejam observadas as formalidades legais e a Lei, e que ainda assim esteja condicionada a vários condicionalismos, tais como a assistência por defensor e das consequências processuais da não remessa ao silêncio.
I) Além do mais, a interpretação efectuada pelo Tribunal a quo dá cobertura a uma ilegalidade cometida pelo OPC, concretamente os militares da GNR, que nos seus procedimentos violaram o disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 58º do Cód. de Proc. Penal e no n.º 1 do art.º 59º do Cód. de Proc. Penal.
J) In casu foi levantado um auto de notícia que deu o arguido como agente do crime dos autos, porquanto foi considerado suspeito pelos militares da GNR, o que levou o autuante a constituir posteriormente o recorrente como arguido, pelo que os militares da GNR deveriam ter dado cumprimento ao disposto no n.º 1 do art.º 59º do Cód. Penal, ou seja, suspender imediatamente qualquer inquirição, proceder à sua constituição de arguido, informando-o dos seus direitos e deveres, nomeadamente de ser assistido por defensor e de não prestar declarações.
K) Nada disto ocorreu, pelo que valorar as supostas declarações prestadas pelo arguido ao OPC de forma ilegal é reiterar e perpetrar uma ilegalidade.
L) A posição tomada pelo Tribunal a quo constitui uma autêntica postergação e violação do direito ao silêncio, previsto na alínea d) do n.º 1 do art.º 61º e n.º 1 do art.º 343º ambos do Cód. de Proc. Penal.
M) Daqui resulta que não podiam ser valorados os depoimentos dos militares da GNR A. P. e V. M. na reprodução das alegadas declarações do arguido, em particular na parte em que se assumiu como explorador do estabelecimento.
N) Nenhuma prova foi reunida nos autos de que fosse o aqui recorrente o explorador do estabelecimento, tão-somente que este se encontrava no estabelecimento e que a máquina se encontrava exposta no estabelecimento, sendo certo que a sua presença pode ficar a dever-se a variados motivos, que vão muito para além de ser o seu explorador.
O) Tanto mais que a presença do arguido no estabelecimento, por motivo não apurado nos autos, não implica sequer que tivesse conhecimento da máquina em causa, do seu modo de funcionamento, da sua ilicitude e que a explorasse.
P) Nenhuma prova foi produzida quanto aos factos constantes do ponto 2º dos factos dados como provados na sentença uma vez que tal factualidade não resulta sequer dos depoimentos dos militares da GNR, que nem sequer foram indagados quanto a tais factos, que não foram assim confirmados por qualquer meio de prova, sendo certo que tais factos não resultam de qualquer presunção natural ou judicial, pelo que deveriam ter sido julgados como não provados, já que nenhuma prova foi sequer produzida quanto aos mesmos.
Q) A identificação do explorador do estabelecimento apenas não ocorreu por uma manifesta falha da investigação e do inquérito, sendo certo que a informação fornecida pela Câmara Municipal, junta aos autos a fls. 32, não permite colmatar tal falha assim como a certidão da acusação e da decisão do processo n.º 117/18.5GACBT não permite identificar o explorador do estabelecimento à data dos factos, ou seja, no dia 18.12.2017 uma vez que tal processo apenas dá como provado que o ora recorrente era o explorador do estabelecimento em 27.04.2018, ou seja, decorridos mais de quatro meses.
R) Em suma, impõe-se revogar a decisão da matéria de facto, dando como não provados os pontos 1º, 2º, 3º, 8º, 9º e 10º dados erradamente como provados na sentença, ficando apenas provado, no que respeita ao ponto 3.º, que «Desde data não concretamente apurada até 18.12.2017, pelas 08h20, estava exposta no referido estabelecimento uma máquina eletrónica, móvel tipo portátil, de cor azul e amarela, estrutura metálica e em madeira, com designação “Colorama”, não apresentando qualquer referência quanto à sua origem, número de série ou fabrico.».
S) Quanto à FALTA DE PROVA DE QUE OS PRÉMIOS SÃO ENTREGUES À RAZÃO PECUNIÁRIA DE € 1,00 (UM EURO) POR PONTO (ponto 6º dos factos provados, a prova objectiva produzida nos autos resume-se àquilo que foi possível apurar pelos militares da GNR aquando da sua visita ao estabelecimento em 18.12.2017, sendo que nada foi apurado quanto a transações monetárias relativas ao equipamento em questão, nomeadamente nada foi visualizado quanto ao recebimento de apostas e ao pagamento de prémios em dinheiro nem quanto à conversão de pontos em dinheiro nem, assim, quanto a quaisquer lucros gerados pela máquina ou pela sua exploração, até porque nunca foi visto ninguém a utilizar a máquina.
T) Quer isto dizer não foi produzida qualquer prova firme e objectiva que permita dar como provado que eram pagos prémios à razão pecuniária à razão de € 1,00 por ponto, o que apenas teria sido possível na hipótese de ter sido visualizadas estas operações e transacções monetárias de recebimento de apostas e pagamento de prémios com os eventuais utilizadores do equipamento, o que, como referiram os militares da GNR, não aconteceu.
U) A descrição de uma possível utilização do equipamento e de uma eventual exploração económica da máquina quer na acusação quer no relatório de exame à mesma efectuado pela SRIJ – Serviço de Regulação e Inspecção de Jogos de fls. 72 a 74 não é mais do que um rol infindável de suposições e de conjecturas, pressupondo-se a conversão de € 1,00 por ponto, pressupondo-se o recebimento de apostas e o pagamento de prémios, que na prática e no caso concreto dos autos não foi nem é possível confirmar.
V) Pois que é perfeitamente possível que os pontos fossem convertidos por brindes, por objectos, etc., o que levaria a uma subsunção dos factos à previsão legal do n.º 1 do art.º 159º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02.12, que dispõe que «Modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar são as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico predeterminado à partida.» [sublinhado nosso]
W) A «experiência comum» a que aludiu a testemunha A. A. não constitui um elemento suficientemente sólido que permita a prova que no caso concreto dos autos ocorresse a conversão monetária dos pontos, já que existe um manancial de hipóteses alternativas.
X) Sem a prova ou indício complementar da conversão pecuniária dos prémios, a alegada «experiência comum» da inspectora de jogos não permite concluir senão que a tal conversão é uma mera possibilidade, com maior ou menor grau de certeza, mas não uma certeza, certeza esta que se impõe, em sede de processo penal, para dar tal facto como provado.
Y) Não existe prova nos autos que permita dar como provado o facto constante do ponto 6º - «Os prémios são entregues à razão pecuniária de € 1,00 (um euro) por ponto.», pelo que deve ser revogada a decisão do Tribunal a quo deste ponto da matéria de facto, dando-se o mesmo como não provado.
Z) Caso existisse qualquer dúvida, a mesma deveria ter sido resolvida e decidida a favor do arguido em nome do princípio à luz do princípio in dubeo pro reo, absolvendo-se a mesma uma vez que relativamente ao modo como a prova se estabelece, é determinante entender que o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no art.º 127º do Cód. de Proc. Penal mas que está no entanto limitado por um critério objectivo que decorre do in dubeo pro reo.
AA) Esta regra significa que o julgador tem uma ampla margem de discricionariedade para valorar as provas, através de um exame crítico, vinculado a critérios objectivos jurídico-racionais e às regras das lógicas, da ciência e da experiência comum.
BB) A formação da convicção positiva sobre a veracidade do facto controvertido com base numa operação de racionalidade discricionária só é admissível se não existirem factores de dúvida séria intransponível, que não é uma dúvida subjectiva do julgador sobre o facto, mas sim a dúvida objectiva resultante da avaliação das provas, sendo certo que para vencer essa dúvida não basta que a prova da culpabilidade seja preponderante sobre a prova da inocência, tem que ser determinada com base num juízo de certeza.
CC) Considerando que o que está em causa nos autos é simplesmente saber se o equipamento era explorado com fim lucrativo no estabelecimento e se, nesta óptica, era facultado aos clientes do estabelecimento para estes fazerem apostas em dinheiro e receberem prémios pecuniários, pagos pelo arguido e que nada disto se provou, poderá existir esta dúvida mas será sempre uma dúvida inultrapassável face aos concretos meios de prova carreados para os autos.
DD) A condenação do aqui recorrente viola o PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA DO ARGUIDO PLASMADO NO ARTIGO 32º, N.º 2 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, NA SUA VERTENTE DE PRINCÍPIO “IN DUBEO PRO REO”, que decorre do princípio da presunção de inocência.
EE) O Tribunal ad quem deve revogar a decisão da matéria de facto tomada em primeira instância e dar como não provado a factualidade aqui impugnada dos pontos 1º, 2º, 3º (na parte que implica o arguido), 6º (na parte da conversão dos pontos em quantia monetária), 8º, 9º e 10º erradamente dados como provados em primeira instância.
FF) Por falta de prova, não se encontra verificados quanto à arguida os elementos objectivos e subjectivos do ilícito de exploração ilícita de jogo de fortuna e azar tipificado no art.º 108º do Decreto-Lei n.º422/89, de 02/12, pelo que se impunha a sua absolvição, o que deverá ser pontificado pelo Tribunal ad quem.
GG) A prova da “exploração” dos jogos de fortuna e azar, enquanto elemento objectivo do ilícito, impunha a comprovação de que a recorrente não só recebia as apostas por parte dos jogadores como também lhes pagava os prémios e assim que auferia os lucros proporcionados por esses jogos, sendo que, face aos equipamentos em causa, a prova do recebimento das apostas e do pagamento de prémios teria necessariamente ocorrer por intervenção externa já que as máquinas não distribuem quantias monetárias até porque não têm qualquer dispositivo físico (de hardware e software) para esse efeito, ou seja, implicaria a prova de uma acção humana para o pagamento de prémios.
HH) Como nos ensina o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, relatado pelo Mm.º Desembargador Fernando Monterroso e votado por unanimidade, proferido no âmbito do proc. n.º 294/14.4T8VNG.G1, proferido em 2 de Novembro de 2015 e acessível in www.dgsi.pt: “Explora um jogo quem recebe as apostas e paga os prémios. Por outras palavras, quem aufere os lucros, ou participa dos lucros resultantes das apostas dos jogadores – os lucros corresponderão à diferença entre o valor global cobrado pelas apostas e o valor global dos prémios pagos. É este o âmbito de proteção da norma do art.108 nºs 1 do Dec.-Lei 422/89”, o que não resulta provado nos autos.
II) O entendimento contrário de que se verifica o crime exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar independentemente do escopo lucrativo levaria a situações de exagero, como nos casos de apostas sem valores pecuniários, que acontecem em várias situações no quotidiano das pessoas, extravasando claramente da ratio legis e do âmbito de protecção visado pela norma do art.º 108º do DL 422/89 – vide Carlos Mota Pinto, in Jogo e Aposta: Subsídios de Fundamentação Ética e Histórico-Jurídica, Coimbra: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 1982, pág. 9- 15 e Carlos Alberto Batista Correia, in Do Jogo de Fortuna ou Azar, O atual Paradigma na Exploração Ilícita, Faculdade de Direito Universidade Nova de Lisboa, Julho de 2015, pág. 43.
JJ) Apenas no caso de existir apostas e prémios monetários economicamente relevantes é que o jogo (de fortuna ou azar) merece a censura do Direito, só neste caso se verifica o crime de exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar, só nesta circunstância é que estão preenchidos os elementos do tipo de ilícito previsto no art.º 108º do DL 422/89 (ou a contra-ordenação de modalidade afim, nos termos dos art.º 159º e 161º do referido diploma legal).
KK) Como bem se infere dos art.º 1º e 4º da Lei do Jogo, é característica essencial do jogo de casino a existência de um prémio e, assim, da existência de uma aposta nos jogos de fortuna ou azar, já que esta só surge pela possibilidade de ganhar um prémio.
LL) O carácter fundamental da necessidade da existência do pagamento de apostas e do recebimento de prémios, isto é, da possibilidade de perda ou ganho económico para o preenchimento do crime tipificado no art.º 108º do DL 422/89 é bem evidenciado pela jurisprudência do Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2010, de 4 de Março, que teve como critério distintivo do crime de exploração ilícita dos jogos de fortuna ou azar da contra-ordenação de modalidade afim precisamente o facto de, neste último caso, a máquina não pagar directamente prémios em fichas ou moedas.
MM) Na sentença proferida, o Tribunal a quo não densificou nem interpretou devidamente o conceito jurídico vago e determinado de “exploração” do artigo 108º do DL n.º 422/89 (Lei do Jogo), já que o conceito de exploração comporta duas realidades evidentes: o fim lucrativo, por um lado, e, por outro, a colocação do jogo em local público e acessível ao público e em condições de funcionamento.
NN) Só se verifica a exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar e, assim, o crime tipificado no art.º 108º da Lei do Jogo se ficar provado que o jogo era colocado à disposição do público, em local público, acessível e condições de funcionamento, e explorado com fim lucrativo, mediante a apropriação da diferença entre o dinheiro das apostas recebidas e dos prémios pagos, o que não está provado no caso dos autos.
OO) Considerando o modo de funcionamento e as características da máquina descritos na acusação, já há muito que vem sendo a tendência nossa jurisprudência em classificar tais máquinas e tais jogos como modalidades afins do jogo de fortuna ou azar
PP) O equipamento descrito na acusação é em tudo semelhante e integra-se nos dispositivos já analisados e sobre os quais se debruça o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2010, de 4 de Fevereiro de 2010, in Diário da República, n. 46 (de 8 de Março), nos termos do qual se fixou que a distinção entre crime e contra-ordenação se haveria de fazer, nesta matéria, pelos princípios da legalidade, dignidade penal, de carência de pena e de máxima restrição penal, não passando o critério distintivo de jogos de fortuna ou azar pelo facto do resultado depender da sorte ou implicar o pagamento de dinheiro.
QQ) In casu, estando-se em presença de um equipamento que desenvolve uma modalidade afim do jogo de fortuna ou azar, dúvidas não persistem que não está em causa o crime pelo qual o arguido vinha acusado e foi erradamente condenado já que quanto muito estaremos no foro contra-ordenacional regulado nos art.º 159º a 164º do DL n.º 422/89, de 02 de Dezembro.
RR) A pena de prisão aplicada e a multa na qual foi substituída são claramente desajustadas e excessivas e, por isso, ilegais, violando o disposto nos art.º 40º, n.º 2, 47º, n.º 2 e 71º, todos do Cód. Penal.
SS) Resultando dos pontos 11º a 18º da factualidade provada na sentença que o arguido se encontra profissional, familiar e socialmente inserido e que, à data dos factos constantes da acusação, era primário, tendo cumprido a pena posteriormente aplicada, tendo reparado o mal feito para com a comunidade, e que os factos ocorreram há praticamente 3 anos, considerando ainda a natureza do crime em causa, sempre sopesando a culpa como limite máximo da medida da pena, a pena de prisão a aplicar deveria situar-se no seu limiar mínimo, ou seja, um mês, substituída por um multa de igual tempo, ou seja, 30 dias de multa.
TT) Quanto à pena de multa, porque o juízo de dosimetria há que ser diferente em função da aplicação da pena mais gravosa, como é a pena de prisão, enquanto pena detentiva da liberdade, ou da aplicação de uma pena pecuniária, como é a multa penal, cremos que é adequada a decisão do Tribunal a quo na sua fixação em 50 dias.
UU) Considerando a cumulação estatuída no n.º 1 do art.º 6º do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, cremos ser ajustada uma pena global de multa de 80 dias, à taxa diária de € 6,00, num montante total de € 480,00, revelando-se claramente excessiva – superior ao dobro - e ilegal a pena aplicada em primeira instância de 170 dias de multa à taxa diária de € 6,00, num total de € 1.020,00.
VV) DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS:
_ artigos 1º, 3º, 4º e 108º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro;
_ artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa;
_ artigos 40º, n.º 2 e 71º do Código Penal; e
_ artigos 61, n.º 1 al. d), 125º, 127º, 343º, n.º 1 e 356º, n.º 7 e 357º, todos do Código de Processo Penal;
_ artigo 9º do Cód. Civil.»
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, com o regime e efeito adequados.
A Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto parecer, igualmente no sentido do não provimento do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
*
1. Questões a decidir

A. Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento na apreciação e valoração das provas; utilização de meio de prova proibido; violação do princípio in dubio pro reo.
B. Subsunção jurídica dos factos.
C. Quantum da pena.
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2. Factos Provados

Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida.
«Com interesse para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

Da acusação pública:

1. O arguido D. R. explorou o estabelecimento de restauração denominado “Café ...”, sito na Rua ..., …, no concelho de Celorico de Basto, na data dos factos em apreço.
2. No âmbito das suas funções, compete ao arguido, além do mais, adquirir e supervisionar o funcionamento e exploração de equipamentos de diversão ali utilizados.
3. Desde data não concretamente apurada até 18.12.2017, pelas 08h20, o arguido tinha exposta no referido estabelecimento uma máquina eletrónica, móvel tipo portátil, de cor azul e amarela, estrutura metálica e em madeira, com designação “Colorama”, não apresentando qualquer referência quanto à sua origem, número de série ou fabrico.
4. Tal máquina encontrava-se em funcionamento, ligada à corrente elétrica através de cabo de alimentação e acessível ao público em geral, mediante a inserção de moedas.
5. A identificada máquina apresenta ainda as seguintes características:
. Ao centro do painel situa-se um mostrador circular que se encontra dividido com vários pontos luminosos equidistantes, sendo que apenas oito estão identificados pelos seguintes números: 10, 1, 50, 2, 100, 5, 20 e 200.
. Ao centro do círculo do painel, é possível visionar uma janela digital, de forma retangular, onde são apresentados os pontos ganhos em cada jogada, acumulando-os para jogadas seguintes.
6. O sistema de funcionamento da máquina e o desenvolvimento do jogo processa-se da seguinte forma:
. Após a introdução de uma moeda, automaticamente é disparado um ponto luminoso que percorre os vários orifícios existentes no mostrador circular, de uma forma continua e desacelerando com o decorrer do tempo, iluminando-os à sua passagem, fixando-se aleatoriamente num dos orifícios.
. Neste momento duas situações podem ocorrer:
- O orifício em que se fixou o ponto luminoso corresponde a um dos oito identificados pelos números já referidos e, neste caso, o jogador terá direito aos pontos correspondentes, pontos estes que são imediatamente visualizados/creditados na janela que se encontra no canto superior direito do ecrã;
- O ponto luminoso fixou-se num dos restantes orifícios sem qualquer referência de pontos, pelo que o jogador não terá direito a qualquer prémio, restando-lhe a hipótese de tentar de novo a sua sorte, introduzindo novas moedas;
- Os prémios são entregues à razão pecuniária de € 1,00 (um euro) por ponto.
7. O objetivo do jogo é o de conseguir que no final de cada jogada, o ponto luminoso se imobilize num dos orifícios com direito a prémio, sendo o seu funcionamento automático, cuja única intervenção é o ato do utilizador da máquina é a introdução da moeda.
8. No circunstancialismo espácio-temporal supra descrito o arguido não era titular de licença ou qualquer outro documento válido que lhe permitisse a exploração de jogos de fortuna e azar, nomeadamente da máquina identificada, no citado estabelecimento comercial.
9. O arguido não possuía qualquer licença para a exploração de jogos de fortuna e azar no referido estabelecimento, conhecia as características da máquina e do jogo que executavam e quis explorá-la nas condições mencionadas, bem sabendo que não é permitida a exploração dos jogos descrito fora das zonas criadas por lei para esse efeito.
10. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Das condições socioeconómicas do arguido:
11. Desde 05.03.2020 até à presente data, o arguido trabalha na entidade J. T. NISS ………, na área da construção civil e aufere o salário mínimo nacional.
12. O arguido reside em casa dos pais, com estes e mais dois irmãos, cujo valor da renda mensal é cerca de €300,00 (trezentos euros).
13. O arguido contribui para as despesas familiares com a quantia mensal de €250,00 (duzentos e cinquenta euros).
14. Os irmãos com quem o arguido reside encontram-se desempregados.
15. O progenitor aufere o salário mínimo nacional e trabalha num armazém e a progenitora trabalha como administrativa no Centro de Saúde.
16. O arguido não tem filhos e não se encontra a pagar qualquer quota de amortização de um empréstimo.
17. O arguido tem o 12º ano de escolaridade.

Mais se provou que:
18. O arguido tem averbado no seu certificado do registo criminal a seguinte condenação:
- No processo n.º 117/18.5GACBT, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Competência Genérica de Celorico de Basto, por decisão proferida a 07.01.2020 e transitada em julgado a 30.01.2020, pela prática em 27.04.2018, de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelo artigo 108º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02.12, condenado na pena de 70 (setenta dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), declarada extinta a 03.03.2020.
Da contestação: Inexistem.
*
Factos não provados:

Da acusação pública:
a. O arguido explora, nos dias de hoje, o estabelecimento de restauração denominado “Café ...”, sito na Rua ..., …, no concelho de Celorico de Basto.

Da contestação: Inexistem.
*
Os restantes factos que constavam da acusação ou da contestação crimes não foram considerados para a matéria de facto porquanto os mesmos são conclusivos.
*
Motivação da matéria de facto:

Das questões suscitadas em sede de contestação e alegações e que poderão contem com a ponderação dos elementos probatórios recolhidos nos autos e que importa apreciar:
Da falsidade do auto de notícia e de apreensão:
Importa num primeiro momento fazer a distinção entre documentos intra processuais e documentos extra processuais.
Por um lado, os documentos intra processuais são aqueles intrínsecos ao processo, designadamente, o auto de notícia e o auto de apreensão. Por outro lado, os documentos extra processuais, são aqueles que extrínsecos ao processo, como por exemplo, as certidões prediais.
Prevê o artigo 243º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “Sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia (…)”.
O auto de notícia, por si, é um documento que permite dar conhecimento da prática de eventuais factos que poderão acarretar, num momento final, a responsabilidade criminal da pessoa indicada como agente dos factos.
Por sua vez, o auto de apreensão visa identificar os objetos ou coisas apreendidas no âmbito de uma ação ficando à ordem de determinado processo.
A questão que se coloca em primeiro lugar passa por determinar qual o valor probatório do auto de apreensão e do auto de notícia, isto é, se o mesmo tem a força probatória consagrada no artigo 169º do Código de Processo Penal e em que medida o mesmo se relaciona com o princípio da livre convicção do juiz (artigo 127º do Código de Processo Penal) e em que medida o mesmo pode ser utlizado em sede de audiência de discussão e julgamento.
A jurisprudência tem-se divido no que a esta questão diz respeito.
No acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa datado de 07.02.2019, processo n.º 98/18.5PLSNT.L1-9, disponível em www.dgsi.pt, no sentido que “O auto de notícia, enquanto documento intra processual, cuja fé não foi elidida em juízo faz prova no que diz respeito aos factos presenciados pelos agentes da autoridade, sem necessidade da sua leitura em audiência, e, no caso, foi concatenado com a restante prova, como claramente se vê da fundamentação da decisão, pelo que foi o mesmo correctamente valorado”. Acrescenta o acórdão datado de 31.10.2017, processo n.º 638/14.9SGLSB.L1-5, proferido pelo mesmo Tribunal superior, e disponível em www.dgsi.pt, que “O auto de notícia vale como documento autêntico quando levantado por autoridade judiciária, órgão de polícia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, fazendo prova dos factos materiais nele constantes (artigos 363º n º 2 do C. C. e 169º do CPP). Tem força probatória o auto elaborado por um agente de autoridade que presenciou a infracção e a descreveu no auto, podendo esse auto fundamentar a sentença. Sem prejuízo da regra geral da liberdade de convicção, não deve ser descartada, por valer como prova muito relevante e válida e a ponderar pelo julgador, em julgamento por crime de condução sob o efeito de alcoolemia, faltando ou silenciando-se o arguido e não havendo outras testemunhas para além do agente autuante, as declarações em que este confirme o conteúdo e elaboração do respectivo auto, mas que, pelo decurso do tempo não seja já capaz de precisar a situação de facto naquele descrita ou mesmo que dela se recorde vagamente”.
Referiu o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido a 25.03.2013, processo n.º 2319/11.6TBFAF.G1, acessível em www.dgs.pt, que “Um auto de notícia pode ser valorado como meio de prova, mas as comprovações nele feitas valem exclusivamente em relação aos puros factos presenciados pela entidade que o elaborou”.
Prevê o artigo 169º do Código de Processo Penal que “Consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa”.
Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª ed., em anotação ao art.º 243.º, pág. 642, o auto de notícia vale como documento autêntico quando levantado por autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, fazendo prova dos factos materiais nele constantes (artigos 363 n º 2 do C. C. e 169 º do CPP). Portanto, não tem qualquer força probatória o auto elaborado por um agente de autoridade, que não tenha presenciado a infracção, mas tenha procedido a inquérito prévio sobre a matéria nele relatada, nem o auto elaborado por um agente de autoridade que mencione as declarações de uma testemunha, mas já tem força probatória o auto elaborado por um agente de autoridade que presenciou a infracção e a descreveu no auto, podendo esse auto fundamentar a sentença, mesmo que o seu autor tenha falecido antes da audiência. Entendimento partilhado pelos Conselheiros Leal Henriques e Simas Santos, em Código de Processo Penal Anotado, II volume, pág. 16, que referem que os autos de notícia desde que obedeçam às prescrições legais gozam da força probatória que é conferida aos documentos autênticos e autenticados, isto é fazem prova plena dos factos que documentam, enquanto a sua autenticidade ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa (artigo 169 º do CPP) (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.10.2017, já mencionado).
Concordando com a posição acima mencionada, a alegada falsidade do auto não é suficiente para o colocar em causa, nem ao auto de apreensão, porquanto os mesmos não foram fundamentadamente postos em causa.
Nesta medida o auto de noticia faz prova, nos termos do artigo 169º do Código de Processo Penal, dos atos percecionados pelo OPC e do que percecionou, pelo que, nesta medida deverão ser fundamentadamente colocados em causa.
Contudo, há que referir que aprova dos factos materiais aí constantes (o que foi percecionado e elementos recolhidos) e a que alude o artigo 169º do Código de Processo Penal, não se confunde com a prova dos factos descritos na acusação, sob pena de violação do princípio da livre convicção do julgador.
A mesma consideração vale para o auto de apreensão.
Assim, sentíamos que o auto fosse fundamentadamente colocado em causa quando se afirmasse que determinada ação/ato não teve lugar, por exemplo, devidamente justificado.
Poderiam ser colocados em causa com a produção de prova testemunhal, mas tal não sucedeu.
Nesta medida, improcede a alegação da falsidade dos referidos documentos.
Das conversas informais e valoração dos depoimentos dos srs. militares da GNR:
Alega o arguido que os depoimentos prestados pelas testemunhas A. P. e V. M., militares da GNR a exercer funções no posto territorial de Celorico de Basto, não podem ser valorados na parte em que se referem às informações prestadas pelo arguido.

Cumpre apreciar:
Prevê o artigo 58º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que: a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal; b) Tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coação ou de garantia patrimonial, ressalvado o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 192.º; c) Um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254.º a 261.º; ou d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada”.
Por sua vez, estabelece o n.º 5 do mesmo artigo que “A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova”.
A questão que se coloca é assim a de saber se os depoimentos dos srs. Militares em sede de audiência de discussão e julgamento pode ser tido em consideração na parte em que os mesmos relatam aquilo que o arguido lhes referiu no momento em que se depararam com a presença da máquina em apreço nos autos no estabelecimento. Ou se tais depoimentos, nessa parte, não podem ser valorados, na medida em que no momento das declarações D. R. ainda não tinha sido constituído arguido, tratando-se de conversas informais e, por isso, desprovidas de valor probatório.
Estabelece o artigo 356º, n.º 7 do Código de Processo Penal que “órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas".
Ora o arguido não prestou declarações em sede de audiência de discussão e julgamento e não foi requerida sua leitura nos termos do artigo 357º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
Pelo que, se concluiria que os srs. militares da GNR não poderiam ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo das declarações prestadas pelo arguido.
Ainda assim, entendemos que não estamos perante a situação que o arguido alega em sua defesa.
Os depoimentos dos srs. militares da GNR, reportaram às declarações prestadas pelo arguido, no âmbito da fiscalização aleatória efetuada, com vista à elaboração do respetivo auto.
Aqui, cumpre mencionar o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 22.06.2017, processo n.º 320/14.7GCMTJ.L1-9, disponível em www.dgsi.pt, o qual expressamente referiu que “I- Não existem conversas informais quando as forças policiais se limitam a cumprir os preceitos legais, quer pela necessidade de “documentar” a prática do ilícito e suas sequelas, designadamente providenciar os actos cautelares que se imponham (v. g. artigos 243º, 248 a 250º do C.P.P.), quer quando actuam por imposição legal ao detectarem a prática de um ilícito e o suspeito decide, por sua iniciativa, de forma volutária e sem actuação criticável das forças policiais, fazer afirmações não sugeridas, provocadas ou imaginadas por aqueles OPC, estando estes a cumprir preceitos legais que lhes impõem uma actuação; II- As forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser constituídos arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, desde que não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição. E, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal, a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que qualquer declaração daquele que já deveria ter sido constituído como arguido não pode ser utilizada como prova. III-Face ao ordenamento português, o simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido. Se ainda não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiam dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.) e, sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida”.
No mesmo sentido, encontramos o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 10.09.2018, processo n.º 1221/16.0JABRG.G1, disponível em www.dgsi.pt, o que refere que “I) Actualmente crê-se consensual o entendimento da jurisprudência de que constitui depoimento válido e eficaz o relato de agentes de investigação (OPCs) sobre recolha de informações ou outros dados e contribuições de que tomaram conhecimento no campo dos actos de investigação e outros meios de obtenção de prova, portanto, fora do âmbito de diligências processuais formais - como sucede com o interrogatórios ou tomadas de declarações - desde que a recolha não devesse ter sido submetida a tal formalismo. II) Assim, os órgãos de polícia criminal não estão impedidos de depor em audiência de julgamento sobre factos por si detectados e constatados durante a fase investigatória. III) Por isso que, no caso dos autos é de considerar prova válida, o depoimento de um militar da GNR quanto a recolha de informações prestadas por uma pessoa, antes da abertura de inquérito e antes de esta ser constituída arguida” (sublinhado nosso).
Acrescente-se ainda o acórdão proferido pela mesmo Tribunal superior, datado de 06.02.2017, processo n.º 564/14.1PBCHV.G1, também disponível em www.dgsi.pt , o qual refere que “I - Com a norma do art. 356º, nº 7 do CPP, o legislador impede que, indirectamente, através de depoimentos dos órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, se façam valer em audiência declarações cuja leitura não seria permitida, não podendo os mesmos ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo de tais declarações. II - Todavia, é actualmente consensual o entendimento de que constitui depoimento válido e eficaz o relato de agentes de investigação (OPC´s) sobre recolha de informações ou outros dados e contribuições de que tomaram conhecimento no campo dos actos de investigação e outros meios de obtenção de prova, portanto, fora do âmbito de diligências processuais formais – como sucede com os interrogatórios ou tomadas de declarações – desde que essa recolha não devesse ter sido submetida a tal formalismo. Tal depoimento nada tem a ver com o que, vulgarmente, se tem designado por testemunho de “ouvir dizer” (art. 129º, nº 1 do CPP) ou como um relato de “conversas informais”, ou seja, conversas que não foram formalmente reduzidas a auto, devendo sê-lo, traduzindo a reprodução de uma conversa informal, que pudesse defraudar o direito do arguido ao silêncio. III - Assim, os OPC´s não estão impedidos de depor em audiência de julgamento sobre factos que detectaram e constataram durante a fase investigatória, maxime sobre o que percepcionaram no âmbito de uma diligência cautelar, quando ainda não existia sequer inquérito pendente e num momento em que o arguido nem sequer era suspeito de qualquer acto, portanto, numa fase incipiente e até iniciada anteriormente à notícia pela autoridade policial de qualquer infracção, sendo certo que, mesmo que tal assim sucedesse, sempre lhe competiria recolher indícios da infracção noticiada bem como praticar todos os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova e recolher informações que facilitassem a descoberta dos respectivos agentes”.
Destarte o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23.06.2020, processo n.º 192/13.9EAEVR.E1, disponível em www.dgsi.pt, que refere que “Os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre os factos que constataram, no âmbito das diligências efetuadas, durante a fase investigatória ou de inquérito e ainda antes destas fases, na recolha de indícios de uma infração de que acabam de ter conhecimento, competindo-lhes “praticar os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, nomeadamente, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (cf. artigo 250º, n.º 1 e n.º 2, al. b) e artigo 250º, n.º 8, ambos do CPP), podendo, nesse contexto, as conversas tidas entre os órgãos de polícia criminal e essa(s) pessoa(s), mesmo que, posteriormente esta(s) última(s), venha(m) a ser assumir a qualidade de arguido(s) e desde que não consubstanciem «declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe», ser reproduzidas em audiência de julgamento”.
A abordagem dos srs. militares da GNR junto do arguido, teve por objetivo a recolha dos elementos necessários para o preenchimento do respetivo auto de notícia. Naquele momento temporal, inexistia qualquer processo, pelo que não se impunha a imediata constituição de D. R. como arguido, pelo que não estamos perante a aplicação do disposto no artigo 58º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
Conclui-se, portanto, pela livre apreciação da integralidade dos depoimentos prestados pelos srs. militares da GNR.
Da força probatória do relatório de exame de fls. 72 a 74:
Alega o arguido que a força probatória do relatório de exame de fls. 72 a 74 não tem a força probatória de um relatório pericial, consoante se encontra indicado nos meios de prova em sede de acusação pública.

Cumpre apreciar:
Importa pois distinguir o que se entende por exame e por perícia.
Enquanto que o relatório pericial, enquanto meio de prova, advém da realização de uma perícia, enquanto meio de obtenção de prova, por sua vez a realização de um exame (meio de obtenção de prova) dá origem a um documento eventualmente designado “relatório de exame”.
A distinção destas duas realidades por vezes torna-se difícil de realizar, impondo-se uma análise caso a caso, não sendo inócua a distinção entre estas duas figuras.
Por um lado, a perícia consiste num meio de prova a que se recorre quando são exigidos conhecimentos especializados e que vão além das possibilidade de constatação e/ou perceção, efetivas ou presumidas do Tribunal em três campos do saber: técnicos, científicos e artísticos. A apreciação deste meio de prova tem um regime distinto dos demais, na medida em que o juízo que conte do relatório pericial se encontra subtraído à livre convicção do julgado, podendo o juiz divergir do juízo contido no parecer dos peritos, de forma fundamentada e com apelo aos conhecimentos materiais supostos na perícia (cfr. artigo 163º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
Por outro lao, o exame consiste num meio de obtenção de prova que incide sobre a análise em pessoas, lugares e coisas e “vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido”, artigo 171º do Código de Processo Penal, sendo certo que o exame está sujeito ao regime da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal. Neste sentido ver acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02.05.2017, processo n.º 208/14.1ECLSB.E1, disponível em wwe.dgsi.pt (ver ainda o acórdão proferido a 18.04.2017, processo n.º 471/12.2EAPRT.E1, disponível em www.dgsi.pt, pelo mesmo Tribunal superior.).
O acórdão acima mencionado sufraga a posição de que o relatório do funcionamento de equipamento de jogo não pode consubstanciar um relatório pericial e, por conseguinte, não é valorado nos termos do artigo 163º, n.º 2 do Código de Processo Penal ( “(…)E o documento não é uma perícia desde logo porquanto não realizado por perito ou peritos nomeados pelo tribunal mas sim por funcionários com funções policiais sem que – por essa simples circunstância – reúnam as condições de isenção e imparcialidade exigível a qualquer perito. [2] São funcionários da investigação e se nada impede que façam “exames” tudo impede que façam “perícias”.(…)”.
Assim, o Tribunal segue o entendimento perfilhados supra, na medida em que o relatório de exame deve ser valorado de acordo com o regime previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal, isto é, segundo a livre apreciação do julgador, no que respeita à descrição do funcionamento do equipamento em causa.
A convicção do Tribunal ancorou-se na apreciação global da prova produzida em sede de audiência de julgamento, avaliada à luz do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Coligiu e concatenou o Tribunal:
Declarações do arguido (quanto às condições económicas);
Prova testemunhal (A. P. e V. M.);
Prova documental:
A dos autos, designadamente:
Relatório fotográfico de fls. 7 a 8;
Auto de apreensão de fls. 15 e 16;
Informação fornecida pela Câmara Municipal de Celorico de basto, de fls. 32;
Relatório de exame ao material apreendido de fls. 72 a 74;
Certidão da decisão e requerimento do Ministério Público no processo n.º 117/18.5GACBT;
Informação do Instituto da Segurança Social (referência 10696706);
Certificado do Registo Criminal de fls. 98 a 99.

Concretizando:
Para a prova da factualidade enumerada de 1 a 4 o Tribunal teve em consideração os depoimentos das testemunhas A. P. e V. M., militares da GNR, que já na data dos factos em apreço exerciam as suas funções no posto territorial da GNR, conjugados com os restantes elementos probatórios do processo.
A. P. circunstanciou os factos no tempo e no espaço, referindo que apenas se deslocaram àquele estabelecimento uma vez que a pessoa que tinha detido no âmbito do cumprimento de um mandado de detenção disse que precisava de ir ao café para solucionar uma questão de dinheiro, razão pela qual consideraram a fiscalização como “aleatória”.
Aí chegados, A. P. afirmou que se deparou com a máquina (no seu entender de jogo) ligada à corrente, do lado esquerdo, em cima do balcão, com uma forma quadrada e com vários números. Referiu-se ao arguido como o explorador do estabelecimento comercial, que não tinha licença ou documento que o habilitasse a explorar aquela máquina, porquanto era este que se encontrava atrás do balcão, não tendo indicado qualquer outra pessoa responsável ou pedido que esperassem por outra pessoa. Mais referiu que este se identificou como explorador do estabelecimento.
Esclareceu que não presenciou qualquer pessoa a utilizar a máquina ou entregar prémios e que o ecrã se encontrava ligado.
Mais esclareceu que foi solicitada a chave para proceder à abertura da máquina, mas que o arguido disse que não a possuía, razão pela qual foi estroncada a fechadura, tendo sido apreendida a quantia monetária que se encontrava no seu interior, bem como o equipamento. Tais factos são corroborados pelos auto de apreensão de fls. 15 e 16, bem como pelo relatório fotográfico do equipamento de fls. 7 a 8.
Por sua vez, V. M. apresentou um depoimento semelhante ao depoimento de A. P., esclarecendo que quem falou diretamente com o arguido foi A. P..
Ponderada a eventual circunstância de que o arguido, na data dos factos, não seria explorador do estabelecimento, atendendo à informação remetida pela Câmara Municipal de … da qual resulta que não existia licença para exploração daquele estabelecimento para aquela data, não nos parece que tal seja suficiente para suscitar dúvidas nos depoimentos das testemunhas acima referidos.

Senão vejamos:
Da informação de fls. 32 resulta que não existe licença de exploração do estabelecimento, mas tal não impede o arguido de efetivamente, explorar o estabelecimento.
Mais, da informação remetida pelo Instituo de Segurança Social resulta que arguido trabalhou por conta de outrem nos períodos compreendidos entre 01.02.2016 a 31.03.2016 e de 05.03.2020 até à presente data, pelo que tal informação não afeta o depoimento dos srs. militares da GNR, pois os factos reportam-se desde uma data não concretamente apurada (uma vez que não se sabe desde quando tal equipamento se encontraria no estabelecimento) até ao dia 18.12.2017, altura em que não constava qualquer informação na Segurança Social.
Acrescente-se, ainda, que o arguido sofreu uma condenação, pela prática do mesmo crime que agora se aprecia, e que dos factos dessa mesma condenação resulta que o arguido se encontrava a explorar o mesmo estabelecimento que explorava nos presentes autos, ainda que os factos dessa condenação se reportem a data não concretamente apurada a 27.04.2018 e os dos presentes autos se reportem a data não concretamente apurada até ao dia 18.12.2017.
Neste sentido, e uma vez que o arguido se identificou perante os srs. militares como explorador do estabelecimento, não indicou qualquer outra pessoa responsável, referiu que o equipamento pertenceria a uma pessoa de Mondim de Basto, não são suscitadas quaisquer dúvidas ao Tribunal de que o arguido explorava o estabelecimento em causa, sendo responsável pelo mesmo, atendendo ao já exposto.
A tese alegada pela defesa de que o arguido não detinha a chave para a abertura da máquina com vista a afastar a exploração do estabelecimento ou a responsabilidade pela colocação da máquina também não merece que seja atendida. É usual neste tipo de circunstâncias o explorador do estabelecimento não possuir a chave e esta estar na posse da pessoa que entrega a máquina ao explorador do estabelecimento, com vista a controlar as quantias monetárias nela existentes.
Relativamente ao funcionamento do equipamento, o Tribunal teve em consideração o relatório de exame ao equipamento que se encontra a fls. 72 a 74, bem como o depoimento da testemunha A. A., inspetora, e que procedeu à elaboração do referido relatório.
Suscitou-se, porém, a questão de saber como seriam convertidos os pontos angariados no jogo, uma vez que do relatório constava que os prémios eram entregues à razão pecuniária de € 1,00 (um euro) por ponto. A tal questão respondeu a testemunha que essa era a experiência que tinha nestas situações. Efetivamente se apurou que os pontos fossem convertidos em dinheiro ou em espécie. Contudo, entendemos que, nestes casos, recorrendo à experiência por parte de quem inspeciona estas máquinas e sabe o seu funcionamento, não temos porque afastar as regras da experiência comum e normalidade (veja nesta parte, na valoração das regras da experiência comum, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.01.2017, processo n.º 57/13.4EAEVR.E1, disponível em www.dgs.pt (“Nestas circunstâncias não pode deixar de se concluir – de acordo com as regras da experiência comum e os critérios da normalidade da vida – que este jogo, que se desenvolve nos termos supra descritos, em que o jogador pode auferir uma vantagem de valor indeterminado (entre 1 e 200 euros) ou acumular pontos para repetir a sua sorte, podendo desse modo multiplicar a aposta, na expetativa de maior ganho, é potencialmente viciador, na medida em que o jogador é impulsionado a repetir a jogada na ânsia de obter maior ganho, principalmente na época de crise em que se vive, risco que, afinal, se pretende evitar com a incriminação, ao que acresce que a grande maioria dos frequentadores dos estabelecimentos onde habitualmente este tipo de máquinas é colocado provém de estratos económicos menos favorecidos e, por isso, mais vulneráveis”)). A expectativa do jogador será sempre um ganho económico e, não tendo ficando demonstrado qualquer referência à atribuição de um prémio em espécie, que esse sim seria de esperar que estive visível ao público, o Tribunal só pode concluir que a conversão de pontos passaria pela conversão dos mesmos em dinheiro, como habitual, nestas máquinas.
Aliás, seria de estranhar que o jogador colocasse uma moeda apenas pelo prazer de observar um ponto luminoso a deslocar-se a parar em algum deles com o objetivo de acumulação simples de pontos. Aqui sim, socorrendo-nos das regras da experiência comum e da normalidade concluímos, por óbvio, que com a acumulação de pontos se pretende um prémio e que, atendendo a estas máquinas e à experiência de quem as conhece e da normalidade, a conversão de pontos fosse efetuada naqueles termos.
Ora, com tal comportamento, o arguido apenas poderia ter como intenção obter um lucro económico, mais uma vez, socorrendo-nos das regras da experiência comum e da normalidade, uma vez que a exploração de máquinas com as características que estão aqui em causa tem sempre em vista a obtenção de um lucro económico.
No que tange aos factos que resultaram provados e que integram o elemento subjetivo do crime em apreço, pese embora os mesmos não sejam apreensíveis de forma direta, em face da ausência de confissão livre, integral e sem reservas do arguido, os mesmos encontram chancela na conjugação das regras da experiência comum e da normalidade, conjugadas com os elementos exteriores versados nos factos anteriormente provados (elementos do foro objetivo), os quais revelam que, com tal conduta, o arguido não podia ter outra intenção senão aquela descrita, agindo, portanto, de forma intencional, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
No que concerne à factualidade provada quanto às condições socioeconómicas do arguido o Tribunal teve em consideração as declarações do arguido, que se mostraram credíveis, corroboradas, em parte, pela informação remetida pelo Instituto de Segurança Social.
O facto que respeita à condenação averbada no certificado do registo criminal do arguido resulta do teor de fls. 98 a 99 dos autos.»
***
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A. Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento na apreciação e valoração das provas; utilização de meio de prova proibido; violação do princípio in dubio pro reo.
O recorrente começa por impugnar a decisão sobre a matéria de facto provada constante dos pontos 1º, 2º, 3º, 6º, 8º, 9º e 10º, com fundamento em erro de julgamento, utilização de meio de prova proibido, bem como violação do princípio in dubio pro reo.
*
Da alegada valoração de meio de prova proibido.

O meio de prova que o recorrente considera proibido (nos termos do artigo 125.º do Código de Processo Penal) e que, como tal, entende não poder fundamentar a convicção do julgador, são os depoimentos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas A. P. e V. M., ambos agentes da GNR, que relataram aquilo que o recorrente lhes disse no ato da fiscalização.
Compulsados os autos e ouvida a reprodução áudio dos depoimentos prestados em audiência de julgamento por aquelas duas testemunhas, verifica-se que a conversa que os agentes da GNR A. P. e V. M. tiveram com o ora recorrente e que relataram, teve lugar num momento em que este não só não tinha sido constituído arguido como ainda nem sequer havia processo, tendo manifestamente sido efetuada a coberto dos poderes concedidos aos órgãos de polícia criminal pelas normas reguladoras das medidas cautelares e de polícia, dos artigos 248.º e segs. do Código de Processo Penal, nomeadamente no âmbito da previsão do seu artigo 249.º, n.º 2, al. b): «colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição».
Não visando dessa forma suprir o silêncio do arguido já que – repita-se – nessa altura ainda nem arguido constituído havia, nem podia haver, pois a fiscalização que aqueles agentes da GNR efetuavam era absolutamente aleatória.
Por conseguinte, e como se pode ler a propósito na sentença recorrida, onde a questão tinha já sido decidida, «A abordagem dos srs. militares da GNR junto do arguido, teve por objetivo a recolha dos elementos necessários para o preenchimento do respetivo auto de notícia. Naquele momento temporal, inexistia qualquer processo, pelo que não se impunha a imediata constituição de D. R. como arguido, pelo que não estamos perante a aplicação do disposto no artigo 58º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
Acresce que os depoimentos das referidas testemunhas A. P. e V. M. recaíram sobre factos que os mesmos percecionaram de forma imediata, através dos seus próprios sentidos, no decurso da visita que efetuaram ao estabelecimento comercial em causa nos autos e que constituíam objeto de prova, designadamente a visualização de uma máquina (que lhes pareceu ser de jogo) ligada à corrente, do lado esquerdo, em cima do balcão, com uma forma quadrada e com vários números; bem como a própria presença do recorrente atrás do balcão, o qual perante eles (agentes da GNR como tal identificados) não indicou qualquer outra pessoa responsável ou pedido que esperassem quem quer que fosse e se identificou expressamente como explorador do estabelecimento.
Os depoimentos destas testemunhas foram produzidos em sede de audiência de julgamento, na qual estava presentes o arguido, e assim com a possibilidade de contraditório. Possibilidade que obviamente não fica invalidada por, perante esses elementos probatórios, o arguido ter optado por continuar a remeter-se ao silêncio, como era seu direito, mas que poderia, se assim entendesse, não ter usado.
Neste sentido, e para além da pertinente jurisprudência sobre o assunto já citada na sentença recorrida, pode ainda ver-se o acórdão do STJ, de 12.12.2018, proc. 3202/17.7T8GMR.G1.S1, relatado pelo conselheiro Pires da Graça (2), do qual consta: «Na síntese de Dá Mesquita (A Prova do Crime e o que se disse antes do julgamento, cit. [Coimbra editora, 2011], pág. 532):
“O regime português do depoimento indirecto não compreende uma política preventiva que obste à admissão do ouvir dizer, o depoimento faz emergir os deveres procedimentais do tribunal (determinação da fonte e chamamento a depor da mesma) e as proibições não derivam do processo inferencial gerado pelo ouvir dizer, mas traduzem restrições por força do procedimento adoptado. Proibição irrestrita, no caso da fonte indeterminada e dependente do achamento a depor no caso da fonte determinada que não foi inquirida, admitindo-se excepções em que aquela não tem que ser chamada».
Com efeito, o artigo 129.º do CPP permite que o depoimento indirecto seja prestado, mas condiciona a possibilidade da sua utilização processual subsequente.
Desde logo, a testemunha de ouvir-dizer terá de identificar a “testemunha-fonte”, ou seja, a fonte material de onde provém o conhecimento dos factos. (…)
(…) Relativamente a depoimentos de agentes policiais, o nº 7 do artº 356º do C.PP., apenas proíbe que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha possam ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
Concorda-se pois com Maia Gonçalves, (Código de Processo Penal, anotado, 16º edição, 2007, p. 741, nota 7, quando refere: “o nº 7 proíbe apenas a reprodução daquelas declarações cuja leitura não é permitida, como aí claramente se expressa e resulta do pensamento legislativo. Consideramos assim, manifestamente errada a interpretação que por vezes se tem dado a esse dispositivo de que os órgãos de polícia criminal não podem ser testemunhas no processo”
Como se considerou no Ac. deste Supremo e 3ª Secção de 04-01-2007, in Proc. n.º 3111/06 - Para garantir a eficácia e reforçar a consistência do conteúdo material do princípio nemo tenetur, a lei portuguesa impõe às autoridades judiciárias ou órgãos de polícia criminal, perante os quais o arguido é chamado a prestar declarações, o dever de esclarecimento ou advertência sobre os direitos decorrentes daquele princípio (cf., v.g., arts. 58.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. g), 141.º, n.º 4 e 343.º, n.º 1, todos do CPP, normas cuja eficácia é, por seu turno, contrafacticamente assegurada através da drástica sanção da proibição da valoração – art. 58.º, n.º 3, do mesmo diploma).
Não há conversas informais, com validade probatória à margem do processo, sejam quais forem as formas que assumam, desde que não tenham assumido os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela sancionados... (as diligências são reduzidas a auto – art. 275.º, n.º 1, do CPP. Haveria fraude à lei se se permitisse o uso de conversas informais não documentadas e fora de qualquer controlo» (cf. Ac. do STJ de 11-07-2001).»
De tudo assim resultando que, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, nada afeta a validade da prova constituída pelos depoimentos prestados na audiência de julgamento pelas testemunhas A. P. e V. M., militares da GNR.
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Debrucemo-nos agora diretamente sobre a impugnação da matéria de facto.

Quanto à impugnação da matéria de facto vertida nos pontos 1º, 2º, 3º, 8º, 9º e 10º dos Factos Provados, respeitante à exploração pelo arguido do estabelecimento comercial em causa nos autos, o único argumento do recorrente era a falta de prova, com fundamento na proibição da valoração dos depoimentos dos agentes da GNR, que foi já julgada improcedente (como decorre da exposição supra).
Sendo que o teor dos depoimentos dessas duas testemunhas suportam perfeitamente a dita factualidade, inclusive a contante do ponto 2º, que por sua vez decorre da conjugação daqueles depoimentos com as normais regras da experiência e da normalidade, que nos dizem que sendo um pequeno estabelecimento de restaurante de uma freguesia do concelho de Celorico de Basto explorado por um só indivíduo, que simultaneamente é quem nele trabalha, naturalmente que é também a ele que compete supervisionar o funcionamento e exploração de equipamentos de diversão ali utilizados.
Tendo consequentemente que improceder a impugnação da referida factualidade dos pontos 1º, 2º, 3º, 8º, 9º e 10º.
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Resta a impugnação do facto descrito no ponto 6º, relativo ao funcionamento da máquina em causa, na parte em que refere que os prémios são entregues à razão pecuniária de 1,00 € por ponto. Que o recorrente contesta com o argumento de que «a descrição de uma possível utilização do equipamento e de uma eventual exploração económica da máquina quer na acusação quer no relatório de exame à mesma efectuado pela SRIJ – Serviço de Regulação e Inspecção de Jogos de fls. 72 a 74 não é mais do que um rol infindável de suposições e de conjeturas, pressupondo-se a conversão de € 1,00 por ponto, pressupondo-se o recebimento de apostas e o pagamento de prémios, que na prática e no caso concreto dos autos não foi nem é possível confirmar. A “experiência comum” a que aludiu a testemunha A. A. não constitui um elemento suficientemente sólido que permita a prova que no caso concreto dos autos ocorresse a conversão monetária dos pontos, já que existe um manancial de hipóteses alternativas.»
Ora, no que concerne às caraterísticas da máquina apreendida e do jogo nela desenvolvido, como se pode ler na motivação factual da sentença recorrida, o Tribunal a quo «teve em consideração o relatório de exame ao equipamento que se encontra a fls. 72 a 74, bem como o depoimento da testemunha A. A., inspetora, e que procedeu à elaboração do referido relatório.»
E concretamente quanto à questão de saber como seriam convertidos os pontos angariados no jogo, uma vez que do relatório constava que os prémios eram entregues à razão pecuniária de € 1,00 (um euro) por ponto, a motivação explícita detalhadamente o raciocínio da julgadora, dando conta que «A tal questão respondeu a testemunha [A. A.] que essa era a experiência que tinha nestas situações. Efetivamente se apurou que os pontos fossem convertidos em dinheiro ou em espécie. Contudo, entendemos que, nestes casos, recorrendo à experiência por parte de quem inspeciona estas máquinas e sabe o seu funcionamento, não temos porque afastar as regras da experiência comum e normalidade (veja nesta parte, na valoração das regras da experiência comum, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.01.2017, processo n.º 57/13.4EAEVR.E1, disponível em www.dgs.pt (“Nestas circunstâncias não pode deixar de se concluir – de acordo com as regras da experiência comum e os critérios da normalidade da vida – que este jogo, que se desenvolve nos termos supra descritos, em que o jogador pode auferir uma vantagem de valor indeterminado (entre 1 e 200 euros) ou acumular pontos para repetir a sua sorte, podendo desse modo multiplicar a aposta, na expetativa de maior ganho, é potencialmente viciador, na medida em que o jogador é impulsionado a repetir a jogada na ânsia de obter maior ganho, principalmente na época de crise em que se vive, risco que, afinal, se pretende evitar com a incriminação, ao que acresce que a grande maioria dos frequentadores dos estabelecimentos onde habitualmente este tipo de máquinas é colocado provém de estratos económicos menos favorecidos e, por isso, mais vulneráveis”)). A expectativa do jogador será sempre um ganho económico e, não tendo ficando demonstrado qualquer referência à atribuição de um prémio em espécie, que esse sim seria de esperar que estive visível ao público, o Tribunal só pode concluir que a conversão de pontos passaria pela conversão dos mesmos em dinheiro, como habitual, nestas máquinas.
Aliás, seria de estranhar que o jogador colocasse uma moeda apenas pelo prazer de observar um ponto luminoso a deslocar-se a parar em algum deles com o objetivo de acumulação simples de pontos. Aqui sim, socorrendo-nos das regras da experiência comum e da normalidade concluímos, por óbvio, que com a acumulação de pontos se pretende um prémio e que, atendendo a estas máquinas e à experiência de quem as conhece e da normalidade, a conversão de pontos fosse efetuada naqueles termos.
Ora, com tal comportamento, o arguido apenas poderia ter como intenção obter um lucro económico, mais uma vez, socorrendo-nos das regras da experiência comum e da normalidade, uma vez que a exploração de máquinas com as características que estão aqui em causa tem sempre em vista a obtenção de um lucro económico.»
O raciocínio exposto no excerto acabado de transcrever revela-se absolutamente consentâneo com a lógica e as regras da experiência da vida, suportando inequivocamente a factualidade constante do ponto 6º, no segmento impugnado. Aliás, perante a existência de uma máquina com as descritas caraterísticas, seria até absolutamente impensável a hipótese de os pontos poderem corresponder a brindes ou objetos, como conjetura o recorrente, pois se assim fosse, tais brindes/objetos estariam necessariamente expostos ou, pelo mesmos descritos, em local bem visível do estabelecimento, como qualquer cidadão mediano sabe que sempre acontece nesses casos, e não acontecia na situação dos autos.
De tudo assim decorrendo que a matéria de facto apurada e impugnada encontra-se devidamente fundamentada, por referência à prova produzida, não se vislumbrando qualquer afrontamento às regras da experiência comum ou uma qualquer apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis.
Note-se, aliás, que o legislador, consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem envolver, teve o cuidado de dizer que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa (cfr. artigo 412.º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal). E, in casu, é indubitável que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa da proferida, nos termos da al. b) do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Sendo assim a decisão do Tribunal a quo inatacável neste ponto, porque proferida de acordo com a sua livre convicção, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal e em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis.
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Resta fazer uma alusão à alegada violação do princípio in dubio pro reo, também invocado pelo recorrente.
O in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência – consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa – surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado. Tendo esse non liquet de ser resolvido sempre a favor do arguido, sob pena de preterição do referido princípio da presunção de inocência.7
Nesta perspetiva, o princípio do in dubio pro reo constitui um verdadeiro limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, regulando o procedimento do tribunal quando tenha dúvidas sobre a matéria de facto.
No caso dos autos, da leitura da sentença recorrida resulta de forma muito clara que a julgadora a quo considerou apurados os factos para além de qualquer dúvida razoável sobre qualquer deles, sem dúvidas em fixar a sua ocorrência tal como se encontram descritos, fundamentando essa convicção de forma lógica e percetível, sempre por referência à prova produzida em audiência de julgamento.
Assim, não decorrendo da sentença a existência ou confronto da julgadora com qualquer dúvida insanável sobre factos, não houve nem há dúvida para ser valorada a favor do arguido/recorrente.
Não tendo por conseguinte aqui aplicação o princípio do in dubio pro reo, que não se destina a resolver as dúvidas que o recorrente entende que a julgadora a quo devia ter tido e não teve, mas unicamente as do próprio julgador, que no caso inexistem.
Improcedendo totalmente a impugnação da matéria de facto.
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B. Subsunção jurídica dos factos.

Insurge-se também o recorrente com o enquadramento jurídico-penal dos factos feito na sentença recorrida, argumentando que o modo de funcionamento e as caraterísticas da máquina em causa a integram no conceito de modalidade afim do jogo de fortuna ou azar, o que implica, quando muito, o enquadramento da situação no regime contraordenacional regulado nos artigos 159.º a 164.º do DL n.º 422/89, de 2 de dezembro (doravante designado por Lei do Jogo).
Vejamos.
Tendo o recorrente sido condenado pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punível pelos artigos 108.º, n.ºs 1 e 2, por referência aos artigos 1.º; 3.º; 4.º, n.º 1, alínea g), todos da Lei do Jogo, e 14.º, n.º 1 e 26.º, 1ª parte, do Código Penal, atentemos antes de mais nas normas incriminadoras.

O referido artigo 108.º da Lei do Jogo, inserido no capítulo relativo aos ilícitos e sanções, na secção dos crimes, sob a epígrafe «exploração ilícita de jogo», estabelece que:
«1 - Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
2 - Será punido com a pena prevista no número anterior quem for encarregado da direcção do jogo, mesmo que não a exerça habitualmente, bem como os administradores, directores, gerentes, empregados e agentes da entidade exploradora.»

Constituem, assim, elementos típicos deste crime:
- objetivos -
a) a exploração de jogos de fortuna ou azar;
b) que essa exploração se processe por qualquer forma;
c) a exploração de tais jogos e por tais formas fora dos locais legalmente autorizados;
- subjetivo-
d) a existência de dolo em qualquer das suas modalidades, direto, necessário ou eventual (cfr. artigo 14º do Código Penal).

A discordância do recorrente relativamente à subsunção jurídica da sua conduta, nos termos efetuados pela sentença recorrida, assenta na não verificação do primeiro daqueles elementos típicos, mais concretamente na divergência que manifesta quanto à classificação da máquina em causa nos autos como jogo de fortuna e azar, o que é, efetivamente, ponto de fulcral importância na delimitação da conduta proibida pelo tipo.
A esse respeito, importa desde logo considerar o artigo 1º da Lei do Jogo, que define os jogos de fortuna ou de azar como todos aqueles cujo resultado se caraterize pela contingência, ou seja, pela particularidade de assentarem, exclusiva ou fundamentalmente, na sorte. Ficando, assim, definitivamente afastados da previsão legal aqueles jogos cujo resultado dependa da destreza ou perícia do jogador, seja esta de natureza física, intelectual ou sensorial.
Aqui chegados, e relembrando as caraterísticas da máquina em causa nos autos, tal como constam da factualidade tida como apurada, é forçosa a conclusão de que ela não se enquadra nesta última situação, já que é indubitável que o resultado do jogo nela desenvolvido depende única e exclusivamente da sorte. Aliás, nem o recorrente defende o contrário.
A questão põe-se porque nem todas as máquinas que desenvolvem um jogo que dependa única e exclusivamente, ou fundamentalmente, da sorte, integram o conceito típico de jogos de fortuna ou azar considerados ilícito criminal (cfr. artigos 108.º a 115.º da lei do Jogo), já que desse conceito há, desde logo, que considerar excluídas as denominadas modalidades afins dos jogos de fortuna e azar, abrangidas apenas pelo direito de mera ordenação social (artigos 159.º a 163.º do mesmo diploma).
Importa pois estabelecer, de forma clara, a definição de jogos de fortuna e azar, que passa pelo estabelecimento da fronteira entre esse jogos e aquelas outras modalidades afins.
Para tal, somos logo reconduzidos para o disposto no artigo 4.º, igualmente da Lei do Jogo, que define e enumera os tipos de jogos de fortuna e azar, autorizados apenas nos casinos. Desse elenco, fazem parte os «jogos em máquinas que, não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte» (alínea g) do n.º 1).
Por sua vez, o artigo 159.º, n.º 1, do mesmo diploma, estatui que «Modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar são as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico predeterminado à partida.». Nelas se incluem, nomeadamente, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos (n.º 2 do mesmo artigo 159.º)
Importa ainda considerar o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) do Supremo Tribunal de Justiça, com o número 4/2010 (publicado no DR 1ª série — N.° 46 — 8 de março de 2010), pois para além de os seus fundamentos serem, in casu, diretamente invocados pelo recorrente em abono da sua tese de que a máquina em causa nos autos não cabe dentro do conceito legal de jogo de fortuna e azar, este aresto procede a uma análise pormenorizada sobre a classificação de várias máquinas de jogo como sendo de fortuna ou azar ou apenas modalidades afins, muito contribuindo para a definição da fronteira entre elas.

Fixou o citado acórdão jurisprudência, nos seguintes termos:
“Constitui modalidade afim e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 159.º, n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei nº 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público”.
Embora os acórdãos uniformizadores de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não sejam «lei» e, como tal, não se apresentem como obrigatórios para os tribunais judiciais, estes, caso não os sigam, têm o dever especial de fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada, nos termos do disposto no artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. Pelo que desde já adiantamos que a jurisprudência do AUJ citado e transcrito não é sequer aplicável aos presentes autos, pois a máquina aqui em causa tem caraterísticas diversas daquela outra modalidade específica de máquina que foi objeto do dito acórdão uniformizador.
É que a questão nele dirimida pelo STJ, que até então dividia a jurisprudência, respeita a máquinas que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas e atribuem prémios com valor económico de acordo com resultados que dependem exclusiva ou fundamentalmente da sorte, que são vulgarmente designadas por máquinas de «bolas» e abundam em estabelecimentos de cafetaria, restauração e espaços de lazer. Máquinas essas que, face à definição ampla do artigo 1º da lei do Jogo, havia quem enquadrasse no jogo de fortuna ou azar, pelo facto de os seus resultados dependerem da sorte. Entendimento esse que o acórdão do STJ veio afastar, com os argumentos que se passam a transcrever:
«Todas as modalidades de jogos que não correspondam às caraterísticas descritas e especificadas nos referidos artigos 1º e 4º do Decreto -Lei nº 422/89, na redação do Decreto -Lei nº 10/95, embora os seus resultados dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, revertem para as modalidades afins, como se defende no acórdão fundamento.
No caso das máquinas de jogos, só são de considerar como jogos de fortuna ou azar: Os jogos em máquinas pagando diretamente prémios em fichas ou moedas; Os jogos em máquinas que, não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte. O facto de os jogos em máquinas terem desaparecido do elenco exemplificativo do artigo 159º, nº 2 (modalidades afins), após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 22/85, de 17 de Janeiro, não significa que todos os jogos em máquinas se dividam, pura e simplesmente, em jogos de fortuna ou azar e jogos de diversão, estes de resultados dependentes exclusiva ou fundamentalmente da perícia do utilizador e não pagando prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico, nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei nº 21/85, também de 17 de Janeiro. Ora, os jogos nas máquinas automáticas em causa nos acórdãos em conflito (cf. supra n.ºs 6.1 e 6.2), se apresentavam resultados que dependiam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não desenvolviam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar nem pagavam diretamente prémios em fichas ou moedas. Por conseguinte, não podiam ser enquadradas em qualquer dos tipos de jogos de fortuna ou azar praticados em máquinas automáticas, tal como descritos nas referidas alíneas f) e g) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 422/89, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 10/95, revertendo, antes, para as modalidades afins referidas no artigo 159º, pois constituem uma espécie de sorteio por meio de rifas ou tômbolas mecânicas.
É certo que os referidos jogos proporcionavam também prémios em coisas com valor económico e em dinheiro, ou só em dinheiro, mas tal circunstância, se não é permitida pelo artigo 161º, n.º 3, do referido diploma legal, também não é suficiente, por si só, para integrar a «específica configuração em que está definido o pagamento de prémios (pagamento directo em fichas ou moedas) nos jogos de fortuna ou azar”, como se diz no acórdão fundamento.»
Adiantando em seguida, o mesmo aresto, duas ordens de razões justificativas do entendimento que perfilhou, que também se transcrevem, pelo seu manifesto interesse no estabelecimento da fronteira entre as máquinas de jogo de fortuna ou azar e de modalidades afins. Atentemos pois:
«Como vimos atrás, o tipo legal de crime é dotado de uma certa rigidez, que o constitui como tipo de garantia, sendo essa precisamente uma das manifestações do princípio da legalidade. Assim, aquela circunstância não retira aos jogos em causa a natureza de modalidade afim. Acresce que a tutela penal adscrita à proibição dos jogos de fortuna ou azar fora dos locais autorizados encontra fundamento, como se viu (cf. supra n.º 7.1.1), em valores de relevante ressonância ético-social, nomeadamente pelos efeitos devastadores a nível social, familiar, económico e laboral, com incremento de criminalidade grave, não só de carácter patrimonial mas também de caráter pessoal (vida, integridade física, ameaça, coação) que a dependência de jogos de grande poder aditivo e potenciação de descontrolo pode acarretar. Tal não sucede relativamente aos jogos em máquinas automáticas que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas, em que o que se arrisca assume dimensão pouco significativa, pois a expetativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação, ao contrário do que sucede com os jogos de casino, mesmo em máquinas, possibilitando uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente.»
Aqui chegados e retomando novamente o caso em apreço, das caraterísticas da máquina em causa nos autos (descrita no ponto 6 dos Factos Provados, cuja impugnação não procedeu) resulta que ela desenvolve um jogo em que o jogador só tem intervenção ativa no início, quando coloca a moeda na máquina, não podendo através da sua perícia influenciar o resultado ou pontuação final, que assenta exclusivamente no fator sorte. O jogador pode auferir uma vantagem patrimonial de valor variável, dependente da pontuação obtida e que é paga unicamente em dinheiro, ou nem sequer auferir qualquer prémio.
Não há pois dúvida de que a máquina em causa nos autos desenvolve um jogo que apresenta como resultado pontuações e não os prémios isolados próprios dos sorteios, rifas e tômbolas, como acontecia nas situações apreciadas no acórdão de fixação de jurisprudência.
Ora, jogos com estas caraterísticas são de fortuna e azar, tal como definido no artigo 4.º, n.º 1, alínea g), última parte, da Lei do Jogo: «jogos em máquinas que, não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte», cuja exploração só pode ser realizada em casinos.
Aliás, o artigo 161.º n.º 3, do mesmo diploma, na sua parte final, prescreve que as modalidades afins de jogos de fortuna ou azar não podem substituir por dinheiro ou fichas os prémios atribuídos, assim excluindo expressamente dessas modalidades, jogos do tipo do desenvolvido na máquina em causa nos autos, que deve assim classificar-se como jogo de fortuna e azar, como tal preenchendo, para efeitos criminais, o respetivo conceito típico do artigo 108.º, nº da Lei do Jogo.
Nenhuma censura nos merecendo pois a subsunção jurídica dos factos apurados que consta da sentença recorrida, nos termos da qual é imputada ao recorrente um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punível pelos artigos 108.º, n.ºs 1 e 2, por referência aos artigos 1.º; 3.º; 4.º, n.º 1, alínea g), todos da Lei do Jogo.
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C. Quantum da pena.

Por fim, o recorrente sustenta que a pena de prisão aplicada e a multa na qual foi substituída é claramente desajustada e excessiva, devendo ser minorada para um mês de prisão substituída por uma multa de igual tempo, o que, acrescendo à pena de 50 dias de multa aplicada (cujo quantum não contesta), redundaria numa pena global de multa de 80 dias.
Vejamos.
O crime pelo qual o recorrente foi condenado, de exploração ilícita de jogo, previsto e punível pelo artigo 108.º, n.º 1, da Lei do Jogo, é punido com pena de prisão até dois anos e multa até 200 dias.
No caso em apreço, temos desde logo como fatores de valoração que militam a favor do arguido, a sua integração familiar e a ausência de antecedentes criminais à data dos factos.
A culpa é intensa, revelada no dolo direto que revestiu a sua atuação.
A ilicitude é de grau inferior à média, pois para além de estar em causa apenas uma máquina (que desenvolvia um único jogo de fortuna e azar), nada se apurou quanto ao tempo durante o qual foi utilizada e número de pessoas que a possam ter utilizado, nada se sabendo também quanto a eventuais ganhos que poderá ter proporcionado. Sendo que o desconhecimento não pode deixar de beneficiar o agente.
As necessidades de prevenção especial não se apresentam aqui com grande relevância, uma vez que atualmente o arguido trabalha na área da construção civil.
O comportamento posterior não abona a favor do arguido, pois depois dos factos dos autos praticou crime da mesma natureza, pelo qual entretanto veio a ser condenado.
O alarme social é praticamente inexistente quanto a este tipo de condutas.
Neste contexto e face à medida abstrata da pena, afigura-se-nos que a pena de quatro meses de prisão encontrada, que apenas em três meses excede o respetivo mínimo legal, numa moldura cujo máximo são dois anos, não se mostra desajustada.
Assim, não contestando o recorrente a pena de 50 dias de multa, e sendo a pena global resultante da mera soma da multa diretamente imposta e da que resultar da substituição da prisão, por força do disposto no artigo 6º do Decreto-Lei nº 48/95, de 15.03, nada há a apontar ao Tribunal a quo, também neste ponto.
De todo o modo, como é hoje jurisprudência dominante, que seguimos, pequenas divergências na fixação da pena concreta, absolutamente alheias a incorreções ou distorções no seu processo de aplicação legal também não devem, em princípio, ser fundamento para a sua alteração pelo Tribunal de recurso que, ao contrário do Tribunal a quo, não beneficiou da imediação e oralidade que, como qualquer jurista prático do Direito sabe, também são importantes nesta sede.
Precisamente neste sentido, lê-se no Acórdão do STJ de 12.07.2018, Proc. n.º 116/15.9JACBR.C1.S1 (3): «pode sindicar-se a decisão, quer quanto à desconsideração ou errada aplicação pelo tribunal dos princípios gerais de determinação da medida da pena, à correcção das operações nela efectuadas, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos factores relevantes, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como à forma de actuação dos fins das penas no quadro de prevenção. Mas o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.»
***

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido D. R..
Vai o recorrente condenado em custas, fixando-se em 3 (três) Ucs a taxa de justiça.
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Guimarães, 24 de maio de 2021
(Elaborado e revisto pela relatora)

Fátima Furtado
Armando Azevedo
(Assinado digitalmente)


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Disponível em www.dgsi.pt.
3. Disponível em www.dgsi.pt