EXECUÇÃO
ÓBITO DO EXECUTADO
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
IDENTIFICAÇÃO DOS SUCESSORES
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Sumário

I– Tornado conhecido nos autos o falecimento de uma das partes tal determina a imediata suspensão do processo, nos termos dos artigos 269º, n.º 1, a) e 270º, n.º 1 do Código de Processo Civil, impondo-se então a promoção do incidente de habilitação dos sucessores da parte falecida para com eles prosseguirem os termos da demanda.

II– O cumprimento do ónus de promover a habilitação pressupõe que o requerente identifique os sucessores do falecido, o que, as mais das vezes, não constituirá matéria acessível à parte contrária, pelo que a intervenção de auxílio do tribunal para suprir essa dificuldade constitui expressão do dever de cooperação.

III– Invocando o exequente o desconhecimento dos herdeiros e o sigilo fiscal como obstáculo à obtenção das informações necessárias para a dedução do incidente de habilitação, deve ser deferida a sua pretensão no sentido de ser o Tribunal a diligenciar pela prestação das informações pertinentes, atento o princípio da cooperação consagrado no art. 7º do Código de Processo Civil, na vertente do dever de auxílio às partes, ao que não obsta o regime da suspensão da instância por não estar em causa a prática de actos com repercussão directa na tramitação processual da lide.

Texto Integral

Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


A (então Banco BANIF Mais, S.A.) apresentou requerimento executivo, com data de 22 de Novembro de 2014 contra B e C, entretanto falecido, que deu origem aos autos de execução para pagamento de quantia certa n.º 5642/14.4T8ALM, com base em título executivo constituído por requerimento de injunção a que foi aposta a certificação de força executiva, com data de 26 de Abril de 2010, em que solicita o pagamento da quantia de 8 715,16 €, valor em dívida referente a contrato de mútuo celebrado em 10 de Maio de 2007 (cf. Ref. Elect. 1046752 dos autos de execução).
Em 15 de Dezembro de 2020 o agente de execução remeteu aos autos informação dando conta que, segundo o que apurou junto do Serviço de Segurança Social, o executado C faleceu em 30 de Outubro de 2020 (cf. Ref. Elect. 27974235).

Em 16 de Dezembro de 2020 o exequente juntou certidão de óbito relativa ao executado e apresentou requerimento com o seguinte teor (cf. Ref. Elect. 27997222):
A […] vem com o presente juntar aos autos certidão de assento do óbito do executado C […] falecido aos 30 de Outubro de 2020, com 53 anos, no estado de casado com a executada B residente que era à data do óbito na Rua ..., nº ..., r/c Esqº, S... A...,- B..., e com vista a seguidamente nestes autos poder vir a requerer de conformidade, requer a V.Exa., ao abrigo do disposto no artigo 417º do Código de Processo Civil, que V.Exa. se digne ordenar a notificação da dita executada B ao presente viúva, para que a mesma venha aos autos, em prazo não superior a vinte dias, indicar os demais eventuais herdeiros que ficaram por óbito de seu marido o executado C com a indicação – atento a actual situação de pandemia e a dificuldade em contactar pessoalmente as Conservatórias do Registo Civil e atento a possibilidade de obtenção de certidões “online” desde que se possuem todos os elementos para o efeito necessários - do nome completo de cada um deles, das respectivas datas de nascimento, das freguesias e concelhos onde nasceram, das Conservatórias do Registo Civil onde constam os ditos assentos de nascimento, e das respectivas moradas, mais requerendo igualmente a V.Exa., sabido que o dever de sigilo fiscal a que alude a Lei Geral Tributária se não aplica aos Tribunais, se digne mandar oficiar ao Serviço de Finanças de “Barreiro” - apenas em Fevereiro de 2021 pois finda, nos termos da Lei, em 31/01/2021 o prazo para a participação do óbito para efeitos de imposto de selo para que o mesmo informe, igualmente em prazo não superior a vinte dias, se por óbito de C falecido aos 30 de Outubro de 2020, com 53 anos de idade, contribuinte fiscal que era 188 893 350, no estado de casado com a executada B foi instaurado no referido Serviço de Finanças processo de imposto de selo por transmissão gratuita e, em caso afirmativo, que se digne remeter para os autos cópia do auto de declarações de cabeça de casal para efeitos de instauração do referido processo, com indicação da morada completa dos herdeiros do falecido C e não apenas “território nacional”.”

Em 21 de Janeiro de 2021 foi proferida a seguinte decisão (cf. Ref. Elect. 402090916):
“Resulta dos autos (REFª: 37493428) que o executado C faleceu em 30.10.2020.
A instância suspende-se quando falecer alguma das partes (artº 269º, nº 1, al. a) do NCPC).
Junto ao processo documento que prove o falecimento de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância (artº 270º, nº 1 NCPC).
A suspensão cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da parte falecida (artº 276º, nº 1, al. a) do NCPC), sem prejuízo do disposto no artº 275º, nº 3 do NCPC.
Assim sendo, e pelo exposto, ao abrigo das disposições legais já supra citadas, declaro a instância suspensa por falecimento do executado, cessando assim que for notificada a decisão que considere habilitado o seu sucessor, ou sucessores.
Adverte-se o exequente para a cominação prevista no art.º 281.º, n.º 5 do NCPC (a deserção), caso o processo fique parado a aguardar impulso processual por mais de seis meses.
Notifique.
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No mais e quanto às diligências requeridas:
Indefiro, uma vez que a instância executiva se mostra suspensa e que durante a suspensão só podem ser praticados os actos urgentes destinados a evitar prejuízos irreparáveis.
Notifique e informe o Agente de Execução.”

É do segundo segmento desta decisão que vem interposto o presente recurso pela exequente, que alegou e apresentou as seguintes conclusões e pedido:
(i)-O artigo 7º do actual Código de Processo Civil impõe o princípio da cooperação entre o Tribunal, os respectivos mandatários judiciais e as partes dos autos.
(ii)-Do princípio de cooperação consignado no citado preceito do Código de Processo Civil ressalta que sempre e quando são requeridas diligências como a referida a fls.-, aos 16 de Dezembro de 2020, que o ora recorrente não pode obter, atento também até o dever de sigilo fiscal a que alude o artigo 64º, nº 1, da Lei Geral Tributária, assiste ao exequente o direito de solicitar que o Tribunal, dentro do dever de cooperação que lhe é imposto, notificar a viúva do falecido executado e oficiar de conformidade com o que nos autos foi requerido para, obtidas tais informações, delas ser dado então conhecimento ao exequente e este poder nos autos requerer de conformidade.
(iii)-O despacho recorrido, ao não deferir assim o requerido a fls. -, aos 16 de Dezembro de 2020, violou o citado princípio de cooperação que consignado se encontra no artigo 7º do actual Código de Processo Civil.
(iv)-O despacho recorrido violou pois o preceito referido na anterior alínea e, consequentemente, o recurso deve ser julgado procedente e provado e, assim, deve revogar-se o despacho recorrido e ordenar-se a sua substituição por acórdão que defira o que requerido foi a fls. -, aos 16 de Dezembro de 2020, desta forma se fazendo Justiça.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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II–OBJECTO DO RECURSO

Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.

Assim,perante as conclusões da alegação da exequente/recorrente há apenas que apreciar se estava o Tribunal a quo obrigado, por força do princípio da cooperação, a deferir a realização das diligências solicitadas.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III–FUNDAMENTAÇÃO

3.1.– FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra.
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3.2.– APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Tendo sido comunicado aos autos o falecimento do executado C e junta certidão comprovativa do óbito pela própria exequente, o Tribunal a quo, em cumprimento do estatuído nos art.ºs 269º, n.º 1, a) e 270º, n.º 1 do CPC, declarou suspensa a instância executiva.
Relativamente a esta parte da decisão a recorrente nada disse e cingiu expressamente o objecto do recurso à segunda parte, que indeferiu a realização das diligências com vista ao apuramento da identificação dos herdeiros do executado falecido.
Significa isto que a decisão que declarou a suspensão da instância transitou em julgado, pelo que se mantém tal suspensão.
Precisamente porque a instância foi declarada suspensa, entendeu o tribunal recorrido que não podia deferir a realização das diligências requerida, dado que durante a suspensão apenas se praticam os actos urgentes destinados a evitar dano irreparável, nos termos, ao que se depreende, do disposto no art. 275º, n.º 1 do CPC.
A apelante não se pronunciou sobre a admissibilidade da prática de tais diligências na pendência da suspensão da instância, convocando apenas a violação do princípio da cooperação consagrado no art. 7º do CPC, sustentando que não podia o tribunal recorrido indeferir o por si requerido, porquanto tem o dever de colaboração com as partes para se alcançar a justa composição do litígio.

Estatui o art.º 7º do CPC o seguinte:
1- Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
2- O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.
3- As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º.
4- Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.”

Decorre do assim prescrito que, iniciada a relação processual, importa que todos os intervenientes cooperem no sentido de que o processo prossiga os seus trâmites normais e seja alcançado o fim visado, ou seja, a resolução de problemas por parte de quem procura o sistema judiciário português.
O que se pretende é obter uma solução substantiva para as questões trazidas a juízo, postergando decisões meramente formais que vejam o processo como uma finalidade em si próprio e não como um instrumento para se obter o conhecimento do mérito da acção.
Certo é que o impulso processual incumbe às partes, tal como se extrai do estatuído nos art.ºs 3º e 5º do CPC,
Todavia, logo o art. 6º, n.º 1 do CPC dispõe que “Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção […]”.

Os princípios da gestão e da adequação processual (cf. art. 547º do CPC) e, bem assim, da cooperação, conjugados ainda com o dever de boa fé processual, devem reger todo o desenvolvimento do processo até que este chegue ao seu termo, sempre na perspectiva de que venha a ser proferida uma decisão de mérito que resolva a questão litigiosa introduzida em juízo pelas partes.
Neste contexto, o poder de direcção do juiz do processo (contraponto do dever de direcção activa) pressupõe que este adopte comportamentos que promovam a eficiência da resposta judiciária, promovendo e assumindo as condutas que melhor permitam atingir e potenciar uma composição do litígio equitativa, em prazo razoável – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pág. 67.
A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 31 referem em anotação ao art. 6º do CPC:
“No normativo afloram com precisão dois pilares fundamentais do processo civil: o da instrumentalidade dos mecanismos processuais em face do direito substantivo e o da prevalência das decisões de mérito sobre as formais. O direito adjectivo só existe porque existe direito substantivo integrado por normas que, de modo abstracto e generalizado, concedem direitos, fixam obrigações ou impõem ónus ou limitações. Em caso de conflito de interesses, impõe-se a intervenção reguladora do juiz, com funções de tutela de direitos subjectivos ou de interesses juridicamente relevantes.”
Em consonância com o dever de gestão processual, o dever de cooperação do tribunal visa, tal como referido no n.º 1 do art. 7º do CPC, alcançar a justa composição do litígio, ou seja, tal dever está ao serviço da obtenção de uma solução justa do caso.

Tal com refere o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in Omissão do Dever de Cooperação do Tribunal: Que Consequências?[2], pp. 1-2:
“[…] o dever de cooperação está ao serviço da obtenção de uma justa composição do litígio. Isto significa que, estando o processo na disponibilidade das partes e, por isso, não podendo o tribunal substituir-se às partes na definição do seu objecto e na prática de actos processuais, o dever de cooperação tem essencialmente uma função assistencial das partes (mesmo da parte revel). Neste enquadramento, o dever de cooperação não pode ser confundido com um poder discricionário do tribunal: não se trata de atribuir ao tribunal um poder para o mesmo utilizar quando entender e como entender, mas de impor ao tribunal um dever de auxílio das partes para que seja atingida a justa composição do litígio.”

O dever de colaboração abrange - para além do dever de inquisitoriedade (cf. art.ºs 411º e 986º, n.º 2 do CPC), de prevenção ou de advertência (sobre a falta de pressupostos processuais sanáveis ou irregularidades ou insuficiências das suas peças ou alegações -cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), 591.º, n.º 1, al. c), 639.º, n.º 3, e 652.º, n.º 1, al. a)), do dever de esclarecimento e de consulta - o dever de auxílio das partes, isto é, o Tribunal tem o dever de auxiliar as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento dos seus ónus ou deveres processuais, tal como decorre do disposto no n.º 4 do art. 7º do CPC (encontrando-se uma concretização deste dever no art. 418.º, n.º 1, quanto à obtenção de informações na posse de serviços administrativos).

Mais do que isso, o Prof. M. Teixeira de Sousa sustenta que o dever de cooperação do tribunal com as partes implica a transformação de poderes discricionários em poderes funcionais ou poderes-deveres desse órgão, isto é, os poderes discricionários, que o tribunal exerce ou não de acordo com o seu “prudente arbítrio” (cf. art. 152.º, n.º 4 do CPC), enquanto expressão do dever de cooperação, transmutam-se em poderes funcionais ou poderes-deveres, pois que constituem um instrumento do dever de cooperação, estando, como tal, abrangidos pela natureza vinculativa deste.

Neste contexto, é possível concluir, tal como propugna a recorrente, que, atento o estatuído no art.º 7º do CPC, alegadas as dificuldades com que se deparava para identificar os herdeiros do executado falecido, o tribunal recorrido estava obrigado pelo dever de colaboração/cooperação com as partes a auxiliar a apelante na obtenção dos elementos em falta.

Com efeito, a tomada de conhecimento nos autos do falecimento de uma das partes determina a imediata suspensão do processo (cf. art. 270º, n.º 1 do CPC), impondo-se então a promoção do incidente de habilitação dos sucessores da parte falecida para com eles prosseguirem os termos da demanda, o que pode ser requerido por qualquer das partes sobrevivas como por qualquer dos sucessores, contra as partes sobrevivas e contra os sucessores que não forem os requerentes – cf. art.º 351º, n.º 1 do CPC.

Impende, assim, sobre as partes sobrevivas ou sobre os sucessores do falecido o ónus de promover a habilitação (cf. art.ºs 3º e 5º do CPC), o que pressupõe, como é sabido, que o requerente identifique os sucessores do falecido, o que, as mais das vezes, não constituirá matéria acessível à parte contrária, daí que a intervenção de auxílio do tribunal para suprir tal dificuldade surja como expressão do dever de cooperação e, além disso, como regulação proporcional dos ónus impostos às partes.

Tal é referido claramente no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-09-2006, relator Rijo Ferreira, processo n.º 5476/2006-1[3], acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt[4]:
“Os ónus processuais, enquanto encargos que impendem sobre os intervenientes, com vista à obtenção de determinados resultados, vantagens ou situações, sendo uma forma legítima de regulação processual, não deixam de estar sujeitos aos princípios da proporcionalidade e da proibição do arbítrio, não podendo ter-se como legítimo um ónus arbitrário e desproporcionado aos fins visados, contrário ao princípio constitucional do acesso à justiça. […]
Decorre da experiência comum de vida não ser acessível a um qualquer cidadão saber da identidade dos sucessores de um outro cidadão, a não ser que seja das relações familiares ou sociais do defunto, ou que nesse sentido obtenha a colaboração voluntária das pessoas situadas nesses círculos.
Assim, ainda que descortine onde obter ou tenha acesso à certidão de óbito e daí obtenha a identidade dos progenitores tal não lhe possibilita saber qual a conservatória onde pode obter a respectiva certidão de nascimento donde possa constatar se os mesmos sobreviveram; e muito menos se, além deles, se encontram vivos outros ascendentes. Igualmente não descortina aí a identidade de descendentes e onde possa obter a respectiva certidão de nascimento. Sendo a única menção alcançável a do nome do cônjuge.
Por outro lado a informação em causa faz parte integrante do círculo da vida privada do defunto que, por se encontrar legalmente protegida, não é livremente acessível pelos outros cidadãos, não podendo as entidades que eventualmente possuam esses dados transmiti-los a terceiros. E dessa forma se encontra actualmente inviabilizada a diligência que, por excelência, era utilizada para efeitos de habilitação: obtenção de certidão das declarações do cabeça de casal para efeitos fiscais (cf. artº 64º da Lei Geral Tributária).
Em face dessa situação, e como decorre da experiência comum de vida, a parte sobreviva fica confrontada perante uma situação, senão de impossibilidade, pelo menos de grande dificuldade, em obter a informação relevante acerca dos sucessores do falecido, não lhe podendo ser imposto, sob pena de violação dos apontados princípios, que, não obstante, venha a diligenciar pela identificação dos sucessores.”

Como tal, atento o princípio da cooperação a que o tribunal está obrigado, o senhor juiz a quo deveria ter ordenado a realização das diligências solicitadas, com vista a auxiliar a parte sobreviva na obtenção dos elementos necessários para a dedução do incidente de habilitação.
Contudo, questão distinta que se coloca é a de saber se, estando a instância suspensa, podia o tribunal ordenar a realização de tais diligências, atento o disposto no art. 275º, n.º 1 do CPC.
O processo constitui uma série ordenada e sucessiva de actos, pelo que a suspensão da instância paralisa a tramitação normal da lide, daí que, por força do mencionado normativo legal, enquanto durar a suspensão, só podem praticar-se validamente os actos urgentes destinados a evitar dano irreparável, sendo que, neste caso, a decisão recorrida indeferiu o requerido pela apelante convocando, exactamente, a circunstância de não estar em causa a prática de acto urgente.

O art.º 270º, n.º 3 do CPC estatui que “São nulos os actos praticados no processo posteriormente à data em que ocorreu o falecimento ou extinção que, nos termos do n.º 1, devia determinar a suspensão da instância, em relação aos quais fosse admissível o exercício do contraditório pela parte que faleceu ou se extinguiu.

A nulidade assim prescrita abrange os actos praticados a partir do falecimento ou da extinção, independentemente do momento em que seja dado conhecimento no processo desse facto.
Contudo, “a nulidade não abrange todos os actos que se pratiquem a partir do momento do falecimento ou da extinção: salvando-se aqueles que não devessem ter lugar em contraditoriedade (maxime, as decisões judiciais), só os actos em que a parte falecida ou extinta pudesse ter intervenção, por si ou através do mandatário constituído, é que são abrangidos pela nulidade. Mesmo assim, o n.º 4 admite, quanto aos actos abrangidos pela nulidade, que esta seja suprida mediante ratificação pelos sucessores da parte falecida ou extinta” – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, pp. 532-533.
A ideia base subjacente ao instituto da suspensão da instância por ocorrência do óbito de uma das partes é aversão da lei à circunstância de que um processo possa prosseguir quando uma das partes que nele intervém faleceu, tutelando os interesses de quem vai suceder na esfera patrimonial do falecido – cf. Prof. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, Coimbra 1946, pp. 240-241; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-03-2009, relatora Graça Araújo, processo n.º 5478/2008-6.

A propósito do regime da arguição da nulidade prescrita no n.º 3 do art. 270º do CPC (por referência ao anterior art. 277º, n.º 3 do CPC de 1961), revelando as razões que lhe subjazem e permitindo constatar que tipo de actos não devem ser praticados no decurso do período da suspensão, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-05-2009, relator Santos Bernardino, processo n.º 296/2002.S1:
“É patente que não se trata de uma nulidade determinada pelo interesse público, como claramente se infere não só da limitação acabada de enunciar (a nulidade não atinge todos os actos processuais) mas ainda do facto de os sucessores da parte falecida posteriormente habilitados poderem ratificar os actos viciados, suprindo a nulidade (n.º 4 do mesmo preceito). Temos, pois, por irrecusável que a nulidade cominada naquele n.º 3 é apenas estabelecida a favor dos representantes do falecido que não estão no processo como partes, pois só estes podem ser prejudicados por actos processuais praticados em tempo que lhes não permitia qualquer interferência nesses actos – em tempo ou ocasião em que, portanto, não podiam defender os direitos em litígio que lhes tivessem sido transmitidos pela parte falecida.”

Daqui decorre que apenas os actos que contendem directamente com a tramitação processual com repercussão na apreciação do objecto do litígio poderão ser cominados com o vício da nulidade se praticados no decurso do período da suspensão, pois que a lei pretende que todos aqueles que devam ter lugar com observância do princípio do contraditório sejam praticados quando as partes estejam em condições de sobre eles se pronunciarem.

Ora, a realização das diligências solicitadas pela apelante com vista ao apuramento dos herdeiros do executado falecido nenhuma repercussão directa possui quanto à apreciação do objecto do litígio, sendo estas meramente instrumentais para que a parte sobreviva possa deduzir o necessário incidente de habilitação para o oportuno prosseguimento dos autos.

Assim, não estando em causa actos que contendam directamente com a tramitação do processo e que originem o seu prosseguimento sem audição dos interessados/herdeiros da parte falecida, não se vislumbra que a suspensão da instância impedisse a sua prática ou que esta, tendo lugar, originasse qualquer nulidade, pois que o apuramento dos herdeiros, por si só, nenhuma influência tem seja no prosseguimento da lide, seja na decisão que nela cumpre proferir.

Aliás, se assim não se entender, e tendo em conta que a realização das diligências peticionadas visa precisamente ultrapassar o impasse decorrente do decesso do executado, para que a instância possa prosseguir e deixe de continuar suspensa, o indeferimento de tal pretensão, configurada que está uma credível situação de impossibilidade de a parte obter, por si só, os elementos em falta, conduziria a um impasse que é o da instância suspensa assim permanecer, nela nada se podendo ordenar ou fazer para ultrapassar o impedimento.

Dando conta, de modo cristalino, da necessidade de se promover o incidente de habilitação para alcançar a cessação da suspensão da instância, com recurso, se necessário, à colaboração do tribunal, atente-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4-01-2019, relator Falcão de Magalhães, processo n.º 18/17.4T8CVL.C1:
“O regime de suspensão da instância e, em particular, o que se encontra previsto no nº 3 do artº 270º e nos nºs 1 e 2 do artº 275º, ambos do NCPC, não abarca, evidentemente, todos os actos das partes cujo escopo útil seja o de fazer com que a causa da suspensão cesse, ou seja, no caso, todos os actos tendentes a conseguir que sejam habilitados os herdeiros do falecido […].
Os actos que estão vedados, enquanto a instância se encontra suspensa por óbito de uma das partes, são – salvaguardados os actos urgentes destinados a evitar dano irreparável – os actos mediante os quais se pretenda, directamente, dar andamento ao processado na acção, não os actos que se destinem a fazer com que a suspensão da instância cesse, designadamente, os tendentes a habilitar nos autos os sucessores da parte falecida.
[…] a instância fica parada durante a suspensão, mas as partes hão-de empregar esforços no sentido de remover rapidamente o obstáculo determinante da suspensão.
As partes não podem mostrar-se activas em fazer seguir o processo principal durante o período da suspensão […]; mas hão-de exercer a sua actividade em ordem a fazer cessar a suspensão, quando a cessação dependa de acto ou facto seu. […] O que a lei proíbe é que se pratiquem actos na instância suspensa; não proíbe, antes quere, que se pratiquem actos tendentes a fazer cessar, o mais depressa possível, a suspensão. […]».

Assim, se o falecido era réu, ou executado nos autos, e pelos seus herdeiros, ou pelo seu comparte (co-réu, co-executado, etc.), a quem pode interessar a inércia do processo, não for suscitada a habilitação, a parte contrária (autor, exequente, etc.), que tem o ónus de impulsionar os autos, o que tem a fazer, perante essa inércia alheia, é, ela própria, promover esse incidente, o que começará, em regra, caso os desconheça, pelo apuramento dos elementos essenciais a suscitar a habilitação.

Neste caso, se a parte der início a esse apuramento - v.g., requerendo a notificação da parte sobreviva para fornecer nos autos os elementos necessários a ser promovida a habilitação – mas, ante a passividade do notificado, que nada junta aos autos ou informa, não mostrar uma conduta diligente no sentido de fazer cessar a suspensão da instância – v.g. requerendo, em caso de inércia da parte sobreviva em fornecer nos autos os elementos necessários a ser promovida a habilitação, a concessão de prazo para tentar obtê-los ela própria, por outra via, ou, ainda, a colaboração do Tribunal na recolha desses elementos -, para que se venha a atingir tal escopo e, se assim, a suspensão vier, em razão dessa sua negligente inércia processual, a prolongar-se por mais de seis meses, o destino inexorável da instância será o da respectiva extinção, por deserção.”

Sendo evidente que a apelante visava com o requerimento deduzido em 16 de Dezembro de 2020 obter a identificação dos herdeiros do executado falecido com vista a deduzir o competente incidente de habilitação, tendo explicitado as razões das dificuldades com que se deparava para encetar, ela própria, as diligências que solicitou ao Tribunal, e sendo evidente a adequação destas para o fim visado e a inviabilidade de as obter atento o sigilo fiscal, deveria o tribunal a quo ter deferido tal pretensão, pois que de outro modo não poderia a exequente ultrapassar o impasse resultante da suspensão da instância por força do óbito do executado – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-10-2015, relator Leopoldo Soares, processo n.º 23/14.2TTLRS.L1-4; do Tribunal da Relação de Évora de 3-11-2016, relator Canela Brás, processo n.º 2552/12.3TBFAR.E1

Procede, deste modo, a apelação, com a consequente revogação da decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que ordene a notificação da executada para prestar a informação pretendida e, bem assim, a solicitação ao Serviço de Finanças competente a fim de que informe se por óbito do executado Álvaro Nuno Ramos foi instaurado processo de imposto de selo por transmissão gratuita e, em caso afirmativo, remeta os elementos de identificação atinentes aos herdeiros do falecido.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do RCP, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A pretensão que a apelante trouxe a juízo merece provimento.
Dado que a apelada não influenciou a decisão recorrida nem a decisão deste recurso, não pode ser considerado vencida para os efeitos previstos no art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Por sua vez, quem do recurso tirou proveito e, por isso, seria responsável pelo pagamento das respectivas custas, seria a recorrente.
No entanto, estando paga a taxa de justiça devida pela interposição do recurso porque a recorrente procedeu ao seu pagamento (cf. Ref. Elect. 28316149) e ninguém contra-alegou, e como o recurso não envolveu a realização de despesas (encargos), não há lugar ao pagamento de custas (cf. art. 529º, n.º 4 do CPC).
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IV–DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente e revogar, em consequência, a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine a notificação da executada e que se oficie ao Serviço de Finanças competente a fim de que prestem a informação e os elementos pretendidos pelo apelante.
Sem custas.
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Lisboa, 25 de Maio de 2021


Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro


[1]Adiante designado pela sigla CPC.
[2]Acessível em https://www.academia.edu/, consultado em 8 de Maio de 2021.
[3]Ainda que neste acórdão se conclua que não se trata de acto urgente passível de ser requerido no contexto da suspensão da instância.
[4]Todos os arestos adiante designados sem indicação de origem encontram-se acessíveis na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt.