REVISTA EXCECIONAL
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


Não é admissível recurso de revista excepcional de acórdão proferido em conferência pela Relação que apreciou nulidade de decisão (no elenco das nulidades previstas nas als. b) a e) do art. 615º, 1, do CPC) invocada relativamente ao acórdão que reapreciou a decisão de 1.ª instância, uma vez que, não sendo admissível recurso ordinário deste acórdão por preenchimento da causa de irrecorribilidade fundada na “dupla conformidade” e não tendo sido alegadas quaisquer das pretensões recursivas no âmbito dos arts. 629º, 2, e 672º, 1, do CPC, essas nulidades apenas e somente são arguíveis perante o tribunal que proferiu a decisão, nos termos conjugados dos arts. 615º, 4, 1ª parte, e 617º, 6, 1ª parte, aplicáveis por força do art. 666º, 1, do CPC, e decidindo em conferência, nos termos do art. 666º, 2, do CPC. Em face deste regime, não se admite revista excepcional para impugnar tão-só e exclusivamente uma decisão tomada em conferência pelo tribunal “a quo” sobre nulidades do acórdão proferido em 2.º grau, sem qualquer ligação acessória com o recurso do acórdão relativamente ao qual se invocam essas nulidades, e, nessa circunstância, decisão dotada de definitividade decisória por força da lei (sem prejuízo da disciplina dos arts. 617º, 6, 2ª parte, e 616º, 2, do CPC).

Texto Integral





Processo n.º 460/16.6T8ILH-E.E1.S1

Tribunal recorrido – Relação …, …... Secção Cível

Recorrente: AA

Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. AA veio, por apenso ao processo de insolvência de «Viegas & Dias – Sociedade de Contruções, Lda.», intentar acção para separação e restituição de bens, nos termos do arts. 144º e ss do CIRE, contra a «Massa Insolvente de Viegas e Dias – Sociedade de Construções, Lda.», a sociedade insolvente e todos os Credores da Massa Insolvente, pedindo que se declarasse a aquisição por usucapião e a condenação dos Réus a reconhecer o direito de propriedade das fracções W, X, Y, Z, AA, AB, AC, AD, AE, AF, AG, AH, AI, AJ, AK, AL, AM, AN e AO de prédio urbano sito em …...., apreendidas nos referidos autos de insolvência, e que fosse ordenada a sua separação da massa insolvente e a sua restituição ao Autor.

A Massa Insolvente apresentou Contestação e deduziu Reconvenção (fls. 118 e ss), nesta pedindo a condenação do Autor ao pagamento do montante de € 27.114,36, acrescido de juros, e ao reembolso de todas as quantias que se venha a pagar à Fazenda Nacional, no âmbito da insolvência da sociedade «Viegas & Dias», decorrentes do IMI e demais encargos, as quais se fixou em € 1.678,15, sem prejuízo de liquidação definitiva em execução de sentença. O Autor Requerente apresentou Resposta à matéria da Reconvenção, pedindo a absolvição do pedido reconvencional (fls. 188 e ss).

2. Realizou-se audiência prévia em 7/3/2019.

3. Por despachos proferidos em 17/10/2019, foi admitido o pedido reconvencional deduzido pela Requerida Ré «Massa Insolvente» e fixado o valor da causa (€ 255.164,29). Na mesma data, foi proferido despacho saneador, com definição do objecto do litígio e elenco dos temas de prova.

4. Foi realizada audiência de julgamento em 13/1/2020.

5. Em 9/2/2020, o Juiz …. do Juízo de Comércio ……. do Tribunal Judicial da Comarca ……. ditou a sua sentença, julgando a acção improcedente e a consequente absolvição do pedido, ficando prejudicada, e por isso julgada inútil, a apreciação do pedido reconvencional (fls. 233 e ss dos autos).

6. Inconformado, interpôs o Autor Requerente recurso de apelação para o Tribunal da Relação …. (TR…), que, em acórdão proferido em 22/5/2020, julgou pela negação de provimento do recurso e confirmação da sentença recorrida (fls. 332 e ss dos autos).

7. Desse acórdão interpôs o Apelante Reclamação para a Conferência, arguindo a sua nulidade por “omissão de pronúncia” nos termos dos arts. 613º, 2, 615º, 1, d), e 4, 1ª parte, 617º, 6, e 666º, 1 e 2, do CPC, invocando, no respectivo ponto 5.º que, “uma vez que se verifica a dupla conforme das decisões das instâncias, nos termos do art. 671.º, n.º 3 do CPC, não cabe do Acórdão da Relação …… recurso ordinário, que no caso seria o de revista, pelo que a nulidade do mesmo apenas pode ser arguida em sede de reclamação para este mesmo Tribunal, que dela deve conhecer em conferência, nos termos dos arts. 615.º, n.º 4 e 666.º, n.º 2 do CPC”.

Em acórdão proferido em 25/6/2020, o TR…. julgou improcedente a arguição daquela nulidade e indeferiu a Reclamação.

8. Novamente sem se resignar, o Autor Requerente interpôs recurso de revista excepcional do acórdão que “indeferiu, em conferência, a reclamação por omissão de pronúncia, que o ora recorrente deduzira do anterior Acórdão datado de 21/05/2020, proferido em sede de recurso de apelação e que confirmou a sentença de 1.ª instância”. Para o efeito, juntou, como acórdão fundamento de oposição jurisprudencial, o acórdão proferido em 27/6/2019 pelo Tribunal da Relação de Évora (processo n.º 931/18.1T9FAR-A.E1), através de cópia do publicado in www.dgsi.pt.

Finalizou as suas alegações com as seguintes Conclusões:

“1.ª- Nas alegações de recurso de apelação da sentença em 1.ª instância, bemcomonasrespectivasconclusões, designadamentenas5.ª, 6.ª e 10ª, o ora Recorrente identificou clara e objectivamente uma questão de direito sobre a qual pretendeu que o Tribunal da Relação...… se pronunciasse;

2.ª- É essa questão a de saber se, provado que está, como resulta do facto n.º 17. do elenco dos factos provados nas duas instâncias, que “Foi sempre o Autor que, desde a sua construção até hoje, fez uso das garagens que hoje constituem as fracções “U” a “AO”.”, ou seja, provado que está o “corpus”, devia aplicar-se, como defendido pelo Recorrente, o estatuído no n.º 2 do art.º 1252.º do C.C., ou seja, a inversão do ónus da prova, a cargo da Ré, de que o Autor não tinha o “animus”, ou seja, não possuía na convicção de ser o proprietário;

3.ª- Esta foi uma das duas questões levantadas nas alegações e conclusões do recurso de apelação, a par da alteração da matéria de facto;

4.ª-Nãoobstante, o Acórdão que decidiu o recurso de apelação não se cansou, em vários dos seus trechos, em declarar que a questão da alteração da matéria de facto foi a única que foi chamado a decidir, o que não corresponde à realidade;

5.ª- Como o próprio Acórdão proferido em sede de conferência refere, fica ferido de nulidade o acórdão que não se pronuncie sobre questão que devesse apreciar, nos termos dos arts. 615.º, n.º 1, al. d) e 666.º, n.1 do C.P.C.;

6.ª- Ora, a verdade incontestável, é que o Recorrente levantou, em sede de recurso de apelação, não apenas uma, mas duas questões, mas o Acórdão que decidiu o recurso apenas se pronunciou sobre uma delas e que foi a relativa à alteração das respostas dadas pela 1.ª instância à matéria de facto, não se pronunciando sobre a questão da inversão do ónus da prova do “animus”, a cargo da Ré, quando está provado o “corpus”;

7.ª- Ao contrário do que se diz no Acórdão proferido em conferência, a solução jurídica a dar ao pleito, não dependia apenas, ou não dependia só, da alteração das respostas à matéria de facto mas, também, da posição a tomar quanto à questão de direito relativa à inversão do ónus da prova e, daí,

8.ª- Está o Acórdão que conheceu do recurso de apelação ferido de nulidade, razão pela qual se reclamou para a conferência para, nessa sede, arguir a sua nulidade;

9.ª- Provado que está que o Autor sempre deteve as fracções/garagens dos autos – n.º 17. dos factos provados –, a questão da inversão do ónus da prova, não constitui ummeroargumento mas, antes, a invocação de uma questão de fundo que, evidentemente, integra matéria decisória, no sentido de que a resposta a dar a essa questão pode influenciar a decisão final a dar ao pleito e é uma questão de direito que integra o pedido e a causa de pedir;

10.ª-Diz-senoAcórdãoquedecidiuareclamação, que o Recorrente confunde omissão de pronúncia com inconformismo. O Recorrente admite o seu inconformismo, não pela decisão que foi tomada, mas por aquela que deixou de se tomar, ou seja, pelo facto do Acórdão que decidiu a apelação não se ter pronunciado sobre questão de que devia ter conhecido;

11.ª- Ao decidirem como decidiram, violaram os dois Acórdãos o disposto nos arts. 615, n.º 1, alínea d) e 666.º, n.º 1, ambos do C.P.C.;

12.ª- O Acórdão proferido em sede de reclamação está em contradição com aquele outro do mesmo Tribunal da Relação de Évora, que se debruçou sobre a mesma questão de saber em que situações se verifica omissão de pronúncia, tendo ambos sido proferidos no domínio da mesma legislação, o art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, sendo que no Acórdão recorrido o Tribunal da Relação …. entendeu que não havia nulidade por omissão de pronúncia, não obstante, não ter apreciado questão submetida por uma das partes e que integra matéria decisória, ao passo que o Acórdão fundamento, datado de 27/06/2019 proferido no Proc. 931/18.1T9FAR-A.E1, cujo n.º 11 do seu sumário se reproduziu supra, decidiu-se no sentido oposto, aliás, na linha do que ficou decidido no Acórdão do STJ datado de 29/11/2005 proferido no Proc. 05S2137.

13.ª- Nos termos e pelos fundamentos supra referidos, deve dar-se provimento ao presente recurso de revista excepcional e, em consequência, deve declarar-se a nulidade quer do Acórdão proferido em sede de recurso de apelação, bem como do que se lhe seguiu, em sede de reclamação para a conferência, ordenando-se que os autos baixem ao Tribunal da Relação ….., para aí ser o primeiro reformado, conhecendo-se da questão de direito levantada pelo Recorrente, relativa à inversão do ónus da prova a cargo da Ré, do “animus” da posse por ele exercida, provada que está a detenção ou “corpus” da posse boa para aquisição originária por usucapião, como requerido na petição inicial.”

9. Proferido despacho no exercício dos poderes e para os efeitos previstos no art. 655º, 1, do CPC, o Recorrente pugnou pela admissibilidade da revista excepcional do acórdão proferido em Conferência pela Relação, enquanto a Recorrida «Massa Insolvente de Viegas & Dias» sustentou a liminar rejeição da revista.

 

Foram dispensados os vistos legais (arts. 657º, 4, 679º, CPC).

Cumpre apreciar e decidir.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO


Questão prévia da admissibilidade do recurso

10. A presente impugnação recursiva tem como objecto o acórdão proferido na data de 25/6/2020, em conferência (art. 666º, 1 e 2, 615º, 1, CPC), que apreciou e julgou improcedente a arguição/reclamação que o apelante, e agora aqui recorrente de revista, fez quanto à nulidade de decisão alegadamente cometida pelo acórdão anteriormente proferido, no recurso de apelação da sentença de 1.ª instância, na data de 22/5/2020. Portanto: o recurso de revista excepcional interposto pelo aqui Recorrente não tem como objecto este último aresto que decidiu da apelação interposta à luz do art. 644º, 1, a), do CPC, mas sim aquele que resultou da apreciação em conferência do alegado vício de nulidade decisória que invocara (“omissão de pronúncia”: al. d) do art. 615º, 1, CPC) relativamente a esse primeiro acórdão.

11. Compulsados os autos e o conteúdo da fundamentação e os dispositivos decisórios das instâncias, verifica-se “dupla conformidade” ao abrigo do art. 671º, 3, do CPC, o que obsta à admissibilidade de interposição de recurso de revista, a não ser que se verificassem, alegassem e fossem de conhecer pretensões recursivas no âmbito do art. 629º, 2, e 672º, 1, do CPC.

A este respeito, transcreva-se o excerto relevante do acórdão proferido em 22/5/2020:

“(…) inalterada a factualidade, também inalterada fica a solução jurídica que vem dada ao caso na sentença, mera decorrência daquelas conclusões de facto a que aí se chegou, justamente no sentido de se não considerarem demonstrados os pressupostos da posse necessária para adquirir por usucapião, nos termos aí doutamente explanados e para que se remete.

Solução jurídica que, de resto, nesta sede de recurso, vinha impugnada justamente pela pretendida alteração da factualidade dada por não provada na sentença – pois que se pretendiam mudar os factos, que o direito acompanharia naturalmente essa mudança (a própria problemática do desfecho da acção, ao pretender transmutar-se a absolvição dos Réus dos pedidos de restituição numa sua condenação, parte da reanálise da factualidade, pois que, na perspectiva do recorrente, estariam afinal provados elementos fulcrais – maxime constitutivos da posse – que a douta sentença considerou que o não estavam, para concluir pela sua absolvição daqueles pedidos). Pelo que, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se mantém o decidido e, assim, intacta na ordem jurídica, a douta sentença recorrida, e improcedendo in totum o presente recurso de Apelação”.


12. Desde logo, advirta-se que o recurso de revista excepcional aqui almejado pelo Recorrente apenas se admite para, sempre que o recurso de revista do acórdão proferido pela Relação sobre decisão proferida na 1.ª instância possa ser enquadrado nas previsões dos arts. 671º, 1 e 2, do CPC, a circunstância processual de não poder ser admitido ordinariamente como revista normal em razão da existência de dupla conformidade decisória entre as duas decisões das instâncias. Logo, não se admite de todo para impugnar tão-só e exclusivamente uma decisão tomada em conferência pelo tribunal “a quo” sobre nulidades do acórdão proferido em 2.º grau, sem qualquer ligação acessória com o recurso do acórdão relativamente ao qual se invocam essas nulidades. Por outro lado, mesmo que assim não fosse, a revista nunca seria de admitir com aquele objecto único e exclusivo – reapreciação de nulidades decisórias do acórdão em segundo grau, decididas em conferência pelo tribunal de 2.ª instância –, atendendo à incidência recursiva delimitada para a revista pelos arts. 671º, 1 e 2, do CPC, pois deles depende igualmente a admissibilidade da revista excepcional (enquanto modalidade de impugnação da revista perante o STJ), e, obviamente e a jusante, não haver duas decisões coincidentes sobre essa arguição de nulidade do acórdão em conferência da Relação (pois a “dupla conformidade decisória” é condição inelutável e imprescindível da admissibilidade de uma revista excepcional).[1]

13. Sem prejuízo, a razão basilar da improcedência desta impugnação recursiva traduz-se na circunstância de as nulidades previstas nas als. b) a e) do art. 615º, 1, do CPC apenas e somente serem arguíveis perante o tribunal que proferiu a decisão, nos termos conjugados dos arts. 615º, 4, 1ª parte («As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.»), e 617º, 6, 1ª parte («Arguida perante o juiz que proferiu a sentença alguma nulidade, nos termos da primeira parte do n.º 4 do artigo 615º, (…) por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada (…).») –, aplicáveis ao caso por força do art. 666º, 1, do CPC[2]. No caso do acórdão proferido pela Relação, decidindo-se em conferência nos termos exigidos pelo art. 666º, 2, do CPC. E, assim sendo, proferindo-se decisão insusceptível, em regra para o caso de indeferimento, de qualquer impugnação e, por isso, uma decisão dotada de definitividade decisória por força da lei (sem prejuízo da disciplina dos arts. 617º, 6, 2ª parte, e 616º, 2, do CPC, o que não é o caso)[3].

III) DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso.

Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

STJ/Lisboa, 28 de Abril de 2021

Ricardo Costa (Relator)

Nos termos do art. 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do DL 20/2020, de 1 de Maio, e para os efeitos do disposto pelo art. 153º, 1, do CPC, declaro que o presente acórdão, não obstante a falta de assinatura, tem o voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos que compõem este Colectivo.

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).



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[1] Para confirmação do essencial deste percurso argumentativo, v. o Ac. do STJ de 26/1/2021, processo n.º 103/06.8TBMNC.G1.S1, Rel. MARIA JOÃO TOMÉ, in www.dgsi.pt.

[2] Veja-se, a propósito, o Ac. do STJ de 24/11/2016, processo n.º 470/15.2T8MNC.G1-A.S1, Rel. TOMÉ GOMES, in www.dgsi.pt.
[3] V. por todos ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 615º, pág. 737, sub art. 617º, pág. 740.