PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA
INCIDENTES DA INSTÂNCIA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
RECURSO DE REVISTA
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Sumário


I- É da própria natureza da produção antecipada de prova constituir um incidente processual inserível no âmbito de uma causa, corrente ou a instaurar.
II - Por isso terá que se atribuir à decisão que se pronuncia sobre esse incidente a natureza de decisão interlocutória, independentemente de ser proferida na pendência da causa ou antes da causa ser instaurada.
III - Da mesma maneira que a lei não admite normalmente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, igual inadmissibilidade ocorre no caso da decisão que se pronuncia sobre a produção antecipada de prova.

Texto Integral




Processo n.º 1078/19.9T8PRT.P1.S1

Incidente de reclamação para a conferência

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Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção):

A Recorrente Recativ - Recuperação de Ativos, Lda. e Outros vêm requerer que sobre a decisão singular do relator de 10 de dezembro de 2020, que julgou inadmissível o recurso de revista que interpuseram, recaia acórdão.

As Recorridas Goldensand Capital Partners, S.A. e Outros responderam, concluindo pela improcedência da reclamação.

Mais suscitaram a questão prévia da extemporaneidade da reclamação.

Ainda, e a título subsidiário, ampliaram o âmbito da reclamação, sustentado que o recurso também seria inadmissível pelas razões processuais que descrevem, mas que foram rejeitadas pelo relator.

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Cumpre apreciar e decidir.

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Quanto à questão prévia da extemporaneidade da reclamação para a conferência:

De acordo com o que consta do processo físico (fls. 451), o pedido de intervenção da conferência foi requerido através de ato expedido por via postal (pressupõe-se, pese embora não ter sido invocado justo impedimento, que as Recorrentes foram confrontadas com o mesmo tipo de problema que as Recorridas experimentaram com a plataforma CITIUS), com data de registo de 29 de dezembro de 2020.

Assim, e por aplicação analógica da alínea b) do n.º 7 do art. 144.º do CPCivil, a data da prática do ato é a de 29 de dezembro de 2020.

Exatamente como apontam as Recorridas, o prazo expirava em 28 de dezembro de 2020.

Porém, as Recorrentes fizeram uso do disposto na alínea a) do n.º 5 do art. 139.º do CPCivil, tendo pago a respetiva multa.

Consequentemente, tem-se como tempestiva a reclamação para a conferência apresentada no primeiro dia útil subsequente ao termo do prazo.

Termos em que improcede a questão prévia da extemporaneidade da reclamação.

Quanto ao mérito da reclamação

Está em causa recurso de revista contra a decisão da Relação que, revogando a decisão da 1.ª instância, deferiu a produção antecipada de prova requerida pelas ora Recorridas. Tal produção antecipada de prova foi requerida e deferida previamente à instauração da causa respetiva.

O recurso de revista foi considerado inadmissível pelo relator com a seguinte fundamentação:

“[E]stamos perante uma decisão que recaiu unicamente sobre a relação processual: admissibilidade processual da produção antecipada de prova.

Ocorre que os acórdãos da Relação que, por via de recurso, recaiam unicamente sobre a relação processual não admitem normalmente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

É o que resulta do n.º 2 do art. 671.º do CPCivil.

Entende aqui a lei que basta um duplo grau de jurisdição, não se justificando a intervenção da mais uma jurisdição.

É certo que a lei se reporta a decisões interlocutórias (da 1ª instância).

Dir-se-ia que não estamos perante uma decisão que tal, na medida em que a ação a que se destina a prova ainda não existe.

Mas não é assim que devem ser vistas as coisas.

No presente caso estamos perante decisão que vale para todos os efeitos como decisão interlocutória. É verdade que não nos movemos no âmbito de um processo já corrente (onde com mais propriedade se poderia falar de decisão interlocutória), mas é da própria natureza da produção antecipada de prova constituir um incidente processual (de natureza probatória) que se insere numa causa, corrente ou futura. E é quanto basta para que à decisão que se pronuncia sobre esse incidente se atribua a natureza de decisão interlocutória (ou, no limite, equiparada a uma decisão interlocutória).

Donde, não é o presente recurso admissível, na certeza de que não está em discussão qualquer das hipóteses de exceção previstas nas duas alíneas da supra citada norma legal.

Aliás, nem faria qualquer sentido outra solução.

Pois que tudo se deve passar aqui à semelhança do que sucederia no caso de decisão proferida no âmbito de processo pendente, sob pena de se cair no absurdo: a mesma decisão, fundada nos mesmos pressupostos, com igual feição intercalar, seria ou não admitida a recurso consoante fosse proferida em certo processo ou em incidente prévio mas que se irá integrar totalmente nesse processo.

Mas uma outra razão existe que leva a concluir pela insusceptibilidade legal do presente recurso de revista.

Trata-se de uma razão ditada pela lógica do sistema.

É que da mesma maneira que a lei não admite normalmente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões proferidas nos procedimentos cautelares (art. 370.º, n.º 2 do CPCivil), também não faria o menor sentido (até mesmo a fortiori) entender o contrário no caso da decisão sobre o requerimento de produção antecipada de prova. Em ambas as situações estão juízos sobre o justo receio de uma ocorrência desvantajosa para a parte, visando-se acautelar certos efeitos. Não se antolha minimamente lógico que num caso (onde inclusivamente se emite um juízo de mérito substantivo, e que pode valer, em caso de inversão do contencioso, como decisão definitiva do litígio) se vete o recurso, e no outro (onde está em questão um mero juízo de aferição ou ajustamento processual) se fosse admitir o recurso.”

As Reclamantes discordam da decisão do relator, sustentando que não se está perante uma decisão intercalar, mas sim perante uma decisão final, que pôs fim ao processo; e que a norma do art. 370.º, n.º 2 do CPCivil é uma norma excecional que apenas pode valer para os procedimentos cautelares, não comportando aplicação analógica.

Respeitando embora tal entendimento, não se subscreve o mesmo.

A interpretação dos Reclamantes fixa-se apenas na forma, não levando em linha de conta a natureza, finalidade e função da produção antecipada da prova.

Exatamente como se aponta na decisão do relator, é verdade que não nos movemos aqui no âmbito de um processo já corrente (onde com mais propriedade se poderia falar de decisão interlocutória), mas é da própria natureza da produção antecipada de prova constituir um incidente processual (de natureza probatória) inserível no âmbito de uma causa (corrente ou a instaurar).

Por isso terá que se atribuir à decisão que se pronuncia sobre esse incidente a natureza de decisão interlocutória. Ou, no limite, terá que se atribuir à decisão a natureza de decisão equiparada para todos os efeitos a uma decisão interlocutória.

Repare-se no absurdo: se a decisão do incidente tiver sido proferida no decurso da causa tem a natureza de decisão interlocutória e não admite recurso; se a decisão é proferida antes da causa, mas destinada precisamente a servir essa mesma causa, então já não tem natureza interlocutória e admite recurso. Não parece que isto faça o menor mínimo sentido, pois que em ambas as situações estamos perante decisão sobre uma questão autónoma que se insere no contexto de uma causa (a razão de ser e serventia da decisão está indexada á existência de uma causa, sendo indiferente que seja presente ou futura).

E como também consta do despacho do relator, é de entender que a lógica do sistema impõe que se atenda numa situação como a vertente ao que está estabelecido no art. 370.º, n.º 2 do CPCivil para os procedimentos cautelares. A razão de ser é basicamente a mesma.

É que da mesma maneira que a lei não admite normalmente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, também não faria sentido (até mesmo por maioria de razão), entender o contrário no caso da decisão que se pronuncia sobre a produção antecipada de prova. Em ambas as situações estão juízos sobre o justo receio de uma ocorrência desvantajosa para a parte, visando-se acautelar certos efeitos.

Não se antolha minimamente lógico que num caso (onde inclusivamente se emite um juízo de mérito substantivo, e que pode valer, em caso de inversão do contencioso, como decisão definitiva do litígio) se vete o recurso, e no outro (onde está em questão um mero juízo de aferição ou ajustamento processual) se fosse admitir o recurso.

Argumentam as Reclamantes com a natureza excecional da aludida norma e com a insusceptibilidade da sua aplicação por analogia.

Mas, segundo nos parece, há aqui um certo viés.

É que não se está a integrar uma lacuna da lei (lacuna cuja existência constitui justamente o pressuposto do recurso à analogia). O que se está a fazer é atender ao espírito do sistema legal tal como objetivado na supra citada norma, e esse espírito implica que a norma também deva reger para uma situação como a vertente.

A questão é simplesmente de interpretação extensiva, que é admitida mesmo em relação a normas excecionais (art. 11.º do CCivil). A supra citada norma reporta-se, pela sua letra e inserção sistemática, aos procedimentos cautelares, mas isso sucede porque está precisamente a estatuir em sede de procedimentos cautelares. Mas admite claramente, pelo seu espírito (estabilizar rapidamente uma decisão sobre questão que importa acautelar), uma interpretação abrangente da produção antecipada de prova, pois que em ambos os casos a razão de ser é a mesma.

Termos em que improcede a reclamação.

Quanto à ampliação do âmbito da reclamação

A ampliação foi suscitada a título subsidiário, ou seja, para o caso dos fundamentos da reclamação estarem destinados a proceder.

Tal procedência não ocorre, razão pela qual fica prejudicado o conhecimento quer da admissibilidade da ampliação quer do seu objeto.

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Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a reclamação, com o que se julga inadmissível o recurso de revista interposto, que se considera findo, não havendo por isso que conhecer do seu objeto.

As Reclamantes são condenadas nas custas do presente incidente de reclamação. Taxa de justiça: 3 Uc’s.

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Lisboa, 28 de abril de 2021

José Rainho (Relator)

Graça Amaral (tem voto de conformidade, não assinando por dificuldades de ordem operacional. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

Henrique Araújo (tem voto de conformidade, não assinando por dificuldades de ordem operacional. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

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Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).