INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PENHOR
ALVARÁ
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
FARMÁCIA
NULIDADE
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
CONTRATOS SUCESSIVOS
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
Sumário


I - O PER não tem como finalidade precípua dirimir definitivamente litígios sobre os créditos. Mesmo que a lista de créditos tenha sido homologada judicialmente, a decisão não consolida os créditos, nem os torna firmes, nem produz qualquer efeito preclusivo relativamente a processo de insolvência posterior.
II - Deste modo, a circunstância do devedor e dos credores não terem impugnado no PER o crédito tal como reclamado por certo credor não implica, só por si, que se deva ter já como indiscutível a validade da garantia que foi invocada.
III - O alvará de farmácia é incindível do respetivo estabelecimento, sendo insuscetível de apropriação e transmissão autónoma e individualizada.
IV - Tendo o devedor dado em garantia de financiamento que lhe foi concedido pelo banco “penhor dos direitos para si emergentes do alvará para funcionamento da farmácia” e tendo conferido ao banco “poderes para alienar extraprocessualmente os direitos inerentes ao alvará”, pode razoavelmente afirmar-se que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, atribuía a estas cláusulas o sentido, ainda com suficiente correspondência objetiva nos seus termos, de que o penhor estava a incidir sobre o próprio estabelecimento que a farmácia constituía como um todo.
V - Estando-se perante penhor sem desapossamento constituído a favor de estabelecimento bancário, é legalmente admitida a constituição de penhores sucessivos sobre o mesmo objeto, preferindo os penhores por ordem de datas.

Texto Integral




Processo n.º 1377/17.4T8OAZ-D.P1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação ….

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

No Juízo de Comércio ……. foi oportunamente declarada a insolvência de Teixeira da Silva, Lda.

Foram reclamados créditos, nomeadamente pelo Credor Novo Banco, S.A., que, entre o mais, reclamou o crédito de €2.184.680,10 (€2.108.733,62 a título de capital e €75.946,48 a título de juros vencidos e respetivo imposto de selo), garantido por penhor sobre os direitos emergentes do alvará para funcionamento de farmácia pertencente à Insolvente, denominada da Farmácia T……, sita em …….

Na sequência, apresentou o Administrador da Insolvência a relação de créditos reconhecidos.

Era aí reconhecido ao Credor Reclamante Novo Banco, S.A. o referido crédito, garantido por penhor em primeiro grau sobre o estabelecimento comercial (incluindo o alvará) da Insolvente denominado Farmácia T…….

Foram apresentadas impugnações à relação quanto à qualificação de tal crédito como garantido pelo penhor, isto designadamente pelos Credores AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG.

Disseram estes Credores, em síntese, que o penhor em causa era nulo, por incidir sobre a prestação legalmente impossível que era o alvará, e não sobre o estabelecimento da Insolvente, sendo que foi este que foi apreendido para a massa e não uma qualquer parte sua, nomeadamente o alvará.

O Credor Novo Banco respondeu à impugnação, concluindo pela respetiva improcedência.

Disse, em síntese:

- Que a pretensa nulidade sempre seria insubsistente, visto que a Devedora e os credores a teriam sanado no PER que correu anteriormente. Efetivamente, alegou, o Novo Banco, S.A. aí reclamou o crédito em causa e este não foi impugnado pela Devedora e pelos outros credores, nomeadamente os ora impugnantes, antes foi reconhecido como garantido pelo penhor.

- Que - e louvando-se aqui em estudo que fez juntar aos autos, da autoria do Senhor Professor Doutor António Menezes Cordeiro - o penhor sobre alvará não é proibido, não sendo obrigatório que o alvará seja transacionado em conjunto com o estabelecimento comercial que é a farmácia, razão pela qual o penhor sobre o alvará em questão não seria nulo.

Seguindo o processo seus devidos termos, veio depois a ser proferida sentença que declarou nulo o contrato de penhor em questão.

Em decorrência, e no que tange ao produto da venda do estabelecimento denominado Farmácia T……., foi o referido crédito do Novo Banco, S.A. graduado apenas como privilegiado (privilégio creditório geral, art. 98.º, n.º 1 do CIRE) quanto ao montante de €51.000,00 e, sem prejuízo disso, como comum.

Inconformado com o assim decidido, apelou o Credor Novo Banco, S.A.

Fê-lo sem êxito, pois que a Relação …, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diversa, confirmou a sentença.

Mantendo-se inconformado, pede o Credor Novo Banco, S.A. revista.

Introduziu o seu recurso sob o figurino da revista excecional.

A competente formação admitiu o recurso assim interposto.

Cumpre, pois, conhecer do seu objeto.

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São as seguintes as conclusões que o Recorrente extrai da sua alegação (suprime-se a primeira, que tem a vem com a admissão excecional da revista, assunto já ultrapassado):

2. Foi pelo aqui Recorrente interposto recurso da Sentença de verificação e graduação de créditos proferida no âmbito destes autos e apenso, datada de 13.05.2020, com a referência citius …., que em suma, declarou nulo o penhor constituído a favor do aqui Recorrente sobre o Alvará para funcionamento da Farmácia T..…., que era propriedade da insolvente, sita na Rua …, ao qual foi atribuído pelo INFARMED o número ….., não produzindo o mesmo qualquer efeito e, consequentemente, classificou o crédito reclamado pelo Novo Banco, S.A., no valor de € 2.184.680,10 (Seis milhões, cento e oitenta e quatro mil, seiscentos e oitenta euros e dez cêntimos), como crédito de natureza comum.

3. Tal decisão foi mantida na íntegra pelo Tribunal da Relação ……, que perfilhou a mesma argumentação e jurisprudência utilizada pelo Tribunal de 1ª instância.

4. Ora, o aqui Recorrente, por entender que esta última decisão, ora recorrida, não acolheu devidamente a especificidade da matéria em causa e o âmbito jurídico da mesma, pelo que recorre quanto ao entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo – i.e. nulidade da constituição de penhor sobre o alvará por impossibilidade originária da prestação, ou seja o penhor de um alvará de farmácia desacompanhado do respetivo estabelecimento, viola o art. 680º do CC, e é nulo por força do art. 280º do mesmo diploma legal e a não convolação do aludido penhor de alvará em penhor de estabelecimento comercial.

5. Com efeito, entende o ora Recorrente que decisão diferente se impunha quanto a este segmento da decisão recorrida, designadamente, por não ter sido feita uma correta subsunção dos factos ao direito.

6. É entendimento do Tribunal a quo que o penhor constituído sobre o alvará em apreço, datado de 28.12.2007, dissociados dos restantes elementos corpóreos e incorpóreos que compõem o estabelecimento comercial, é nulo por corresponder a uma prestação originariamente impossível.

7. Antes de mais cumpre referir, como foi mencionado nas respostas às impugnações deduzidas nos autos (sendo que duas delas, porque extemporâneas não foram admitidas), que a existir alguma nulidade a mesma já foi sanada pela insolvente, pelos credores trabalhadores e pelo outro credor pignoratício, atenta as condutas dos mesmos, reconhecendo a validade da garantia pignoratícia no Processo Especial de Revitalização (PER) da sociedade aqui insolvente, aprovado e incumprindo pela mesma e que teve o beneplácito de todos os credores reclamantes nestes autos – cfr. Certidão constante dos presentes autos e junta com o Doc. 1 com a apelação interposta e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

8. Com efeito, no aludido plano destinado à revitalização da aqui insolvente, quanto ao plano de pagamento aí definidos, mormente quanto ao ponto 4.2.2.2.4. o crédito do Novo Banco, S.A. ora em apreço e aqui colocado em crise foi reconhecido como garantido, bem como foi igualmente reconhecido como garantido na Lista Provisória de Credores, que não tendo sido impugnada se converteu em definitiva - cfr. Certidão supra.

9. Pelo que a conduta da devedora insolvente, durante o pleito judicial do PER, sanou um eventual vício que pudesse existir quanto à nulidade da garantia pignoratícia prestada a favor do Novo Banco, S.A. nos termos supra expostos.

10. Dizemos eventual porque sobre esta mesma questão foi emitido um parecer, por parte do Exmo. Senhor Professor Doutor António Menezes Cordeiro, que desmistifica a tese invocada pelos impugnantes credores trabalhadores, alicerçada, em parte, em jurisprudência emanada por parte do douto Tribunal da Relação de Coimbra, cfr. parecer constante dos presentes autos e junta com o Doc. 2 com a apelação interposta e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

11. Ora, esse parecer, necessariamente, faz uma a narração de toda a evolução legislativa do sector Farmacêutico, onde, por via da Lei n.º 2125, de 20 de Março de 1965, o Alvará de Farmácia era entendido como algo pessoal e intransmissível.

12. Todavia, com o Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, que entrou em vigor dois meses depois da sua publicação, o paradigma alterou-se, mormente com o facto de propriedade das Farmácias e consequentemente a titularidade do respetivo alvará, deixar de ser um exclusivo dos farmacêuticos, aliás foi precisamente essa alteração jurídica que esteve na génese do financiamento formalizado em 28.12.2007 e onde foi constituída a garantia pignoratícia aqui em apreço.

13. Não obstante e sem prejuízo do supra exposto, sempre se dirá o seguinte: ao abrigo do novo regime das Farmácias (Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, com as subsequentes alterações posteriores) nada na lei impede um devedor de constituir garantias que tenham por objeto bens ou direitos individuais que integram um estabelecimento comercial, em vez de constituir a garantia sobre o próprio estabelecimento.

14. Ou seja, inexiste na lei qualquer impedimento de um proprietário de um estabelecimento seja livre de o desmembrar, v. g., através da alienação de uma ou mais partes que o compõem, de tal forma que comprometa a sua unidade, i. e. o seu funcionamento enquanto universalidade (de facto e de direito).

15. Veja-se a possibilidade legal conferida por lei - e admissível pelo Infarmed - quanto à deslocalização de um alvará de farmácia de um local para outro; não estaremos, neste caso, perante a deslocalização de um direito que integra um estabelecimento comercial.

16. Sendo que no caso em concreto, se a massa insolvente não tivesse cumprido o contrato de locação financeira imobiliária, adquirindo ao Banco Invest, S.A. a fração autónoma, onde estava situada o Estabelecimento de Farmácia em apreço, necessariamente o mesmo teria que ser deslocalizado.

17. Aliás, a venda separada de um alvará de farmácia não em qualquer eficácia destrutiva do estabelecimento comercial, antes pelo contrário.

18. Ora, se não se pode colocar em dúvida a validade dos negócios de um proprietário do estabelecimento que tenham por efeito o seu desmembramento, por maioria de razão não pode deixar de reconhecer-se a validade da constituição de ónus que incidam apenas sobre elementos individuais do mesmo e que, enquanto tais e só por si, não comprometam a subsistência do estabelecimento.

19. A lei é, aliás, clara quanto à admissibilidade de negócios que tenham por objeto as coisas singulares que constituem a universalidade: é precisamente esse o regime consagrado no art. 206.º, n.º 2, do Código Civil para as universalidades de facto, aplicável igualmente às universalidades de direito (cf. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 3.ª ed., 709-711).

20. A razão profunda desta permissão encontra-se no princípio da autonomia privada (cf. o artigo 405.º do Código Civil), de resto, com tutela constitucional (assim, cf. P. MOTA PINTO, O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, in Portugal-Brasil Ano 2000. Tema direito, Coimbra Ed., 1999, 151-154, 160-171, 198-205, 210-217, e J. SOUSA RIBEIRO, O problema do contrato. As cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, Almedina, 1999, 145-148, n. 350).

21. Acresce que sempre foi pacífica na doutrina a validade da constituição de penhor sobre os elementos isolados que constituem o estabelecimento (posto que, por si mesmos, pudessem ser objetos idóneos de penhor e desde que observado o respectivo regime de constituição).

22. Com efeito, segundo a lição de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, não poderiam «ser empenhadas as universalidades de coisas móveis, como universalidades. A coisa tem de ser certa (...) e, portanto, torna-se sempre necessária a identificação das coisas singulares que a constituem (cfr. art. 206.º, n.º 2).». PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1987, 685 (anotação ao art. 666.º).

23. Presentemente, porém, é praticamente inquestionada na doutrina e na jurisprudência a validade de um penhor constituído sobre o estabelecimento em si mesmo considerado (cf. RUI PINTO DUARTE, O penhor de estabelecimento comercial, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, vol III (Direito das obrigações, Coimbra Editora, 2007, 67 e ss., e MENEZES LEITÃO, Garantias das obrigações, 4.ª ed., Almedina, 2012, 271-272).

24. No entanto, esta evolução não pode ter como contrapartida o absurdo retrocesso de se passar a negar a possibilidade de constituir penhor sobre as coisas e direitos que integram o estabelecimento, individualmente tomados.

25. Até porque, conforme consta nos autos, nos próprios relatórios contabilísticos da devedora insolvente as coisas e direitos têm um valor próprio e concretamente individualizado.

26. Aliás, na própria decisão recorrida, é referido que o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência nomeado nestes autos esclareceu ser possível distinguir o valor correspondente ao estabelecimento (135.115,00€) do valor do alvará (1.004.885,00€).

27. Em suma, além de não existir qualquer razão capaz de sustentar a proibição de constituir penhor sobre alvará, existem várias razões que apoiam (positivamente) tal permissão, a saber, o princípio da autonomia privada e a consideração do estabelecimento comercial enquanto instrumento ao serviço do seu titular apto a ampliar — e não a limitar — as potencialidades da sua atuação.

28. Pelo que, o penhor constituído a favor do Recorrente sobre o alvará para funcionamento da “Farmácia T……” ao qual foi atribuído pelo Infarmed o número ……97 é, além de inteiramente válido, plenamente oponível a terceiros, encontrando-me, por conseguinte, garantidos os créditos reclamados e assim reconhecidos pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência na lista de créditos definitiva elaborada nos termos do art. 129º do CIRE.

29. Aliás, o Acórdão do STJ datado de 06-04-2006, proc. 06B336, cuja consulta se encontra disponível in www.dgsi.pt, citado na decisão no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra citado pelo Insolvente, perfilha este entendimento ao dizer que: “O estabelecimento comercial não se confunde com os elementos que o constituem, constituindo uma realidade jurídica distinta da simples soma desses elementos (…)”.

30. Daí que tal aresto admite que: “Em caso de trespasse, o direito ao arrendamento - ou, dum modo geral, à ocupação do local - é, em regra, um dos elementos da universalidade transmitida, mas nem por isso, no entanto, pode afirmar-se que a inexistência de um contrato de arrendamento válido faz com que inexista estabelecimento comercial.”

31. Ora, o mesmo poderá ser dito para o alvará de farmácia, pois a sociedade insolvente tinha como objeto social a exploração de Farmácias, não especificamente e unicamente a Farmácia “T……” sita em ….., Rua ….., ao qual foi atribuído pelo Infarmed o número …….97

32. É aquilo que o Prof. Menezes Cordeiro, no parecer já junto aos presentes autos e que ora se junta novamente chama de negociação individualizada dos ativos que compõem o Estabelecimento comercial de Farmácia.

33. Aliás a tese da validade do penhor sobre o alvará de farmácia cada vez mais tem ganho opiniões doutrinais e jurisprudências que sustentam posição diversa da plasmada na decisão recorrida, mormente o já citado parecer do elaborado por parte do Exmo. Senhor Professor Doutor António Menezes Cordeiro e o teor do Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 03.05.2018 e proferido no âmbito do Processo n.º 2601/14.0T8VNF-B.G1, cfr. Doc. 1 que constitui o acórdão fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição.

34. Com efeito, resulta deste último aresto (em que foi recorrente o credor pignoratício de 2º grau nestes autos Alliance Healthcare, S.A. e que nestes autos, imbuído de uma notável incoerência jurídica, no parecer a que alude o art. 135º do CIRE, defendeu precisamente o contrário ao pugnado neste recurso), consta o seguinte: “(…) quando as partes declaram constituir um penhor que tem por objecto o alvará de Farmácia, tal declaração deve ser interpretada no sentido de que o que pretendiam eleger como objecto do penhor era o Estabelecimento Comercial de Farmácia, no seu todo.”

35. Vide, no mesmo sentido, o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, datado de 15.01.2019 e proferido no âmbito do Processo n.º 2589/15.0T8STS-A.P1, cfr. Doc. 2 que também constitui o acórdão fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição, que nos diz o seguinte: “Na verdade, apesar de imperfeitamente expressa, a intenção das partes foi constituir penhor sobre o estabelecimento em que se integra o alvará: a intenção das partes era constituir um penhor sobre o estabelecimento para garantia do crédito concedido pelo apelante (cfr. Artigo 236.°, n.º 2, CC). O que sucedeu foi que as partes, cientes do valor do alvará no todo que constitui o estabelecimento, tomaram a parte pelo todo e enunciaram como objecto do penhor o direito ao alvará da farmácia, quando efectivamente a garantia era constituída pelo estabelecimento.”

36. Este mesmo Acórdão foi confirmado pelo Ac. do STJ, datado de 29.10.2019 e proferido no âmbito do Processo n.º 2589/15.0T8STS-A.P1.S1, Doc. 2 que também constitui o acórdão fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição, que diz o seguinte: “(…) II. O DL 307/2007, de 31 de Agosto, estabelece um procedimento para controlo público da instalação e exploração lícitas das actividades e serviços «de saúde e de interesse público» (art. 2°) prosseguidos pelas farmácias de oficina, a cargo do "Infarmed I.P.". Esse procedimento conduz à prática de uma típica autorização permissiva (acto administrativo) da autoridade competente, que conduz à emissão (para o proprietário originário) e de averbamento superveniente (em caso de alteração da propriedade ou da titularidade de exploração ou da localização da farmácia) de “alvará”, enquanto pressuposto legal para abertura ao público e manutenção em funcionamento do estabelecimento.

III. O “alvará” é o acto jurídico instrumental e executivo dessa autorização permissiva, que se traduz num título (sob a forma de documento) comprovativo da prática do acto administrativo de autorização, apto a formalizar (ou externalizar) a atribuição ao seu titular (originário ou superveniente) do direito de exploração do estabelecimento (condicionado ao cumprimento de requisitos substanciais) e do dever geral de cumprimento das obrigações legais de actuação e funcionamento das farmácias de oficina, enquanto actividade de interesse e ordem pública. É título constitutivo da condição jurídico-administrativa para a abertura e manutenção da exploração desse estabelecimento de farmácia, restringida por lei em função do interesse público. IV. O “alvará” emitido ou averbado não é um elemento ou bem ou meio empresarial do estabelecimento de farmácia enquanto organização produtiva. Antes se radica numa situação jurídica necessária à prossecução da actividade empresarial e que acompanha a circulação negocial da empresa. É requisito (fundante e condicionante) para o aviamento objectivo da empresa. Essa situação jurídica — e o “alvará” em que se constitui como seu título executivo-instrumental — tem valor económico-patrimonial (muito relevante, por corresponder a autorização pública insuprível) e este valor é parte decisiva do valor de negociação ou de mercado do estabelecimento de farmácia concreto — sendo esse valor autonomizável e ponderável enquanto parte do respectivo valor de aviamento. V. Corresponde ao entendimento de um declaratário normal, diligente e experiente, colocado na posição do declaratário concreto e tendo em conta o comportamento dos declarantes (art. 236°, 1, CCiv.), interpretar a cláusula de constituição de penhor sobre “os direitos emergentes do alvará para funcionamento” de uma farmácia, no âmbito e para o efeito da garantia de um mútuo bancário destinado à prossecução do objecto do estabelecimento farmacêutico, como um penhor sobre o estabelecimento como um todo (admissível e válido à luz do art. 280° do CCiv.), necessariamente privilegiado com essa condição público-administrativa para o respectivo exercício empresarial, devidamente executada pelo “alvará” emitido ou averbado, e não sobre um título que não é susceptível de domínio e apropriação nem transmissível, ainda que com valor integrado no goodwill do estabelecimento susceptível de avaliação. Trata-se igualmente de sentido interpretativo com correspondência objectiva abrangida pelo texto do documento que formaliza o mútuo («mínimo de correspondência», de acordo com o art. 238°, 1, do CCiv.)”

37. E por último, mais recentemente, na sequência da exposição acima exposta, foi proferido o Acórdão do STJ, datado de 27.02.2020, no âmbito do Processo n.º 424/12.0TBELV-C.E1.S2, cfr. Doc. 3, Acórdão este que também constitui o acórdão fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição, onde em tal aresto é referido o seguinte: “Sumário (art. 663°, n° 7, do CPC): 1. O alvará de farmácia constitui o título comprovativo do acto administrativo que atribui ao beneficiário o direito de exploração do estabelecimento de farmácia, sendo pressuposto ou condição prévia, jurídico-administrativa, para abertura e exploração desse estabelecimento. 2. Tendo essa natureza, o alvará de farmácia é, pois, incindível do respectivo estabelecimento, sendo insusceptível de apropriação e transmissão autónoma e individualizada. 3. Tendo, num mútuo bancário, o mutuário dado em garantia “penhor dos direitos para si emergentes do alvará para funcionamento da farmácia” e tendo conferido ao banco mutuante “poderes para alienar extraprocessualmente os direitos inerentes ao alvará”, pode razoavelmente afirmar-se que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, atribuiria a estas cláusulas o sentido, ainda com suficiente correspondência objectiva nos seus termos, de que as partes, não se referindo ao alvará como título/autorização de funcionamento da farmácia, que seria autonomamente intransmissível, pretenderam constituir como garantia um penhor sobre o próprio estabelecimento comercial, no seu todo, penhor, que é admissível e válido à luz do art. 280° do CC.”

38. Ou seja, os citados arestos pendem não pela nulidade absoluta do penhor sobre o alvará de farmácia mas outrossim para convolação do penhor do direito ao alvará em penhor sobre o estabelecimento comercial de farmácia, não só porque essa, na realidade, era a vontade das partes contratantes, como o escopo da operação bancária que permitiu o financiamento do capital mutuado (no montante máximo de € 2.525.000,00 (Dois milhões, quinhentos e vinte e cinco mil euros), teria sempre como consequência a constituição de uma garantia válida e eficaz que acautelasse os interesses do banco mutuante.

39. Note-se, quanto a este conspecto que a devedora insolvente não só aceitou essa mesma garantia quer no PER acima identificado, quer nestes autos de insolvência, não impugnado os créditos do aqui Recorrente, que foram apenas impugnados pelos credores trabalhadores.

40. Sendo absolutamente falso a afirmação constante na sentença proferida em 1ª instância e que foi confirmada na íntegra na decisão recorrida que diz: “No entanto, cremos que tal não terá ocorrido. Desde logo porque o NB nunca afirmou nestes autos, designadamente nas respostas que apresentou às impugnações deduzidas, que o que pretenderam os contraentes foi a constituição de penhor sobre o estabelecimento, incluindo o alvará.”

41. Neste segmento constante na sentença proferida em 1ª instância e que foi confirmada na íntegra na decisão recorrida é patente a distração que o Tribunal a quo olhou para estes autos, não analisando toda a matéria carreada pelo aqui Recorrente para os mesmos.

42. Pois, através dos requerimentos do aqui recorrente, datado 22.11.2018, com a referência citius ……; datado de 18.01.2019, com a referência ……; datado de 27.02.2019, com a referência citius ……; datado de 24.02.2020, com a referência citius …. e datado de 28.02.2020, com a referência citius ...…, deu nota disso mesmo, tendo inclusive citando a jurisprudência acima assinalada.

43. O aqui Recorrente viu o seu crédito reconhecido e qualificado como garantido tal como reclamado na lista de créditos definitiva elabora pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência nos termos do art. 129º do CIRE.

44. Tendo o mesmo sido impugnado nos termos do art. 130º do mesmo normativo legal, o aqui Recorrente respondeu nos termos do art. 131º do mesmo Código, pugnando pela manutenção do seu crédito e das suas garantia tal como foram reconhecidas, pelo que não há lugar à aplicação do efeito cominatório semi-pleno nos termos da parte final do n.º 3 deste último preceito legal.

45. Ou seja, os citados arestos e que constituem os acórdãos fundamentos pendem não pela nulidade absoluta do penhor sobre o alvará de farmácia mas outrossim para convolação do penhor do direito ao alvará em penhor sobre o estabelecimento comercial de farmácia, não só porque essa, na realidade, era a vontade das partes contratantes, como o escopo da operação bancária que permitiu o financiamento do capital mutuado teria sempre como consequência a constituição de uma garantia validade e eficaz que acautelasse os interesses do banco mutuante.

46. Tendo, pois, a decisão recorrida violado os arts. 202º, 203º, 206º, n.º 2, 280º, n.º 1, 401º, 405º e 669º a 685º, 686º, n.º 1 e 733º todos do Código Civil e alínea a) do n.º 4 do art. 47º do CIRE.

Termina dizendo que “Nesta conformidade todo o exarado no Acórdão em crise, nomeadamente quanto à nulidade do penhor de Alvará de Farmácia dado ao Novo Banco, S.A. enquanto credor pignoratício, deverá necessariamente soçobrar, devendo o mesmo ser revogado e substituído por um outro que considere totalmente procedente o presente recurso, atento que:

• A lei permitir, como foi feita no processo de liquidação destes autos, a negociação individualizada dos ativos que compõem o Estabelecimento comercial de Farmácia;

• E os Acórdão fundamentos ora juntos determinarem a convolação do penhor do direito ao alvará em penhor sobre o estabelecimento comercial de farmácia, não só porque essa, na realidade, era a vontade das partes contratantes, como era a garantia fundamental para a concessão do mútuo que efetivamente foi concedido à insolvente.”

                                                           +

A Credora Reclamante Alliance Healthcare, S.A. contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Os Credores AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG contra-alegaram, concluindo de igual forma pela improcedência do recurso.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes:

1 – O Novo Banco, SA requereu a declaração de insolvência da Teixeira da Silva, Lda. e tal insolvência foi declarada por sentença proferida no dia 01.09.17, já transitada em julgado.

2 – No dia 24.10.17, os credores, reunidos em assembleia de credores, deliberaram que os autos prosseguiriam para liquidação.

3 – Foram apreendidos nos presentes autos:

• A fracção B do prédio sito na Rua ……, união das freguesias …, …… e …, Concelho de ……, inscrito na matriz sob o artigo …...86º e descrito na CRP .... sob o n.º ……73;

• O Estabelecimento Comercial denominado Farmácia T…, incluindo o Alvará de funcionamento emitido pelo INFARMED sob o n.º …...97;

• O valor depositado no Novo Banco, SA, na Conta de Depósito a Prazo n.º ...…75, no montante de € 38.415,56;

• O valor depositado no Banco BIC Português, SA, na conta n.º ……42, no montante de € 11.719,59;

• O valor depositado no Banco BPI, SA, Conta de Depósito n.º ……01, no montante de € 123,06;

• Os créditos sobre o Estado ou qualquer outra entidade que comparticipe o preço dos medicamentos, designadamente Finanfarma, no valor de € 25.719,08;

• 1350 Acções, da Farminveste - SGPS, categoria B, com o valor nominal de € 6.750,00.

4 – O Novo Banco, SA reclamou no âmbito dos presentes autos o reconhecimento dos seguintes créditos:

• Um crédito no montante € 2.184.680,10, relativo a financiamento para cujo pagamento foram constituídas hipotecas em duas fracções autónomas e constituído penhor sobre os direitos emergentes do Alvará para funcionamento da Farmácia T… ….;

• Um crédito no montante de € 38.415,56, relativo a garantia bancária prestada e para cujo pagamento foi constituído penhor sobre o depósito a prazo com a conta n.º …...75, no montante de € 38.415,56;

5 – Por documento particular datado de 28.12.07, assinado pelos legais representantes da devedora e pelos representantes do BES, este financiou a devedora em € 2.525.000,00, tendo sido estabelecido, como garantia do bom pagamento do montante financiado e legais acréscimos, entre outros, o penhor sobre os direitos emergentes do alvará para funcionamento da Farmácia T……, ao qual foi atribuído pelo Infarmed o n.º …….97

6 – Mais estabeleceram BES e devedora que esta conferia ao BES poderes para, em seu nome e representação, alienar extraprocessualmente os direitos inerentes ao alvará empenhado, nos termos, condições, a quem e por intermediário de quem entender conveniente.

De direito

Da sanação da pretensa nulidade do penhor

Sustenta o Recorrente que, a existir alguma nulidade decorrente de ter sido contratado o penhor do alvará, a mesma já foi sanada pela Insolvente e pelos Credores, pois que reconheceram (na medida em que não impugnaram a lista de créditos) a validade da garantia no PER que correu anteriormente.

Mas crê-se bem que o que se passou no dito PER é destituído de relevo para o que se está aqui a discutir.

É que, e como se aponta no acórdão deste Supremo de 27 de novembro de 2019 (processo n.º 3266/17.3T8BRG.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt)[1], o PER não tem como finalidade precípua dirimir definitivamente litígios sobre os créditos. Mesmo que a lista dos créditos tenha sido homologada judicialmente, a decisão não consolida os créditos, nem os torna firmes, nem produz qualquer efeito preclusivo relativamente a processo de insolvência posterior.

A lista de créditos no PER visa apenas determinar quem pode participar nas negociações, as maiorias de aprovação e quem pode votar. E como se diz no acórdão também deste Supremo de 9 de abril de 2019 (processo n.º 154/17.7T8ALD.C1.S2, relator Pinto de Almeida, disponível em www.dgsi.pt)[2], a lista não impugnada só é definitiva nos termos e para os efeitos do processo de revitalização, não integrando um ato formal de reconhecimento do crédito.

Deste modo, a circunstância da Devedora e dos Credores não terem impugnado no PER o crédito tal como reclamado pelo ora Recorrente não implica só por si que se deva ter como indiscutível a validade da garantia invocada. E daqui que também não implica que a Devedora e os Credores tenham ficado impedidos de discutir a validade da garantia no presente processo.

Improcedem, assim, as conclusões 7ª, 8ª e 9ª.

Da possibilidade de constituir o penhor sobre o alvará

Entende a Recorrente não existir qualquer razão capaz de sustentar a proibição de constituir penhor sobre um alvará, e daqui que o penhor que foi constituído sobre o alvará para funcionamento da Farmácia T…… é inteiramente válido.

É certo que (e em atuação do princípio da autonomia privada), nada impedirá que recaia penhor sobre um determinado bem integrante de um estabelecimento comercial. Similar possibilidade está, de resto, pressuposta, quanto à penhora, no n.º 5 do art. 782.º do CPCivil, e está prevenida, em geral, no n.º 2 do art. 206.º do CCivil (isto a admitir, como alguns admitem[3], que o estabelecimento comercial constitui uma universalidade de facto).

Simplesmente, não parece que o alvará possa ser visto como elemento ou bem componente da unidade que o estabelecimento comercial constitui.

A este propósito, e com enfoque precisamente no estabelecimento de farmácia, afirma-se o seguinte no acórdão deste Supremo de 29 de outubro de 2019 (processo n.º 2589/15.0T8STS-A.P1.S1, relator Ricardo Costa, disponível em www.dgsi.pt):

«O “alvará” (em rigor, a sua emissão e averbamento) corresponde(m), pois, ao acto jurídico instrumental e executivo da autorização permissiva praticada pela autoridade pública competente. Traduz-se num título comprovativo da prática do acto administrativo de autorização, apto a formalizar (ou externalizar) a atribuição ao seu titular beneficiário (originário ou superveniente) do direito de exploração do estabelecimento (condicionado ao cumprimento de requisitos substanciais) e do dever geral de cumprimento das obrigações legais de actuação e funcionamento (objectivo e subjectivo) das farmácias de oficina (sob pena, conforme os casos, de indeferimento de emissão, caducidade, cassação), enquanto actividade de interesse e ordem pública. A sua emissão e averbamento pela autoridade administrativa competente são, em termos executivos, condições de exercício efectivo da actividade farmacêutica num estabelecimento de farmácia concreto, uma vez que esse acto administrativo de autorização – enquanto acto de “colaboração administrativa” que o “alvará” executa e dá corpo – é, em termos substanciais, condição jurídico-administrativa para a abertura e manutenção da exploração desse estabelecimento de farmácia, ou seja, para o exercício desta actividade económico-comercial, restringida por lei em função desse interesse público. (…)

O “alvará” emitido ou averbado não é um elemento ou bem ou meio empresarial do estabelecimento de farmácia.

Meios da empresa são os factores produtivos – “os objetos e instrumentos de trabalho ou capital, e o trabalho” –, os outros bens que primordialmente (ou também) a individualizam ou identificam – como os logótipos, recompensas, marcas, etc. – e as situações ou relações de facto com valor económico-patrimonial correspondentes ao saber-fazer (“ou tecnologia, no sentido de conhecimentos não patenteados e/ou não patenteáveis de caráter científico, técnico ou empírico aplicados na prática empresarial, incluindo os ‘segredos comerciais’”) e às experiências acumuladas de negócio, como instrumentos estrutural-funcionalmente inseridos e envolvidos na “organização produtiva que a empresa é”. No contexto da coisa imaterial ou incorpórea complexa e funcionalmente “sui generis” em que a empresa se assume – não é universalidade, nem de direito nem de facto –, o direito à exploração do estabelecimento de farmácia, atribuído pela autorização do Infarmed e comprovado pelo “alvará” (emitido e averbado), não se integra em qualquer desses elementos ou bens componentes da unidade que a empresa constitui. Antes se radica numa situação jurídica necessária à prossecução da actividade empresarial e que acompanha a circulação negocial da empresa.

Como tal, é algo de prévio ou pressuposto ao funcionamento da organização produtiva, sem a qual a empresa farmacêutica não pode arrancar ou subsistir, mesmo que a empresa como “complexo de bens de produção organizados” esteja apta a realizar o seu fim económico-produtivo. E, portanto, é requisito (fundante e condicionante) para o aviamento objectivo da empresa, sendo este qualidade (e não “coisa”) própria da empresa preparada para intervir no mercado e realizar o fim para a qual foi configurada nos seus elementos e articulada globalmente num todo diferente da mera soma das partes (em termos simples, a sua “capacidade de rendimento ou lucro”).

Por isso, essa situação jurídica – e o “alvará” em que se constitui como seu título executivo-instrumental – tem valor económico e este valor é parte decisiva do valor de negociação ou de mercado do estabelecimento de farmácia concreto. Não enquanto meio ou elemento da empresa – antes como um prius para o reconhecimento dos meios empresariais como partes do sistema novo que a empresa é. Não enquanto «coisa» que (tal como exige o art. 202º, 2, do CCiv.) possa ser individualizada, objecto de domínio/apropriação e transmissão – antes como titularidade jurídica insusceptível de coisificação e de fazer incidir licitamente direitos sobre o “direito sotoposto”, uma vez que este é intransferível pela sua natureza, mas traduzindo-se para o titular em posição economicamente vantajosa na sua ligação incindível (e acessória) com o estabelecimento (de tal modo que só dominando juridicamente o estabelecimento-coisa se pode usufruir dessa posição). O que significa que, não sendo parte cindível em relação à organização-empresa, mesmo em caso de trespasse ou locação do estabelecimento autorizado juspublicamente, não se transmite (porque não é transmissível) o “alvará” (ainda que emitido ou averbado em nome do titular do estabelecimento), antes permanece (ainda que com possibilidade de revisão por parte da autoridade administrativa aquando do averbamento) como situação jurídica com valor económico-patrimonial (muito relevante, por corresponder a autorização pública insuprível) para o valor do estabelecimento aviado – sendo esse valor autonomizável e ponderável enquanto parte do “valor de aviamento” do estabelecimento de farmácia»

Este ponto de vista foi expressamente subscrito pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de fevereiro de 2020 (processo n.º 424/12.0TBELV-C.E1.S2, relator Pinto de Almeida, com sumário em www.stj/jurisprudência/sumários)[4], concluindo-se aí que:

«O alvará de farmácia é, pois, incindível do respetivo estabelecimento, sendo insusceptível de apropriação e transmissão autónoma e individualizada.

“Se não existe estabelecimento de farmácia sem alvará, também não é concebível um alvará sem ser por referência a um estabelecimento”.

Assim (…) o alvará não pode ser destacado do respectivo estabelecimento de farmácia».

Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 4.ª ed., p. 217) afirma o seguinte, com utilidade (mutatis mutandis) para o que aqui estamos a discutir:

«(…) em vez de se penhorar o estabelecimento comercial como universalidade, podem-se somente penhorar os bens que o integram (…). Mas, se o bem que integra o estabelecimento for dele inseparável, não pode ser objecto de uma penhora autónoma. É o que ocorre, a título de exemplo, com o “direito de alvará do estabelecimento”, que só releva em conexão com a exploração daquele».

Dentro da mesma linha, observe-se o que se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 8 de abril de 1997 (BMJ n.º 466, pp. 431 e 432):

“O «alvará» é, em geral, o título, diploma ou documento comprovativo da atribuição de certos direitos (…).

Não se trata, pois, de um direito, mas apenas do documento exigido para a sua prova. (…)

Sendo o alvará um simples título, ou documento, o que constitui objecto da apreensão não é esse documento mas o direito por ele comprovado, ou seja, o direito à exploração do estabelecimento.

Ora, esse direito é inseparável do próprio estabelecimento, instalado em certo local, não se concebendo facilmente que um determinado alvará possa ser utilizado em termos diversos daquele em que foi emitido, e, consequentemente, a penhora do direito em causa não poderá ter lugar sem a simultânea apreensão do respectivo estabelecimento.”

Face a este conjunto de vetores jurídicos, que se subscrevem, conclui-se que não é aceitável o entendimento do Recorrente no sentido de que sempre seria legalmente possível o contrato de penhor enquanto objetivado autonomamente no alvará emitido para funcionamento da Farmácia aqui em questão.

O que significa que improcedem as conclusões do recurso aí onde se sustenta o contrário.

Da validade do contrato de penhor que foi efetivamente celebrado

Embora o Recorrente sustente a validade do contrato de penhor que tenha por objeto um alvará (que considera ser um elemento do estabelecimento comercial), a verdade é que não deixa de reconduzir o assunto ao penhor sobre o estabelecimento. Na sequência da jurisprudência que menciona, acaba por defender que o que está subjacente ao penhor em causa é, na realidade, um penhor sobre o estabelecimento a que se refere o alvará.

Aqui cremos que tem razão.

Desde logo, importa ter presente que não é exato que o contrato de penhor estabelecido entre a Insolvente e o BES tenha recaído precisamente sobre o alvará em si mesmo. Em boa verdade, percorrendo o contrato escrito que foi firmado em 28 de dezembro de 2007 conclui-se (e isso mesmo está espelhado no facto provado nº 5) que o penhor recaiu sobre os direitos que para a ora Insolvente Teixeira da Silva, Lda. emergiam do alvará para funcionamento da Farmácia T.…….

Concordantemente, foi estabelecido entre as partes que o BES ficava com poderes para alienar extraprocessualmente os direitos inerentes ao alvará empenhado.

Portanto, o objeto do penhor não foi o alvará em si mesmo, mas sim os direitos de funcionamento da dita Farmácia.

E esses direitos de funcionamento traduzem-se diretamente na exploração de um estabelecimento comercial, o estabelecimento que a Farmácia constituía.

O que tudo significa, bem vistas as coisas, que, ainda que de forma imperfeitamente expressa, mas com um mínimo de correspondência no texto, o penhor em questão recaiu sobre o estabelecimento comercial que a Farmácia T....... formava. E não sobre qualquer alvará em si mesmo.

Portanto, ainda que seja verdade (como aponta a contra-alegante Alliance Healthcare, S.A.) que o negócio jurídico destina-se a valer como lei entre as partes e que no negócio formal a lei impede que este possa valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência textual no escrito que o firma (de outra forma estar-se-ia a defraudar a regra da forma), nada disso está aqui a ser postergado.

O que, consequentemente, leva a concluir que não há que falar no caso vertente em nulidade do penhor em decorrência da circunstância (suposta, mas não exata) do penhor ter recaído sobre o alvará.

Mas, independentemente disso, importa dizer que, objetivamente, as declarações negociais exaradas pelas partes outorgantes (Insolvente e BES) na contratação do penhor em questão não podem deixar de ser interpretadas (art. 236.º, n.º 1 do CCivil) com o sentido de se estar a dar e a receber a Farmácia (o estabelecimento) como garantia.

Era assim que um declaratário normal - de quem se espera que seja pessoa razoável, honesta, esclarecida, zelosa, sagaz e experiente no concreto circuito comercial em análise e nas coisas da vida -, colocado na posição das partes, teria compreendido as declarações recíprocas (dar em penhor; receber em penhor) dessas mesmas partes.

Não se esperaria de um declaratário dotado de tais atributos que representasse que para garantia do elevado financiamento que foi aberto (€2.525.000,00) se estivesse a dar e a receber (e sem prejuízo para a existência de outras garantias) como garantia um simples título de autorização administrativa para o funcionamento da Farmácia e não aquilo que garantia efetivamente o crédito concedido, e que era, naturalmente, a própria Farmácia (o estabelecimento) e respetivo alvará.

Repare-se que não se está a conotar nada disto com a vontade das partes. Não se está a dizer que a vontade das partes foi esta ou aquela. O apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes, constitui, pois que independe de quaisquer regras de interpretação, uma questão de facto, da exclusiva aferição das instâncias.

O que, ao invés, está em causa é a fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial (n.º 1 do art. 236.º e n.º 1 do art. 238.º do CCivil), e isso, como é entendimento corrente, situa-se na esfera da competência do Supremo em sede de recurso de revista (como é o caso).

O que vem de ser dito está em linha com o decidido nos acórdãos deste Supremo de 29 de outubro de 2019 e de 27 de fevereiro de 2020, acima aludidos, e que incidiram sobre espécies essencialmente iguais à presente.

Mencione-se, por elucidativo, o ponto 3 do sumário deste último acórdão:

«Tendo, num mútuo bancário, o mutuário dado em garantia “penhor dos direitos para si emergentes do alvará para funcionamento da farmácia” e tendo conferido ao banco mutuante “poderes para alienar extraprocessualmente os direitos inerentes ao alvará”, pode razoavelmente afirmar-se que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, atribuía a estas cláusulas o sentido, ainda com suficiente correspondência objectiva nos seus termos, de que as partes, não se referindo ao alvará como título/autorização de funcionamento da farmácia, que seria autonomamente intransmissível, pretenderam constituir como garantia um penhor sobre o próprio estabelecimento comercial, no seu todo (…)».

Basicamente no mesmo sentido, cite-se ainda o acórdão da Relação de Guimarães de 3 de maio de 2018 (processo n.º 2601/14.0T8VNF-B.G1, disponível em www.dgsi.pt).

No limite, o mais que se poderá conceder no caso vertente é que as declarações em causa possam eventualmente ser havidas como ambíguas ou equívocas acerca do real objeto do penhor. Mas se assim for, e visto o disposto no art. 237.º do CCivil, então sempre prevalecerá o sentido que conduz ao maior equilíbrio das prestações, e esse será aquele que leva a uma garantia efetiva (o próprio estabelecimento) e não a uma garantia de caráter essencialmente administrativo (o alvará referente ao estabelecimento), ainda que a essa garantia possa estar eventualmente associado um certo valor próprio.

Portanto, contrariamente ao que parece supor o acórdão recorrido, a circunstância de não ter sido alegado e provado qual foi a vontade das partes não é decisiva para o que estamos aqui a discutir. Em sede de interpretação da vontade negocial a lei aponta para um critério essencialmente objetivo, e não para a vontade das partes: a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (a menos que o declarante não possa razoavelmente contar com esse sentido; ou a menos que o declaratário conheça a vontade real do declarante). Na expressão impressiva de Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª ed., p. 551), “o que releva é o sentido típico que um declaratário típico teria tipicamente entendido naquela situação típica”.

E, por tudo o que fica dito, nada tem de decisivo para o caso a circunstância, em que também se apoia o acórdão recorrido, de relativamente ao penhor contratado com a Credora (e ora contra-alegante) Alliance Healthcare, S.A. constar que o penhor incidia sobre o estabelecimento comercial e sobre e alvará.

O que isso significa é simplesmente que o objeto do penhor foi, aí sim, mencionado da forma juridicamente mais correta.

Mas tal não tem a propriedade de neutralizar o sentido que, nos termos sobreditos, é atribuível às declarações do contrato de penhor em discussão nos presentes autos.

Procede, pois, o recurso, não sendo de manter o acórdão recorrido.

Consequências para a graduação dos créditos da procedência do recurso

A sentença da 1ª instância (mantida pelo acórdão recorrido) decidiu graduar os créditos na parte aqui relevante, da seguinte forma:

B - Pelo produto da venda do Estabelecimento Comercial denominado "Farmácia T.......", incluindo o Alvará de funcionamento emitido pelo INFARMED sob o nº …...97:

1 – O crédito da Alliance Healthcare, S.A., garantido por penhor;

2 – Os créditos dos trabalhadores, em pé de igualdade e rateadamente;

3 – Os créditos relativos a IRS, no montante de 2.008,83€, a IRC, no montante de 6.555,38€, a IVA, no montante de 23.821,66€ o crédito da SS, até ao montante de 28.586,40€, em pé de igualdade e rateadamente;

4 – O crédito do Novo Banco até ao montante de 51.000,00€;

5 – Todos os demais créditos, em pé de igualdade e rateadamente, incluindo os demais créditos dos credores identificados em 3 e 4;

6 – Os créditos subordinados pelos valores de 36,34€ e 4,50€, em pé de igualdade e rateadamente.

Adquirida que está, nos termos sobreditos, a validade do penhor contratado entre a Insolvente e o BES, esta graduação tem que ser reformulada em atenção a essa validade.

O penhor foi contratado entre a Insolvente e o BES em 28 de dezembro de 2007.

O contrato de penhor entre a Insolvente e a Credora Alliance Healthcare, S.A. foi firmado em 7 de julho de 2011.

Não há no caso concreto nenhum sistema de registo a levar em linha de conta e que imponha prioridade diferente daquela que é conferida pela data de constituição dos penhores.

Vale, por isso o princípio prior in tempore, potior in jure, o que significa que o crédito do Recorrente Novo Banco, S.A. (garantido por penhor em primeiro grau) prefere ao da Credora Alliance Healthcare, S.A. (garantido por penhor em segundo grau).

Anote-se, a propósito, que estamos perante penhor sem desapossamento, aplicando-se ao contrato de penhor celebrado com o BES (por ser um estabelecimento bancário autorizado) o art. 1.º do Decreto-Lei n.º 29833 (de 17 de agosto de 1939), de cujo § 1.º se retira (e sem prejuízo da menção aí exigida e das consequências penais aí fixadas) que a lei admite a constituição de penhores sucessivos sobre o mesmo objeto, preferindo os penhores por ordem de datas.

Consequentemente - e dado que se impõe manter intocado o decidido na parte não impugnada -, são de graduar pela forma seguinte os créditos para satisfação pelo produto da venda do Estabelecimento Comercial denominado Farmácia ......., incluindo o alvará de funcionamento emitido pelo INFARMED sob o nº …..97:

1 – O crédito do Novo Banco, S.A., na medida em que é garantido pelo penhor;

2 – O crédito da credora Alliance Healthcare, S.A., na medida em que é garantido pelo penhor;

3 – Os créditos dos trabalhadores, em pé de igualdade e rateadamente;

4 – Os créditos relativos a IRS, no montante de 2.008,83€, a IRC, no montante de 6.555,38€, a IVA, no montante de 23.821,66€ o crédito da SS, até ao montante de 28.586,40€, em pé de igualdade e rateadamente;

5 – O crédito do Novo Banco até ao montante de 51.000,00€;

6 – Todos os demais créditos, em pé de igualdade e rateadamente, incluindo os demais créditos dos credores identificados em 4 e 5;

7 – Os créditos subordinados pelos valores de 36,34€ e 4,50€, em pé de igualdade e rateadamente.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista, e, revogando nessa parte o acórdão recorrido e a sentença da 1ª instância, decidem que serão pagos pela ordem seguinte os créditos pelo produto da venda do Estabelecimento Comercial denominado Farmácia T......., incluindo o alvará de funcionamento emitido pelo INFARMED sob o nº .......97:

1º – O crédito do Novo Banco, S.A., na medida em que é garantido pelo penhor;

2º – O crédito da Alliance Healthcare, S.A., na medida em que é garantido pelo penhor;

3º – Os créditos dos trabalhadores, em pé de igualdade e rateadamente;

4º – Os créditos relativos a IRS, no montante de 2.008,83€, a IRC, no montante de 6.555,38€, a IVA, no montante de 23.821,66€ o crédito da SS, até ao montante de 28.586,40€, em pé de igualdade e rateadamente;

5º – O crédito do Novo Banco até ao montante de 51.000,00€;

6º – Todos os demais créditos, em pé de igualdade e rateadamente, incluindo os demais créditos dos credores identificados em 4 e 5;

7º – Os créditos subordinados pelos valores de 36,34€ e 4,50€, em pé de igualdade e rateadamente.

Regime de custas:

Os contra-alegantes Alliance Healthcare, S.A. e AA e Outros são condenados nas custas do presente recurso e nas custas da apelação, na proporção de 50% para a primeira e de 50% para os segundos. Sendo estes últimos litisconsortes entre si, responde cada qual na proporção de 1/7.

                                                           +

Lisboa, 28 de abril de 2021

José Rainho (Relator)

Graça Amaral (tem voto de conformidade, não assinando por dificuldades de ordem operacional. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

Henrique Araújo (tem voto de conformidade, não assinando por dificuldades de ordem operacional. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

                                                           ++

Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

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[1] Este acórdão foi produzido pelos mesmos juízes que produzem o presente acórdão.
[2] Este acórdão mostra-se subscrito por dois dos juízes que produzem o presente acórdão.
[3] Assim, por exemplo, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Parte Geral, Volume I (1988), pp. 500 e seguintes.
[4] Este acórdão mostra-se subscrito por dois dos juízes que subscrevem o presente acórdão.