EXECUÇÃO
RECLAMAÇÕES DE ACTOS DO AGENTE DE EXECUÇÃO
IRRECORRIBILIDADE
Sumário


Sumário (do relator):

- Decorre do disposto nos art. 3º nº 3, e 655º do CPC que são proibidas as decisões-surpresa, ou seja, proferidas sem prévia oportunidade de participação ou audição de partes, enfermando de nulidade nos termos do art. 195º, na medida em que podem influir no exame ou na decisão da causa.
- No entanto, o tribunal não deve notificar as partes para pronúncia prévia quando o fundamento decisório foi previamente considerado e debatido pelas mesmas.
- O art. 723º, nº 1, al. c) do CPC constitui uma norma especial de irrecorribilidade, isto é, que veda o recurso da decisão que aprecia reclamações de actos do agente de execução.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

“X, S.A.” e “Y – Gestão de Bens Móveis e Imóveis, S.A.” intentaram contra “W - Companhia de Seguros, S.A.”, acção executiva de sentença para pagamento de quantia certa.

Em 26.03.2020 foi apresentada pelo Solicitador de Execução nota de liquidação e despesas e honorários.

Por requerimento de 6.07.2020 veio a executada reclamar dessa nota, pugnando pela correcção da liquidação e pela consequente devolução à executada do valor penhorado em excesso nos presentes autos.

As exequentes pronunciaram-se sobre essa reclamação, nos termos constantes do requerimento de 21/7/2020, pugnando pelo respectivo indeferimento.

Foi proferida decisão sobre a reclamação, que julgou integralmente procedente a reclamação oferecida e determinou a rectificação da nota, nos seguintes termos:
- “Deve o SE proceder à rectificação da nota de 26/3/2020, considerando que em 25/6/2018, e após os pagamento, a executada apenas seria devedora de €: 37.519,93, valor ao qual acresceria a quantia resultante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e juros respectivos.---
- Deve o SE rectificar a nota eliminando o valor dos juros compulsórios que exceda os €: 283,42, já entregues.---
- Deve o SE rectificar a nota de liquidação contagem dos juros quanto às quantias sobejantes após os pagamentos de 25/6/2018 e acréscimo resultante do Acórdão do STJ, tendo por referência como data limite o dia 18/10/2018.—
Custas do incidente a cargo das exequentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.-
Notifique, nomeadamente ao SE que deve juntar nota rectificada em 10 dias.”

Inconformada com tal decisão dela veio recorrer a exequente “X, S.A”., formulando as seguintes conclusões:

1ª- A decisão recorrida, relativamente ao seu segmento: “ Deve o SE proceder à rectificação da nota de 26/3/2020, considerando que em 25/6/2016, e após o pagamento, a executada apenas seria devedora de €: 37.519,93, valor ao qual acresceria a quantia resultante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e juros respectivos”, ofendeu o caso julgado formado, no dia 21 de Junho de 2018, sobre a decisão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferida no dia 5 de Junho de 2018, e ainda, ofendeu o caso julgado, formado no dia 6 de Junho de 2018, sobre a decisão da alínea b) do acórdão do dia 3 de Maio de 2018 do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no Apenso B, e cujo cumprimento, no dia 25 de Junho de 2018, o Agente de execução cumpriu, mediante o pagamento à recorrente da quantia de € 950.257,57.

2ª- A decisão recorrida, relativamente ao seu segmento: “ Deve o SE rectificar a nota eliminando o valor dos juros compulsórios que exceda os €: 283,42, já entregues”, ofendeu o caso julgado formado, no dia 3 de Outubro de 2019, sobre a decisão do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferida, no dia 19 de Setembro de 2019, no Apenso C), e cuja decisão, apenas, incidiu sobre as questões dos juros compulsórios das quantias de € 44.150,38, € 10.689,30, € 435,05 e de € 55.274,73, calculados, liquidados e pagos pelo Agente de execução no dia 25 de Junho de 2018, sobre as decisões das alíneas a), b) e d), transitadas em julgado, no dia 18 de Outubro de 2017, do acórdão de 14 de Setembro de 2017 do Tribunal da Relação de Guimarães.

3ª- A decisão recorrida, relativamente ao seu segmento: “ Deve o SE rectificar a nota de liquidação contagem dos juros quanto às quantias sobejantes após os pagamentos de 25/6/2018 e acréscimo resultante do Acórdão do STJ, tendo por referência como data limite o dia 18/10/2018”, ofendeu o caso julgado formado, no dia 21 de Junho de 2018, sobre a decisão proferida no dia 5 de Junho de 2018 do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que, relativamente à decisão da alínea c) do acórdão de 14 de Setembro de 2017 do Tribunal de Guimarães, manteve desta decisão: “ até efectivo pagamento”.

4ª- Em consequência, foram violadas pela decisão recorrida as disposições do nº 1 do artigo 619º, do artigo 620º e do artigo 621º, todas do Código de Processo Civil, atinentes aos casos julgados materiais e formais, e impõe-se que a decisão recorrida seja revogada e ordenado que seja mantida a nota de 26 de Março de 2020 do Agente de execução.
NA PROCEDÊNCIA DAS ANTERIORES CONCLUSÕES, DECIDIR-SE-Á EM CONFORMIDADE COM O DIREITO APLICÁVEL.

Houve contra-alegações, nelas se pugnando pela inadmissibilidade do recurso e, caso assim não se entenda, pela improcedência do mesmo.

Foi proferido despacho liminar por esta Relação que decidiu pela inadmissibilidade do recurso, julgando-o findo.

Inconformado com tal decisão veio a Recorrente X, S.A., reclamar para a conferência, formulando as seguintes conclusões:

1ª- A apelada, W – Companhia de Seguros, S.A., nas suas contra – alegações impugnou, nos termos consentidos pelo nº 6 do artigo 638º do Código de Processo Civil, a admissibilidade do recurso, interposto pela reclamante, X, S.A..

2ª- Impunha-se, consequentemente, à decisão reclamada que, previamente à sua emissão, observar-se o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 655º, no nº 2 do artigo 654º, e no nº 3 do artigo 3º, todos do Código de Processo Civil, relativamente a essa questão da inadmissibilidade do recurso.

3ª- A fundamentação da decisão reclamada é, totalmente, omissa relativamente à desnecessidade de observar aquelas disposições, referentes a essa questão da inadmissibilidade do recurso.

4ª- A decisão reclamada, previamente à sua emissão, inobservou aquelas disposições, que, por omissão de aplicação, violou.

5ª- A decisão reclamada, no que respeita ao cumprimento prévio dessas disposições dos nºs 1 e 2 do artº 655º e do nº 2 do artigo 654º, ambos do Código de Processo Civil, também, diverge da decisão do despacho 6466033 de 13 de Junho de 2019, proferido por este Tribunal da Relação de Guimarães no processo de recurso nº 2743/17.0T8GMR – C. G 1, e nesta mesma execução, interposto, também, pela aqui reclamante, X, S.A., de decisão caída sobre reclamação da W – Companhia de Seguros, S.A. de acto do agente de execução, em cujo requerimento de interposição do recurso e para a sua admissibilidade, como fundamentos, tinha sido invocada, também, pela aqui reclamante, a ofensa de caso julgado material e formal, e a inconstitucionalidade material do segmento « julgar, sem possibilidade de recurso » da alínea c) do nº 1 do artigo 723º do Código de Processo Civil, em cujas contra – alegações a W – Companhia de Seguros, S.A. tinha impugnado a admissibilidade do recurso, e cuja decisão foi: « Nesta conformidade, nos termos conjugados dos arts. 655º, nºs 1 e 2 e 654º, nº 2 do CPC, determino a audição das apelantes, “ X, S.A.” e “ Y – Gestão de Bens Móveis e Imóveis, S.A.” para, em 10 dias, indicarem, querendo, o que tiverem por conveniente ».

6ª- Em consequência, impõe-se que a decisão reclamada seja revogada e determinado que a reclamante seja notificada para, no prazo de 10 dias, se pronunciar sobre a questão da inadmissibilidade do recurso, suscitada pela apelada, W – Companhia de Seguros, S.A., nas suas contra – alegações.

7ª- O segmento da fundamentação da decisão reclamada: « A invocação da violação de caso julgado alegada pela reclamante não tem a virtualidade de tornar admissível o recurso em apreço, porquanto é inaplicável ao presente caso o disposto no artº 629º, nº 2, al. a) do CPC » é errado, porque esta norma admite recurso ordinário até ao Supremo Tribunal de Justiça e tem como fim assegurar o princípio constitucional, consagrado no nº 2 do artigo 205º da Constituição, destinado a garantir a segurança e a certeza jurídicas das decisões dos tribunais, transitadas em julgado, e porque, quando no requerimento da interposição do recurso para a sua admissibilidade é invocada a ofensa de caso julgado material ou formal, o recurso é sempre admissível, por necessária integração no sistema jurídico, ditada pelo artigo 9º do Código Civil, pelo nº 1 do artigo 551º e pelo artigo 852º, estes do Código de Processo Civil, da norma da alínea c) do nº 1 do artigo 723º do Código de Processo Civil.

8ª- E a decisão reclamada está em contradição com a decisão do despacho 6573536 de 9 de Setembro de 2019, proferido por este Tribunal da Relação de Guimarães no processo de recurso, identificado na precedente quinta conclusão e interposto nesta mesma execução pela reclamante com invocação de ofensa de caso julgado material e formal de decisão de reclamação pela W – Companhia de Seguros, S.A. de acto do agente de execução, e cuja decisão foi: « Recurso(s), próprio(s), tempestivo(s) e admitido(s) com o modo de subida e efeito adequados».

9ª- O segmento da fundamentação da decisão reclamada: « A norma em apreço ( artº723º, nº 1, al. c) do CPC) não se traduz numa total restrição ao direito de recurso. Pois, a intervenção do juiz, ao abrigo deste artigo, constitui já uma “ 2ª instância”, na medida em que intervém para reapreciar um acto que foi praticado pelo agente de execução, com o qual uma das partes não se conformou e que por isso dele reclamou » é errado, porque lhe subjaz a ideia de completo disparate de conversão do agente de execução em juiz de primeira instância e do juiz da primeira instância em juiz de segunda instância.

10ª- Os segmentos da fundamentação da decisão reclamada: « A natural escassez dos meios disponibilizados para o estado para cumprir a sua função de administrar a justiça », e « a necessidade da sua racionalização contende com a admissibilidade ilimitada de recursos » são, manifestamente, inócuos para destruírem os princípios constitucionais ao direito de recurso para os tribunais para a defesa dos direitos e dos interesses, que os tribunais reconheceram nas suas decisões transitadas em julgado, e do princípio universal ao direito de recurso efectivo para as juridições, respectivamente: i) O princípio constitucional do Estado de direito, consagrado no artigo 2º da Constituição, baseado no respeito e na garantia dos direitos, legalmente protegidos; ii) O princípio constitucional da validade das leis depender da sua conformidade com a Constituição, consagrado no nº 3 do artigo 3º da Constituição; iii) O princípio constitucional da tarefa fundamental do Estado de garantir os direitos e os princípios do Estado de direito, consagrado na alínea b) do nº 1 do artigo 9º da Constituição; iv) O princípio constitucional da proporcionalidade da lei de só poder restringir direitos e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, e das restrições terem delimitar-se ao necessário para salvaguardar, apenas, outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, consagrado no nº 2 do artigo 18º da Constituição; v) O princípio constitucional do acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva para defesa dos direitos e dos interesses legalmente protegidos, consagrado no nº 1 do artigo 20º da Constituição; vi) O princípio constitucional da obrigatoriedade do respeito por todos, incluindo pelos tribunais, das decisões dos tribunais, consagrado no nº 2 do artigo 205º da Constituição; e vii) O princípio universal do direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais, consagrado no artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, todos invocados pela reclamante no requerimento da interposição do recurso e para a sua admissibilidade, explicados e justificados desde a página 11 à página 17 do corpo desta reclamação, e que a fundamentação da decisão reclamada violou.

11ª- Em consequência, por violação dos princípios da antecedente décima conclusão, é, materialmente, inconstitucional o segmento da norma: « Julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de actos do agente de execução » da alínea c) do nº 1 do artigo 723º do Código de Processo Civil.

12ª- E também, é, orgânicamente, inconstitucional esse segmento dessa norma, por violação do nº 2 do artigo 165º da Constituição, porque, correspondendo ipis verbis ao aditado à alínea c) do nº 1 do artigo 809º do anterior Código de Processo Civil, pelo Governo através do Decreto- Lei nº 226/2008 de 20 de Novembro, o Governo excedeu, materialmente, a autorização legislativa, que lhe foi concedida no artigo 3º da Lei nº 18/2008 de 21 de Abril.

13ª- Em consequência da procedência das antecedentes sétima à décima segunda conclusões, impõe-se que a decisão reclamada seja revogada e substituída por decisão que admita o recurso interposto pela reclamante.

A Recorrida W – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. respondeu à reclamação, pugnando pela inadmissibilidade do recurso e manutenção da decisão reclamada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para o presente recurso, há a considerar a factualidade constante do relatório supra.

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Da questão prévia colocada pela Reclamante

Alega a Reclamante que a apelada, W – Companhia de Seguros, S.A., nas suas contra – alegações impugnou, nos termos consentidos pelo nº 6 do artigo 638º do Código de Processo Civil, a admissibilidade do recurso, interposto pela reclamante, X, S.A., pelo que se impunha, consequentemente, à decisão reclamada que, previamente à sua emissão, observar-se o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 655º, no nº 2 do artigo 654º, e no nº 3 do artigo 3º, todos do Código de Processo Civil, relativamente a essa questão da inadmissibilidade do recurso.
Vejamos.
Dispõe o nº 1 doo art. 655º do Código de Processo Civil que se entender que não pode conhecer-se do objeto do recurso, o relator, antes de proferir decisão, ouvirá cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias.
E acrescenta-se no nº 2 de tal artigo que sendo a questão suscitada pelo apelado, na sua alegação, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo anterior.
Esta norma visa acautelar o cumprimento efectivo do princípio do contraditório e evitar confrontar as partes com decisões surpresa, estando em linha com o art. 3º do CPC, que se insere no título das disposições e dos princípios fundamentais.
Nos termos do nº 3, do art. 3º do Código de Processo Civil, o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Por sua vez, o nº 4 desse artigo prevê que às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
Consagrando a Constituição da República Portuguesa, no seu atrt. 20º, nº 4, a garantia de processo equitativo, daí decorre que a medida de tutela final (no caso, judicial) seja produzida com participação dos titulares da relação litigiosa.
No dizer de Rui Pinto, CPC Anot., Vol. I, pag. 39 e ss, “num sentido objectivo a participação dos interessados é a própria lógica de estruturação do processo e que se sintetiza numa afirmação: a decisão judicial sobre uma providência requerida deve ser o resultado de um procedimento ou método que implique uma faculdade de comparticipação, colaboração ou influência paritárias”. Assim, no decurso do processo, as partes, independentemente da sua posição (activa ou passiva), podem pronunciar-se previamente sobre cada acto que as afecte.
Ainda segundo o mesmo autor, num sentido subjectivo o princípio do contraditório implica um direito de defesa.
Decorre do exposto que são proibidas as decisões surpresa, ou seja, sem prévia oportunidade de participação ou audição de partes, de modo que não é lícito ao juiz decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, como refere o art. 3º, nº 3, citado.
Neste sentido, o Ac. do STJ, de 27.09.2011, sustenta que “o direito de audiência consubstancia-se no direito do interessado a conhecer, previamente à decisão, o sentido provável desta, e a poder expor sobre ele o seu ponto de vista, direito que tem apoio no art. 267º, nº 5, da CRP. Para poder exercer o seu direito, o interessado deverá ser notificado dos elementos de facto e de direito relevantes para a decisão, pois, sem esses elementos seria impossível o interessado apresentar os seus argumentos”.
Assim, uma decisão-surpresa enferma de nulidade nos termos do art. 195º, na medida em que pode influir no exame ou na decisão da causa.
Na doutrina e na jurisprudência tem surgido sobre esta matéria um conceito de decisão-surpresa aparentemente mais restrito, entendendo-se por ela a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes (cfr Ac. RL de 7.04.2016 e Lebre de Freitas, CPC anot., I, 9).
Este conceito restrito de decisão-surpresa, com o qual se concorda, tem importância para delimitar a dispensa de audição prévia por “manifesta desnecessidade”: o tribunal não deve notificar as partes para pronúncia prévia quando o fundamento decisório foi previamente considerado pelas partes (ainda que implicitamente) ou estas não o podiam ignorar, por evidente. Em todo o caso, como refere Rui Pinto, ob. cit., pag. 41, a dispensa de audição prévia por “manifesta desnecessidade” é execional: o seu uso deve ser parcimonioso; na dúvida deve o tribunal ouvir antes de decidir.”
Tecidas estas considerações e revertendo ao caso dos autos, temos que a recorrente no seu requerimento de recurso alegou nos seguintes termos:
O recurso é admissível por causa dos dois seguintes fundamentos: O primeiro, porque é, materialmente, inconstitucional a norma da alínea c) do nº 1 do artigo 723º do Código de Processo Civil, que dispõe “ compete ao juiz julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de actos e impugnações de decisões do agente de execução, no prazo de 10 dias”, Uma vez que, “ julgar, sem possibilidade de recurso”, viola: i) o princípio constitucional do Estado de direito, previsto no artigo 2º da Constituição, baseado no respeito e na garantia dos direitos, legalmente protegidos, e, ainda, baseado no artigo 8º da “ Declaração Universal dos Direitos do Homem”, em que está escrito “ Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais contra actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei”, que vincula o legislador português, nos termos previstos no nº 2 do artigo 16º da Constituição; ii) o princípio constitucional da validade das leis depender da sua conformidade com a Constituição, previsto no nº 3 do artigo 3º da Constituição; iii) o princípio constitucional da tarefa fundamental do Estado de garantir os direitos e os princípios do Estado de direito, previsto na alínea b) do artigo 9º da Constituição; iv) o princípio constitucional da proporcionalidade da lei de só poder restringir direitos e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, e das restrições terem de limitarseao necessário para salvaguardar, apenas, outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, previsto no nº 2 do artigo 18º da Constituição; v) o princípio constitucional do acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva para defesa dos direitos e dos interesses legalmente protegidos, previsto no nº 1 do artigo 20º da Constituição; e vi) o princípio constitucional da obrigatoriedade do respeito por todos, incluindo pelos tribunais, das decisões dos tribunais, previsto no nº 2 do artigo 205º da Constituição.
O segundo fundamento, porque se funda na ofensa de caso julgado, previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 629º do Código de Processo Civil, que a decisão recorrida violou, relativamente aos casos julgados formados sobre as decisões, proferidas nos dias 14 de Setembro de 2017, 3 de Maio de 2018, 5 de Junho de 2018 e 19 de Setembro de 2019, respectivamente, no processo principal da acção de condenação pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães; no Apenso B pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães; no processo principal da acção de condenação pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, e no Apenso C pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, todas transitadas em julgado, e, também, respectivamente, nos dias 18 de Outubro de 2017, 6 de Junho de 2018, 21 de Junho de 2018 e 3 de Outubro de 2019.
Termos em que, junto este aos autos, requer a V. Exª, que se digne admitir o recurso.”
No seguimento da notificação deste requerimento e respectivas alegações de recurso, a Recorrida veio rebater todos estes argumentos da Recorrente em sede de contra-alegações, no ponto “II” de tal peça processual, sob o título “DA MANIFESTA INADMISSIBILIDADE DO RECURSO INTERPOSTO” e conclui pela inadmissibilidade do mesmo.
Decorre, assim, que tendo a Recorrente/Reclamante apresentado detalhadamente as razões pelas quais considera que o recurso é admissível e tendo a Recorrida sobre esta concreta questão se limitado a responder a tais argumentos, rebatendo-os, temos de concluir que a matéria em causa foi expressamente debatida pelas partes no processo, através dos respectivos requerimentos supra citados.
Perante isso, não é exigível, in casu, a audição prévia da Recorrente sobre a matéria da inadmissibilidade do recurso, por estarmos perante manifesta desnecessidade. Pois, trata-se de uma situação em que o fundamento decisório foi previamente considerado e debatido pelas partes, não devendo, por isso, o tribunal notificar as mesmas para nova pronúncia.
Deste modo, conclui-se que não ocorre a apontada violação do princípio do contraditório e, consequentemente, improcede a pretendida revogação da decisão reclamada para conferir à reclamante prazo ara se pronunciar sobre a matéria.

*
As questões colocadas pela recorrente, tendo em vista, além do mais, a admissibilidade do recurso prendem-se com a por si invocada inconstitucionalidade material da norma da alínea c) do nº 1 do artigo 723º do Código de Processo Civil, bem como a alegada violação do caso julgado pelo tribunal a quo.
Vejamos então da questionada admissibilidade do recurso.
A decisão recorrida decidiu a reclamação apresentada pela executada à nota de liquidação e despesas e honorários apresentada pelo agente de execução, na acção executiva supra referenciada.
Assim, dúvidas não restam, nem vem questionado no recurso, que a decisão recorrida se insere na previsão do art. 723º, nº 1, al. c) do CPC que dispõe que “compete ao juiz julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de actos e impugnações de decisões do agente de execução, no prazo de 10 dias”.
Estamos aqui perante uma norma especial que limita, sem qualquer excepção, as possibilidades de recurso das decisões proferidas na sequência de reclamação de actos do agente de execução. De modo que, cabe ao juiz de primeira instância decidir dessa matéria, sem possibilidade de recurso.
Esta limitação da possibilidade de recurso aqui especialmente prevista, não é dependência do critério geral de admissão de recurso das decisões judiciais que se prende com o valor da causa e da sucumbência, previsto no art. 629º, nº 1, do CPC.
Com efeito, o nº1 de tal artigo dispõe que o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.
E como desvio a esta regra do valor da causa e da sucumbência quanto à admissão de recurso, o nº 2 e o nº 3 do mesmo artigo preveem situações tipificadas em que, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso.
Vale isto por dizer que, em regra, para o recurso ser admissível, tem de se atender ao valor da causa e ao valor da sucumbência (cfr art. 629º, nº 1, do CPC). Já os nº 2 e 3 de tal artigo tipificam os casos em que, como excepção aquela regra, é sempre admissível recurso.
Assim sendo, as apontadas excepões à aludida regra de admissibilidade de recurso assente no valor da causa e no valor da sucumbência não são aplicáveis quando, como é o caso vertente, estamos perante uma norma especial, que prevê a irrecorribilidade das decisões judiciais, conforme se dispõe no art. 723º, nº 1, al. c) do CPC . Neste sentido se sumariou no Ac. da RC de 22.01.2019, no proc. 556/08.0TBPMS-D.C1, que “I - A decisão do juiz que incidiu sobre reclamação do executado acerca do valor base da venda do bem, é, porque este valor é determinado pelo agente de execução – artº 812º do CPC – irrecorrível: cfr. artº 723º nº1 al. c) do CPC.” Ou seja, de harmonia com esta norma, as decisões judiciais que decidem reclamações de actos do agente de execução são, em qualquer caso, irrecorríveis. As excepções à regra do art. 629º, nº1, previstas nos seus nºs 2 e 4, não são aplicáveis aos casos em que existe norma especial de irrecorribilidade consagrada no art. 723º, nº 1, al. c) do CPC.
No dizer de A. Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 72 e ss, estamos aqui parente uma norma que “pura e simplesmente veda (…) a admissibilidade de recurso” (…), que consagra (…) ”a irrecorribilidade da decisão que aprecia reclamações de atos do agente de execução”.
Deste modo, a invocação da violação de caso julgado alegada pela recorrente não tem a virtualidade de, a comprovar-se, tornar admissível o recurso em apreço, porquanto é inaplicável ao presente caso o disposto no art. 629º, nº 2, al. a) do CPC.
Invoca a recorrente a inconstitucionalidade material do regime jurídico previsto no art. 723º, nº 1, al. c) do CPC, na medida em que veda o recurso da decisão do juiz.
Tal não merece acolhimento.
Considerando a natural escassez dos meios disponibilizados para o estado cumprir a sua função de administrar a Justiça, a necessidade da sua racionalização contende com a admissibilidade ilimitada de recursos que, de resto, não tem cobertura ou fundamento na nossa constituição. Daí que o Tribunal Constitucional, através da sua jurisprudência vem entendendo que, em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais não integra forçosamente o direito ao recurso ou o chamado duplo grau de jurisdição. Neste sentido, veja-se Lopes do Rego, Comentários ao CPC, pág. 453, e “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, págs. 763 e segs., citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, segundo a qual o que existe é um “genérico direito ao recurso de actos jurisdicionais, cujo conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude”, ainda que seja vedada “a redução intolerável ou arbitrária” desse direito. Cfr. ainda diversa jurisprudência citada por Lebre de Freitas e Cristina Máximo dos Santos em O Processo Civil na Constituição, págs. 167 e segs.
Acresce que vem sendo assumido que tal direito ao recurso em matéria cível não é necessariamente uma decorrência do que se dispõe na Declaração Universal dos Direitos do Homem ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, págs. 99 e 100).
Assim, podemos concluir que o direito ao recurso, tal como acontece em geral nos demais ordenamentos jurídicos contemporâneos, não configura uma natureza absoluta, já que da Constituição não resulta a existência de um direito irrestrito a impugnar todas as decisões judiciais. O que faz com que a existência de vários graus de jurisdição dependa de certas condições objectivas e ou subjectivas fixadas pelo legislador ordinário.
Temos, no entanto, por certo que está vedado ao legislador ordinário suprimir em bloco a recorribilidade ou fazê-la depender de circunstâncias que traduzam a violação do princípio da proporcionalidade, o que não significa que que toda e qualquer restrição a um ou mais graus de jurisdição traduza violação de regras ou de princípios constitucionais (Cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, pág. 101, Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 377, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 75).
A este respeito, Lopes do Rego, sustenta que as “limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais” (Cfr, “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, inserido em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, pág. 764).
Deste modo, inexistindo um critério formal que delimite os poderes do legislador ordinário sobre a temática do direito ao recurso, podemos assentar, como o faz Ribeiro Mendes, que, dentro dos princípios enunciados, o legislador “poderá ampliar ou restringir os recursos civis, quer através da alteração dos pressupostos de admissibilidade, quer através da mera actualização dos valores das alçadas” (cfr. Recursos em Processo Civil, pág. 101).
Pelo exposto, somos a concluir que o teor da norma prevista no art. 723º, nº 1, al c) do CPC não consubstancia qualquer inconstitucionalidade material, designadamente, por alegada violação do princípio constitucional do Estado de direito, previsto no artigo 2º da Constituição, baseado no respeito e na garantia dos direitos, legalmente protegidos, e, ainda, baseado no artigo 8º da “ Declaração Universal dos Direitos do Homem”, bem como por invocada violação do disposto nos art. 3º, nº 3, 9º, al. b), 18º, nº 2, 20º, nº 1 e 205º, nº 2 da CRP.
De resto, a norma em apreço (art. 723º, nº 1, al. c) do CPC) não se traduz numa total restrição ao direito de recurso. Pois, a intervenção do juiz, ao abrigo desse artigo, constitui já uma “2ª instância”, na medida em que intervém para reapreciar um acto que foi praticado pelo agente de execução, com o qual uma das partes não se conformou e que por isso dele reclamou.
De resto, em sede da reclamação em apreço veio a Reclamante alegar e aditar uma outra inconstitucionalidade, desta vez orgânica.
Alega a reclamante, só agora, que o segmento da norma « Julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de actos do agente de execução » da alínea c) do nº 1 do artigo 723º do Código de Processo Civil, (…) é, orgânicamente, inconstitucional esse segmento dessa norma, por violação do nº 2 do artigo 165º da Constituição, porque, correspondendo ipis verbis ao aditado à alínea c) do nº 1 do artigo 809º do anterior Código de Processo Civil, pelo Governo através do Decreto- Lei nº 226/2008 de 20 de Novembro, o Governo excedeu, materialmente, a autorização legislativa, que lhe foi concedida no artigo 3º da Lei nº 18/2008 de 21 de Abril.
Ora, estamos aqui perante uma questão nova, que não foi previamente colocada pelas partes em sede de apelação, pelo que não é de atender.
Conforme se alega a Recorrida na sua resposta à presente reclamação, “tem sido interpretação consistente de que a questão da inconstitucionalidade deve ser suscitada no processo logo que o interveniente processual dela tenha conhecimento.
Ora, se a Reclamante e Exequente já havia tido oportunidade de levantar a inconstitucionalidade do artigo 723.º, n.º 1, al. c), podia e devia ter aduzido todos os argumentos que no seu entender apontavam para a inconstitucionalidade da referida norma.
Sendo-lhe abusivo vir “a conta gotas” acrescentar outras inconstitucionalidades de que a norma alegadamente padece”.
Em suma, sendo irrecorrível a decisão sub judice, o presente recurso não é de admitir.
A inadmissibilidade do recurso constitui obstáculo ao conhecimento do objecto do mesmo e justifica que seja julgado findo (artº 652º, nº1, do CPC).
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DECISÃO

Nestes termos, pelos motivos indicados, acordam os juízes desta Relação em julgar inadmissível o recurso e, em consequência, não conhecer do seu objecto, julgando-o findo, assim improcedendo a reclamação em apreço.
As custas são a cargo da Recorrente.
Notifique.
TRG, 20.05.2021

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Conceição Bucho
António Sobrinho